Acessibilidade / Reportar erro

A QUESTÃO DO “INSÍLIO” EM MULHERES DE CINZA: O MONOLINGUISMO E A MONOIDENTIDADE DO OUTRO

THE ISSUE OF “INNER EXILE” IN MULHERES DE CINZA: MONOLINGUALISM AND THE MONOIDENTITY OF THE OTHER

Resumo

Focaliza-se o romance moçambicano como terreno propício para a representação do insílio, isto é, o exílio interno no âmbito da língua portuguesa, e paralelamente, dos processos de identificação cultural, a partir da representação máxima da personagem Imani, tradutora do português na comunidade local. Com base na leitura da obra O monolinguismo do outro ou a prótese de origem, de Derrida procura-se analisar a língua do colonizador enquanto instância surgida no intervalo do jogo entre a presença e a ausência, problematizando-a como o fora, isto é, “a língua que não é minha”, mas advinda do outro. À medida que escapa da total apreensão, esta língua traz consigo a promessa de transbordamento. Nessa linha de raciocínio, reafirma-se, de igual modo, a impossibilidade de uma identidade plena, pronta e acabada, demonstrando-se a configuração de identidades em constante deslocamento.

Palavras-Chave
Monolinguismo; Monoidentidade; Exílio; Insílio

Abstract

The Mozambican novel is a fertile ground for representing both the inner exile within the Portuguese language and the processes of cultural identification, stemming from the representation of the character of Imani, a Portuguese language translator at her local village. Based on the reading of The monolingualism of the other or the prosthesis of origin, by Jacques Derrida, this work aims at analysing the language of the coloniser as a scenario emerging from the interval of the play between presence and absence, problematising it as the outside, i.e. “the language that is not mine”, but coming from the other. As the language may not be entirely assimilated, it brings along a promise of overflowing. Following this line of reasoning, the impossibility of a full and complete identity is iterated as it shows a configuration of identities in continuous displacement.

Keywords
Monolingualism; Monoidentity; Exile; Inner Exile

Mas eu sou o exilado. Sela-me com teus olhos. Leva-me para onde estiveres — Leva-me para o que és. Restaura-me a cor do rosto E o calor do corpo A luz do coração e dos olhos, O sal do pão e do ritmo, O gosto da terra... a terra natal. Protege-me com teus olhos. Leva-me como uma relíquia da mansão do pesar. Leva-me como um verso de minha tragédia; Leva-me como um brinquedo, um tijolo da casa Para que nossos filhos se lembrem de voltar. (Mahmoud Darwish qtd. inSaid 52Said, Edward. “Reflexões sobre o exílio”. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, edited by Edward Said. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 46-60.)

1. O Monolinguismo do Outro em Derrida

Em termos teóricos, na obra O Monolinguismo do Outro ou a Prótese de Origem, Jacques Derrida revisita a noção de língua materna partindo de sua experiência pessoal. Nascido na Argélia, antiga colônia francesa pertencente à região do Magrebe, também conhecida como “África branca”, o autor identifica-se como judeu-franco-magrebino e elege o francês como sua morada; em outras palavras, a “única” responsável pelo seu monolinguismo. Neste caso, considera o seu idioma como derivado da língua do mestre, do colonizador, isto é, da língua do outro; Derrida (O Monolinguismo 13) afirma: “Eu tenho senão uma língua, e ela não é minha”. Em primeiro lugar, declara que a sua língua materna não lhe pertence, porque é tributária de um processo de imposição colonial, e, em segundo lugar, justifica a impossibilidade de apreensão absoluta da “língua materna” pelo falante, ainda que nativo.

De qualquer maneira, a relação do sujeito com a sua língua — seja materna ou não — nunca se dá de maneira estável e impassível. Derrida (O Monolinguismo 38) alude à “ex-apropriação da língua”, visto que não se pode falar em uma apropriação plena, corroborando a afirmação de que “não existe propriedade natural da língua”. Destarte, ausência indica a promessa ou o adiamento ao pertencimento da língua. Ilustrando o testemunho exemplar de Derrida, que apesar de ser argelino de nascimento, tendo o árabe como o idioma local falado por mais de 90% da população na Argélia, o autor adota o francês como “sua” língua materna. Paradoxalmente, cabe salientar que a expropriação colonial desencadeou uma opressão linguística, porquanto foram “obrigados a aprender a língua dos senhores, do capital e das máquinas”, em outras palavras, tiveram que “ceder à homo-hegemonia da língua dominante” (DerridaDerrida, Jacques. O Monolinguismo do outro ou a prótese de origem. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001., O Monolinguismo 56).

Assim, prevalece, na proposta teórica do Monolinguismo do Outro, um duplo interdito. No primeiro caso, “o acesso a outra língua para além da francesa da Argélia foi interdito. Esse mesmo eu é também alguém a quem o acesso ao francês também foi interditado [...] Um interdito que interditava o acesso às identificações” (DerridaDerrida, Jacques. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., O Monolinguismo 46). No segundo caso, em se tratando do idioma de origem, “o estudo facultativo do árabe era naturalmente permitido. Nós sabíamo-lo autorizado, menos encorajado [...] O árabe, língua estrangeira facultativa na Argélia!” (DerridaDerrida, Jacques. “Carta a um amigo japonês”. Tradução de Érica Lima. Tradução: a prática da diferença, edited by Paulo Ottoni. 2nd ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2005, pp. 21-27., O Monolinguismo 54). Em resumo, o francês assumia a função de uma prótese de origem da língua materna, visto que as normas, as regras e a cultura emanavam de uma lei vinda de algures, do outro do outro; já o árabe ou o berbere, a língua subtraída, “tornava-se sem dúvida a mais estrangeira” (DerridaDerrida, Jacques. O Monolinguismo do outro ou a prótese de origem. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001., O Monolinguismo 58). De igual modo, a língua materna converte-se em reafirmação, apropriação nunca total daquilo que é herdado. Afinal, o sujeito transforma, altera e desloca a sua língua ao mesmo tempo em que é transformado, alterado e deslocado por meio dela, em uma espécie de identificação deslocada da língua e, por consequência, do movimento de constituição identitária. Com efeito, paralelamente à língua e aos processos de identificação, subjaz, nessa esteira, a impossibilidade de uma autobiografia; de modo particular, a história de si não passaria de mera fábula, percorrendo os meandros da memória e do esquecimento ou como experiência da errância e da vagabundagem da língua.

Nesta linha de raciocínio, a relação entre língua e identidade torna-se problemática, haja vista que o foco é realmente a relação conturbada entre sujeito e a língua que não é sua. No entanto, ao mesmo tempo, é a única em que ele pode (se) dizer. Vale lembrar que essa “tensão” preliminar na língua desliza para o campo das identidades, uma vez que persiste uma impossibilidade de falar de si, de uma possível identidade, pois se trata de um processo, uma tentativa de identificação, culminando em uma “perturbação da identidade” (DerridaDerrida, Jacques. “Carta a um amigo japonês”. Tradução de Érica Lima. Tradução: a prática da diferença, edited by Paulo Ottoni. 2nd ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2005, pp. 21-27., O Monolinguismo).

Segundo Derrida, “a anamnese autobiográfica pressupõe a identificação. Não a identidade, justamente. Uma identidade nunca é dada, recebida ou alcançada, não. Apenas existe o processo interminável, indefinidamente fantasmático da identificação” (O Monolinguismo 43). Desse modo, não é possível que a identidade se feche em uma totalidade, sob a ótica de Derrida, a identidade bifurca-se em duas direções, na primeira linha pressupõe algo fixo, pronto e acabado, já na segunda linha de reflexão aponta para o processo ininterrupto de identificações, contínuo e inconstante, que por sua vez está submetido ao jogo da differánce, referindo-se aos deslocamentos ou deslizamentos sobre as diferentes plataformas identitárias.

No sentido clássico, entende-se que, para escrever sua autobiografia, seria ao menos preciso que o indivíduo soubesse “dizer-se”; afinal, em que língua “eu se diz ou eu-me digo? (DerridaDerrida, Jacques. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001., O Monolinguismo 44). O “fantasma identitário” nasce da inexistência de um “eu”, que, por sua vez, pressupõe um “fantasma da língua materna”, a ausência correspondente à escrita e a presença enquanto entidade vinculada à fala, concebida dentro do sistema logofonocêntrico. Por conseguinte, rasura a autobiografia e ocupa o espaço fronteiriço e intermediário do jogo em seus múltiplos deslocamentos linguísticos e identitários.

2. O Monolinguismo e a “Monoidentidade do Outro”1 1 Termo cunhado pelos autores do artigo para se referirem ao processo de assimilação identitária, problematizando as identidades coloniais enquanto processo ininterrupto de identificações; em outras palavras, como identidade ausente ou ainda em construção, porquanto proveniente do outro, face à identidade/língua materna vinculadas à constituição do “eu”. : deslocamentos linguísticos e identitários

Toda a língua na medida em que procede do outro, seja ele, o colonizador, ou os familiares, é sempre “voltada e reconduzida ao outro” (DerridaDerrida, Jacques. O Monolinguismo do outro ou a prótese de origem. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001., O Monolinguismo), visto que subsiste um processo ininterrupto de transformação da língua que a torna sempre do outro do outro, não sendo possível rastrear a sua origem, ou mesmo, descobrir a propriedade original previamente dada. No tocante à identidade, o fenômeno é similar, aludindo ao evento da colonização e das novas formas de colonialidades, as identidades tornaram-se plurais, apesar da pressão de uma força centrípeta que tende a homogeneizá-las, a fim de cederem à pressão do Mesmo, convertendo-se em uma monoidentidade do outro do outro.

O estranhamento da língua e, extensivamente, dos processos de identificação sugerem uma série de deslocamentos no âmbito linguístico e identitário. Se o que prevalece nas duas categorias acima é a indefinição, ou melhor dizendo, o jogo da differánce, os deslocamentos dos sentidos de língua e identidade podem ser justificados por uma espécie de exílio do sujeito na/da língua, bem como dos processos de construção das identidades: o africano se encontra duplamente exilado, em primeira instância porque fala a língua do outro, e em segunda instância, porque até mesmo a sua identidade é deslocada, constituída e fragmentada por matrizes culturais estrangeiras.

O exilado adquire uma nacionalidade estrangeira devido à sua pertença a outra nação. Nesse ínterim, adquire a consciência de uma nova cultura, além de cenários históricos e geografias diversas de modo que “essa pluralidade de visão dá origem a uma consciência de dimensões simultâneas” (Said 59Said, Edward. “Reflexões sobre o exílio”. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, edited by Edward Said. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 46-60.). Nas palavras de Said, o exílio se converte em uma fratura entre o sujeito e a sua terra natal, na separação abrupta do eu com o lar, que jamais poderá ser apagada da memória daqueles que o sofreram. O trauma dá lugar a uma ferida mutiladora, cujos sonhos são minados “pela perda de algo deixado para trás para sempre” (Said 46Said, Edward. “Reflexões sobre o exílio”. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, edited by Edward Said. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 46-60.). Entende-se o fenômeno do exílio pelo curso da vida irremediavelmente interrompido e histórias de vida comprometidas pelo corte do cordão que ligava o sujeito à sua Nação, história, cultura e, por conseguinte, ao seio de sua família:

Na escala do século XX, o exílio não é compreensível nem do ponto de vista estético, nem do ponto de vista humanista: na melhor das hipóteses, a literatura sobre o exílio objetiva uma angústia e uma condição que a maioria das pessoas raramente experimenta em primeira mão; mas pensar que o exílio é benéfico para essa literatura é banalizar suas mutilações, as perdas que inflige aos que as sofrem, a mudez com que responde a qualquer tentativa de compreendê-lo como ‘bom para nós’. Não é verdade que as visões do exílio na literatura e na religião obscurecem o que é realmente horrível? Que o exílio é irremediavelmente secular e insuportavelmente histórico, que é produzido por seres humanos para outros seres humanos e que, tal como a morte, mas sem sua última misericórdia, arrancou milhões de pessoas do sustento da tradição, da família e da geografia?

(Said 47Said, Edward. “Reflexões sobre o exílio”. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, edited by Edward Said. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 46-60.).

Para ilustrar os fatos acima, utilizar-se-á, nesta investigação, a noção de insílio, correspondendo ao “exílio dentro de casa” ou “termo em língua espanhola que designa o estranhamento vivido dentro da própria pátria” (Can 76Can, Nazir Ahmed. “Alter-idade em casa. O exílio interno no romance moçambicano”. Revista Mulemba. 8.14, (2016): 76-91. Portal de Periódicos da UFRJ. 14/06/2019. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4324.
https://revistas.ufrj.br/index.php/mulem...
). Assim, abordar-se-á a representação do insílio no romance moçambicano Mulheres de Cinza, de Mia Couto, enquanto performance de estranhamento vivida no interior da própria nação. Can adota a inscrição “desterro simbólico”, tipicamente associada ao fenômeno desterro, que não se restringe absolutamente ao plano físico, de detenção ou expulsão da pátria, mas que opera, sobretudo, no conjunto de violências psicológicas aos símbolos e elementos culturais de pertença, quais sejam a língua, os ritos, as tradições culturais, desencadeados pela perda ou fratura da identidade do sujeito colonial. Resumidamente, “enquanto expressão de uma identidade vulnerável, o insílio é uma memória reprimida, a cultura de uma consciência em perda” (Can 80Can, Nazir Ahmed. “Alter-idade em casa. O exílio interno no romance moçambicano”. Revista Mulemba. 8.14, (2016): 76-91. Portal de Periódicos da UFRJ. 14/06/2019. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4324.
https://revistas.ufrj.br/index.php/mulem...
), pois nele habita um estrangeiro que sofre mediante o apelo à aceitação e resistência à monoidentidade do outro. Nas palavras de KristevaKristeva, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução de Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994., “estranhamente, o estrangeiro habita em nós, ele é a face oculta de nossa identidade [...] O estrangeiro começa quando surge a consciência da nossa diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes” (9). Prosseguindo, na esteira teórica de Can, delimita-se o corpus do sistema literário moçambicano como propício para se pensar na representação do insílio:

Focalizando o sistema literário moçambicano e situando a reflexão no romance, gênero tardio, mas também aquele que mais se desenvolveu nas duas últimas décadas no país, poderíamos sugerir a inclusão de duas novas categorias: o da prática e o da representação do exílio no interior do próprio território (76).

Para se entender a complexidade por trás da relação do colonizado com a linguagem, Fanon elucida que o negro da colônia passa a ter existência na metrópole graças ao domínio do francês. Neste particular, a língua funciona como instrumento de humanidade e socialização; em outras palavras, “língua para o outro”:

Atribuímos uma importância fundamental ao fenômeno da linguagem: dimensão para-o-outro do homem de cor. Uma vez que falar é existir absolutamente para o outro [...] Falar é estar em condições de empregar um certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização

(Fanon 33-4Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008.).

De fato, a linguagem, ou melhor, a língua do outro, potencializa o africano, conferindo-lhe existência humana, em particular na França, tomando como exemplo a apropriação do francês pelos sujeitos colonizados, e extensivamente na colônia, cujos universos culturais estão subordinados à língua do branco. Sintetizando, ao colonizado é arbitrada a assimilação de uma língua que não é sua, para poder se humanizar por intermédio dela e de identificações culturais que o despersonalizam, mas que se tornam condição fundamental de sobrevida. Consequentemente, instala-se o paradoxo da língua ausente, que não me pertence, e da perda identitária, desencadeando um exílio de si ou insílio no nível da subjetividade.

De um lado, na literatura africana, constata-se a representação de pessoas imersas em uma solidão, por se encontrarem “fora do grupo”, mesmo no território nacional; de outro lado, vê-se indivíduos banidos pela força ou capturados para uma terra distante. Todavia, em ambos os casos, prevalece o muro, a fronteira erguida entre o “nós” e os “outros”. Assim, qualquer que seja o evento, ocorre o deslocamento seja a nível geográfico — em se tratando do soldado Germano, um soldado português que fora enviado a Moçambique —, ou interior, para citar o caso de Imani, que sofre um exílio interno no seio da sua própria comunidade, em ambos os casos, de forma simultânea, somado ao sentimento de angústia de uma ferida incurável pelo fato de estar longe dos seus “iguais”, isto é, a diferença abissal presente na convivência com outros diferentes de si (SaidSaid, Edward. “Reflexões sobre o exílio”. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, edited by Edward Said. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 46-60.).

3. Os fantasmas da Língua/Identidade: A representação do “insílio” em Imani

Em Mulheres de cinza, primeiro livro da trilogia denominada “As areias do Imperador”, de Mia Couto, a narrativa se desenvolve no século XIX, em um momento de animosidade decorrente da disputa territorial entre Portugal e os VaNguni pela posse de Moçambique. Na época, a oposição africana era liderada por Ngungunyane, imperador do Estado de Gaza que controlava a metade sul do território. Entretanto, havia a tribo dos VaChopi, da qual fazia parte a protagonista Imani, cuja comunidade estabelecera uma aliança com Portugal.

Comumente, os povos colonizados, os quais foram subjugados pelas forças coloniais, compartilham desse sentimento de perda da identidade e estranhamento do lugar de origem, provocado pela aquisição de outra língua ou da língua do outro, cristalizando-se na renúncia à língua dita “materna”, tal como se observa na representação da personagem Imani, tradutora local que reúne em si os fantasmas da língua e da identidade:

E, quando anunciei o meu destino, um arrepio lhes percorreu o olhar. E suplicaram que não fosse. Perante a minha insistência sacudiram a cabeça e apressadamente se distanciaram, como se faz dos loucos ou dos leprosos. Antes de me esgueirar por indistintos atalhos dei por mim gritando: — Estão com medo de mim? Pois devem ter medo. Porque saio daqui mulher e volto fantasma

(Couto 149Couto, Mia. As areias do Imperador: uma trilogia moçambicana. Lisboa: Editorial Caminho, 2015).

Imani atravessa o processo da assimilação e resistência, rumo à negociação entre a sua língua materna e a língua portuguesa, entre a identidade cultural dos VaChopi e a obsidiante identidade colonial dos portugueses. Os fios da narrativa são tecidos na alternância de duas perspectivas e vozes: de um lado Imani, jovem africana educada em uma missão católica, falante da língua portuguesa, que, ao renunciar a língua local para apropriar-se do português, sofre o insílio no âmbito linguístico e, concomitantemente, identitário:

— Imani vai sair. Aliás, já há muito que ela não está aqui.

Falava como se não me enxergasse. Acheguei-me e toquei-lhe no braço:

— Estou aqui, mãe.

—Você já saiu, filha. Você fala conosco em português, dorme com a cabeça para o poente. E ainda ontem falou da data do seu aniversário.

(Couto 27-8Couto, Mia. Mulheres de cinza. Lisboa: Editorial Caminho, 2015.).

No tocante à tradução realizada por Imani, observa-se que a desconstrução derridiana concentra-se no deslocamento de sentidos, o qual caminha pari passu com o ato de traduzir. Derrida afirma que a questão da desconstrução é também a questão da tradução e que uma palavra “não extrai seu valor senão de sua inscrição em uma cadeia de substituições possíveis” (DerridaDerrida, Jacques. O Monolinguismo do outro ou a prótese de origem. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001., “Carta a um amigo japonês” 27), em um contexto, entendendo que a tradução não é um acontecimento secundário e que deriva de uma língua ou texto de origem. A desconstrução/tradução é, portanto, “o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de diferenças, do espaçamento pelo qual os elementos se remetem uns aos outros” (DerridaDerrida, Jacques. “Carta a um amigo japonês”. Tradução de Érica Lima. Tradução: a prática da diferença, edited by Paulo Ottoni. 2nd ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2005, pp. 21-27., Posições 33). Nesse sentido, a palavra a traduzir se distancia de uma operação que a transporte de uma língua a outra e exige uma interpretação, uma apropriação da língua do outro que coloca, inexoravelmente, o sujeito tradutor em uma tarefa im(possível). Desse modo, o português em Imani proporciona-lhe, a um só tempo, uma (des)territorialização e abertura/trânsito de sentidos para outros espaços chancelados pelo poder da língua estrangeira. Todavia, apesar de ser um “exercício de dupla traição”2 2 Expressão utilizada pela professora Rita Chaves (2017) em uma palestra na URI (Universidade Frederico Westphalen sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. identitária e linguística, é preciso resistir de algum lugar, nem que para isso seja preciso falar o português ou se apropriar de alguns dos instrumentos de guerra do colonizador:

Talvez tenha sido por isso que parti em socorro na nossa honra e defendi o uso de tradutores como nossa política nos territórios africanos. Falar e fazer falar português fazia parte da nossa missão civilizadora. Sempre acintoso, o cantoneiro advertiu sobre a ingenuidade de confiarmos nos tradutores. A mesma fatal credulidade nos fazia distribuir armamento entre os cafres que tínhamos por nossos aliados. A sentença do desvairado merceeiro não podia ser mais trágica: ‘Havemos de ser mortos com as mesmas espingardas que colocarmos nas mãos deles. E a ordem de matança será dada em português, na língua que colocamos na boca deles’

(Couto 103Couto, Mia. As areias do Imperador: uma trilogia moçambicana. Lisboa: Editorial Caminho, 2015).

A personagem Imani, ao se definir, reconhece-se como cinza, pois não passa de um corpo sem nome, ou um nome sem corpo, como ela mesma o diz: “Afinal, não era apenas uma mulher sem nome. Era um nome sem pessoa. Um desembrulho. Vazio como o meu ventre” (Couto 15Couto, Mia. As areias do Imperador: uma trilogia moçambicana. Lisboa: Editorial Caminho, 2015), revelando a perda ou o estranhamento em sua formatação identitária, efeito provocado pela guerra de libertação, conforme retratado na obra, a visão de moribundos ou corpos estendidos enquanto apenas Imani (sobre)vivia, a dor enfrentada diante do desaparecimento de entes queridos, do colapso de sua comunidade, entre outros. Não obstante, apesar da lucidez de sua constatação, compõe o número pluralizado de tantas quantas são as “mulheres de cinza”, isto é, pertencentes ao conjunto indefinido de tantas outras mulheres sem nome e existência:

Chamo-me Imani. Este nome que me deram não é um nome. Na minha língua materna “Imani” quer dizer “quem é?”. Bate-se a uma porta e, do outro lado, alguém indaga: — Imani? Pois foi essa indagação que me deram como identidade. Como se eu fosse uma sombra sem corpo, a eterna espera de uma resposta

(Couto 15)Couto, Mia. As areias do Imperador: uma trilogia moçambicana. Lisboa: Editorial Caminho, 2015.

É interessante observar que Imani se caracteriza como inominável, porquanto o seu próprio nome não é capaz de identificá-la, descrever suas nuances, pertencimento a esta ou àquela mundivivência; ao contrário, prevê uma questão de indefinição e abertura, e por que não dizer de negociação? Logo, instaura-se o insílio na composição de sua identidade. Ultrapassando as classificações estruturalistas convencionais, a personagem não possui nem mesmo um nome, pois o seu não passa de uma interrogação. Sendo assim, sobrevive nela identidades fronteiriças que se tocam e se chocam transformando-a em cinza: “— Como te chamas? — Eu? Eu não tenho nome — respondi” (Couto 151Couto, Mia. As areias do Imperador: uma trilogia moçambicana. Lisboa: Editorial Caminho, 2015) Imani!!? Quem eu sou? Cinza! Eu sou Imani.

Como se não bastasse a aquisição do monolinguismo e da monoidentidade do outro, esta língua tornar-se-ia dos seus amores, pois também amaria em língua portuguesa. Não é à toa que acabou se apaixonando pelo “português” (do) Germano. Vivera uma alienação que a transportara para um duplo exílio ou insílio: “Mais grave ainda era a minha alienação: os sonhos de amor que tivesse não seriam na nossa língua, nem seriam com a nossa gente. Foi assim que a mãe falou. E fez uma grande pausa antes de interpelar Katini” (Couto 29Couto, Mia. Mulheres de cinza. Lisboa: Editorial Caminho, 2015.). Todavia, vale frisar que Imani vive o chamado deslocamento no âmbito identitário, conforme teorizado por Derrida (O Monolinguismo), pois está consciente de sua africanidade, bem como das identificações culturais das quais se apropria, espécie de tradução ontológica do sujeito, isto é, tradução identitária e linguística. Portanto, a tradução pressupõe ruptura com as fronteiras do pensamento e o rompimento com as clausuras da experiência:

Fronteiras e barreiras, que nos fecham na segurança de um território familiar, também podem se tornar prisões e são, com frequência, defendidas para além da razão ou da necessidade. O exilado atravessa fronteiras, rompe barreiras do pensamento e da experiência

(Said 58Said, Edward. “Reflexões sobre o exílio”. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, edited by Edward Said. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 46-60.).

De outro lado, Germano de Almeida, um degredado ou exilado do território português, designado para liderar o posto militar em uma aldeia chamada Nkokolani, se vale do gênero epistolar para narrar ao tenente Ayres de Ornelas todos os eventos que lhe sucedem naquele território. O amor mútuo entre Germano e Imani enlaça dois mundos a priori distintos, mas com ricas possibilidades de convergência em relação ao insílio na língua e constituição identitária. De um modo menos hostil, constata-se que até mesmo o próprio Germano se vê confrontado pelo insílio quando, após ser exilado, mergulha em um vazio e desterro em virtude do pertencimento a nenhum lugar. O trecho a seguir elucida bem o estado de ânimo do sargento Germano ao mencionar a sua desidentificação com a pátria, que pressupõe um maior afastamento consigo mesmo ou com os seus pares; todavia, o insílio se alarga na medida em que também o território africano não confirma ou preenche sua existência:

dentro desta farda não está um soldado. Está um degredado que, apesar de tudo, aceita o encargo dos seus deveres. Não tenho, porém, nenhum ensejo de dar a vida por este Portugal mesquinho e envelhecido. Por este Portugal que me fez sair de Portugal. A minha pátria é outra e ela está ainda por nascer

(Couto 36Couto, Mia. Mulheres de cinza. Lisboa: Editorial Caminho, 2015.).

Se Germano, um soldado sem pátria, estrangeiro onde quer que estivesse, aprendera o significado real de estar exilado em um exílio de si para si, culminando no próprio deslocamento identitário, em que lança luzes sobre a possibilidade de pertencer a uma outra nação; sentimento partilhado por Imani, todavia, de modo inverso, ela é vítima de um exílio interno ao revelar que sua casa fora “rasgada ao meio”, (Couto 29). Resta-lhe, portanto, a alternativa de sobreviver nem que fosse com a língua do outro e através de identificações que não anulassem a sua africanidade/moçambicanidade, mas que a tornasse ainda mais resistente para lutar com armas munidas de maningue (muitas) balas do “português”.

  • 1
    Termo cunhado pelos autores do artigo para se referirem ao processo de assimilação identitária, problematizando as identidades coloniais enquanto processo ininterrupto de identificações; em outras palavras, como identidade ausente ou ainda em construção, porquanto proveniente do outro, face à identidade/língua materna vinculadas à constituição do “eu”.
  • 2
    Expressão utilizada pela professora Rita Chaves (2017) em uma palestra na URI (Universidade Frederico Westphalen sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.

Referências

  • Can, Nazir Ahmed. “Alter-idade em casa. O exílio interno no romance moçambicano”. Revista Mulemba 8.14, (2016): 76-91. Portal de Periódicos da UFRJ. 14/06/2019. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4324
    » https://revistas.ufrj.br/index.php/mulemba/article/view/4324
  • Couto, Mia. Mulheres de cinza Lisboa: Editorial Caminho, 2015.
  • Couto, Mia. As areias do Imperador: uma trilogia moçambicana Lisboa: Editorial Caminho, 2015
  • Derrida, Jacques. “Carta a um amigo japonês”. Tradução de Érica Lima. Tradução: a prática da diferença, edited by Paulo Ottoni. 2nd ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2005, pp. 21-27.
  • Derrida, Jacques. O Monolinguismo do outro ou a prótese de origem Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2001.
  • Derrida, Jacques. Posições Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
  • Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas Tradução de Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008.
  • Kristeva, Julia. Estrangeiros para nós mesmos Tradução de Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
  • Said, Edward. “Reflexões sobre o exílio”. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, edited by Edward Said. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 46-60.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2020
  • Aceito
    02 Nov 2020
  • Publicado
    Jan 2021
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: suporte.cadernostraducao@contato.ufsc.br