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NOTAS À TRADUÇÃO DE A VOYAGE UP THE RIVER AMAZON INCLUDING A RESIDENCE AT PARÁ1 1 Todas as notas são dos tradutores.

A literatura de viagem nada mais é que um registro de natureza científica e/ou pessoal de experiências vividas em forma de diários, livros, artigos. Cabe lembrar que as incursões em território americano vão muito além do caráter meramente científico, envolvendo questões territoriais e econômicas, pautadas pelo eurocentrismo.

Não é à toa que a coroa portuguesa vá assegurar o domínio da bacia amazônica em 1712, no Congresso de Utrecht, uma vez que há registro da presença de holandeses e ingleses no Vale do Xingu já no final do século XVI e início do XVII, além do estabelecimento da Companhia da Guiana autorizada pelo governo inglês em 1626 e a ameaça francesa de anexação do Amapá2 2 Ver, por exemplo, Abertura do Rio Amazonas à navegação internacional e o parlamento brasileiro de Paulo Roberto Palm. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009. .

A região amazônica é objeto de cobiça há muito, mas, talvez, seja no século XIX que essa cobiça vai ficar mais clara: a crença em grandes jazidas minerais, a possibilidade de ligação entre as bacias do Orinoco, do Amazonas e do Prata e a alegada fertilidade do solo da região acirraria as pretensões colonialistas norte-americana e europeia, justificando sua colonização por estrangeiros que pudessem utilizar plenamente a região. O argumento da incompetência brasileira de gerir a região é, a cada certo tempo, retomada até hoje.

Observa-se, de uma forma geral, na literatura de viagem, narrativas a partir de um olhar que busca, a todo momento, declarar e justificar a diferença entre o branco civilizado e o selvagem observado. Esses encontros interculturais assimétricos revelam sistemas de valores e visões de mundo de colonizados e colonizadores. Uma questão que chama a atenção em vários textos é a apresentação da mestiçagem como algo repulsivo3 3 Ver, por exemplo, Representações marajoaras em relatos de viajantes. Dissertação defendida na UFPA, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, em 2017, de Lucas Monteiro de Araújo. .

Nascido no estado de Nova York em 1822, William H. Edwards escreve A Voyage up the River Amazon with a Residence in Pará recém-saído da universidade, onde cursara direito, aos 24 anos. Seu pai tinha um lucrativo curtume e 1200 acres de terra no estado de Nova York. Depois da viagem à região amazônica, Edwards se muda para o estado da Virgínia e ali entra no ramo das minas de carvão e se torna o presidente da Ohio and Kauawha Coal Company. Além de ter uma grande quantidade de terra nas duas Virgínias, tinha várias minas de carvão e construía estradas de ferro.4 4 Para informações mais detalhadas, ver “William Henry Edwards” em The Canadian Entomologist, vol. XLI, n. 08, 1909 e https://pt.findagrave.com/memorial/119677739/william-henry-edwards, acessado em 05 de março de 2021.

A viagem em 1846 da qual resultou o livro foi feita com o seu tio, Armory Edwards, que morava na Argentina onde negociava couro da empresa da família. Acredita-se que A Voyage up the River Amazon tenha influenciado Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace, que citam o texto de Edwards nos seus escritos. Apesar da importância da narrativa de Edwards, ele seria reconhecido anos depois como entomologista, sobretudo como um grande especialista em borboletas.

Dividido em 22 capítulos, A Voyage up the River Amazon Including a Residence in Pará registra desde a partida de Nova York até a viagem de volta, “Voyage home”. A cada capítulo, o autor descreve em detalhes a vida, os costumes (por exemplo, a preparação da farinha de mandioca e da tapioca), prédios públicos, aldeias e vilarejos visitados, indígenas, negros e estrangeiros brancos, sobretudo dos Estados Unidos e da Europa ocidental, plantações, criação e transporte de gado, mas é com a descrição da paisagem natural, com pouca interferência humana, que a narrativa cresce e que a fascinação do autor transparece. Edwards parece maravilhado pelos rios5 5 Para se ter uma ideia do percurso da viagem, Edwards cita, entre outros, os rios Amazonas, Guamá, Tapajós, Trombetas, Madeira, Negro, Branco e Xingu. , flora e, sobretudo, fauna amazônicas.

Foi justamente pelo franco interesse na descrição da fauna amazônica, que escolhemos o capítulo 21 para traduzir. Esse capítulo trata da Ilha de Marajó, o que circunscreve a narrativa a um dado espaço, e explora desde um cemitério indígena até o carregamento de um navio boiadeiro, com destaque especial à descrição dos pássaros. Edwards descreve não apenas as aves, mas também seus ninhos, os ovos, os filhotes, seus hábitos alimentares, reprodução entre outras curiosidades. No capítulo, são descritos patos selvagens, íbis-escarlate, colhereiro-americano, tuiuiú, cabeças-secas, íbis-preto, garça-azul-grande, socó, garça-branca-grande, garça-branca-pequena, tesourinha, tucano-toco, uirapuru, uirapuru-de-chapéu-branco, corrupião, beija-flor, beija-flor-brilho-de-fogo, gavião-tesoura, papagaio, cigana, garça, arapapá, anhinga, biguá, mutum, gavião, jabiru e urubu, ou seja, 28 pássaros.6 6 Para pesquisa sobre aves, ver https://www.wikiaves.com.br/.

Além do relato minucioso das aves de Marajó, Edwards, nesse capítulo, desmente Charles-Marie de la Condamine que descreveu o fenômeno da Pororoca no século XVIII quando atravessou o continente americano, partindo de Quito, pelo rio Orinoco, até chegar ao Oceano Atlântico. Condamine afirmara que as ondas da Pororoca chegavam a atingir mais que 4 metros e meio de altura. Edwards afirma que as ondas não passam de um metro e meio de atura.

Nossa edição usada para a tradução está disponível na Biblioteca Brasiliana e é de 1847. Segue abaixo a folha de rosto:

Para que possamos justificar nossas escolhas, cabe citar a classificação do homem por Lineu7 7 Carl Linnaeus viveu no séc. XVIII e escreveu Sistema Naturae publicado em 1758 de onde essa classificação foi tirada. , médico, zoólogo e botânico sueco, que reforça e justifica a necessidade de posse da região pelo homem branco, civilizado e racional.

De acordo com Lineu, o homem pode ser dividido nos seguintes tipos:

  1. Homem selvagem. Quadrúpede, mudo, peludo.

  2. Americano. Cor de cobre, colérico, ereto. Cabelo negro, liso, espesso; narinas largas; semblante rude; barba rala; obstinado, alegre, livre. Pinta-se com finas linhas vermelhas. Guia-se por costumes.

  3. Europeu. Claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, ondulado; olhos azuis; delicado perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas. Governado por Leis.

  4. Asiático. Escuro, melancólico, rígido, cabelos negros; olhos escuros; severo, orgulhoso, cobiçoso. Coberto por vestimentas soltas. Governado por opiniões.

  5. Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos, pele acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; Governado pelo capricho (Pratt, 68, apud Araújo, 8Araújo, Lucas Monteiro de. Representações marajoaras em relatos de viajantes. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, UFPA, 2017.).

O racismo de Lineu é explicito se considerarmos principalmente o que governa cada categoria: costume, leis, opiniões e capricho. Fica, dessa forma, claro o lugar e o papel civilizatório do branco.

Observamos ao longo de A Voyage up the River Amazon, nosso texto-fonte, a influência dessa classificação de Lineu em William Henry Edwards, autor do texto. Citamos a seguir quatro trechos reveladores da visão de mundo colonialista de Edwards e que encontram eco na classificação de Lineu:

A great proportion of the foreigners in the city are from the United States and Great Britain; and these form among themselves a delightful little society.

(36).

Esse fragmento exalta a segregação das populações locais, conferindo ao seu grupo (branco e anglófono) status especial. Nas palavras do autor, eles formavam “a delightful little society”. Nesse caso, o trecho referente ao europeu de Lineu justifica a divisão. Ora, se para o Lineu, o europeu era delicado, perspicaz, inventivo, claro, musculoso. Coberto por vestes justas e governados por lei, não poderia se meter com indígenas, por exemplo, que se guia por costumes, ou negros guiados pelo capricho.

The Indian seems to predominate, however, and it might be questionable how far his courage would carry him, once led into action.

(35)

Nesse ponto, o autor trata da Guarda nacional em que, de acordo com ele, predominavam indígenas e põe em xeque a coragem dos povos originários para a função.

We never heard an instance of snakes attacking man, and the negroes do not fear an encounter with the largest.

( 236)

Aqui a construção frasal nos leva a acreditar em dois tipos de humanos: os homens, que não são atacados por cobras, e os negros, que não temem os animais.

E, finalmente, o último excerto:

THE want of emigrants from other countries, and of an efficient labouring class among its population, are the great obstacles to the permanent welfare of Northern Brazil. […] With the nobler qualities of the old Portuguese, to which popular history has never done justice, was mingled a narrowness of mind, that was natural enough in the subjects of an old and priest-ridden monarchy.

(246)

É nesse último argumento que a divisão entre colonizadores e colonizados se faz mais presente. De acordo com Edwards, os brasileiros não tinham competência para gerir a região; e os portugueses, súditos de uma velha monarquia carola, tinham uma visão de mundo limitada. Só o que pode salvar a região amazônica são emigrantes de uma eficiente classe trabalhadora. Surpreendentemente, o autor achou que não havia em solo brasileiro nenhuma classe trabalhadora capaz. Como já dito anteriormente, essa ideia de que o brasileiro sozinho não consegue administrar a Amazônia ou como a variação de Edwards de que precisamos de emigrantes é recorrente até os dias de hoje

Decidimos como estratégia deixar todas as marcas de xenofobia, racismo e violência do texto ressaltadas como estão no texto-fonte. Não passou pelas nossas cabeças suavizar o texto, torná-lo mais palatável para o público de 2021. Acreditamos ser importante o registro da história da dor e da injustiça como um meio de entendermos nosso passado e de pensar em alternativas.

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    Todas as notas são dos tradutores.
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    Ver, por exemplo, Abertura do Rio Amazonas à navegação internacional e o parlamento brasileiro de Paulo Roberto PalmPalm, Paulo Roberto. Abertura do Rio Amazonas à navegação internacional e o parlamento brasileiro. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
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    Ver, por exemplo, Representações marajoaras em relatos de viajantes. Dissertação defendida na UFPA, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, em 2017, de Lucas Monteiro de AraújoAraújo, Lucas Monteiro de. Representações marajoaras em relatos de viajantes. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, UFPA, 2017..
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    Para informações mais detalhadas, ver “William Henry Edwards” em The Canadian Entomologist, vol. XLI, n. 08, 1909 e https://pt.findagrave.com/memorial/119677739/william-henry-edwards, acessado em 05 de março de 2021.
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    Para se ter uma ideia do percurso da viagem, Edwards cita, entre outros, os rios Amazonas, Guamá, Tapajós, Trombetas, Madeira, Negro, Branco e Xingu.
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    Para pesquisa sobre aves, ver https://www.wikiaves.com.br/.
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    Carl Linnaeus viveu no séc. XVIII e escreveu Sistema Naturae publicado em 1758 de onde essa classificação foi tirada.

Referências

  • Araújo, Lucas Monteiro de. Representações marajoaras em relatos de viajantes. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, UFPA, 2017.
  • Palm, Paulo Roberto. Abertura do Rio Amazonas à navegação internacional e o parlamento brasileiro. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Jul 2021
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