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“O RELÓGIO DE OURO”, DE MACHADO DE ASSIS, E SUAS TRADUÇÕES PARA O INGLÊS: UMA REFLEXÃO SOBRE A INFLUÊNCIA DO CAPITAL CULTURAL

“O RELÓGIO DE OURO” [THE GOLD WATCH], BY MACHADO DE ASSIS, AND ITS TRANSLATIONS INTO ENGLISH: A REFLECTION ON THE INFLUENCE OF CULTURAL CAPITAL

Resumo

Este artigo é um relato meio anedótico de uma jornada interpretativa que começou casualmente e foi se aprofundando e adensando à medida que traduções do conto original de Machado de Assis intitulado “O Relógio de Ouro” foram sendo conhecidas e comparadas. Dois termos em particular, “nhonhô” e “Iaiá”, têm diferentes soluções tradutórias que acabam influindo no texto de tal modo a mudar o desfecho do conto e sua interpretação como um todo. Uma constatação de que o conto tem uma versão anterior publicada em formato seriado, ou folhetim, acaba conferindo ainda mais complexidade à rede de interpretações. Em algumas instâncias, fica clara a influência do capital cultural, como proposto por Pierre Bourdieu.

Palavras-Chave
“O Relógio de Ouro”; Machado de Assis; Literatura Brasileira Traduzida; Capital Cultural; Capital Cultural;

Abstract

This article is a somewhat anedotic account of an interpretative journey that started casually and grew deeper and denser as translations of the original tale by Machado de Assis titled “O Relógio de Ouro” came to be known and were compared. Two particular terms, “nhonhô” and “Iaiá”, have different translatorial solutions that end up by transforming the text to such an extent that they change its ending and its interpretation as a whole. The finding that the tale had a previous version, published as a feuilleton, added yet another layer of complexity to the network of interpretations. In some instances, the influence of cultural capital, as proposed by Pierre Bourdieu, becomes evident.

Keywords
“The Gold Watch”; Machado de Assis; Translated Brazilian Literature; Cultural Capital; Pierre Bourdieu

1. Introdução – Uma situação de sala de aula

No ano de 2019, durante um estágio de pós-doutoramento no exterior, tive a oportunidade de participar de um curso de literatura brasileira para alunos brasileiros e estrangeiros, graduandos e pós-graduandos, que tinha como principal tema os contos de Machado de Assis traduzidos em The Collected Stories of Machado de Assis, por Margaret Jull-Costa e Robin Patterson (2018)Machado de Assis, Joaquim Maria. “The Gold Watch”. The Collected Stories of Machado de Assis, traduzido por Margaret Jull-Costa e Robin Patterson. New York/London: Liveright Publishing Corporation, 2018, pp. 283-290.. Uma das sessões foi dedicada, em parte, ao estudo de “O Relógio de Ouro”, traduzido como “The Gold Watch”. Dois pontos específicos chamaram minha atenção: os termos “Nhonhô” e “Iaiá”, bem como o final abrupto do conto. Esse conto não está entre os mais célebres de Machado. Assim, para os que não recordarem os principais fatos da narrativa, segue um breve relato do enredo:

2. O Enredo

Luís Negreiros chega em casa após um dia de trabalho e encontra um grande e luxuoso relógio de ouro em cima de uma mesa em seu quarto. Ele pergunta à mulher, a dócil Clarinha, de quem é o relógio. Clarinha, contrariamente a seu comportamento usual, mostra-se distante e fria, pouco interessada nas inquietações do marido. Ela simplesmente responde, às indagações cada vez mais insistentes e exaltadas dele, que não sabe de quem é o relógio.

Diante do estranho comportamento da mulher, Luís Negreiros começa a suspeitar dela, achando que o relógio pertence a um suposto amante, que a visitou em sua ausência e esqueceu o objeto no quarto dele. Clarinha não colabora para acalmar o marido, que vai se exasperando cada vez mais e chega a pensar em matá-la. Quando ele realmente a ameaça de violência física, vem o desfecho:

— Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te pergunto desde esta tarde?
A moça não respondeu.
— Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida.
A moça levantou os ombros.
Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou
as mãos ao colo da esposa e rugiu:
— Responde, demônio, ou morres!
Clarinha soltou um grito.
— Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá: foi o que o portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas:
Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança.
Tua Iaiá.
Assim acabou a história do relógio de ouro.
(Machado de Assis, 1994Machado de Assis, Joaquim Maria. “O Relógio de Ouro”. Histórias da Meia Noite. Coleção Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. (Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873. Web. 12 abr 2021 http://machado.mec.gov.br/index.php?option=com_k2&view=itemlist&layout=category&task=category&id=24ℴ=year&searchword=&Itemid=668.
http://machado.mec.gov.br/index.php?opti...
, 89, grifos meus).

Esse final abrupto nos convida a pensar. Seriam “nhonhô” e “Iaiá” expressões íntimas de afeto, sem vínculo com o contexto social ao qual os termos se relacionam, um contexto ligado à escravidão? Em caso afirmativo, justifica-se a atitude de frieza e distanciamento de Clarinha: ela acabara de descobrir que o marido tinha uma amante, e por isso havia mudado de comportamento.

No contexto de sala de aula referido anteriormente, tínhamos o conto em português e sua tradução para o inglês feita por Jull-Costa e Patterson. As soluções encontradas pelos tradutores causaram-me certa perplexidade. Coloco aqui apenas o final, que foi o que causou estranheza:

My dear young master,

I know that tomorrow is your birthday, and so I’m sending you this small gift.

Nanny

(Machado de Assis, 2018Machado de Assis, Joaquim Maria. “The Gold Watch”. The Collected Stories of Machado de Assis, traduzido por Margaret Jull-Costa e Robin Patterson. New York/London: Liveright Publishing Corporation, 2018, pp. 283-290., 290).

Ao que tudo indica, a interpretação de Jull-Costa e Patterson baseou-se em definições dicionarizadas para os termos “nhonhô” e “Iaiá”. No entanto, no caso do segundo termo, eles parecem ter privilegiado uma acepção secundária dele. A edição eletrônica do Dicionário AuleteCaldas Aulete, Francisco J.; Valente, Antônio Lopes dos Santos. Dicionário Aulete. Lexikon Editora Digital. Web 20 abr 2021. https://aulete.com.br/site.php?mdl=aulete_digital.
https://aulete.com.br/site.php?mdl=aulet...
, quando buscamos o termo “nhonhô”, nos remete a “nhô”, cuja definição é a seguinte:

Nhô

1. Bras. Tratamento de senhor dado pelos escravos aos jovens da casa grande, o mesmo que nhonhô, sinhô ou ioiô.

Já para “Iaiá”, a definição do mesmo dicionário é esta:

Iaiá

1. Bras. Ant. Pop. Tratamento dado às moças e às meninas na época da escravidão; NANÃ

[F.: Alt. de sinhá]

O Dicionário Houaiss eletrônico, quando buscamos “nhonhô”, nos remete ao termo “ioiô”, para o qual apresenta a seguinte acepção.

Ioiô

tratamento reverente dispensado originalmente aos brancos, esp. ao patrão ou proprietário, pelos escravos e seus descendentes; nhonhô, nhô

Para “Iaiá”, as acepções oferecidas pelo Dicionário Aulete são as seguintes:

Iaiá

1. tratamento que se dava às meninas e às moças, muito us. no tempo da escravidão

2. criada de dama nobre; aia, mucama, açafata.

Quando Jull-Costa e Patterson traduzem “Meu nhonhô” por “My dear young master” e “Tua Iaiá” por “Nanny”, eles acabam definindo a pessoa que enviou o relógio a Negreiros como sua ex-babá, uma escrava, que o chama por uma corruptela de “sinhô”, que vem de “senhor” e coloca claramente a diferença de nível e status entre os dois.

Entretanto, dois problemas se colocam: poderia uma ex-babá, uma escrava humilde, comprar e dar de presente um luxuoso relógio de ouro? E mesmo que isso fosse possível, o que explicaria o estranho comportamento de Clarinha, tanto no sentido de não atender aos apelos do marido para que lhe informe a origem do relógio, como em sua atitude de se expor à violência física imposta por Negreiros?

Algo parecia não se encaixar. Algo sobrava ou então faltava.

Naquela época, escrevi para Jull-Costa indagando sobre essa dúvida e defendendo minha hipótese de que “nhonhô” e “Iaiá” corresponderiam a termos de tratamento íntimos e afetuosos, que denunciariam um relacionamento extraconjugal de Negreiros, ou um caso antigo, do tempo em que ele tinha “os costumes pouco austeros”, segundo seu sogro Meireles (Machado de Assis, 1994Machado de Assis, Joaquim Maria. “O Relógio de Ouro”. Histórias da Meia Noite. Coleção Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. (Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873. Web. 12 abr 2021 http://machado.mec.gov.br/index.php?option=com_k2&view=itemlist&layout=category&task=category&id=24ℴ=year&searchword=&Itemid=668.
http://machado.mec.gov.br/index.php?opti...
, 86). Em sua atenciosa resposta, ela enfatizou a ambiguidade que se instaura no final abrupto do conto, e também expressou sua opinião de que “não há outro modo de traduzir “nhonhô” e “Iaiá” sem impôr uma interpretação possivelmente errônea”.

Jull-Costa também transcreveu na mensagem a resposta do cotradutor Robin Patterson, a quem consultou a respeito de minha dúvida. Patterson argumentou que a hipótese de Negreiros estar tendo ou ter tido um caso é possível, mas a intenção de Machado é justamente não deixar evidente o que Clarinha está pensando, e menos ainda o que aconteceu. Patterson ainda acrescentou que embora seja improvável que uma ex-babá tivesse condições de comprar um objeto luxuoso para alguém, talvez por isso mesmo Negreiros se mostrasse “estupefato”.1 1 Correspondência por email com Margaret Jull-Costa, 26 set 2019.

3. A perspectiva de uma segunda tradução

Ainda curiosa a respeito do desfecho do conto e sua tradução para o inglês, acabei encontrando uma segunda tradução, feita por Juan LePuen, e incluída na coletânea Midnight Mass and Other Stories. E a tradução de LePuen me pareceu mais surpreendente, já que dá outro rumo para a história:

“My nhonhô.[2] I know it’s your birthday tomorrow; I’m sending you this gift. —Aunt Iaiá.”

Thus ended the story of the gold watch.

[2] Diminutive for senhor.

(Machado de Assis, 2014Machado de Assis, Joaquim Maria. “O Relógio de Ouro”. Histórias da Meia Noite. Coleção Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. (Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1873. Web. 12 abr 2021 http://machado.mec.gov.br/index.php?option=com_k2&view=itemlist&layout=category&task=category&id=24ℴ=year&searchword=&Itemid=668.
http://machado.mec.gov.br/index.php?opti...
, Kindle pos. 1021).

Nessa interpretação, portanto, foi uma tia que enviou o relógio de presente para Negreiros. A explicação na nota de rodapé, dizendo que “nhonhô” é um diminutivo de “senhor”, não acrescenta muito em termos de informação. Essa possibilidade me pareceu um pouco estranha, mas de qualquer forma ela resolvia o problema do poder aquisitivo. Diferentemente de uma suposta ex-babá, uma tia teria, possivelmente, condições de comprar para o sobrinho um relógio de ouro. Por outro lado, permanecia a inconsistência entre a situação e a atitude de Clarinha. Como se explicaria sua reação negativa e seu comportamento arredio, se fora a tia de Negreiros quem enviara o presente?

4. Uma tradução “interna”: Flora Thomson-Devaux e a influência do capital cultural.

Ainda perplexa com as duas soluções interpretativas propostas pelas traduções, acabei chegando a uma resenha escrita por Flora Thomson-DeVeaux sobre The Collected Stories de Jull-Costa e Paterson. DeVeaux, que realizou durante seu doutorado a quarta tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas para a língua inglesa, e antes havia traduzido um livro de crítica literária sobre Machado de Assis, certamente conhece os textos machadianos da perspectiva de um tradutor, sendo capaz de perceber as sutilezas e armadilhas presentes neles. O texto de DeVeaux traz duas informações cruciais para que se expliquem as opções feitas em cada uma das traduções, além de apresentar uma terceira interpretação, manifestada em uma tradução que chamo aqui de “interna”, já que é uma tradução desse mesmo trecho que está sendo destacado aqui, mas para ilustrar o argumento do crítico. Para tornar o argumento do crítico coerente com o exemplo que ele apresenta, DeVeaux foi levada a traduzir o excerto da seguinte forma:

Luís Negreiros took the letter, brought it to the lamp, and read these lines with utter stupefaction:

My darling husband. I know that your birthday is tomorrow; I have sent you this gift.

Your wife.

(Rocha, 33Rocha, João Cezar de Castro. Machado de Assis: Toward a Poetics of Emulation. Trans. Flora Thomson-DeVeaux. East Lansing, MI: Michigan State University Press, 2015. apud Thomson-DeVeaux, 83)2 2 Para uma contextualização maior do argumento de Rocha, segue o trecho traduzido por Thomson-DeVeaux: “O relógio de ouro” [The Gold Watch], published in the Jornal das Famílias in April and May of 1873 and reproduced later the same year in Midnight Stories, presents a simple anecdote that serves to herald the complexity of future approaches to the subject. All revolves around an innocent suspicion, which is resolved easily: the man’s watch found by zealous Luís Negreiros was no proof of infidelity, but a birthday present from his wife herself (Rocha, 32, apud Thomson-DeVeaux, 83). Como será possível observar na discussão a seguir, embora cite a versão seriada do conto publicada no Jornal das Famílias, Rocha não parece ter atentado para as diferenças entre os dois textos, e principalmente para os dois finais diferentes.

Temos então, até o momento, três interpretações para o final abrupto de “O Relógio de Ouro”, de acordo com as traduções: para Jull-Costa e Patterson, quem enviou o presente a Negreiros foi uma ex-babá; para Juan LePuen, foi uma tia; para Thomson-DeVeaux, na esteira do entendimento do crítico João Cézar de Castro Rocha, o presente foi enviado pela própria Clarinha ao marido.

5. Um breve excurso: consideração sobre a influência do capital cultural e a presunção do leitor nativo.

Em “Shakespeare in the Bush” [traduzido para o português como “Shakespeare no Meio do Mato”, uma história divertida sobre como narrar a tragédia de Hamlet para uma tribo da África Ocidental, a antropóloga Laura Bohannan comenta sobre diferentes presunções: em primeiro lugar, a de um colega britânico que afirma que os americanos (entre os quais Bohannan estava incluída) nunca seriam capazes de genuinamente compreender a tragédia de Hamlet. Em segundo lugar, a dela, Bohannan, que acreditava que essa obra shakespeariana fosse universal e, portanto, transmissível para qualquer cultura sem grandes problemas de entendimento (Esteves e Aubert, 2008Esteves, Lenita; Aubert, Francis. “‘Shakespeare in the Bush’: História e Tradução”. Tradução e Comunicação. 17, (2008): 135-158. Portal de Periódicos Kroton.16 abr 2021. Disponível em: https://revista.pgsskroton.com/index.php/traducom/article/view/2103.
https://revista.pgsskroton.com/index.php...
). Enquanto, num extremo, uma pessoa afirma que apenas as pessoas que nasceram na mesma terra que o Bardo poderão entender seus escritos, no outro extremo temos outra pessoa supondo que existe algo que seja universal, que pertence a todas as culturas como uma espécie de “essência da humanidade”.

Prefiro partir do primeiro extremo, da presunção de que apenas o “leitor nativo” pode compreender a totalidade de sua própria cultura. Essa presunção parece arrogante, por um lado, e ingênua, por outro. Traduz uma atitude de “dono da verdade”, que pode gerar um sentimento de antipatia. Esse inglês, colega da antropóloga, atribuiu a si mesmo uma expertise que decorre simplesmente do espaço de nascença que ele ocupa. É uma espécie de capital cultural autoatribuído.

O conceito de capital cultural, juntamente com outros propostos por Pierre Bourdieu, tem auxiliado as reflexões na área da tradução, estruturando um domínio que alguns chamam de “Sociologia da Tradução” (InghilleriInghilleri, Moira. “The Sociology of Bourdieu and the Construction of the ‘Object’ in Translation and Interpretation Studies”. The Translator. 11.2, (2005): 125-145.). Entre os principais conceitos bourdieusianos adotados por essa Sociologia da Tradução estão os de habitus, campo, capital e illusio (GouanvicGouanvic, Jean-Marc. “A Bourdieusian Theory of Translation, or the Coincidence of Practical Instances. Field, ‘Habitus’, Capital and ‘Illusio’”. The Translator. 11.2, (2005): 147-166.). Para a nossa discussão aqui, o conceito de capital – e, mais especificamente, de capital cultural ? é o mais pertinente.

O capital cultural é uma forma de capital que Bourdieu propõe estendendo a lógica da análise econômica para bens ostensivamente não econômicos. O conceito cobre uma grande variedade de recursos, que incluem aptidão verbal, conhecimento geral da cultura, preferências estéticas, informações sobre o sistema escolar e credenciais educacionais (Swarts 75Swartz, David. Culture & power, the sociology of Pierre Bourdieu. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1997.). Uma instância de capital cultural influenciou a tradução de Thomson-DeVeaux, que ao mesmo tempo em que precisava produzir um texto que fosse coeso com a argumentação de Rocha, sem dúvida também levou em consideração que esse crítico é um especialista em Literatura Brasileira e Machado de Assis, reconhecido nacional e internacionalmente.

Além disso, existe a questão da “presunção do leitor nativo”. Rocha, além de ser especialista em Machado, é brasileiro, o que conferiria à sua interpretação mais confiabilidade em comparação com a leitura de um estrangeiro. Será? Após ter lido algumas traduções e consultado várias fontes, acabei levantando a hipótese de que talvez o meu descontentamento inicial com a tradução de Jull-Costa e Patterson, que escolheram os termos “my dear young master” e “Nanny” para “meu nhonhô” e “tua Iaiá” também tenha sido fundado em uma “presunção de leitora nativa”. Eu, como todo brasileiro minimante culto, entendo mais de Machado que qualquer estrangeiro, o que ficou provado pelo suposto equívoco dos tradutores, que geraram uma incoerência na história, a de uma escrava ter condições de adquirir um artigo de luxo. Mal comparando, eu estava assumindo a mesma atitude arrogante do inglês, colega da antropóloga Bohannan. E minha arrogante atitude foi alimentada pela escolha de Juan LePuen. De onde ele teria tirado a “tia”? Quanto à influência do capital cultural sobre mim mesma, ela se evidencia na força da interpretação de Rocha contra a minha. Sendo nós dois brasileiros nativos, a interpretação dele tem mais força e ressonância, porque ele é especialista. Não tendo examinado de perto a versão do texto para o folhetim do Jornal das Famílias, Rocha considerou os termos “nhonhô” e “Iaiá” como palavras carinhosas e íntimas, trocadas não por Negreiros e sua amante, mas por ele e a própria esposa. De minha posição de “igualmente nativa”, aceitei a sua interpretação melhor do que aceitei a dos tradutores, já que ele, na minha concepção, possui mais capital cultural que eu e eles. Mas vamos então, depois deste desvio, para a última seção deste artigo, que vai tratar justamente da versão em folhetim de “O Relógio de Ouro”.

6. Do folhetim ao livro: as alterações feitas por Machado em “O Relógio de Ouro.

Flávia Barretto Corrêa Catita realizou um detalhado estudo da transformação empreendida por Machado no conto “O Relógio de Ouro”. Publicado nos meses de maio e junho de 1873 no Jornal das Famílias, o conto foi retrabalhado e readequado por Machado para figurar numa coletânea que foi lançada no mesmo ano, as Histórias da Meia Noite. Como bem observa a autora, Machado estava atento para as diferenças entre os públicos para os quais escrevia e entre os veículos em que suas obras eram publicadas (Catita 103Catita, Flávia Barretto Corrêa. “Reescrita do Conto ‘O relógio de ouro’, de Machado de Assis na Passagem do Jornal para o Livro”. Revista da Abralin, 16.3, (2017): 101-117. 17 abr 2021. Disponível em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/441.
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).

Em sua primeira versão, o conto é bem mais melodramático (Negreiros aponta uma arma de fogo para a mulher), embora tenha um final feliz e pacificado, como convém a uma publicação folhetinesca. Em geral, o texto de Machado é mais enxuto no livro. Ele algumas vezes juntou em um parágrafo frases que estavam em parágrafos separados no folhetim, o que Catita atribui ao fato de na época os escritores de periódicos serem pagos por linha escrita. A descrição do relógio, logo na abertura do conto, também aparece menos exuberante na versão para o livro. No folhetim, o relógio está “trabalhando sobre umas quantas pedras preciosas”, e no livro está “preso a uma elegante cadeia” (Catita 108Catita, Flávia Barretto Corrêa. “Reescrita do Conto ‘O relógio de ouro’, de Machado de Assis na Passagem do Jornal para o Livro”. Revista da Abralin, 16.3, (2017): 101-117. 17 abr 2021. Disponível em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/441.
https://revista.abralin.org/index.php/ab...
).

No entanto, nem sempre as modificações feitas por Machado são para obter maior concisão. Na versão para livro, Machado acrescenta toda uma descrição do relacionamento de Negreiros com seu sogro, Meireles. No trecho acrescentado, o narrador explica que sogro e genro se dão bem agora, mas o sogro hesitara muito em permitir o casamento de Clarinha com Negreiros, porque os costumes deste último eram “pouco austeros”. Isso não durante o namoro, mas na fase anterior a ele. O narrador acrescenta ainda que Luís Negreiros “desmentiu as apreensões do sogro”, de leão impetuoso que era transformou-se em um “pacato cordeiro”; a amizade entre eles se aprofundou e Clarinha era inteira e perfeitamente feliz, “uma das mais invejadas moças da cidade” (Catita 111Catita, Flávia Barretto Corrêa. “Reescrita do Conto ‘O relógio de ouro’, de Machado de Assis na Passagem do Jornal para o Livro”. Revista da Abralin, 16.3, (2017): 101-117. 17 abr 2021. Disponível em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/441.
https://revista.abralin.org/index.php/ab...
).

Esse acréscimo torna a narrativa mais complexa, já que acrescenta a informação sobre o comportamento pouco recomendável de Negreiros em sua vida pregressa. Nesse ponto é plantada no leitor a semente da desconfiança, que germina quando Negreiros lê o bilhete recebido juntamente com o relógio, sugerindo, mas não afirmando explicitamente, que Negreiros tem uma amante. Os termos “nhonhô” e “Iaiá” não fazem mais que isso: eles sugerem uma relação extraconjugal de Negreiros.

Já no formato folhetim, essa relação fica explícita e o conto não termina de forma abrupta. Tudo fica explicado e pacificado:

Luís Negreiros recebeu a carta; chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas:

‘Meu bebê. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança. — Tua Zeferina’ Imagine o leitor o pasmo, a vergonha, o remorso de Luís Negreiros, admire a constância de Clarinha e a vingança que tomara, e de nenhum modo lastime a boa Zeferina, que foi totalmente esquecida, sendo perdoado Luís Negreiros, e tendo Meireles o gosto de jantar com a filha e o genro no dia seguinte

(Catita 114Catita, Flávia Barretto Corrêa. “Reescrita do Conto ‘O relógio de ouro’, de Machado de Assis na Passagem do Jornal para o Livro”. Revista da Abralin, 16.3, (2017): 101-117. 17 abr 2021. Disponível em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/441.
https://revista.abralin.org/index.php/ab...
).

Na versão para o livro, o conto termina logo após a leitura da carta (ou bilhete) e o narrador o encerra de repente, deixando ao leitor várias possibilidades de interpretação. Assim, João Cézar de Castro Rocha julgou que os termos “nhonhô” e “Iaiá” correspondem a termos afetuosos trocados entre marido e mulher, e que o silêncio e a distância de Clarinha fariam parte de uma encenação para alongar a perplexidade de Negreiros, que se dissiparia quando, lendo os termos na carta, ele logo percebesse que o presente viera da própria mulher. Jull-Costa e Patterson apostaram em uma antiga babá, e LePuen em uma tia.

Na sua resenha de The Collected Stories, Thomson-Deveaux comenta as várias interpretações feitas pelos tradutores e menciona a troca de mensagens que teve com Margaret Jull-Costa.

When tasked with interviewing Jull-Costa and Patterson about their translation for Suplemento Pernambuco in 2018, I wrote to say that I thought we’d all got it wrong: not the wife herself, not the nanny, not an aunt, Iaiá might well have been the Other Woman. “Machado seems to have made the switch to nhonhô/iaiá to keep the ending deliberately indeterminate, ‘I commented,’ which none of us did!’ In her response, Jull Costa (2018) argued: ‘I read the current ending as Luís having destroyed a previously happy marriage by his senseless jealousy.’

(Thomson-DeVeaux 85Thomson-DeVaux, Flora. “Review of The Collected Stories of Machado De Assis, Translated by Margaret Jull-Costa and Robin Patterson”. Machado de Assis em Linha. 12.28, (2019): 78-86.).

Vale a pena comparar essa resposta à outra que Jull-Costa enviou a mim, e que continha o comentário de Robin Patterson, indiretamente respondendo às minhas indagações:

I think Luís having a lover is a possible hypothesis, but that we’re probably not meant to be entirely sure what Clarinha thinks, still less what has actually happened. After all, the narrator is adamant that Luís has found his ‘bom porto’ and mended his youthful ways. And it seems rather odd that he is so quick to accuse Clarinha, and yet so slow to remember that he has a lover of his own - the story doesn’t read like a tale of blatant male hypocrisy. Perhaps the watch is from a pre-marital old flame (‘lembrança’)? Although this would certainly change my reading of ‘Assim acabou a história’ in the last line. And while I agree that’s unlikely a former nanny would have the money to buy him a gold watch, this may be precisely the reason why Luís Negreiros is ‘estupefato’’ I think we’re simply meant to be left wondering.3 3 Correspondência por email com Margaret Jull-Costa, 26 set 2019

O que Patterson demonstra em sua argumentação não é uma visão limitada, como talvez desejasse minha “presunção de leitora nativa”, naturalmente informada por uma auto atribuição de maior capital cultural. O que Patterson evidencia é justamente a complexidade de uma peça machadiana que, em geral, é considerada “simples”. “O Relógio de Ouro” provavelmente é considerado menos complexo que “Missa do Galo” ou “A Causa Secreta”, contos mais conhecidos do público brasileiro e também mais traduzidos para o inglês. O que concluímos é que, mesmo em textos mais simples, Machado mostra sua capacidade de adensar e aprofundar as possibilidades interpretativas do leitor.

Vale ainda mencionar os possíveis motivos para a interpretação de LePuen. O que o teria feito pensar que “tua Iaiá” remetesse a uma tia de Negreiros? De todas as interpretações, essa parece a menos justificável. Mais uma vez a resenha de Thomson-Deveaux traz um esclarecimento interessante e muito pertinente. Num impulso curioso semelhante ao meu a partir daquela situação de sala de aula descrita no início deste artigo, Thomson-Deveaux descobriu que, no website dominiopublico.gov.br, esse conto figura com um erro de digitação: e em vez de “tua Iaiá”, o que está escrito lá é “tia Iaiá”. Esse equívoco explica a opção de LePuen. Afinal, se uma fonte do governo brasileiro disponibiliza online um texto de Machado, LePuen deve ter confiado nela, considerando-a fonte fidedigna, detentora de capital cultural.

7. Conclusão

Essa jornada interpretativa, que começou casualmente numa situação de sala de aula e acabou me levando a descobrir tantos detalhes sobre o conto “O Relógio de Ouro”, teve o efeito de mudar a configuração do texto para mim. De uma história quase boba, o conto tornou-se uma peça literária mais complexa, que passou por transformações conscientes realizadas por Machado e também sofreu a vicissitude de um erro tipográfico. Cada uma dessas manipulações trouxe efeitos relevantes para as traduções, apresentando diferenças significativas que se justificam dentro de cada contexto. Além disso, a questão da autoridade atribuída a alguns atores devido a seu capital cultural também foi colocada em questão e problematizada. O crítico João Cézar de Castro Rocha foi determinante na decisão de Thomson-Deveaux sobre como traduzir o conto. Por outro lado, a leitura do texto desse crítico me fez repensar, mesmo na posição de “leitora nativa”, minha interpretação anterior, abrindo espaço para a interpretação de Castro que, também para mim, representa uma autoridade. Acima de toda essa movimentação parece pairar Machado, talvez dando uma risadinha irônica, numa expressão de quem, como bem disse Robin Patterson, quer nos deixar pensando e indagando: “I think we’re simply meant to be left wondering.”

  • 1
    Correspondência por email com Margaret Jull-Costa, 26 set 2019.
  • 2
    Para uma contextualização maior do argumento de Rocha, segue o trecho traduzido por Thomson-DeVeaux: “O relógio de ouro” [The Gold Watch], published in the Jornal das Famílias in April and May of 1873 and reproduced later the same year in Midnight Stories, presents a simple anecdote that serves to herald the complexity of future approaches to the subject. All revolves around an innocent suspicion, which is resolved easily: the man’s watch found by zealous Luís Negreiros was no proof of infidelity, but a birthday present from his wife herself (Rocha, 32, apud Thomson-DeVeaux, 83). Como será possível observar na discussão a seguir, embora cite a versão seriada do conto publicada no Jornal das Famílias, Rocha não parece ter atentado para as diferenças entre os dois textos, e principalmente para os dois finais diferentes.
  • 3
    Correspondência por email com Margaret Jull-Costa, 26 set 2019

Referências

  • Catita, Flávia Barretto Corrêa. “Reescrita do Conto ‘O relógio de ouro’, de Machado de Assis na Passagem do Jornal para o Livro”. Revista da Abralin, 16.3, (2017): 101-117. 17 abr 2021. Disponível em: https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/441
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  • Caldas Aulete, Francisco J.; Valente, Antônio Lopes dos Santos. Dicionário Aulete Lexikon Editora Digital. Web 20 abr 2021. https://aulete.com.br/site.php?mdl=aulete_digital
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2021
  • Aceito
    15 Nov 2021
  • Publicado
    Fev 2022
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