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“A CLOCKWORK ORANGE” EM PORTUGAL: A TRADUÇÃO DO NADSAT

Resumo

A Clockwork Orange, romance escrito pelo autor britânico Anthony Burgess, é notável pelo uso do Nadsat, uma gíria inventada pelo autor. O romance apresenta um desafio de tradução significativo, uma vez que a criatividade linguística e os estilos transgressivos são muitas vezes difíceis de recriar na tradução. Em Portugal, A Clockwork Orange foi traduzido duas vezes: a primeira vez por José Luandino Vieira e a segunda vez por Vasco Gato, apresentando diferenças a vários níveis. Para o presente estudo optamos por averiguar quais foram as principais estratégias utilizadas por ambos os tradutores em Portugal relativamente à tradução do Nadsat.

Palavras chave
A Clockwork Orange; Nadsat ; tradução; criatividade linguística

Abstract

A Clockwork Orange, a novel written by the British author Anthony Burgess, is remarkable for the use of Nadsat, a slang invented by the author. The novel poses a significant translation challenge as linguistic creativity and transgressive styles are often difficult to recreate in translation. In Portugal, A Clockwork Orange was translated twice: the first time by José Luandino Vieira and the second time by Vasco Gato, presenting differences at various levels. For the present study we have chosen to investigate what were the main strategies used by both translators in Portugal regarding the translation of Nadsat.

Keywords
A Clockwork Orange; Nadsat ; translation; linguistic creativity

As traduções de A “Clockwork Orange” em Portugal

Em Portugal, A Clockwork Orange (1962), romance escrito pelo autor britânico Anthony BurgessBurgess, Anthony. “Doce de Laranja Mecânico”. In: A Laranja Mecânica. Lisboa: Alfaguara Portugal, 2016a, pp. 301-307., foi alvo de tradução em duas ocasiões sob o título A Laranja Mecânica. A primeira tradução remonta a 1973, tendo sido realizada por José Luandino Vieira. Por seu turno, a segunda tradução, elaborada por Vasco Gato, foi publicada quase quarenta anos depois, em 2012. Ambos os tradutores são reconhecidos escritores, nacional e internacionalmente.

José Luandino Vieira, nascido em Portugal em 1935, emigrou com três anos de idade para Angola. Em 1963 foi desterrado para o Tarrafal, Cabo Verde, na sequência da sua prisão por alegadas ligações ao MPLA1 1 Movimento Popular de Libertação de Angola. . Regressou a Lisboa em 1972, vivendo em regime de liberdade condicional e de residência fixa. Durante a sua estadia em Portugal, trabalhou numa editora e traduziu a obra A Clockwork Orange. O autor foi galardoado com diversos prémios literários, incluindo o “Grande Prémio de Novelística” da Sociedade Portuguesa de Autores pelo seu livro Luuanda. (Biografia: José Luandino Vieira, 2021Biografia: José Luandino Vieira. Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. Disponível em: http://livro.dglab.gov.pt/sites/DGLB/Portugues/autores/Paginas/PesquisaAutores1.aspx?AutorId=9476. Acesso em: 02 fev. 2021.
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). Vasco Gato, o mais jovem dos tradutores, nasceu em Lisboa, em 1978. Foi selecionado na vertente de Literatura na edição de 1999 do Concurso Jovens Criadores, tendo publicado, no ano 2000, o seu primeiro livro de poemas, intitulado Um Mover de Mão, seguido de outros onze livros de poesia. A partir de 2007 passou a dedicar-se exclusivamente à atividade de tradutor, colaborando com várias editoras e traduzindo autores de renome, dos quais se destaca precisamente A Clockwork Orange de Anthony Burgess (Vasco Gato: BIO 3ª pessoa, 2021Vasco Gato: BIO 3ª pessoa. Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. Disponível em: http://portugalguadalajara2018.dglab.gov.pt/vasco-gato/. Acesso em 03 fev. 2021.
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).

O Nadsat

A Clockwork Orange é uma obra amplamente reconhecida pelo Nadsat, uma língua artística construída, ou língua artística, falada por Alex, o protagonista e narrador da história, e pelos seus amigos, a qual confere um sabor distinto à narrativa graças à incorporação da língua russa e de outros componentes (Vincent & Clarke, 2017Vincent, Benet & Clarke, Jim. “The language of A Clockwork Orange: A corpus stylistic approach to Nadsat”. Language and Literature, 26(3), p. 247-264, 2017. DOI: 10.1177/0963947017706625
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, p. 248). Nadsat corresponde ao sufixo utilizado em russo para os números de 11 a 19, e que corresponde, por sua vez, ao sufixo teen em inglês (ibidem). Segundo Bogic (2010, p. 5)Bogic, Anna. “Anthony Burgess in French Translation: Still ‘as Queer as a Clockwork Orange”. Canadian Association for Translation Studies. Young Researchers Selected Papers. p. 1-14, 2010. Disponível em: http://act-cats.ca/wp-content/uploads/2015/04/Bogic-Anna.-Anthony-Burgess-in-French-Translation.-CATS.-Young-researchers-selected-papers.-2010.pdf. Acesso em: 06 fev. 2021.
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, o Nadsat tem sido classificado de diversas formas, tais como língua construída, gíria, registo e socioleto, podendo-se efetuar a sua definição a vários níveis e argumentar em favor de cada um dos mesmos. Para o propósito do presente artigo, destacamos a inserção do Nadsat na categoria de gíria. Com efeito, o seu vocabulário e as suas expressões parecem ter um valor inferior em comparação ao inglês padrão, encontrando-se também implícito que os interlocutores estão familiarizados com este vocabulário (Bogic, 2010Bogic, Anna. “Anthony Burgess in French Translation: Still ‘as Queer as a Clockwork Orange”. Canadian Association for Translation Studies. Young Researchers Selected Papers. p. 1-14, 2010. Disponível em: http://act-cats.ca/wp-content/uploads/2015/04/Bogic-Anna.-Anthony-Burgess-in-French-Translation.-CATS.-Young-researchers-selected-papers.-2010.pdf. Acesso em: 06 fev. 2021.
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, p. 6).

Burgess, ao escrever o seu romance sobre rufias adolescentes, equacionara utilizar o calão britânico de inícios da década de 1960. Porém, receava que a linguagem se desatualizasse mesmo antes da publicação do livro (Biswell, 2016Biswell, Anthony. “Introdução”. In: Burgess, Anthony. A Laranja Mecânica. Lisboa: Alfaguara Portugal, 2016, pp.9-27., p. 15). Burgess afirmou na sua autobiografia que foi à porta do Metropole Hotel em Leninegrado - onde ele e a sua esposa observavam bandos de jovens violentos e bem vestidos parecidos com os Teddy Boys da sua terra natal - que decidiu conceber para o seu romance uma nova língua baseada no russo, à qual tinha intenção de chamar Nadsat (ibidem).

O Nadsat não é uma linguagem meramente decorativa, nem representa um indício de um controlo subliminar que um super-estado comunista poderia estar a exercer nos adolescentes. Pelo contrário, a lição de A Clockwork Orange nada tem a ver com a ideologia nem com as técnicas repressivas da Rússia Soviética, preocupando-se unicamente com aquilo que poderia acontecer no Ocidente se este não se encontrasse de sobreaviso (Burgess , 2016bBurgess, Anthony. A Laranja Mecânica. Lisboa: Alfaguara Portugal, 2016b., p. 307). O escritor pretendia salientar que a juventude ajanotada e fora da lei constituía um fenómeno internacional, visível de ambos os lados da “Cortina de Ferro” (Biswell, 2016Biswell, Anthony. “Introdução”. In: Burgess, Anthony. A Laranja Mecânica. Lisboa: Alfaguara Portugal, 2016, pp.9-27., pp. 15-16). A escolha do russo deveu-se, igualmente, ao facto de este idioma se fundir melhor com o inglês do que com o francês ou até mesmo o alemão (Burgess, 2016bBurgess, Anthony. A Laranja Mecânica. Lisboa: Alfaguara Portugal, 2016b., p. 307). Adicionalmente, assinalam-se outras características da língua russa que foram favoráveis para o autor atingir o seu propósito. Burgess (38)Burgess, Anthony. A Laranja Mecânica. Lisboa: Planeta de Agostini, 1999. destaca que o russo possui tanto polissílabos como palavras curtas e que, tal como ocorre com outras línguas do leste europeu, não realiza a distinção entre “perna” e “pé” ou “braço” e “mão”. Para rematar, nas palavras de Burgess, “esta limitação tornaria o meu horrível narrador num brinquedo mecânico com membros inarticulados” (ibidem).

O Nadsat possui várias funções no contexto de A Clockwork Orange. Em primeiro lugar, começamos por referir a função da separação entre grupos. O Nadsat é a linguagem utilizada pelos adolescentes e o seu objetivo é, portanto, excluir todos os outros que não pertencem a esse grupo (Bogic, 2010Bogic, Anna. “Anthony Burgess in French Translation: Still ‘as Queer as a Clockwork Orange”. Canadian Association for Translation Studies. Young Researchers Selected Papers. p. 1-14, 2010. Disponível em: http://act-cats.ca/wp-content/uploads/2015/04/Bogic-Anna.-Anthony-Burgess-in-French-Translation.-CATS.-Young-researchers-selected-papers.-2010.pdf. Acesso em: 06 fev. 2021.
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, p. 13). Esta gíria serve para dar ao leitor a impressão de que faz parte do mundo apresentado no romance, criando uma sensação de intimidade com Alex e os seus droogs, já que os adultos do romance não conseguem entender o que os adolescentes estão a expressar. (Ginter, 2003Ginter, Anna. “Slang as the Third Language in the Process of Translation: A Clockwork Orange in Polish and Russian”. p. 295-304. Disponível em: https://www.rastko.rs/cms/files/books/49c941e3a4ac8.pdf. Acesso em: 05 jan. 2021.
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, p.299).

Em segundo lugar, a linguagem de A Clockwork Orange envolve o romance como se de nevoeiro se tratasse, tornando menos nítida a violência brutal presente nas cenas de violação e nos espancamentos sangrentos. Desta forma, suaviza a transgressão linguística e social e, como um ecrã, produz um efeito de “entorpecimento”. Esta caraterística permite ao leitor acompanhar os eventos, mas sem ser profundamente perturbado por detalhes gráficos (Bogic, 2010Bogic, Anna. “Anthony Burgess in French Translation: Still ‘as Queer as a Clockwork Orange”. Canadian Association for Translation Studies. Young Researchers Selected Papers. p. 1-14, 2010. Disponível em: http://act-cats.ca/wp-content/uploads/2015/04/Bogic-Anna.-Anthony-Burgess-in-French-Translation.-CATS.-Young-researchers-selected-papers.-2010.pdf. Acesso em: 06 fev. 2021.
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, p. 5).

Seguidamente, o Nadsat tem a função de lavagem cerebral: durante o processo de aprendizagem do Nadsat, de maneira a compreender o livro, o leitor sofre uma lavagem cerebral de modo a aprender um mínimo de russo. (Bogic, 2010Bogic, Anna. “Anthony Burgess in French Translation: Still ‘as Queer as a Clockwork Orange”. Canadian Association for Translation Studies. Young Researchers Selected Papers. p. 1-14, 2010. Disponível em: http://act-cats.ca/wp-content/uploads/2015/04/Bogic-Anna.-Anthony-Burgess-in-French-Translation.-CATS.-Young-researchers-selected-papers.-2010.pdf. Acesso em: 06 fev. 2021.
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, p. 13). Para Burgess (2016b, p. 307)Burgess, Anthony. A Laranja Mecânica. Lisboa: Alfaguara Portugal, 2016b., o objetivo do Nadsat seria transformar o romance, entre outras coisas, numa cartilha de lavagem cerebral.

Salientamos que, de acordo com García Morilla (1995, p.311)García Morilla, Antonio. “A Clockwork Orange: Reflexiones Sobre Una Traducción Prospectiva”. Encuentros Complutenses en torno a la Traducción: Vol. V, Madrid, 1995. Editado por Martín-Gaitero, Rafael. Disponível em: https://cvc.cervantes.es/lengua/iulmyt/pdf/encuentros_v/38_garcia.pdf. Acesso em: 04 mar. 2021.
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, o Nadsat também serve para distanciar no tempo e no espaço as personagens de A Clockwork Orange, de forma a asseverar o caráter distópico do romance.

Por fim, Maher (2010, p. 41)Maher, Brigid. “Attitude and Intervention: A Clockwork Orange and Arancia meccanica”. New Voices in Translation Studies. 6(2010), p. 36-51. Disponível em: http://www.iatis.org/images/stories/publications/new-voices/Issue6-2010/article-maher-2010.pdf. Acesso em: 10 jan. 2021.
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menciona outra função do Nadsat que nos pareceu pertinente: o seu efeito humorístico. Embora o conteúdo do romance seja, em vários aspetos, muito sombrio, também é possível contemplar-se momentos de grotesco humor negro. Na ótica da autora, existem várias maneiras através das quais o Nadsat contribui para este efeito, como, por exemplo, o facto de muitas palavras em Nadsat simplesmente soarem engraçadas para um leitor de língua inglesa e determinadas opções ortográficas tomadas por Burgess criarem um duplo sentido humorístico.

A primeira tentativa rigorosa para definir e delimitar o Nadsat foi levada a cabo pelos investigadores Benet Vincent e Jim Clarke, mediante um estudo intitulado “The language of A Clockwork Orange: A corpus stylistic approach to Nadsat”. Publicado em 2017, o trabalho tem como base a Edição Restaurada de A Clockwork Orange de 2012, editada por Andrew Biswell. Esta edição contém o último capítulo da obra, omitido nas primeiras edições americanas.

O Nadsat em A Clockwork Orange apresenta um interessante problema de identificação, uma vez que Burgess forneceu pouca ajuda explícita aos leitores para decifrar os significados desta nova anti-língua, com a intenção de que os mesmos a fossem interiorizando à medida avançassem na leitura (Vincent, 2017Vincent, Benet. “Nadsat, the anti-language of A Clockwork Orange. Benet Vincent identifies the distinctive features of Nadsat, the teen argot of Anthony Burgess’s A Clockwork Orange”. Babel: The language magazine. 19, p. 34-41, 2017. Disponível em: https://cloud.3dissue.com/18743/41457/106040/issue19new/index.html?r=18.
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, p. 34). Ao longo da obra não existe uma identificação explícita do Nadsat - através, por exemplo, do uso de outro tipo de letra - o que significa que a sua identificação dependerá da interpretação do leitor (Vincent & Clarke, 2017Vincent, Benet & Clarke, Jim. “The language of A Clockwork Orange: A corpus stylistic approach to Nadsat”. Language and Literature, 26(3), p. 247-264, 2017. DOI: 10.1177/0963947017706625
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, p. 249). Os glossários proporcionados pelas diferentes edições, além de terem sido publicados contra a vontade de Burgess, são em certa medida contraditórios e contêm um conjunto de aparentes erros (idem, p. 250). O Nadsat é muito mais extenso do que o sugerido até então: longe de ser uma mera “relexificação” do russo para o inglês, corresponde a uma criação complexa que se torna compreensível através de um amplo leque de estratégias linguísticas e estilísticas (idem, p. 259-260)

Vincent & Clarke (2017, pp. 254-255)Vincent, Benet. “Nadsat, the anti-language of A Clockwork Orange. Benet Vincent identifies the distinctive features of Nadsat, the teen argot of Anthony Burgess’s A Clockwork Orange”. Babel: The language magazine. 19, p. 34-41, 2017. Disponível em: https://cloud.3dissue.com/18743/41457/106040/issue19new/index.html?r=18.
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propõem a existência de sete categorias de Nadsat. A mais extensa em termos numéricos, o Core Nadsat, conta com 218 itens identificados. Esta categoria é composta essencialmente por palavras criadas através de um processo de “relexicalização” de palavras russas, incluindo, todavia, palavras derivadas de outras línguas e até com uma etimologia incerta. No que concerne ao número de itens pertencentes às restantes categorias, a das Palavras Compostas abrange 46 palavras, a dos Arcaísmos, 36 palavras, a das Palavras Truncadas, 21 palavras, a da Morfologia Criativa, 20 palavras, a da Fala dos Bebés 10 palavras, e a da Gíria Rimada, 5 palavras.

O Core Nadsat domina em termos de frequência, e, de forma global, os seus itens surgem na obra a cada 17 palavras. Ademais, esta categoria é 35 vezes mais frequente do que a próxima categoria mais frequente, a das palavras truncadas, e quase dez vezes mais frequente do que todas as outras categorias combinadas. Em consequência, estas últimas podem ser vistas como menos centrais no Nadsat. (Vincent & Clarke, 2017Vincent, Benet & Clarke, Jim. “The language of A Clockwork Orange: A corpus stylistic approach to Nadsat”. Language and Literature, 26(3), p. 247-264, 2017. DOI: 10.1177/0963947017706625
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, p. 256).

Com relação à caracterização das diferentes categorias, o Core Nadsat diz respeito a um léxico predominantemente russificado, o qual atraiu anteriormente a maioria da atenção crítica e linguística por parte dos académicos. As Palavras Compostas são, como o nome indica, palavras compostas através de métodos comuns em outras línguas, como o alemão, mas não em inglês. Os Arcaísmos referem-se ao tom e léxico pseudo-elisabetano frequentemente utilizado por Alex quando fala em Nadsat. A categoria das Palavras Truncadas relaciona-se, predominantemente, com palavras em inglês que Burgess trunca sem perda de significado evidente, de forma a transformá-las em. Já a Morfologia Criativa contém palavras derivadas do inglês de múltiplas maneiras e que, por norma, não seriam admissíveis nesta língua. A Fala dos Bebés baseia-se numa metodologia criativa de construção linguística, na qual se verifica a repetição infantil de certas sílabas dentro de palavras, transformando-as em Nadsat (ex: appy polly loggies, cujo significado é “desculpa”). Por último, a Gíria Rimada corresponde não só a expressões provenientes da gíria rimada cockney existente, muitas vezes obtidas do famoso dicionário de gírias de Eric Partridge, mas também a expressões inventadas pelo próprio autor (“Breaking down Nadsat into Categories”).

Depreendemos que A Clockwork Orange apresenta alguns problemas de tradução significativos. Por certo, Maher (2010, p. 37)Maher, Brigid. “Attitude and Intervention: A Clockwork Orange and Arancia meccanica”. New Voices in Translation Studies. 6(2010), p. 36-51. Disponível em: http://www.iatis.org/images/stories/publications/new-voices/Issue6-2010/article-maher-2010.pdf. Acesso em: 10 jan. 2021.
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aponta que a criatividade linguística e os estilos transgressivos são sempre difíceis de recriar na tradução. Anthony Burgess, o seu criador, estava bem ciente dos desafios colocados ao tradutor devido ao seu estilo de escrita e incluiu-se entre aqueles que chamou de “escritores de classe 2, que são dados a efeitos poéticos, jogos de palavras e ambiguidades linguísticas [e cujo] tradutor deve ser ele próprio um escritor dedicado” (Burgess, 2014Burgess, Anthony. You’ve had your time. Nova Iorque: Random House, 2014. Google Books. Disponível em: https://books.google.pt/books?id=9AvZAgAAQBAJ&hl=pt-PT. Acesso em: 10/ dez. 2020.
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, p. 12). A dificuldade em traduzir gírias literárias não reside apenas em problemas linguísticos, mas também em dificuldades pragmáticas e semióticas, visto que a sua presença acrescenta significados que extravasam o nível linguístico (Ramos Pinto, 2009Ramos Pinto, Sara. “How important is the way you say it?: A discussion on the translation of linguistic varieties”. Target, 21(2), p. 289-307, 2009. DOI: 10.1075/target.21.2.04pin.
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, p. 296). Casos como A Clockwork Orange parecem forçar o tradutor a seguir o exemplo do autor e a criar uma nova gíria baseada na língua de chegada, mas repleta de um léxico e construções sintáticas estranhas ao leitor (ibidem). Dada a importância do Nadsat para o romance, as traduções de A Clockwork Orange necessitam de criar uma versão local do Nadsat na língua de chegada, em vez de empregar uma versão universal da mesma, como tem sido o caso de outras línguas construídas, como o Klingon ou o Dothraki (Malamatidou, 2017Malamatidou, Sofia. “Creativity in translation through the lens of contact linguistics: a multilingual corpus of A Clockwork Orange”. The Translator. 23(3), p. 292-309, 2017. DOI: 10.1080/13556509.2017.1294043.
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, p. 3).

Metodologia

No presente estudo focamo-nos em determinar quais foram as estratégias prevalentes utilizadas pelos tradutores para cada uma das categorias de Nadsat, em que medida as mesmas diferem ou não, e em que proporção. Realçamos que as conclusões não serão apresentadas a um nível quantitativo exato, mas sim a um nível de tendências.

Definimos que, para aferir quais as principais estratégias utilizadas pelos tradutores em relação ao Nadsat, seria pertinente a elaboração de tabelas contendo as palavras em Nadsat originais e as respetivas traduções. Este tipo de tabelas permite que as diferenças e semelhanças entre os elementos que fazem parte das mesmas sejam observados visualmente, facilitando a sua comparação. Como base para as tabelas comparativas, decidimo-nos pela utilização de praticamente todas as palavras em Nadsat pertencentes a seis das sete categorias identificadas e descritas por Vincent & Clarke (2010, p. 254-256)Vincent, Benet. “Nadsat, the anti-language of A Clockwork Orange. Benet Vincent identifies the distinctive features of Nadsat, the teen argot of Anthony Burgess’s A Clockwork Orange”. Babel: The language magazine. 19, p. 34-41, 2017. Disponível em: https://cloud.3dissue.com/18743/41457/106040/issue19new/index.html?r=18.
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. No que diz respeito à categoria dos Arcaísmos, selecionamos apenas quatro itens: cutter, mounch, shive e warble. De resto, excluímos as outras palavras desta categoria, visto que se encontram intrinsecamente relacionadas com o tom e sintaxe do Nadsat, aspetos que extravasariam o escopo da presente investigação.

Cada tabela comparativa dispõe de quatro colunas: a primeira contém as palavras em Nadsat de cada categoria; a segunda contém a tradução de José Luandino Vieira (denominado “Nadescente” pelo tradutor); a terceira contém a tradução de Vasco Gato (denominado “Nadsate” pelo tradutor) e a quarta contém o significado, em português, de cada uma das palavras em Nadsat.

No que se refere ao processo de elaboração das tabelas, após a extração das palavras em Nadsat começamos por procurar os respetivos equivalentes nos glossários das traduções de José Luandino Vieira e Vasco Gato. Consideramos que as traduções das palavras em Nadsat listadas nos glossários foram utilizadas de forma consistente na obra. Poderão, efetivamente, existir casos em que tenha sido utilizada uma tradução diferente àquela listada no glossário, ou até uma suavização. Contudo, partimos do princípio que tais seriam casos esporádicos e que, na maior parte das vezes, a consistência terá sido mantida. Dado o problema de identificação do Nadsat existente antes da realização do estudo de Benet Vincent e Jim Clarke, é natural que muitas das palavras em Nadsat identificadas pelos mesmos não se encontrem listadas nos glossários das traduções, relembrando que mesmo a tradução de Vasco Gato foi publicada antes da realização desta investigação. Desta forma, numa fase posterior, procuramos localizar na obra original, em formato PDF, as palavras em Nadsat que não se encontram listadas nos glossários (como por exemplo, gorgeosity ou milk-plus). Em seguida, intentamos localizar os seus equivalentes em cada uma das traduções em formato papel. Verificamos que nem sempre houve consistência na tradução de algumas destas palavras em Nadsat, como é o caso de guff na tradução de José Luandino Vieira, que corresponde tanto a “gargalhada”, “gargacejalhada”, “cascalhada” ou até “risada”, dependendo do caso. Nestas situações, esforçamo-nos para que as várias soluções de tradução encontradas fossem incluídas nas tabelas comparativas.

O processo de localização dos equivalentes em Nadsat nos glossários das traduções relevou-se satisfatório relativamente às palavras pertencentes à principal e mais predominante categoria, o Core Nadsat. Não obstante, mesmo no que concerne a esta categoria, por vezes este processo revelou-se insuficiente. Por conseguinte, sempre que necessário, optamos por localizar as palavras em Nadsat na obra original em formato PDF e os seus equivalentes nas traduções em formato papel.

No que tange às outras categorias de Nadsat, o processo de localização nos glossários foi suficiente somente em algumas ocasiões, tendo-se revelado insatisfatório em diversos casos, nos quais foi impreterível localizar as palavras em Nadsat na obra original em formato PDF e os seus equivalentes nas traduções em formato papel.

É fundamental apresentar certas considerações importantes relativamente à elaboração das tabelas comparativas: o facto de os tradutores não se terem baseado na mesma edição da obra original não causou nenhum problema relevante na elaboração das tabelas comparativas; excluíram-se certas derivações e palavras relacionadas com palavras em Nadsat (como por exemplo, cal-coloured ou cat-tolchock); no caso excecional das palavras em Nadsat que possuem mais do que uma classe gramatical no original decidimos considerá-las na sua classe gramatical predominante (seja porque a mesma palavra, sem modificação, possui mais do que uma classe gramatical, seja porque a partir da mesma se criou outra palavra de outra classe gramatical, como é o caso de vonny, adjetivo que deriva de von); os nomes em Nadsat são considerados no seu grau normal e no singular, e só se apresentam no plural no caso de terem sido utilizados somente no plural na obra original (como é o caso de platties); os adjetivos em Nadsat são considerados no seu grau normal e no singular. Nas traduções, independentemente do nome que acompanham, os adjetivos são apenas considerados no masculino; finalmente, os verbos em Nadsat são considerados no modo infinitivo.

Tabela 1
Excerto da tabela comparativa realizada para este estudo, correspondente à categoria do Core Nadsat

Diversas fontes da literatura sugerem a preservação, a suavização e a compensação como sendo as estratégias mais comuns na tradução de gíria (Blonskytė & Petronienė, 2013Blonskytė, Marija & Petronienė, Saulė. “Translation of the Russian Nadsat Slang in Anthony Burgess’ Novel A Clockwork Orange into Lithuanian”. Studies about Languages. 22 (2013), p. 62-70, 2021. DOI: 10.5755/j01.sal.0.22.4293.
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, p. 64). A preservação consiste numa das estratégias de tradução (de referências culturais específicas, onde se inclui a gíria) sugeridas por Davies (2003, p. 72-89). Nas palavras da autora: “confrontado com uma referência a uma entidade que não tem equivalente próximo na cultura de chegada, o tradutor pode simplesmente decidir manter o termo original na tradução” (Davies, 2003Davies, Eirlys. “A Goblin or a Dirty Nose?” The Translator. 9(1), p. 65-100, 2003. DOI: 10.1080/13556509.2003.10799146.
https://doi.org/10.1080/13556509.2003.10...
, p. 72). A suavização, por seu turno, é uma estratégia muito frequente na tradução de gíria e consiste na sua tradução através de palavras mais neutras ou gerais, ou mesmo recorrendo à sua omissão. A estratégia da compensação, finalmente, funciona para compensar a suavização ou omissão (Blonskytė & Petronienė, 2013Blonskytė, Marija & Petronienė, Saulė. “Translation of the Russian Nadsat Slang in Anthony Burgess’ Novel A Clockwork Orange into Lithuanian”. Studies about Languages. 22 (2013), p. 62-70, 2021. DOI: 10.5755/j01.sal.0.22.4293.
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, p. 64). Esta última estratégia é definida por Harvey (1998, p. 37)Harvey, Keith. “A Descriptive Framework for Compensation”. The Translator, 1(1), p. 65-86, 1995. DOI: 10.1080/13556509.1995.10798950.
https://doi.org/10.1080/13556509.1995.10...
como: “uma técnica que consiste em compensar a perda de um efeito do texto de partida, recriando um efeito semelhante no texto de chegada através de meios específicos da língua e/ou texto de chegada”. Logo concluímos que a análise referente à utilização da estratégia da compensação nas traduções José Luandino Vieira e Vasco Gato ultrapassaria o âmbito do presente estudo.

Quanto às estratégias da preservação e da suavização, as mesmas serviram como um ponto de partida para a análise das tabelas comparativas. Foram realizadas as devidas adaptações para facilitar e tornar mais clara esta análise. Destarte, consideramos que houve uma preservação do Nadsat sempre que os tradutores optaram por uma “solução criativa”, ou seja, nos casos em que os tradutores criaram palavras não consagradas na língua portuguesa ou se desviaram claramente do uso do português padrão. Admitimos que sucedeu uma suavização do Nadsat sempre que os tradutores se decidiram pelo uso do português padrão, ou mesmo pela omissão total da palavra, e não pelo uso de uma “solução criativa”.

Resultados

Categoria: Core Nadsat

Verificamos que, relativamente às palavras em Nadsat baseadas no russo, na maior parte dos casos, José Luandino Vieira e Vasco Gato optaram pela preservação da gíria. Ambos os tradutores utilizaram uma estratégia análoga àquela utilizada por Anthony Burgess, tendo em conta a fonética das palavras em russo e adaptação das mesmas o português, tal como Burgess realizou no contexto da língua inglesa.

No que concerne aos resultados, constatamos que houve casos em José Luandino Viera e Vasco Gato traduziram de forma semelhante. Exemplos: “babusca”/ “babusca” (no original baboochka) e “chena”/ “chena” (no original cheena).

No entanto, na maioria das vezes, Vasco Gato optou por soluções de tradução ligeiramente distintas das de José Luandino Vieira, por vezes até começando certas palavras com letras diferentes. Destacamos, não obstante, que estas diferenças não são profundas, como é possível observar nas seguintes situações: “horroróico”/ “horrorochoso” (no original horrorshow) e “jízena”/ “gisna”(no original jeezny);

Assinalamos a existência de casos excecionais nos quais os tradutores elegeram outra “solução criativa”, ao invés de uma acoplagem entre o russo e o português. Na tradução de Vasco Gato tal é visível, por exemplo, em: “cusco” (no original kot) e “Feus” (no original Bog).

Estas exeções são, contudo, mais frequentes na tradução de José Luandino Vieira, o qual, por vezes, optou pela estratégia da suavização. Exemplos:“Lidão-aião” (no original oddy-knocky e “Qué” (no original cal).

No que diz respeito às pouquíssimas palavras pertencentes ao Core Nadsat oriundas de outras línguas sem ser o russo (como o alemão ou francês), aferimos que Vasco Gato, normalmente, teve em conta a fonética dessas palavras estrangeiras e adaptou-as ao português, tal como realizou com a maioria das palavras com origem russa. Exemplos: “tachetoque” (no original tashtook) e “vecê” (no original vaysay). José Luandino Vieira, decidiu-se, geralmente, por outra “solução criativa”, ou mesmo por uma suavização, como nas seguintes ocorrências: “Guardarranho” (no original tashtook) e “Taco” (no original shlaga).

Finalmente, no que toca às poucas palavras que Benet Vincent e Jim Clarke identificaram como tendo uma etimologia incerta, verificou-se que ambos os tradutores se decidiram, habitualmente, por “soluções criativas”. Exemplos: “breco”/ “dilim” (no original golly) e “carcaça”/ “atiçadora” (no original lighter). A única exeção à utilização de uma “solução criativa” foi por parte de José Luandino Vieira no caso da palavra filly, para a qual optou pelas suavizações “gozar” ou, na maioria das vezes, “traquinar”.

Categoria: Morfologia Criativa

No que tange à categoria da Morfologia Criativa, encontram-se situações em que José Luandino Vieira recorre à preservação, mas em que Vasco Gato recorre à suavização. Exemplos: “trumgumtum” (preservação de José Luandino Vieira, no original boomaboom) e “trovão” (suavização de Vasco Gato, no original boomaboom).

Observamos que outras vezes, pelo contrário, José Luandino Vieira recorre à suavização e Vasco Gato à preservação. Exemplos: “miar” (suavização de José Luandino Vieira, no original crark) e “cracar” (preservação de Vasco Gato, no original crark).

Além do mais, existem situações nas quais que ambos os tradutores recorreram à suavização. Exemplos: “apetitoso/ “apetitoso” (no original appetitish) e “enjoativo”/ “nojento” (no original sicky).

Por fim, comprovamos que existem ocorrências nas quais os tradutores recorreram à preservação através de uma “solução criativa”. Exemplos: “cancerouco”/ “canceroso” (no original cancery) e “sifilítico”/ “sifilítico” (no original syphilised).

Frisamos que Vasco Gato não recorreu à estretégia da omissão, a qual foi utilizada em duas situações por José Luandino Vieira (sizy e yearny).

Categoria: Palavras Compostas

Na categoria das Palavras Compostas, confirmou-se a existência de casos em que José Luandino Vieira recorre à preservação, mas em que Vasco Gato recorre à suavização. Exemplos: “pisa-ovos” (preservação de José Luandino Vieira, no original boot-crush) e “dar com as botas” (suavização de Vasco Gato, no original boot-crush).

Há casos, porém, em que José Luandino Vieira recorre à suavização, mas em que Vasco Gato recorre à preservação. Exemplos: “sorri para mim” (suavização de José Luandino Vieira, no original in-grin) e “intra-sorriso” (preservação de Vasco Gato, o original in-grin).

Também observamos ocorrências nas quais ambos os tradutores recorreram à suavização. Exemplos: “balouçar as pernas”/ “cruzar as pernas” (no original leg-swing) e “metal celeste”/ “metal celestial” (no original heavenmental).

Finalmente, encontramos exemplos em que ambos os tradutores optaram pela preservação da gíria, só para citar alguns: “mete-e-tira”/ “entrissai” (no original in-out-in-out) e “gorilhão”/ “parte-costas” (no original bruiseboy).

Categoria: Arcaísmos (selecionados)

A respeito da categoria dos arcaísmos, a qual conta com quatro palavras selecionadas, José Luandino Vieira, tal como Vasco Gato, elegeram sempre a preservação da gíria, como nos casos: “cantimerda”/ “chilro” (no original warble) e “cunque”/ “manhapão” (no original cutter);

Categoria: Gíria Rimada

Nesta categoria, José Luandino Vieira e Vasco Gato usaram sempre a estratégia da preservação da gíria. Exemplos: “mânfia”/ “manhosa” (no original sharp) e “vinte-contra-um”/ “vinte-para-um”(no original twenty-to-one).

Categoria: Palavras Truncadas

Na presente categoria não nos deparamos com casos em que José Luandino Vieira recorra à preservação e em que Vasco Gato recorra à suavização. Observamos apenas um caso em que ocorre o contrário, ou seja, em que José Luandino Vieira recorre à suavização e em que Vasco Gato recorre à preservação: “sífilis” (suavização de José Luandino Vieira, no original syph); “sif” (preservação de Vasco Gato, no original syph).

Verificamos vários casos em que ambos os tradutores decidiram preservar a gíria. Exemplos: “copofonhista”/ “bebedolas” (no original drunkie) e “sofistoco”/ “sofistiqueiro” (no original sophisto).

Finalmente, surgiram ainda situações em que ambos os tradutores optaram por uma suavização do Nadsat. Exemplos: “cubículos”/ “cubículos” (no original cubbies) e “injecção”/ “hipodérmica” (no original hypo).

Categoria: Fala dos Bebés

Relativamente a esta última categoria, na ampla maioria dos casos, ambos os tradutores preservaram a gíria, através de “soluções criativas” que transmitem um efeito infantil relativamente semelhante ao original. Exemplos: “a-des-cudos-o-par”/ “diz-que-culpa” (no original appy polly loggies) e “escoliosa”/ “escolunça” (no original skolliwool).

Emergiram, ademais, dois casos em que José Luandino Vieira recorre a uma preservação e Vasco Gato à suavização. Exemplo: “mastiganhetando” (preservação de José Luandino Vieira, no original munchmunch) e “mastigando” (suavização de Vasco Gato, no original munchmunch).

Constatamos, para terminar, a existência de casos em que José Luandino Vieira recorre à suavização e Vasco Gato à suavização: “soquear” (suavização de José Luandino Vieira, no original punchipunch) e “esmurrinhar” (preservação de Vasco Gato, no original punchipunch).

Proporção das estratégias utilizadas

No que toca à proporção das estratégias utilizadas, e considerando as categorias de forma global, chegamos às seguintes conclusões:

Core Nadsat: José Luandino Vieira e Vasco Gato usaram as estratégias da preservação e suavização em proporções parecidas (apesar de José Luandino Vieira tender a um maior uso da suavização do que Vasco Gato), tendo sido usada a estratégia da preservação na grande maioria dos casos.

Morfologia Criativa: José Luandino Vieira e Vasco Gato empregaram as estratégias da preservação e da suavização, grosso modo, na mesma proporção. Optaram pela preservação da gíria em cerca de metade dos casos e por uma suavização em cerca da outra metade dos casos.

Palavras Compostas: José Luandino Vieira e Vasco Gato aplicaram as estratégias da preservação e da suavização, grosso modo, na mesma proporção, optando por uma suavização da gíria em cerca de dois terços dos casos e pela preservação da gíria no outro terço.

Arcaísmos (selecionados): José Luandino Vieira e Vasco Gato serviram-se sempre da estratégia da preservação da gíria.

Gíria Rimada: José Luandino Vieira e Vasco Gato recorreram sempre à estratégia da preservação da gíria.

Palavras Truncadas: José Luandino Vieira e Vasco Gato valeram-se das estratégias da preservação e da suavização, grosso modo, na mesma proporção, optando pela preservação em pouco mais de metade dos casos, e pela suavização nos restantes.

Fala dos Bebés: José Luandino Vieira e Vasco Gato acionaram as estratégias da preservação e da suavização, grosso modo, na mesma proporção, optando pela preservação na grande maioria dos casos.

Conclusão

As traduções do Nadsat de Vasco Gato e de José Luandino Vieira apresentam, na realidade, inúmeras diferenças. Tais diferenças parecem mais do que justificadas, dado não existir nenhuma tradução consagrada para o Nadsat, uma gíria criada de raiz por Anthony BurgessBurgess, Anthony. A Clockwork Orange. W. W. Norton & Company, 2012. Google Books. Disponível em: https://books.google.pt/books?id=fVnqpwphxeAC&dq=A+Clockwork+Orange&hl=pt-PT&source=gbs_navlinks_s. Acesso em: 15 fev. 2020.
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, o que confere a cada um dos seus tradutores uma ampla liberdade de criação. No entanto, após a análise realizada às sete tabelas comparativas, com um foco nas estratégias da preservação e suavização, concluímos que, em todas as categorias, os tradutores utilizaram, de forma global, as estratégias da preservação e da suavização numa proporção semelhante. Mais ainda, no que concerne à categoria mais numerosa, mais relevante e mais frequente, o Core Nadsat, Vasco Gato optou, na grande maioria dos casos, pela preservação da gíria, ao ter em consideração a fonética das palavras, realizando uma adaptação à língua portuguesa, (ou seja, um “aportuguesamento” destas palavras), exatamente a mesma estratégia aplicada por José Luandino Vieira. Ao eleger esta estratégia, os tradutores seguiram a mesma linha do autor da obra, Anthony Burgess, mantendo, em grande medida, as mesmas funções do Nadsat original descritas no presente trabalho.

Como já foi referido, neste estudo não foi possível apurar o uso de uma terceira estratégia apontada como relevante na tradução de gírias - a estratégia da compensação - pois para tal seria impreterível a realização de um outro estudo que extravasaria nitidamente o âmbito desta investigação, mas que poderá consistir, certamente, no ponto de partida para uma nova análise. Da mesma maneira, seria interessante, num momento posterior, investigar sobre a tradução das onomatopeias, mencionadas por alguns autores como constituintes do Nadsat.

O presente estudo pretendeu outorgar visibilidade aos tradutores de A Clockwork Orange em Portugal, cuja capacidade criativa permitiu a existência das duas traduções em análise. Como o próprio autor de A Clockwork Orange, Anthony Burgess, afirmou, o tradutor das suas obras deveria ser ele próprio um escritor dedicado. A tradução de appy polly loggies para “a-des-cudos-o-par” (tradução de José Luandino Vieira) e para “diz-que-culpa” (tradução de Vasco Gato), entre muitos outros exemplos, revela exponencialmente a imaginação destes escritores-tradutores em funcionamento, de um trabalho realizado por seres humanos, e não por laranjas mecânicas.

  • 1
    Movimento Popular de Libertação de Angola.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Fev 2022
  • Aceito
    16 Ago 2022
  • Publicado
    Nov 2022
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