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TRANSCRIAÇÃO E CRÍTICA LITERÁRIA – HAROLDO DE CAMPOS E O PAPEL EPISTÊMICO DO ÍCONE

TRANSCREATION AND LITERARY CRITICISM – HAROLDO DE CAMPOS AND THE EPISTEMIC ROLE OF THE ICON

Resumo

Que papel o fenômeno da tradução criativa, tradução icônica, ou transcriação, pode ter entre diversas formas de crítica? Vamos examinar esta questão no escopo da divisão sugerida por Umberto Eco, e sua relação com a tese de Haroldo de Campos de “tradução como crítica” – “se a tradução é uma forma privilegiada de leitura crítica, será através dela que se poderão conduzir outros poetas, amadores e estudantes de literatura à penetração no âmago do texto artístico, nos seus mecanismos e engrenagens mais íntimos”. Exploramos essa tese através da noção operacional do ícone, e de ícone diagramático, desenvolvida por C. S. Peirce, e do exame da transcriação do poema “The Expiration”, de John Donne, por Augusto de Campos. Em nossa abordagem, a transcriação é um ícone de relações. Ela revela, através de uma operação tipicamente diagramática, um sistema multinível de restrições. Nossa abordagem sugere uma perspectiva epistêmica para o ícone, desconsiderada por Haroldo, capaz de re-situar sua tese em um cenário teórico ainda inexplorado.

Palavras-chave
Transcriação; Tradução criativa; Tradução icônica; Tradução como crítica; Haroldo de Campos; C. S. Peirce

Abstract

What function can the phenomenon of creative translation, iconic translation, or transcreation play among different forms of criticism? We will examine this topic within the scope of the division proposed by Umberto Eco, and its relationship to Haroldo de Campos’ thesis of “creative translation as criticism” – “if translation is a privileged form of critical reading, it will be through it that readers will be able to lead other poets, amateurs and students of literature to penetrate the heart of the artistic text, in its most intimate mechanisms and gears”. We will explore this thesis through the operational notion of icon, developed by C. S. Peirce (pos-1903), and an examination of John Donne’s transcreation, by Augusto de Campos. In our approach, transcreation is an icon of relations. It reveals, through a typically diagrammatic operation, a multilevel system of constraints. Our approach suggests an epistemic perspective for the icon, disregarded by Haroldo, capable of relocating his thesis in an unexplored theoretical setting.

Keywords
Transcreation; Creative translation; Iconic translation; Criticism as translation; Haroldo de Campos; C. S. Peirce

mas como experienciar

a fundo a criação de um poema

sem desvendar o véu da sua oculta

urdidura subjacente?

Augusto de Campos

(1986, p. 76-77)

Introdução

Que papel o fenômeno da tradução pode ter entre as diversas formas de crítica? Para Umberto Eco, a crítica literária se distribui em três modalidades, ou três “gêneros críticos” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 154) – crítica recensória, crítica histórica e crítica semiótica – ou modos que podem se misturar: “deve ficar claro que estes três modos são ‘gêneros críticos’, tipos ideais, e acontece com frequência que, sob a designação de um gênero ou modo, alguém de fato ofereça exemplos ilustres de um outro modo, ou misture, no bem como no mal, os três modos” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 154). Falta ao elenco de Eco o que Haroldo de Campos (2006, p. 46)Campos, Haroldo. Metalinguagem & outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2006. chamou de transcriação, muito próximo daquilo que Eco (2003, p. 153)Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003. considera “pesquisa e desnudamento das maquinações do estilo”, ou crítica semiótica, uma “forma superior da estilística”. Para Haroldo (2006, p. 46), “[...] a tradução é uma forma privilegiada de leitura crítica”, capaz de investigar o “âmago do texto artístico, nos seus mecanismos e engrenagens mais íntimos”. Ela envolve a recriação de complexas estruturas, históricas e contextuais, físicas e formais (padrões rítmicos, visuais e tipográficos, prosódicos e sonoros), sintáticas, efeitos semânticos, e outras propriedades (Atã & Queiroz, 2016; Greene, 2012Greene, Roland. “Poem”. In: Greene, Roland (Org.). The Princeton encyclopedia of poetry and poetics. Princeton: Princeton University Press, 2012. p. 1046-1048.; Jakobson, 1980Jakobson, Roman. “Poetry of grammar and grammar of poetry (excerpts)”. Poetics Today, 2, p. 83-85, 1980. DOI: https://doi.org/10.2307/1772353
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). A tradução é um “ícone” do signo-fonte.

Essa tese baseia-se em uma versão bastante familiar do ícone como signo de similaridade, que C. S. Peirce descreve como uma “pura primeiridade categórica”, um signo que “exibe uma semelhança ou analogia com o sujeito do discurso” (W 5:243; 1885)1 1 Seguimos uma prática conhecida para citar a obra de C. S. Peirce: Collected Papers de Charles Sanders Peirce (1931-1935, 1958), pelo número do volume e número do parágrafo, precedidos por CP; Writings of Charles S. Peirce (1993), pelo número do volume e número de página, precedido por W; Annotated Catalogue of the Papers of Charles S. Peirce (1967), por MS, com as páginas do manuscrito. – “um ícone é um representamen que se refere ao seu objeto apenas porque se assemelha, ou é análogo, a esse objeto. Assim é uma fotografia, uma figura em geometria ou um conjunto algébrico de símbolos que, em virtude das ‘regras’ ou permissões para transformação [...] são análogos aos objetos que representam” (MS [R]1147, 1901-1902). Mas o ícone pode ser diferentemente caracterizado. Exploramos aqui a “noção operacional” do ícone, tardia e menos conhecida na obra de Peirce. Esta noção liberta o ícone de qualquer compromisso epistêmico associado à similitude e analogia. Há muitas implicações. Livre de uma versão de “signo de similaridade”, ele vincula-se à noção de modelo e descoberta. O ícone é um signo que permite revelar, quando manipulado, mais informações sobre seu objeto, que na tradução é o “signo-fonte”, e é um diagrama quando revela informação sobre a estrutura de seu objeto.

Umberto Eco – crítica literária e seus gêneros críticos

São três os “gêneros críticos” conhecidos, para Eco (2003, p. 154)Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003. – crítica recensória (resenha), crítica histórica (história literária) e crítica semiótica (crítica do texto) –, que “podem se articular em três modos: aqui deve ficar claro que estes três modos são ‘gêneros críticos’, tipo ideias” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 154). A primeira, recensória, “na qual se fala aos leitores de uma obra que eles ainda não conhecem” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 154), é caracterizada pela resenha do texto literário, que tem por função a recomendação rápida, “vinculada fatalmente ao imediatismo, ao breve espaço que decorre entre publicação da obra, leitura e escritura judicativa”. A resenha é “informativa e diagnóstico-fiduciária” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 155) e deve pronunciar um juízo sobre o texto – “os leitores acreditam no resenhista, como acreditam no médico que, depois de ouvi-los dizer trinta e três, aponta sumariamente um princípio de bronquite e prescreve um xarope. [...] Na resenha (como na consulta domiciliar do médico da previdência) o leitor não vê a obra, apenas ouve outra pessoa falar dela” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 155). A resenha não fornece mais, e se limita “a dar aos leitores uma ideia sumária da obra que eles ainda não leram, e depois impor a eles o juízo (de gosto) do crítico” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 155). A segunda, histórica (história literária), “fala de textos que o leitor conhece ou pelo menos deveria conhecer, pois já ouviu falar deles” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 155). Nesse sentido, nos melhores casos de crítica histórica, o crítico “encaminha para o reconhecimento final e total de uma obra, orienta as expectativas e o gosto dos leitores, abrindo-lhes infindáveis panoramas” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 155).

Estes dois modos de crítica – resenha e história literária – podem ser praticados de acordo com duas linhas práticas: artifex additus artifici e philosophus additus artifici. No primeiro, artifex additus artifici, o crítico oferece uma espécie de diário de suas próprias emoções no decorrer da leitura da obra. O texto do crítico, nesse caso, “tenta inconscientemente superar em qualidades o objeto de sua humilde devoção e, por vezes, consegue fazê-lo” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 155). Nós conhecemos, segundo Eco, “muitíssimo bem algumas páginas sobre a literatura que são mais belas, literariamente, do que a literatura de que falam, assim como são altamente musicais as páginas de Proust sobre a música de má qualidade” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 155). Na philosophus additus artifici, o crítico tenta mostrar, “à luz de algumas categorias e critérios de julgamento, porque a obra é bela” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 155).

Umberto Eco declara um interesse particular pelo terceiro modo de crítica, semiótica, ou “crítica do texto” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 156). Nesse modo, a atividade assume um papel de “revelação dos mecanismos” e processos do texto. Uma leitura semiótica do texto tem, da “verdadeira crítica – que deve levar a compreender o texto em todos os seus aspectos e possibilidades –, a qualidade que habitual e fatalmente falta à crítica recensória e à crítica histórica: ela não prescreve os modos de prazer do texto, mas demonstra porque o texto pode produzir prazer” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 156).

A crítica recensória, por sua função de recomendação, não pode eximir-se, senão em casos de excepcional vilania, de pronunciar um juízo sobre aquilo que o texto diz; a crítica histórica pode, no máximo, indicar que uma obra teve várias e alternadas sortes e suscitou mutáveis respostas. A crítica textual, que é sempre semiótica, mesmo quando não o sabe ou quando nega sê-lo, cumpre aquela função que já fora admiravelmente descrita por Hume em ‘A Regra do Gosto’, citando uma passagem de Dom Quixote [...]. A verdadeira crítica é aquela que ri por último, pois deixa a cada um o seu próprio prazer, mas de todos mostra a razão.

(Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 156-157).

O crítico, na crítica semiótica, deve fazer com que o leitor descubra a obra pela primeira vez – “o objetivo deste discurso é conduzir passo a passo à descoberta de como é feito o texto e por que ele funciona como funciona. Este discurso pode propor uma confirmação (‘agora demonstro por que todos consideram este texto esplêndido’), uma reavaliação ou a destruição de um mito” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 156). Quando mecanismos do texto são revelados, “os modos como se pode mostrar como foi feito um texto (e porque é bom que tenha sido feito assim, e porque não poderia ser de outra forma, e porque deve ser considerado excelente precisamente porque foi feito assim) podem ser inumeráveis. Qualquer que seja a forma como eles se articulem, esta crítica não pode ser senão uma análise semiótica do texto” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 156). Trata-se de uma forma “superior” de crítica: “Se assim é, considero que devemos afirmar duas coisas: a primeira, que uma semiótica das artes nada é senão pesquisa e desnudamento das maquinações do estilo; a segunda, que a semiótica representa a forma superior da estilística e o modelo de toda crítica de arte” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 153). Avaliando o papel das críticas recensória, histórica e semiótica, Eco afirma que “se fazer crítica de verdade é entender e fazer entender como um texto é feito, e se a resenha e a história literária, enquanto tais, não podem fazê-lo por completo, a única verdadeira forma de crítica é uma leitura semiótica do texto” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 156).

Haroldo e os teóricos da transcriação

Falta ao elenco de Eco a ideia de “tradução como crítica”, desenvolvida por Haroldo de Campos, bastante próxima, mas evidentemente distinta, daquilo que ele chama de “crítica semiótica”. As ideias iniciais de uma “poética da tradução” são apresentadas por Haroldo no III Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, na Paraíba, em 1962 (“Da tradução como criação e como crítica”), publicado no número especial 4-5 da revista Tempo Brasileiro, em 1963. O livro A arte no horizonte do provável, de 1969, possui uma seção denominada “A poética da tradução”, onde, segundo Haroldo (2011, p. 10)Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., “se recolhem estudos teórico-práticos sobre a operação tradutora aplicada a Hölderlin, a Píndaro e à poesia chinesa, publicados originalmente entre 1967 e 1969”. Muito depois, ele declara: “No prefácio desse meu livro de 1969, a tradução é vista como forma de crítica que manifesta, na prática textual, a visada na ‘poética sincrônica’”. Suas reflexões resultam de uma prática “intensiva da tradução de poesia, levada a efeito – individualmente ou em equipe – por Augusto de Campos, Décio Pignatari e por mim (desde a década de 1950, quando constituímos o grupo Noigandres), como um corolário programático de nossa atividade de poetas” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 9).

Haroldo fez uso de diferentes noções para designar a prática criativa de tradução, resultado de uma “progressiva reelaboração neológica” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 10), atenta à “materialidade”, ou à “fisicalidade”, do signo tradutor/traduzido: transcriação (Campos, 1972Campos, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1972., p. 109; 1986Campos, Augusto. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986., p. 7), transposição criativa (Campos, 1972Campos, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1972., p. 110), reimaginação (Campos, 1972Campos, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1972., p. 121), ou “com timbre metaforicamente provocativo – transparadisação (transluminação) e transluciferação, para dar conta, respectivamente, das operações praticadas com ‘Seis cantos do Paradiso de Dante’ e com as duas cenas finais do ‘Segundo Fausto’ (Deus e o Diabo no Fausto de Goethe)” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 10, nossa ênfase). No “avesso da chamada tradução literal”, a transcriação “será sempre criação paralela, autônoma, porém recíproca. [...] Numa tradução dessa natureza não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma” (Campos, 1997Campos, Haroldo. O arco-íris branco. São Paulo: Imago, 1997., p. 52).

Ezra Pound, “o exemplo máximo de tradutor-recriador” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 35), é quem exerce o papel de principal paradigma na práxis da tradução criativa, do “make it new ‘via’ tradução, descrita por Luciano Anceschi como o exercício de uma verdadeira ‘maiêutica’ poética” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 9) – “o estímulo inicial foi o exemplo de Ezra Pound, aquele poeta que, como disse uma vez George Steiner, está para a tradução poética de nosso tempo como Picasso para a pintura” (Campos, 1997Campos, Haroldo. O arco-íris branco. São Paulo: Imago, 1997., p. 51). Em outra passagem, Haroldo afirma: “minhas técnicas para traduzir – melhor dizendo ‘transcriar’, ‘reimaginar’ – poesia clássica chinesa em português, com os recursos da poesia moderna, seguem e radicalizam a lição paradigmática de Pound” (Campos, 2009Campos, Haroldo. “Prólogo: Escrito sobre Jade”. In: Vieira, Trajano (Org.). Escrito sobre Jade: poesia clássica chinesa reimaginada por Haroldo de Campos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 12-15., p. 13). É de Pound (Literary Essays) a ideia de “tradução como crítica” (“criticism by translation”), que Haroldo considera “perfeitamente compreensível”, já que, para Pound, as duas funções da crítica são “1) tentar teoricamente antecipar a criação; 2) a escolha; ordenação geral e expurgo do que já foi feito; eliminação de repetições...” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 35).

Diversos autores (Max Bense, Roman Jakobson, Walter Benjamin, Albrecht Fabri), além de Pound, fornecem a Haroldo os principais subsídios que lhe permitem postular, como possibilidade da tradução poética como transcriação, “em um giro [ou rotação] dialético” (Campos, 1997Campos, Haroldo. O arco-íris branco. São Paulo: Imago, 1997., p. 52), sua intraduzibilidade por princípio – “o enfrentamento da questão aporética (do ‘caminho sem saída’) suscitada pela concepção tradicional da ‘impossibilidade da tradução de poesia’” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 15). Para Bense, tal impossibilidade “decorreria da ‘fragilidade’ da ‘informação estética’, ‘inseparável de sua realização singular’” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 15), que difere da “informação documentária”, e da “informação semântica”, especialmente “no que concerne à imprevisibilidade, à surpresa, à improbabilidade da ordenação de signos” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 32). Segundo Bense (apud Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 32), “enquanto a informação documentária e também a semântica admitem diversas codificações, podem ser transmitidas de várias maneiras [...] a informação estética não pode ser codificada senão pela forma em que foi transmitida pelo artista”. Como implicação necessária, a que Haroldo se refere como “corolário” da transcriação, “teremos, como quer Bense, em outra língua, uma outra informação estética, autônoma, mas ambas estarão ligadas entre si por uma relação de isomorfia: serão diferentes enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo sistema” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 34).

Entre as premissas de Haroldo, a tese da concreção e materialidade, ou fisicalidade, do signo (fonte/alvo) ocupa um papel crucial. São processos reconhecidamente icônicos, que resultam numa “insatisfação” programática com a ideia de fidelidade e literalidade semânticas – “ligada aos pressupostos ideológicos de restituição da verdade (fidelidade) e literalidade (subserviência da tradução a um presumido ‘significado transcendental’ do original), – ideia que subjaz a definições usuais, mais ‘neutras’ (tradução ‘literal’), ou mais pejorativas (tradução ‘servil’), da ‘operação tradutora’” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 10). Haroldo define a transcriação como prática isomórfica, “paramórfica” (Campos, 1997Campos, Haroldo. O arco-íris branco. São Paulo: Imago, 1997.): “Para fazer face ao argumento da ‘outridade’ da informação estética quando ‘reproposta’ numa nova língua, introduzi o conceito de isomorfismo: original e tradução, autônomos enquanto informação estética, estarão ligados entre si por uma relação de isomorfia” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 16). Tal identificação tem importantes consequências: “o medium por excelência da operação transcriadora passava a ser a própria iconicidade do signo estético”. O que é transcriado é o próprio signo, para Haroldo, “[...] propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele que é de certa maneira similar àquilo que ele denota” (Campos, 1997Campos, Haroldo. O arco-íris branco. São Paulo: Imago, 1997., p. 52).

Autonomia, e auto-referencialidade, são propriedades frequentemente usadas para caracterizar o signo estético e o ícone – “um ícone [...] não faz qualquer distinção entre seu objeto e sua significação. Ele exibe os dois como um” (MS[R] S46). Para Albrecht Fabri (apud Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 31-32), que foi professor da Escola Superior da Forma, em Ulm, “na arte é impossível distinguir entre representação e representado” – “a essência da arte é a tautologia”. FabriFabri, Albrecht. Preliminares a uma teoria da literatura [Präliminarien zu einer Theorie der Literatur]. Augenblick: Stuttgart-Darmstadt, 1958. afirma que é próprio da “linguagem literária” a “sentença absoluta”, ou “perfeita”, aquela “que não tem outro conteúdo senão sua estrutura, a que não é outra coisa senão o seu próprio instrumento” (apud Campos, 2013Campos, Haroldo. “Da tradução como criação e como crítica”. In: Tápia, Marcelo & Nóbrega, Thelma (Orgs.). Haroldo de Campos: transcriação. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 1-18., p. 1). Para ele, “toda tradução é crítica”, pois “nasce da deficiência da sentença”, de sua insuficiência para valer por si mesma. Como ele afirma, “não se traduz o que é linguagem num texto, mas o que é não linguagem” (Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 31).

É bem conhecida a tese de Jakobson – em poesia, “equações verbais” constituem um princípio primário de organização em que os constituintes (categorias sintáticas e morfológicas, raízes, fonemas e marcas distintivas) são “confrontados e justapostos”, colocados em “relações de contiguidade” de acordo com o “princípio da semelhança e contraste” (Jakobson, 1980Jakobson, Roman. “Poetry of grammar and grammar of poetry (excerpts)”. Poetics Today, 2, p. 83-85, 1980. DOI: https://doi.org/10.2307/1772353
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, p. 84). Para Haroldo, relações isomórficas, ou de “parentesco”, percebidas entre diversos níveis de organização (e.g., fônico, prosódico, sintático, semântico), são transcriadas do signo-fonte ao signo-alvo, em um complexo sistema de “compensações” (Campos, 2009Campos, Haroldo. “Prólogo: Escrito sobre Jade”. In: Vieira, Trajano (Org.). Escrito sobre Jade: poesia clássica chinesa reimaginada por Haroldo de Campos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 12-15., p. 14) – “A lei de compensação vige no caso: um efeito perdido aqui, pode ser ganho acolá, explorando-se as latências e possibilidades da língua do tradutor, que deve ser exposta ao impulso violento da língua estranha (como gosta de salientar Walter Benjamin, citando Rudolf Pannwitz) [...]” (Campos, p. 138).

No prólogo de seu Escrito sobre Jade (2009), ele afirma que “procura compensar os aspectos caligráficos-visuais de uma poesia [...] escrita por meio de ideogramas, adotando técnicas de espacialização gráfica da poesia moderna para dispor o texto no branco da página e usando, quase exclusivamente, a composição em caixa baixa, dispensada a composição habitual [...]”. Nos depoimentos sobre a própria praxis criativa, vemos com frequência a ideia de “equação” transcriada – “o tipo de tradução que eu preconizo [...] tende a ser uma transposição ‘hiperliteral’, já que, segundo a linguística e a poética de Jakobson, preocupo-me em reconfigurar em português as mínimas articulações fonosemânticas do original, bem como tudo aquilo que, no plano sintático-morfológico, acaba sendo irradiado semanticamente [...]” (Campos, 2010Campos, Haroldo. O segundo arco-íris branco. São Paulo: Imago, 2010., p. 29). A tradução é um ícone de articulações multiníveis (e.g., fonosemântico, sintático- morfológico).

Ícone e diagrama – definição operacional

Supomos, ao menos desde Charles MorrisMorris, Charles. Writings on the general theory of signs. Den Haag: Mouton, 1971., que o signo estético é de natureza predominantemente icônica (Zeman, 1977Zeman, Jay. “The esthetic sign in Peirce’s semiotic”. Semiótica, 19, p. 241-58, 1977. DOI: https://doi.org/10.1515/semi.1977.19.3-4.241
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; ver Campos, 2011Campos, Haroldo. Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2011., p. 34). Esta tese tem produzido, nas últimas décadas, uma grande quantidade de trabalhos. Os ícones são signos (S) que representam seus objetos (O) através de similaridade, sem consideração por qualquer conexão espaço-temporal que possam ter com processos ou entidades existentes (CP 2.299) – “ícones, ou seja, signos cuja referência aos seus objetos se deve aos próprios caracteres dos signos, em si mesmos” (MS [R]800: 4; 1903). A qualidade representativa do ícone é aquilo que Peirce descreve como uma “pura primeiridade categórica”, uma qualidade que ele possui em si-mesmo, independente de qualquer outra entidade ou processo. Um caráter “que pertence a ele, em si mesmo, como um objeto sensível, e que ele possuiria de qualquer forma, havendo ou não um objeto na natureza a que ele se assemelhe, ainda que jamais tenha sido interpretado como um signo” (CP 4.447).

O ícone está indissoluvelmente ligado a seu objeto, um análogo de sua própria constituição, formal, estrutural, ou material (Farias & Queiroz, 2017Farias, Priscila & Queiroz, João. Visualizando Signos. Ed. Blucher/FAPESP, 2017. Disponível em: https://www.blucher.com.br/livro/detalhes/visualizando-signos-1366/arquitetura-e-design-117. Acesso em: 31 jan. 2022.
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). Ele representa seu objeto através de sua forma, estrutura ou matéria, “em virtude de ser semelhante a ele [seu objeto], seja qualitativamente ou por analogia de suas partes, como um diagrama” (MS [R]842: 31-32, 1908). Mais esquematicamente, se S é um signo de O em virtude de uma certa qualidade que S e O compartilham, então S é um ícone de O, e eles constituem uma identidade sob um certo aspecto. Se S é um ícone de O, ele comunica, para um intérprete (I), uma qualidade, uma propriedade qualitativa ou estrutural, de O. Mas as ideias de analogia e similaridade, centrais à tese de Haroldo, e enfaticamente associadas à transcriação, podem ser estendidas em novas direções, com diversas implicações.

O problema é que são muitos os riscos relacionados à noção de similaridade, especialmente sua psicologização. Quando um critério operacional é adotado, o ícone é definido como qualquer coisa ou processo cuja manipulação pode revelar mais informação sobre seu objeto. O ícone não é somente o único tipo de signo envolvendo uma apresentação direta de qualidades que pertencem a seu objeto, ele é também – e isto equivale ao mesmo – o único signo que, por sua observação direta, se pode descobrir (ou revelar) mais sobre seu objeto. Esta propriedade é uma elaboração operacional do conceito de similaridade. O ícone é caracterizado como um signo que revela informação através de algum procedimento acompanhado de observação – “Uma propriedade distintiva do ícone é que, através de sua observação direta, outras verdades considerando seu objeto podem ser descobertas além daquelas satisfeitas na determinação de sua construção” (CP 2.279). Muitos exemplos parecem satisfazer este critério – a álgebra, a sintaxe, os grafos, e as formalizações de todos os tipos podem ser reconhecidos como ícones. Para Hookway (2002, p. 102)Hookway, Christopher. Truth, rationality, and pragmatism: themes from Peirce. Oxford: Oxford University Press, 2002., “a chave da iconicidade não é uma semelhança percebida entre o signo e o que ele significa mas, mais do que isso, a possibilidade de fazer novas descobertas sobre o objeto através da observação das características do signo, em si-mesmo”. Tal definição é considerada uma destrivialização da noção de ícone baseada na similaridade (Atã & Queiroz, 2014Atã, Pedro & Queiroz, João. “Iconicity in Peircean situated cognitive semiotics”. In: Thellefsen, Torkild & Sorensen, Bent (Orgs.). Charles Sanders Peirce in his own words – 100 years of semiotics, communication and cognition. Berlin: Walter de Gruyter, 2014. p. 527-536.).

Logo que um ícone é observado como feito de partes inter-relacionadas, e uma vez que as relações entre as partes, e não as próprias partes, suas propriedades e substâncias, se submetem a modificações controladas por normas e leis para representar outras relações, estamos lidando com diagramas – “Um diagrama é um representamen que é predominantemente um ícone de relações e é auxiliado por convenções” (CP 4.418). O objeto do diagrama é sempre uma relação, e as partes relacionadas do diagrama representam as relações que constituem o objeto representado (Farias & Queiroz, 2006Farias, Priscila & Queiroz, João. “Images, diagrams, and metaphors: hypoicons in the context of Peirce’s sixty-six fold classification of signs”. Semiotica, 162, p. 287-308, 2006. DOI: https://doi.org/10.1515/SEM.2006.081
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). Ele “representa uma forma definida de relação. Esta relação é frequentemente uma relação que de fato existe, como em um mapa, ou está destinada a existir, como em um Plano” (NEM 4:316). Para PeircePeirce, Charles Sanders. New elements of mathematics by Charles Sanders Peirce [organizado por Eisele, Carolyn. The Hague: Mouton, 1976]. (Citado como NEM)., “um diagrama é claramente, em todo o caso, um signo de uma Coleção, ou Plural, ordenado, ou, mais exatamente, da Pluralidade ou Multitude ordenada” (NEM 4:316). O caráter composto (composite sign) do diagrama é um de seus importantes atributos – “um diagrama é um representamen que é predominantemente um ícone de relações auxiliado por convenções” (CP 4.418).

A noção operacional possui um papel epistêmico. O diagrama é “a principal, senão a única, forma de adquirirmos novo conhecimento sobre relações” (Johansen, 1993Johansen, Jørgen Dines. Dialogic semiosis. Indiana: Indiana University Press, 1993., p. 99). Seu principal propósito “é representar certas relações de tal forma que elas possam ser transformadas em outras formas, representando outras relações envolvidas naquelas representadas pela primeira vez, e este ícone transformado pode ser interpretado em uma asserção simbólica” (MS [R]339: 286r; 1906). Esta noção fornece uma estrutura teórica ainda não explorada, de tradução como crítica, desvinculada da noção de similaridade, a que esteve restrita. A fisicalidade do signo manipulado é uma relação, uma “multitude ordenada”, que pode ser transformada em outras formas de relação. Ela não se confunde com a própria substância, propriedade ou material, de que é feito o signo, como uma entidade observável (acústica ou visual), embora esteja vinculada a propriedades físicas. O signo é manipulado para revelar alguma informação sobre uma relação.

Em nossa argumentação, a tradução revela um sistema multinível de relações. A noção de multiplex, de restrições inter-níveis que atuam em sistemas hierárquicos complexos, pode ser muito adequada à descrição desse fenômeno (Martinčić-Ipšić, Margan & Meštrović, 2016Martinčić-Ipšić, Sanda; Margan, Domagoj & Meštrović, Ana. “Multilayer network of language: a unified framework for structural analysis of linguistic subsystems”. Physica A, 457, p. 117-128, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.physa.2016.03.082
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). A tradução revela aquilo que Jakobson chamou de “equação verbal” (categorias sintáticas e morfológicas, raízes, fonemas e marcas distintivas), e que já descrevemos, em outros trabalhos (Atã & Queiroz, 2016Atã, Pedro & Queiroz, João. “Multilevel poetry translation as a problem-solving task”. Cognitive Semiotics, 9(2), p. 139-147, 2016. DOI: https://doi.org/10.1515/cogsem-2016-0007
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), como um sistema multinível de restrições – diferentes níveis de organização correspondem a diferentes conjuntos de estruturas e processos que, assimetricamente, se restringem (determinam, constrangem) (ver Figura 1).

Figura 1
O poema descrito como um sistema multinível de restrições

Por exemplo, estruturas lexicais e sintaxe restringem (ou determinam) esquemas prosódicos, e rítmicos, mas não famílias de fontes tipográficas escolhidas para impressão de um soneto. Este pode não ser o caso de um poema visual, em que variações tipográficas podem afetar, e podem ser afetadas, por variações em outros níveis de organização. As restrições entre os níveis também podem variar consideravelmente em diferentes obras, grupos de obras, e contextos. Isso explica porque, em um poema concreto, por exemplo, mas não em um soneto, a escolha da fonte tipográfica pode restringir (ou determinar) níveis relevantes de organização (morfológico, fonético, rítmico ou sintático).

A descoberta de sistemas multiníveis de restrição, através da transcriação, foi cuidadosa descrita, em termos metassemióticos. Apresentamos, na próxima seção, um exemplo dessa operação, realizada por Augusto de Campos (1986, p. 73-76)Campos, Augusto. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.. Ela tem o principal propósito de exibir como uma transcriação é um ícone (operacional) diagramático (ícone de relações) do signo-fonte, revelando um sistema multinível de restrições.

Donne diagramático de Augusto – “The Expiration”

So, so, leave off this last lamenting kiss,
which sucks two souls, and vapours both away,
turn thou ghost that way, and let me turn this,
and let our selves benight our happy day;
we ask’d none leave to love; nor will we owe
any, so cheap a death, as saying, Go;
go; and if that word have not quite killed thee,
ease me with death, by bidding me go too.
Oh, if it have, let my word work on me,
and a just office on a murderer do.
Except it bee too late, to kill me so,
being double dead, going, and bidding, go.
Susta ao beijo final a fome de beijar
que as duas almas suga e a ambas evapora,
e, fantasmas do amor, fantasiados de ar,
façamos nós a noite em nosso dia agora;
amar não custou nada, nada vai custar
a morte que eu te dou, dizendo: – Vai embora!
– Vai! Se este som mortal não te matar por fim,
dá-me tal morte então, mandando-me partir.
Ai! Se matar, que som igual ressoe em mim
E ao matador que eu fui também o mate assim,
Se não matar demais, por me fazer sentir
dobrada a morte e dor, indo e mandando ir.

Em seguida, vemos a descrição de Augusto (1986, p. 76-77)Campos, Augusto. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.. Suprimimos a divisão em versos, como aparece no original, substituindo-a por uma divisão em barras:

em nível semântico / o poema desenvolve a imagem-título / tomada no duplo sentido / de “respirar” e de “morrer” / e transposta ao sentimento / da separação amorosa: / o amante convida a amada / a expirar no ar o beijo final / (através da expiração / as duas almas fantasmas deixarão os corpos) / e se propõe matar o seu amor / com uma simples palavra: “vai” (go!) / estopim da separação e da morte

pede, por fim, que essa palavra / ressoe nele próprio / o que significará / morrer duas vezes (being double dead) / por “ir” e “mandar ir” (going and bidding go)

essa equação conceitual / encontra eco e ícone / nas camadas fônicas e gráficas do poema / por um artifício específico: / a reduplicação / que pode aqui ocorrer com morfemas / (so, so / go; go) / com fonemas próximos em pares aliterativos / (last lamenting / sucks two souls / turn thou / turn this / leave to love / word work) / ou mesmo com grafemas repetidos / (we owe) / e com toda uma cadeia / de fonemas e grafemas redobrados / especialmente em torno de / b / d / g

não falo das naturais reduplicações / ortográficas (como mee / na grafia antiga) / embora até mesmo estas / pareçam contaminar-se / de virtualidades icônicas / depois do feed back provocado pela última linha – / aquela onde incide a mais densa carga / de reduplicações especulares. / aqui vai ela numa transcrição gráfica / que visa a acentuar os agentes iconopaicos:

being double dead, going and bidding, go

a dupla morte está gravada e grafada nesta linha / em bb e dd e gg / (em minha transcrição começo com minúscula / e uso tipos em que o b e o d são formas-espelho / para obter o máximo de rendimento icônico)

das palavras começadas por consoantes / (q são todas menos uma) / duas se iniciam por b / duas por d / e duas por g. / dentre as começadas por d e g / duas (dead e going) / começam e terminam pela mesma consoante. / e as duas últimas palavras (bidding, go) / se ligam pela consoante g. / a linha toda é percorrida / por uma série de espalhamentos / entre b e d / (na área fônica / devem-se computar ainda / as sucessões de sons nasais / (being / going / and / bidding) / (being / going / and / bidding) / é por assim dizer / com esses íons e elétrons / intravocabulares / que donne cria a corrente magnética / de microssons e microimagens / do verso final / forma pregnante / que realimenta todo o poema

O que pode ser definido como “fisicalidade do signo” (fonte e alvo) tem a forma de um sistema de restrições, uma “equação conceitual” que “encontra eco e ícone / nas camadas fônicas e gráficas do poema” (ver Figura 2). Tal propriedade, tipicamente diagramática, é muito claramente manifesta na práxis criativa, de Haroldo e Augusto de Campos. O objeto revelado (“urdidura subjacente”, Campos 1986Campos, Augusto. O anticrítico. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.: 76-77) da tradução é uma relação internível, selecionada no estoque de alternativas disponíveis (ou inventadas) no signo-alvo (português), em um novo acervo de relações.

Figura 2
Fonte e alvo

A tradução é um ícone das restrições que atuam entre os níveis de organização do signo-fonte (e.g., gráfico, fônico, semântico). A ideia é que uma manipulação diagramática é feita para descobrir, ou revelar, restrições interníveis. A recriação, em português, dos paramorfismos que operam entre a “densidade fônica e gráfica do original”, no poema de Donne (por exemplo, reduplicações de bb, dd e gg), é ícone de uma “coleção ordenada” de propriedades fônicas e gráficas, relacionadas para “reverberar semanticamente” no signo-alvo, e para preservar o sistema de restrições revelado no signo-fonte. Notem que a atenção é deslocada das partes para a relação entre as partes do sistema, as relações entre níveis de organização (fônicas, grafêmicas, semânticas) no signo alvo.

Conclusão

A crítica semiótica, para Umberto Eco (2003, p. 156)Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., conduz à “descoberta de como é feito o texto e por que ele funciona como funciona”. Eco, que ignora o papel da tradução criativa como crítica semiótica, distingue “teoria semiótica da literatura” de “crítica semioticamente orientada” (Eco, 2003Eco, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 157) – “se a primeira deveria servir para compreender melhor a obra singular; para a segunda, a análise da obra singular deveria servir para iluminar melhor a natureza da língua”. A tradução criativa, que exibe iconicamente “como é feito o texto”, iluminando “a natureza da língua”, se distingue de ambas. Haroldo de Campos, ao se referir às contribuições de Jakobson, sugere que uma “poética da tradução”, e uma “física da tradução”, é capaz de demarcar com “precisão o lugar linguístico da operação tradutora em poesia, por oposição à tradução de tipo referencial-cognitivo” (Campos, 1997Campos, Haroldo. O arco-íris branco. São Paulo: Imago, 1997., p. 52). A premissa mais fundamental da tese de Haroldo – a tradução criativa transcria o signo em sua fisicalidade – baseia-se na noção Peirceana de signo icônico, que é um signo que depende de seu caráter interno, “que pertence a ele, em si mesmo, como um objeto sensível” (CP 4.447).

Nossa abordagem associa uma função epistêmica à noção de tradução criativa, como crítica, que descrevemos como uma operação tipicamente diagramática. O objeto do diagrama é sempre uma relação, análoga; suas partes relacionadas representam as relações que constituem o objeto representado, através da manipulação de sua estrutura ou arranjo estrutural. A tradução equivale à recriação icônica de um sistema multinível de restrições – no poema de Donne, as relações entre a “densidade fônica e gráfica do original”, e a “equação conceitual” que conduz à morte reduplicada no poema. Como sugerimos, essa abordagem sugere uma perspectiva desconsiderada por Haroldo de Campos, capaz de re-situar sua tese em um cenário teórico ainda inexplorado.

  • 1
    Seguimos uma prática conhecida para citar a obra de C. S. PeircePeirce, Charles Sanders. The collected papers of Charles Sanders Peirce. v. I-VI [organizado por Hartshorne, Charles & Weiss, Paul. Cambridge: Harvard University Press, 1931-1935]; v. VII-VIII [organizado por Burks, Arthur, same publisher, 1958]. (Citado como CP).: Collected Papers de Charles Sanders Peirce (1931-1935, 1958), pelo número do volume e número do parágrafo, precedidos por CP; Writings of Charles S. Peirce (1993), pelo número do volume e número de página, precedido por W; Annotated Catalogue of the Papers of Charles S. Peirce (1967), por MS, com as páginas do manuscrito.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2022
  • Aceito
    22 Set 2022
  • Publicado
    Out 2022
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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