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AS GRANDES DESVENTURAS DE ISABEL GODIN DES ODONAIS NA AMAZÔNIA NA 1ª METADE DO SÉCULO XVIII

THE GREAT MISFORTUNES OF ISABEL GODIN DES ODONAIS IN THE AMAZON IN THE FIRST HALF OF THE 18TH CENTURY

Resumo

Esta tradução traz para o português os relatos da carta sobre as desventuras da senhora Isabel Godin des Odonais ao percorrer a Amazônia na primeira metade do século XVIII. O relato, escrito por seu marido, traz detalhes da sobrevivência dessa senhora e o falecimento de toda a comitiva que a acompanhava, bem como observações sobre locais, costumes sociais, fauna e flora. Na nota de tradução, as tradutoras destacam suas dificuldades e posições tradutórias frente a um texto que carrega preconceitos e uma visão de mundo obsoleta, mas que não deve ser apagada ou corrigida. Há também um objetivo de destacar como o discurso sobre as vivências de uma mulher naquela época era construído e publicado quase que inevitavelmente por um homem para que pudesse, então, ser publicado e respeitado.

Palavras-chave
Tradução da Amazônia; Século XVIII; Viajantes Francesas

Abstract

This translation brings to Portuguese the content of the letter about the misfortunes of Mrs Isabel Godin des Odonais when traveling through the Amazon in the first half of the 18th century. The report, written by her husband, gives details about her survival and the parish of all the entourage that traveled with her. It also encompasses observations about places, social behaviors, fauna and flora. In the translation notes, the translators highlight their difficulties and translation positioning facing writings that carry prejudices and an obsolete take on different matters, but that must not be erased or corrected. There is also the goal to highlight the fact that a narrative of a story lived by a woman had to be written and published by a man so that it could be published and respected.

Keywords
Translating the Amazon; 18th Century; French Explorers

No início do século XVIII, o mundo científico se agitava com a polêmica entre quem estava correto: se os cálculos de Isaac Newton, que propunha que a Terra não era redonda, como se acreditava até então, mas sim achatada nos pólos, ou se Jacques Cassini, que calculava que a Terra se achatava na linha do Equador. Na busca por provar quem estava correto, a Academia de Ciências de Paris obteve patrocínio da coroa para realizar duas expedições com a finalidade de realizar medições in loco dos meridianos do planeta. A primeira partiu rumo ao Círculo Polar, perto da Lapônia, composta por cientistas como Maupertius, Clairaut, Monnier Junior e o célebre Celsius. A segunda partiu em 1735 e tinha como destino a cidade de Quito, no atual Equador, liderada por Pedro Bouguez, Louis Godin e Charles de La Condamine (Ferreira Penna, 1895Penna, D. S. Ferreira. “D. Isabel Grameson”. Revista Brazileira, Rio de Janeiro e São Paulo, tomo. 2, ano 1, p. 282-292 e 326-337, 895. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/139955/per139955_1895_00002.pdf. Acesso em 30 dez. 2021.
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). Entre os membros ajudantes da expedição equatorial estava o jovem Jean-Baptiste Godin des Odonais, primo do astrônomo Louis Godin, (Soyer, 1898Soyer, Jacques. “Documents inédits sur Godin des Odonais sur son séjour a la Guyane: notice bibliographique”. In: Société historique, littéraire, artistique et scientifique du département du Cher (org.). Mémoires de la Société historique, littéraire et scientifique du Cher. Paris: Émile Lechevalier, 1898. p. 75-78. (4). Volume 13. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k55457394/f91.image.r=godin#. Acesso em 30 dez. 2021.
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). A expedição terminou em 1742 (Ferreira Penna, 1Penna, D. S. Ferreira. “D. Isabel Grameson”. Revista Brazileira, Rio de Janeiro e São Paulo, tomo. 2, ano 1, p. 282-292 e 326-337, 895. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/139955/per139955_1895_00002.pdf. Acesso em 30 dez. 2021.
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895), e La CondamineLa Condamine, Charles-Marie de. Viagem na América Meridional descendo o rio das Amazonas. Coleção O Brasil Visto por Estrangeiros, Brasília: Senado Federal, 2000. retornou de Quito à Cartagena pelo caminho mais perigoso e demorado, por dentro da floresta, cruzando rios. Em 1745, Condamine publicou na França o relato de suas viagens, que fez bastante sucesso Rélation abrégée d’un voyage à l’intérieur de 1’Amérique Méridionale, en descendant la riviére des Amazones, etc.

O autor da carta aqui traduzida, Jean-Baptiste Godin des Odonais, casou-se com a jovem Isabel Grameson, filha de um importante comerciante espanhol em Quito, no então Vice-Reino do Peru. Esse comerciante era D. Pedro Grameson (também por vezes referenciado como Gramesón y Bruno ou Gramesón y Brown, e por seu genro, como Pedro Grandmaison, versão afrancesada do sobrenome). O proeminente empresário tinha ao menos dois filhos e outras filhas, entre elas Isabel, que se casou com Jean Godin de Grandmaison quando tinha 14 ou 15 anos, em 1740.

O casal se estabeleceu em Quito e viveu em certa tranquilidade por volta de 6 a 8 anos, até que o patriarca Pedro Grameson começou a sofrer revezes nos negócios e perdeu boa parte de sua renda e das posses (Ferreira Penna,1895). Em 1748 morreu a esposa de Grameson, para completar o infortúnio. No ano seguinte, em 1749, chegou a notícia de que o pai de Godin des Odonais havia morrido na França. Com a desculpa de ir até a Europa para ajustar os assuntos de família, Jean des Odonais deixou Quito para descer o rio Amazonas na direção do Pará, rumo à Cayenna, de onde partiria para a França.

Isabel Godin des Odonais foi então deixada pelo marido por longos anos, enquanto esperava que ele enviasse providências para que ela se juntasse a ele. Na ocasião da partida, ela se encontrava grávida, e teve uma filha. Com a falência de seu pai, a situação de vida tornou-se mais precária com o passar dos anos. Há relatos de cartas de Madame des Odonais ao seu marido pedindo-lhe que enviasse dinheiro, tecidos e voltasse para conhecer a filha e tomar conta da família.

Durante uma pandemia de cólera, a jovem filha dos Odonais ficou doente e faleceu. Foi a gota d’água para Isabel, ela nada mais tinha a perder ficando no que naquela época era o Vice Reino do Peru. Portanto, seu pai decidiu reunir esforços para patrocinar uma expedição enviando-a junto com seus irmãos rumo à Cayenna, onde o sr. Godin des Odonais se encontrava. Em uma expedição com 8 pessoas, tomaram o rumo do rio com guias contratados, pelo caminho mais conhecido e utilizado pela época.

Após um naufrágio, a expedição que contava com Isabel e seus dois irmãos se perdeu na floresta. Sem comida, eles aguardavam pela morte. E de fato, Isabel viu toda a expedição perecer diante de si, enterrou seus irmãos caídos no meio da floresta. Como ela mesma sobreviveu e os detalhes da situação em que se encontrava escapam aos relatos da carta do sr. des Odonais ao senhor de La Condamine.

O relato, na verdade, conta uma versão da história sem dar a palavra à protagonista dos fatos. O que se tem é a visão do marido, provavelmente editada e corrigida para esconder detalhes que poderiam ofender a moral e os bons costumes esperados do comportamento de uma mulher na época. Também ressaltamos o fato de que na carta há tratamentos pejorativos e preconceituosos em relação aos negros e indígenas, que julgamos importante manter tal como estavam para mostrar como se pensava à época e tornar ainda mais evidente como os tempos mudaram. A aventura tornou-se, pelas mãos do marido de Isabel, um relato de devoção amorosa, como se a obrigação com o casamento e a saudade fossem as únicas razões que a motivassem. Porém, sabendo da situação financeira da família Grameson e do tempo que passaram separados, podemos supor que ela talvez estivesse impulsionada pela perda de suas condições de vida. Com a morte da filha, decidiu não mais aguentar as desculpas e a demora de seu marido e tomou uma atitude.

Ao fim da desventura e após o reencontro, o casal acabou finalmente indo para a França, onde viveram uma vida sem grandes pompas e não foram tão reconhecidos enquanto cientistas ou exploradores. Houve uma ou outra tentativa de dar a eles maior importância, como se vê no registro de Jacques Soyer “Ce personnage, peu connu de ses compatriotes, semble-t-il, mérite cependant une place importante dans les annales des explorations scientifiques et, avant tout, dans celles de la colonisation française.” (Soyer, 1898Soyer, Jacques. “Documents inédits sur Godin des Odonais sur son séjour a la Guyane: notice bibliographique”. In: Société historique, littéraire, artistique et scientifique du département du Cher (org.). Mémoires de la Société historique, littéraire et scientifique du Cher. Paris: Émile Lechevalier, 1898. p. 75-78. (4). Volume 13. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k55457394/f91.image.r=godin#. Acesso em 30 dez. 2021.
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, p. 75).

Isabel morreu na França e teve seu nome “afrancesado” para Elizabeth:

(1) L’an mil sept cent quatre-vingt-douze, ce deux mars, le corps de Jean Baptiste Godin, citoyen propriétaire, âgé de soixante-dix-neuf ans, époux d’Elizabeth de Grandmaison, décédé d’hier à onze heures du soir sur cette paroisse (Vieux-Château Saint-Amand-Montrond), est inhumé par moi soussigné, en présence des vicaires soussignés : Morlet, curé; Robin, vicaire ; Chevalier, vicaire.

(Soyer, 1898Soyer, Jacques. “Documents inédits sur Godin des Odonais sur son séjour a la Guyane: notice bibliographique”. In: Société historique, littéraire, artistique et scientifique du département du Cher (org.). Mémoires de la Société historique, littéraire et scientifique du Cher. Paris: Émile Lechevalier, 1898. p. 75-78. (4). Volume 13. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k55457394/f91.image.r=godin#. Acesso em 30 dez. 2021.
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, p. 78)

Sua identidade latina foi “tomada” para que fosse vista e conhecida como francesa, ainda que não o fosse de nascimento. Essa é uma certa disputa sobre o protagonismo da narrativa. Afinal, seria essa a aventura de uma mulher francesa? Ou de uma mulher que se tornou francesa? A identidade de Isabel precisava ser “editada” para valorizar os relatos escritos em francês por seu marido.

A história dessa mulher que passou por tamanhas provações infelizmente não é contada por ela. Naquela época, no século XIX, as mulheres que ousavam escrever eram até mesmo perseguidas, chamadas de bas-bleu, ou meia azul, um termo pejorativo para as mulheres letradas. Muito provavelmente seja por isso que Isabel de Godin não é a narradora de sua história. Mas, reunindo vários relatos e fatos, podemos conhecer as nuances que se escondem por trás da “versão oficial” dada pelo marido, que provavelmente escreveu a carta ao sr. de La Condamine também com a intenção de ser lido e “perdoado” pelos seus erros em “não conseguir” se reunir com a mulher por tantos anos.

Original, tradução e retradução

O leitor pode encontrar a “Lettre de M. Godin des Odonais à M. De La Condamine” (Carta do Sr. Godin des Odonais para o Sr. De La Condamine) em diversos sites e bibliotecas confiáveis, como na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, na GALLICA, Bibliothèque Nationale de France, na Biblioteca Digital de Bogotá, na página do NUPILL/UFSC. Optamos, por questões técnicas e ideológicas, por trabalhar a partir da versão de 1778, 2ª edição da obra - a 1ª edição é de 1745 - publicada online pela Bibliothèque Numérique Manioc da Université des Antilles et de la Guyane (Universidade das Antilhas e Guiana) (Odonais, 1778Odonais, Jean Godin des. “Lettre de M. Godin des Odonais à M. De La Condamine” In De la Condamine, Charles-Marie. Relation Abrégée d’un voyage fait dans l’intérieur de l’Amérique Méridionale, depuis la côte de la Mer du Sud, Jufqu’aux côtes du Bréfil & de la Guyane, en defcendant la riviere des Amazones, par M. de La Condamine, de l’Académie des Sciences, avec une Carte du Maragnon, ou de La riviere des Amazones, levée par le même. Nouvelle Édition Augmentée de la relation de l’emeute populaire de Cuença au Pérou, et d’une lettre de M. Godin des Odonais, contenant La relation du voyage de Madame, Godin, fon Epoufe, &C. Maestrich : Imprimeurs-Libraires Dufour et Roux, 1778, pp.329-379. Disponível em : Bibliothèque Numérique Manioc da Université des Antilles et de la Guyane : https://issuu.com/scduag/docs/fra11040. Acesso 12/10.2021.
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).

Durante a nossa pesquisa sobre eventuais traduções da Carta de Godin, encontramos no site do Senado uma edição de 2000 do próprio Senado intitulada Viagem na América Meridional descendo o rio das Amazonas de La Condamine. Nos apêndices da obra, chama a atenção a “Carta sobre Madame des Odonais” que é uma tradução da “Carta do Sr. Godin des Odonais ao Sr. de La Condamine”. Essa tradução, além de estar escrita num português castiço, usando o ‘vós’, pronomes oblíquos e mesóclises, modificando ainda a macroestrutura como a criação sistemática de parágrafos, não traz nenhuma informação do.a tradutor.a! Diferentemente das primeiras traduções, as retraduções oferecem, geralmente, ao leitor, um texto menos domesticador, mais criativo e exotizante. É isso que, pelo menos, tentamos fazer aqui com esta retradução.

Estratégias para traduzir um texto escrito em francês renascentista

O francês foi a língua da diplomacia desde o final do século XVII e se tornou língua oficial pelo tratado de Paris em 1763 (Universalis, s.dUniversalis. “Tratado de Paris”. Disponível em: https://www.universalis.fr/encyclopedie/traite-de-paris-1763/. Acesso em 12 de out. 2021.
https://www.universalis.fr/encyclopedie/...
). Como a Carta de Godin é datada de 28 de julho de 1773, a língua que ele usa ainda era instável e flexível, se justapondo aos vernaculares regionais (Guerlin-de Guer, 1926Guerlin-de Guer Ch. “La langue française en France au XVIIIe siècle d’après un ouvrage récent”. In: Revue du Nord, tome 12, n°47, août 1926. pp. 227-233. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/rnord_0035-2624_1926_num_12_47_1410. Acesso: 12/10.2021.
https://www.persee.fr/doc/rnord_0035-262...
: 228). Portanto, foi necessário pensar em estratégias para estabelecer/modernizar o texto traduzido em relação ao arcaísmo do francês renascentista da Carta de Godin.

Eis o que o leitor da carta “original” encontra, por exemplo, ao ler o texto escrito por Godin:

Mon époufe defiroit beaucoup de venir en France; mais fes groffeffes fréquentes ne me permettaient pas de l’expofer, pendant les premieres années, aux fatigues d’un fi long voyage.

[…] Je lui marquois en peu de mots qui j’étois, & le suppliois d’intercéder pour moi auprès de M. de Choiſeul, au suſet des paſſe-ports.

[…] Je tombai malade, & même aſſez dangereuſement. M. de Retello, Chevalier de l’Ordre de Chriſt, & Commandant de la galiote, eut la complaiſance de m’attendre ſix ſemaines. Voyant que je n’étois pas en état de m’embarquer, & craignant d’abuſer de la patience de cet Officier »

« Je jettai les yeux ſur Triſtan d›Oreaſaval, que je connoiſſois depuis long-temps, & que je crus propre à remplir mes vues. Le paquet dont je le chargeois, contenoit des ordres du Pere Général des Jéſuites, au Provincial de Quito & au Supérieur des Miſſions de Maïnas, de faire fournir les canots & équipages néceſſaires pour le voyage de mon épouſe.

(Odonais, 1778Odonais, Jean Godin des. “Lettre de M. Godin des Odonais à M. De La Condamine” In De la Condamine, Charles-Marie. Relation Abrégée d’un voyage fait dans l’intérieur de l’Amérique Méridionale, depuis la côte de la Mer du Sud, Jufqu’aux côtes du Bréfil & de la Guyane, en defcendant la riviere des Amazones, par M. de La Condamine, de l’Académie des Sciences, avec une Carte du Maragnon, ou de La riviere des Amazones, levée par le même. Nouvelle Édition Augmentée de la relation de l’emeute populaire de Cuença au Pérou, et d’une lettre de M. Godin des Odonais, contenant La relation du voyage de Madame, Godin, fon Epoufe, &C. Maestrich : Imprimeurs-Libraires Dufour et Roux, 1778, pp.329-379. Disponível em : Bibliothèque Numérique Manioc da Université des Antilles et de la Guyane : https://issuu.com/scduag/docs/fra11040. Acesso 12/10.2021.
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)

Como nosso leitor é do século XXI e nós, tradutoras, também somos, não poderíamos conceber produzir uma tradução supostamente escrita em português do século XVIII. Nesse sentido, traduzimos a Carta ao mesmo tempo numa linguagem contemporânea e que conserva as maiúsculas para nomes comuns, observa os longos parágrafos de várias páginas e a pontuação específica daquela época.

A questão da pontuação é central quando se trata de um texto do século XVIII. Segundo Lorenceau (1978, p. 375)Lorenceau Annette. “Sur la ponctuation au 18e siècle”. In: Dix-huitième Siècle, n°10, 1978. Qu’est-ce que les Lumières ? pp.363-378. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/dhs_0070-6760_1978_num_10_1_1195. Acesso 12 de out. 2021.
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, o papel da pontuação naquele contexto era facilitar a leitura em voz alta numa época em que o número de ouvintes era infinitamente maior do que de leitores. É essencialmente esse caráter oral que explica as grandes diferenças entre a pontuação do século XVIII e uma pontuação mais atual. A pontuação com frases longas, quase intermináveis, entrecortadas com pontos e vírgulas, foi mantida na medida do possível para marcar o estilo oitocentista da Carta. Do mesmo modo, reproduzimos na tradução o caráter gramatical e estilístico do francês do final do século XVIII, mantendo os aspectos canônicos da língua, o que permite situar o texto na tradução no tempo e no espaço, em alternância com expressões e modo de escrita do português mais contemporâneo.

Quanto ao sistema de medida, procuramos entender como funcionava o sistema de medida no Brasil. Segundo a revista Analytica

Em 1862, D. Pedro II, através da Lei Imperial 1.157, oficialmente implantou o sistema decimal no Brasil. Também não houve resultado prático. O Brasil continuava uma “babel de medidas”. D. Pedro II, defensor do Sistema Métrico Decimal, tornou o Brasil em 1875, um dos 17 países signatários da Convenção do Metro que criou uma organização internacional para difundir e implantar o sistema métrico decimal uniformizando as medidas e facilitando o comércio internacional.

(Daroda et al. 2021Daroda, R.J.; Souza, T.L.; Barros, A.O.; Rodrigues, J.M.; Cunha, V.S. “Metrologia: Um instrumento de Soberania e Cidadania”. Analytica. Disponível em: https://revistaanalytica.com.br/metrologia-um-instrumento-de-soberania-e-cidadania/. Acesso em 12 de out. 2021.
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, n.p.)

No intuito de mostrar para o leitor brasileiro que o texto é um texto antigo, optamos por traduzir aune por vara, por ser a medida usada no Brasil e por ambas corresponderem a 4 pés.

Sobre a fauna, a flora e os topônimos

Decifrar nomes de plantas e animais é uma das difíceis funções que o tradutor tem enquanto leitor. É o que Berman chama de “leitura-tradução” enquanto “pré-tradução” (Berman, 2002Berman, Antoine. A Prova Do Estrangeiro. Trad. Maria Emília Perreira Chanut. Bauru, SP: EDUSC, 2002., p. 279).

O texto do Sr. Godin comporta algumas imprecisões a respeito da fauna, por exemplo na sua nota 5, quando se refere à onça:

J’ai vu dans ces quartiers, des onces, ſorte de tigre noir la plus féroce ; il y a auſſi, en ſerpents, des eſpeces les plus venimeuſes, telle que le ſerpent à ſonnette, celui que les Eſpagnols nomment Coral, & le fameux Balalao, qu’on nomme à Cayenne ſerpent Grage.

(Vi nestas paragens, onças, espécie mais feroz de tigre preto. Há também cobras, das espécies mais peçonhentas, como cascáveis, que os espanhóis chamam de Coral, e a famosa Surucucu que é chamada em Caiena de ‘Serpent Grage’).

(Odonais, 1778Odonais, Jean Godin des. “Lettre de M. Godin des Odonais à M. De La Condamine” In De la Condamine, Charles-Marie. Relation Abrégée d’un voyage fait dans l’intérieur de l’Amérique Méridionale, depuis la côte de la Mer du Sud, Jufqu’aux côtes du Bréfil & de la Guyane, en defcendant la riviere des Amazones, par M. de La Condamine, de l’Académie des Sciences, avec une Carte du Maragnon, ou de La riviere des Amazones, levée par le même. Nouvelle Édition Augmentée de la relation de l’emeute populaire de Cuença au Pérou, et d’une lettre de M. Godin des Odonais, contenant La relation du voyage de Madame, Godin, fon Epoufe, &C. Maestrich : Imprimeurs-Libraires Dufour et Roux, 1778, pp.329-379. Disponível em : Bibliothèque Numérique Manioc da Université des Antilles et de la Guyane : https://issuu.com/scduag/docs/fra11040. Acesso 12/10.2021.
https://issuu.com/scduag/docs/fra11040...
)

Ora, pelo contexto, as tradutoras deste texto entenderam que o neologismo onces em francês, corresponde às onças, onças-pretas (tigre noir). Da mesma forma, para traduzir Balalao, que não encontramos em nenhum dicionário, partimos do francês Serpent Grage para chegarmos à tradução por Surucucu.

A Sarsaparrilha, planta lenhosa nativa da América Central e do Sul introduzida na Europa em meados do século XVI, mais conhecida pelos indígenas e caboclos como japecanga (Medeiros, 2007Medeiros, Maria Franco Trindade, Senna-Valle, Luci de e Andreata, Regina Helena Potsch. “Histórico e o uso da “salsa parrilha” (Smilax spp.) pelos boticários no Mosteiro de São Bento” In: Revista Brasileira de Biociências, Porto Alegre, v. 5, supl. 1, p. 27-29, jul. 2007., p. 28), era recomendada para tratar de doenças venéreas, como a sífilis. Daí a importância de enviar sementes para o rei. Optamos assim por traduzir no texto em português por japecanga.

No que concerne à abútua (‘butua’ no texto em francês), consultamos a revista da ‘greenme Brasil’ (especializada em meio ambiente e vida sustentável) que indica que se trata de um cipó nativo da mata atlântica brasileira usado pelos indígenas e caboclos para diversos tratamentos, inclusive o de malária. O artigo avisa o leitor, porém, que a sua toxicidade o levou a ser substituído pelo quinino e outras plantas. Da abútua também se faz o curare, veneno que os indígenas usam para pescar e caçar, pois paralisa o animal.

Há ainda a presença de muitos topônimos grafados conforme a pronúncia francesa da época dentro do texto original.

Conforme Girotto (2011)Girotto, Fernanda. “Contato e catequese nas Missões de Maynas (século XVII)” In Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308172898_ARQUIVO_ContatoecatequesenasMissoesdeMaynas(seculoXVII)_FernandaGirotto.pdf. Acesso 12 de out. 2021.
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/a...
, Gaspar de Cujia e Lucas de la Cueva foram os primeiros missionários jesuítas a chegar na região do Alto Amazonas em meados de 1638. Alguns espanhóis já ocupavam a região, instalados numa vila chamada San Francisco de Borja. Foram esses colonos que solicitaram a presença dos religiosos, na esperança de apaziguar os ânimos dos nativos que vinham promovendo rebeliões contra a presença europeia na região. As Missões de Maynas chegaram a abranger o território que vai desde o sopé dos Andes até a confluência do Rio Negro com o Rio ‘Marañón’. Mantemos na nossa tradução os topônimos em espanhol por uma questão de ética, seguindo registros da Historia de las misiones de la Compañía de Jesús en el Marañón español e para evitar anacronismos, já que os nomes não tinham tradução para o português naquela época. Como exemplo, podemos citar: La Laguna, Rio Bobonaza, Rio Marañón, San Pablo de Pandabeques, Tabatinga (por Tavatinga), Pebas (por Pévas).

Referências

  • Berman, Antoine. A Prova Do Estrangeiro Trad. Maria Emília Perreira Chanut. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
  • Daroda, R.J.; Souza, T.L.; Barros, A.O.; Rodrigues, J.M.; Cunha, V.S “Metrologia: Um instrumento de Soberania e Cidadania”. Analytica. Disponível em: https://revistaanalytica.com.br/metrologia-um-instrumento-de-soberania-e-cidadania/ Acesso em 12 de out. 2021.
    » https://revistaanalytica.com.br/metrologia-um-instrumento-de-soberania-e-cidadania/
  • Girotto, Fernanda. “Contato e catequese nas Missões de Maynas (século XVII)” In Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308172898_ARQUIVO_ContatoecatequesenasMissoesdeMaynas(seculoXVII)_FernandaGirotto.pdf Acesso 12 de out. 2021.
    » http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308172898_ARQUIVO_ContatoecatequesenasMissoesdeMaynas(seculoXVII)_FernandaGirotto.pdf
  • Greenme: meio ambiente e vida sustentável. Disponível em https://www.greenmebrasil.com/ Acesso em 13 de out. 2021.
    » https://www.greenmebrasil.com/
  • Guerlin-de Guer Ch. “La langue française en France au XVIIIe siècle d’après un ouvrage récent”. In: Revue du Nord, tome 12, n°47, août 1926. pp. 227-233. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/rnord_0035-2624_1926_num_12_47_1410 Acesso: 12/10.2021.
    » https://www.persee.fr/doc/rnord_0035-2624_1926_num_12_47_1410
  • Herrera, José Chantre. Historia de las misiones de la Compañía de Jesús en el Marañón español, Volume 01. Madrid: Imprenta de Avrial, 1901. Jesuit online library. Disponível em: https://jesuitonlinelibrary.bc.edu/?a=d&d=historiadelamis-01.2.2.156&e=-------en-20--1--txt-txIN-------. Acesso em 12 de out. 2021.
    » https://jesuitonlinelibrary.bc.edu/?a=d&d=historiadelamis-01.2.2.156&e=-------en-20--1--txt-txIN-------
  • La Condamine, Charles-Marie de. Viagem na América Meridional descendo o rio das Amazonas Coleção O Brasil Visto por Estrangeiros, Brasília: Senado Federal, 2000.
  • Lorenceau Annette. “Sur la ponctuation au 18e siècle”. In: Dix-huitième Siècle, n°10, 1978. Qu’est-ce que les Lumières ? pp.363-378. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/dhs_0070-6760_1978_num_10_1_1195 Acesso 12 de out. 2021.
    » https://www.persee.fr/doc/dhs_0070-6760_1978_num_10_1_1195
  • Medeiros, Maria Franco Trindade, Senna-Valle, Luci de e Andreata, Regina Helena Potsch. “Histórico e o uso da “salsa parrilha” (Smilax spp.) pelos boticários no Mosteiro de São Bento” In: Revista Brasileira de Biociências, Porto Alegre, v. 5, supl. 1, p. 27-29, jul. 2007.
  • Odonais, Jean Godin des. “Lettre de M. Godin des Odonais à M. De La Condamine” In De la Condamine, Charles-Marie. Relation Abrégée d’un voyage fait dans l’intérieur de l’Amérique Méridionale, depuis la côte de la Mer du Sud, Jufqu’aux côtes du Bréfil & de la Guyane, en defcendant la riviere des Amazones, par M. de La Condamine, de l’Académie des Sciences, avec une Carte du Maragnon, ou de La riviere des Amazones, levée par le même. Nouvelle Édition Augmentée de la relation de l’emeute populaire de Cuença au Pérou, et d’une lettre de M. Godin des Odonais, contenant La relation du voyage de Madame, Godin, fon Epoufe, &C Maestrich : Imprimeurs-Libraires Dufour et Roux, 1778, pp.329-379. Disponível em : Bibliothèque Numérique Manioc da Université des Antilles et de la Guyane : https://issuu.com/scduag/docs/fra11040 Acesso 12/10.2021.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Aceito
    27 Set 2022
  • Publicado
    Nov 2022
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