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TRADUZINDO E ANOTANDO O CAP. XIV DE EXPLORATION OF THE VALLEY OF THE AMAZON, DE WILLIAM LEWIS HERNDON

TRANSLATING AND ANNOTATING THE CHAP. XIV OF EXPLORATION OF THE VALLEY OF THE AMAZON, BY WILLIAM LEWIS HERNDON

Resumo

Este trabalho apresenta de forma sintetizada algumas considerações referentes ao processo de tradução, análise e comentário do capítulo XIV do primeiro volume do livro Exploration of the Valley of The Amazon, escrito pelo tenente da Marinha dos Estados Unidos da América William Lewis Herndon, entre 1851 e 1852. Também são introduzidos e contextualizados os cenários histórico e político para a Amazônia daquele período, a fim de se possa compreender com mais proximidade as condições de possiblidade para que as viagens, os relatos compilados e opiniões do expedicionário tenham se dado como hoje o sabemos. Ao final da tradução do capítulo rico em detalhes sobre a antiga Manaus (Vila da Barra do Rio Negro), obtivemos 45 notas, nas quais buscamos abranger em análise aspectos como os da vida econômica, social e política da população da cidade e da região. Almejando êxito nesta proposta, consultamos o texto original em suas várias edições, para se apresentar um texto em inglês e em português o mais preciso possível, dando especial atenção ao vocabulário específico da região para a época. Esperamos que a edição bilíngue deste capítulo contribua para um maior conhecimento deste livro excepcional e de grande valor para a história da Amazônia brasileira.

Palavras-chave
Amazônia; Tradução; Literatura de Viagem; Manaus Antiga; William Lewis Herndon

Abstract

This work presents, in a synthesized way, some considerations regarding the process of translation, analysis and commentary of chapter XIV of the first volume of the book Exploration of the Valley of The Amazon, written by the lieutenant of the United States Navy of America William Lewis Herndon, between 1851 and 1852. The historical and political scenarios for the Amazon of that period are also introduced and contextualized, in order to understand more closely the conditions of possibility for the journeys, the compiled reports and opinions of the expeditionary to have taken place as we know today. At the end of the translation of the chapter rich in details about the old Manaus (Vila da Barra do Rio Negro), we obtained 45 notes, in which we sought to cover in analysis aspects such as those of the economic, social and political life of the population of the city and the region. Seeking success in this proposal, we consulted the original text in its various editions, in order to present a text in English and in Portuguese as accurate as possible, paying special attention to the specific vocabulary of the region at the time. We hope that the bilingual edition of this chapter will contribute to a greater understanding of this exceptional book and of great value to the history of the Brazilian Amazon.

Keywords
Amazon; Translation; Travel Literature; Old Manaus; William Lewis Herndon

Introdução

Para o presente trabalho, escolhemos para tradução e análise o Capítulo XIV do primeiro volume do livro Exploration of the Valley of the Amazon [Exploração do Vale do Amazonas], publicado em em dois volumes, em 1853. O Volume 1 foi assinado por William Lewis Herndon, que utilizamos, e o Volume 2 por Lardner Arthur Gibbon. Ambos eram tenentes da Marinha estadunidense e tinham recebido a missão de visitar a Amazônia peruana e brasileira.

O referido capítulo apresenta apontamentos sobre a antiga cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, atual Manaus, e a dinâmica local frente ao cenário das cercanias e região, sendo considerado texto essencial para o entendimento do contexto específico da época. No entanto, até hoje o texto é pouco conhecido e utilizado pelos pesquisadores da temática amazônica. Antes de falarmos sobre a viagem dos autores, cabe um esboço das configurações dos campos científico e político da época.

Abertura dos portos no Amazonas e as expedições científicas do século XIX

A Amazônia foi uma das regiões mais importantes para o desenvolvimento dos métodos de pesquisa dos naturalistas durante todo o século XIX. As dezenas de missões científicas, organizadas por viajantes das mais diversas nacionalidades, que se seguiram desde os primeiros anos dos oitocentos, tiveram a frequência intensificada com a abertura dos portos do antigo Estado do Brasil às nações amigas pela Carta Régia de 28 de janeiro de 1808 (Lima, 2012Lima, Carla Oliveira de. A Amazônia nos caminhos da História Natural. In: SILVA, Márcia Regina Barros da.; Haddad, Thomás A. S. (Orgs.). Anais do 13º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. São Paulo: Sociedade Brasileira de História da Ciência, 2012.). Com a chegada da Corte portuguesa ao Brasil e o fim do pacto colonial com a nação ibérica, foi iniciado o processo de integração político-econômica da Amazônia, representada prioritariamente pelos principais núcleos coloniais, a saber, a cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará (Belém) e a Vila da Barra do Rio Negro (Manaus).

As primeiras décadas do século XIX também foram marcadas pelos movimentos de independência dos países hispano-americanos e expansão naval, que relaxaram ou retiraram restrições diplomáticas, fazendo com que viajantes e exploradores adentrassem as terras sul-americanas com mais facilidade. Além disso, instituições científicas estrangeiras, com destaque para os jardins botânicos e museus acadêmicos, fizeram com que os naturalistas recebessem maior incentivo para explorar territórios “exóticos” e coletar coleções a serem enviadas a seus países.

Por outro lado, as potências da época também pressionaram os países hispânicos amazônicos e o Brasil a abrirem o Amazonas à navegação internacional. Segundo João Meirelles Filho:

Washington e Londres, por diversas vezes, pressionarão o Rio de Janeiro para a abertura do Amazonas à navegação, afinal este era a via não apenas para o Brasil do norte como para Bolívia, Peru e Colômbia.

Em 1835, os oficiais da Marinha inglesa William SmithSmith, Geoffrey Sutton. The Navy Before Darwinism: Science, Exploration, and Diplomacy in Antebellum America. American Quarterly, vol. 28, no. 1, 1976, pp. 41–55. JSTOR, https://doi.org/10.2307/2712476. Acesso 19/07/2022.
https://doi.org/10.2307/2712476...
, Frederick Lowe e John Murray navegam o Amazonas desde o Peru e produzem um relatório para pressionar o Império brasileiro. A obra será referência para o oficial da Marinha norte-americana Matthew Fontaine Maury. Os Estados Unidos vivem um período de expansão e florescimento sem precedentes. É a época de ouro das descobertas e explorações de novos territórios. A Marinha norte-americana decide, então, avaliar o potencial da Amazônia. Maury vê na abertura do Amazonas a possibilidade de vender escravos do sul dos Estados Unidos para a região [...]

(Meirelles Filho, 2009Meirelles Filho, João. Grandes Expedições à Amazônia Brasileira 1500-1930. São Paulo: Metalivros, 2009., p. 2).

A conjuntura política e econômica das nações em vias de grandes mudanças não foi o único fator a favorecer as intenções de se explorar cientificamente o mundo - especialmente a parte concernente à Amazônia -, ainda que os interesses em recursos naturais, expansão territorial e exploração econômica não possam ser deixados de lado quando se fala sobre este assunto. Ademais, não são apenas as estruturas objetivas que conduzem os desenvolvimentos das sociedades, senão a parcela de atuação e subjetividade, à guisa dos teóricos das últimas décadas, dos agentes e sujeitos que as compõem. Quanto às possibilidades de se realizar missões científicas na Amazônia do século XIX, precisa-se considerar a possibilidade de um real interesse em se “descobrir”, “explorar” o “novo”, conhecer o estranho e exótico, como também de realização pessoal dos viajantes e idealizadores quanto a uma carreira acadêmica.

Quando o Imperador Pedro II do Brasil (“Dom Pedro II”, “o Magnânimo”) foi coroado em 1841, não apenas as missões estrangeiras tiveram espaço para estabelecerem verdadeiros corredores para o trânsito de pesquisadores, mas também as instituições culturais e científicas brasileiras, que receberam amplo incentivo do poder público. O próprio imperador, um erudito e membro de diversas academias e instituições científicas, escreveu em seu diário nos idos de 1862: “nasci para consagrar-me às letras e às ciências” (Carvalho, 2007Carvalho, José Murilo de. D. Pedro II: ser ou não ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.). Daí até o final do Segundo Reinado, diversas expedições internacionais e nacionais foram financiadas, englobando desde a Antropologia/Arqueologia até as Artes.

Para a então Comarca do Alto Amazonas, ainda em vias de recuperação dos impactos da revolta popular conhecida como Cabanagem, ocorrida entre 1835 e 1840, que se fizera intensa no território da Província do Grão-Pará, grupos conservadores reprimiram ainda mais aqueles que tinham sua mão de obra largamente explorada, enquanto mantinham o interesse em transformar as “pequenas aldeias” em locais de civilização e prestígio. Assim, quando os viajantes estrangeiros de passagem pelo Rio Amazonas decidiam fazer parada para recuperar as energias antes de seguir viagem, os membros da elite local os recebiam com prazer, oferecendo todas as regalias possíveis para uma estadia “digna” a pessoas também vistas como dignas de tal.

Como relatou Alfred Russel Wallace em 1850, acerca da recepção na Barra do Rio Negro:

Trazíamos cartas de apresentação para o Sr. Henrique Antony, um súdito italiano ali estabelecido há muitos anos, – e um dos principais negociantes da cidade. Ele recebeu-nos com a mais cordial hospitalidade, o que fez com que, desde logo, nos sentíssemos como que em nossa própria casa. Prontamente pôs a nossa disposição dois cômodos de uma casa nova, de sua propriedade, que ainda não tinha sido acabada de construir, convidando-nos ainda a tomar as nossas refeições à sua mesa

(WALLACE, 1853Wallace, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. Notas de Basílio de Magalhães. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004., p. 214).

Se os membros da elite político-econômica local da Barra do Rio Negro animavam-se a receber seus pares estrangeiros, vindos de terras vistas por eles como mais civilizadas, os viajantes nem sempre empreendiam a longa jornada por vontade própria. Foi o caso dos tenentes Herndon e Gibbon. Este último participou da expedição como assistente do primeiro, juntamente a meia dúzia de ajudantes, e seguiu caminho separadamente até a região oeste e sudoeste da Amazônia, bem como aos tributários bolivianos do Amazonas, compilando seu relatório no que viria a ser o segundo volume da obra. Aqui nos deteremos a abordar a trajetória do autor do primeiro volume, o tenente Herndon.

Imagem 1
Entrada da Vila da Barra do Rio Negro, entre 1848 e 1860.

Herndon: sua vida, viagens e passagem pela Amazônia

William Lewis Herndon nasceu em 25 de outubro de 1813, na cidade de Fredericksburg, Virgínia. Segundo filho do casal Dabney Herndon e Elizabeth Hull, entrou para a Marinha como aspirante em 1828. Casou-se com Frances Elizabeth Hansbrough em 1836, tendo com ela no ano seguinte a filha Ellen Lewis Herndon, que se casou com Chester A. Arthur, futuro Presidente dos EUA. Sua carreira militar disparou com a promoção a tenente em 1841, servindo em diversos lugares, como Pacífico, Atlântico e Mediterrâneo, e ficou encarregado de preparar cartas oceanográficas e organizar rotas marítimas. Participou também da guerra Estados Unidos-México, como comandante do navio Iris, no período 1846-1848.

Imagem 2
Retrato do Tenente William Lewis Herndon, em c. 1853.

Para João Meirelles Filho, foi o anteriormente citado Matthew Fontaine Maury o responsável pela missão da Marinha estado-unidense, que acabaria convocando os tenentes Herndon e Gibbon.

O principal colaborador, e mentor da viagem, é Maury. Na verdade, Maury utilizará os relatórios de Herndon para defender teses no Congresso norte-americano [...]. Outro personagem importante é Larden Gibbon, que o segue na primeira parte da viagem nos Andes. Além de breve diário, Gibbon contribui com desenhos. São dele as litografias que acompanham a publicação [...] (Meirelles Filho, 2009Meirelles Filho, João. Grandes Expedições à Amazônia Brasileira 1500-1930. São Paulo: Metalivros, 2009., p. 3).

Imagem 3
Retrato do Oficial Matthew Fontaine Maury, em 1853.

Herndon havia sido designado comandante do navio Vandalia, integrante do esquadrão do Pacífico. Em agosto de 1850, ancorado com o referido esquadrão em Valparaíso, Chile, teria recebido uma comunicação do Superintendente do Observatório Nacional, na qual estava expressa a ordem para que realizasse uma “exploração” no Vale do Amazonas. Para dividir a tarefa com ele, foi-lhe autorizado escolher um tenente para auxiliá-lo, sendo designado Lardner Arthur Gibbon. Segundo o que diz no capítulo introdutório de seu volume, Herndon logo recebeu ajuda de outros militares, como o Comandante das Forças Navais Inglesas no Pacífico, Almirante Hornby, que disponibilizou sua biblioteca para consulta. O mesmo fizeram membros de outras Marinhas; Bridges, botânico inglês que descera o Rio Madeira levando o primeiro espécime de vitória-régia para a Inglaterra. Bridges lhe fez uma descrição completa do sudoeste amazônico, que serviria logo mais para guiar Gibbon até a cabeceira dos rios daquela região; do General José Ballivián Segurola, então ex-Presidente da Bolívia exilado no Chile, que lhe ofereceu um mapa da Bolívia e arredores; entre outras ajudas essenciais na viagem.

HerndonHerndon, William Lewis. Exploration of the Valley of the Amazon, made under direction of the Navy Department, by WM. Lewis Herndon and Lardner Gibbon, Lieutenants United States Navy. Part I, by Lieut. Herndon. Washington: Robert Armstrong Public Printer, 1853. deixou o Chile em 26 de janeiro de 1851, chegando a Lima no sexto dia do mês seguinte. De lá, partiu em 21 de maio, iniciando a emblemática viagem em direção ao leste pelo curso do Rio Amazonas, que duraria até 11 de abril do ano seguinte, quando alcançaria Belém do Pará, enquanto Gibbon permanecera em suas incumbências particulares. A jornada estaria finalizada após mais de 7 mil quilômetros, que resultou num verdadeiro compêndio entusiasta acerca da Etnologia e História Natural da região. Foi um verdadeiro sucesso, sendo aprovado e publicado pela Marinha dos Estados Unidos entre 1853-1854, sendo feitas 10 mil cópias adicionais a pedido do Senado.

Ernesto A. Ruiz nota que a missão de Herndon e Gibbon tinha outros objetivos além dos científicos:

As expedições de Herndon e Gibbon (1851-1852) ao rio Amazonas e a de T.J. Page ao Rio da Prata em 1853, não se limitaram exclusivamente a recolher informações cientificas. Estas empresas exploratórias tiveram também por objetivo estudar as possibilidades econômicas das regiões visitadas e, no caso de alguma delas estar fechada para o comércio internacional, como foi o caso do rio Amazonas e Paraguai, influenciar os governos desses países a abrir essas áreas a capital e a colonização norte-americana

(Ruiz, 1986Ruiz, Ernesto A. Expedições científicas, descobrimentos geográficos e expansão política: os Estados Unidos e América Latina no século XIX. Geosul; Universidade Federal de Santa Catarina, Vol I, No 2, 1986., p. 83).

Ruiz nota igualmente que Matthew Fontaine Maury foi o idealizador da missão:

A Expedição de Herndon e Gibbon a região Amazônica só pode ser explicada a partir das teorias geopolíticas de Maury, as quais ele expôs em diferentes livros e panfletos publicados nas duas décadas anteriores à Guerra Civil. Maury foi o mais prestigioso hidrógrafo da Marinha dos Estados Unidos. [...]

Maury também pensou que os destinos dos estados escravistas estavam intimamente ligados ao futuro da região amazônica. Não só a população escrava crescia mais rapidamente que a população branca mas também que o sul não poderia emancipar seus escravos sem destruir seu capital. Nos Estados Unidos, o território disponível para ser cultivado pelo trabalho escravo era limitado. Portanto, o excedente de população negra poderia ser canalizado para o Brasil. Maury concluiu que a região amazônica podia transformar-se em uma “válvula de segurança” para a estabilidade política dos Estados Unidos e um seguro contra um possível conflito racial

(Ruiz, 1986Ruiz, Ernesto A. Expedições científicas, descobrimentos geográficos e expansão política: os Estados Unidos e América Latina no século XIX. Geosul; Universidade Federal de Santa Catarina, Vol I, No 2, 1986., p. 86).

Maury, nascido em 14 de janeiro de 1806, teve como avô o Rev. James Maury, professor do futuro presidente norte-americano Thomas Jefferson. Inspirado pela ambição familiar, ele viria a se tornar, de acordo com a Encyclopaedia Britannica (2022), pioneiro da Hidrografia e um dos fundadores da Oceanografia, por sua extensa obra composta por mapas e ensaios publicados entre 1848 e 1869. Em 1836 foi promovido, assim como Herndon, ao posto de Tenente da Marinha, galgando depois os de Oficial e de Cartógrafo Sênior. Após a carreira ativa na Marinha dos EUA, ele se tornaria professor de Meteorologia no Instituto Militar da Virginia em 1868, até sua morte cinco anos depois. Ainda que não tenha comandado oficialmente a expedição de Herndon e Gibbon, ele os mentoreou por meio de correspondências e indiretamente por meio de suas publicações.

Maury mobilizou sua ampla rede de contatos nos círculos e conseguiu que a missão fosse de Herndon fosse aprovada:

A expedição foi oficialmente autorizada pelo Secretário da Marinha William A. Graham, em outubro de 1850, que designou ao tenente William Lewis Herndon, cunhado de Maury, como líder da expedição. Herndon recebeu dois tipos de instruções. As instruções oficiais de Graham, que foram cautelosas e circunspectas e se limitaram a ordenar a Herndon a explorar o rio Amazonas desde seu nascimento até sua desembocadura e, as instruções privadas de Maury, onde estava explícito que o objetivo principal de sua expedição era preparar o caminho para a colonização norte-americana da região amazônica e possivelmente sua incorporação política aos Estados Unidos

(Ruiz, 1986Ruiz, Ernesto A. Expedições científicas, descobrimentos geográficos e expansão política: os Estados Unidos e América Latina no século XIX. Geosul; Universidade Federal de Santa Catarina, Vol I, No 2, 1986., p. 86).

Ainda no início do século XIX, Humboldt, o conhecido geógrafo e naturalista prussiano, já chamava atenção para a necessidade de se ocupar e explorar a região amazônica com mais afinco, a fim de se aproveitar as riquezas naturais e “promover” a região aos padrões do mundo ocidental de sua época. Mesmo tendo, ao lado de Aimé Bonpland, dedicado cinco anos e um terço de suas economias (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 2022Encyclopaedia Britannica. Alexander von Humboldt/Matthew Fontaine Maury. Chicago: Encyclopaedia Britannica, Inc., 2022.) - vale lembrar de que gozava do título de barão e grande riqueza -, não teve a mesma oportunidade que Spix & Martius, Herndon & Gibbon e posteriores pesquisadores tiveram de livre passagem pela região, já que na transição dos setecentos para os oitocentos, qualquer estrangeiro que adentrasse território do Grão-Pará sem autorização era considerado espião ou perigoso à segurança do Estado colonial. Todavia, suas colocações acerca da capacidade de produção de bens alimentícios, como o cacau e a castanha no livro Le voyage aux régions equinoxiales du Nouveau Continent, fait en 1799-1804, já demonstravam a preocupação de um polímata para com o futuro da região amazônica e sua possível incorporação política às potências. Mais tarde, Maury levantaria outra vez a preocupação de vinculação da Amazônia, desta vez favorecendo sua República, na esperança de que a empresa de Herndon e Gibbon vingasse e finalmente consolidasse a soberania estadunidense sobre a região.

Segundo Ruiz, entretanto, os planos colonialistas de Maury fracassaram, por uma série de razões:

Quando em fevereiro de 1853 foram publicados, por ordem do Congresso, os resultados da expedição, era óbvio que os dados recolhidos por Herndon e Gibbon não corresponderam às expectativas de Maury, principalmente porque Herndon, apesar de recomendar a colonização da região, sugeriu que muitos anos e um grande número de colonizadores seriam necessários para transformar a região amazônica em um projeto econômico viável

(Ruiz, 1986Ruiz, Ernesto A. Expedições científicas, descobrimentos geográficos e expansão política: os Estados Unidos e América Latina no século XIX. Geosul; Universidade Federal de Santa Catarina, Vol I, No 2, 1986., p. 87).

Depois da missão que o consagraria como expedicionário e historiador natural, Herndon seguiu sua carreira militar. Serviu como Comandante em seu país natal por dois anos, sendo designado para o vapor SS Central America da Atlantic Mail Steamship Company em 1855. Dois anos depois, no comando do mesmo navio, ficaria conhecido e seria aclamado por um “ato de bravura”, como contam seus biógrafos. Saindo de Cuba com cerca de 15 toneladas de ouro e 474 passageiros, sendo 575 pessoas com a tripulação, em direção à Costa Leste, o Central America teria sido atingido durante três dias por um furacão levando ao naufrágio do navio no Cabo Hatteras, na costa da Carolina do Norte. Antes, porém, teria acompanhado e organizado o embarque de 152 mulheres e crianças.

Os sobreviventes deram testemunho de que Herndon continuara em seu esforço de salvar o maior número de pessoas possível, estendendo sempre a mão para ajudar os que se salvaram, e abaixara a cabeça em oração enquanto afundava juntamente com a embarcação e demais pessoas. O naufrágio, onde William Lewis Herndon teve uma morte heroica, seria uma das causas da crise econômica de 1857, já que os bancos que dependiam do ouro não o receberam.

Considerações Finais

É sentindo-nos honrados que, tendo apresentado brevemente o percurso do autor e os impactos de seu trabalho para os anais históricos da Amazônia, passamos à explicação de como se procedeu nas etapas de tradução, comentário e estudo do capítulo objeto de atenção neste trabalho. Devido à riqueza de detalhes do capítulo sobre a antiga Manaus, optamos por realizar uma tradução fartamente anotada: são 45 notas, abrangendo os mais diferentes aspectos da vida econômica, social e política da população da cidade e da região. Fizemos também um amplo cotejo do original em várias edições, de modo a apresentar um texto em inglês e em português o mais preciso possível, sobretudo em relação ao vocabulário específico da região na época. Esperamos que a edição bilíngue deste capítulo contribua para um maior conhecimento deste livro excepcional e de grande valor para a história da Amazônia brasileira.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo apoio financeiro à pesquisa. À equipe do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (Procad) no âmbito Amazônia e instituições envolvidas no projeto aprovado para o quadriênio 2019-2023: UEA, UFPA e UFSC. Ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Arqueológicas da Bacia Amazônica (NIPAAM) pelos recursos humanos e documentais.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
  • Publicado
    Nov 2022
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