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MUNDOS REINVENTADOS

REINVENTED WORLDS

Resumo

Toda tradução é interpretação. A tradução justifica-se na diferença, promove a invenção no tempo e no espaço. Traduzir é viajar de um modo de ser a outro, é transformar, móveis são as formas, movimentam-se palavras, nomes, conjuntos verbais. Traduções negam o império de comunicação fixa, triunfa a divisão, a pluralidade. Nomes próprios estão integrados na invenção literária desde a antiguidade grega. Joyce elege nomes com muito cuidado. Nomes joycianos têm associações significativas na língua de origem; transpostos literalmente para outra língua, significações empalidecem. A ousadia de reinventá-los favorece a vitalidade da tradução. O vigia (watch) de “Circe” está na posição do observador, do leitor, do tradutor. Vigiar é observar, despertar da imobilidade. Em “Circe” despontam recursos desenvolvidos em Finnegans Wake. Destaco processos novos na tradução: streeita (street + estreita) ruela – skiléticos (ski + esqueléticos) ...

Palavras-chave
Finnegans Wake ; Invenção; James Joyce

Abstract

Every translation is interpretation. Translation is justified in difference; it promotes invention in time and space. To translate is to travel from one way of being to another, it is to transform; forms are mobile, words, names, verbal sets move. Translations deny the empire of fixed communication, so division and plurality triumph. Given names have been integrated into literary invention since Greek antiquity. Joyce chooses names very carefully. Joycian names have significant associations in the source language; literally transposed into another language create pale meanings. The boldness of reinventing them favors the vitality of the translation. The watchman in “Circe” is in the position of the observer, the reader, the translator. To watch is to observe, to awaken from immobility. In “Circe”, strategies developed in Finnegans Wake emerge. I highlight new processes in the translation: streeita (street + narrow) alley – skiléticos (ski + skeletal) ...

Keywords
Finnegans Wake ; Invention; James Joyce

Em literatura, tradução mecânica não há, o tradutor é leitor atento, devora antropofagicamente o texto, sente o sabor e o vigor das palavras, devolve um texto degustado, reelaborado. O texto de origem multiplica-se na variedade dos tradutores. Toda tradução é interpretação. Na tradução interpretativa, intelecto e saber teórico constituem parte do todo constituído por preferências, formação, decisões. A tradução justifica-se na diferença, promove a invenção no tempo e no espaço. Restrinjo-me a “Circe”, capítulo que traduzi para a Editora Ateliê, publicada em Ulisses, tradução coletiva, comemorativa aos cem anos de Ulisses.

Não tenho certeza da objetividade dos objetos, mas tenho certeza de percebê-los, observa Merlau-Ponty. Ver significa entrar num universo de seres que se mostram. O visível particular se apresenta como uma das regiões da visibilidade universal. Sou ator e espectador de um espetáculo sem fim. O mundo se oferece e se recusa, olhos abrem-se e se fecham.

O narrador de Circe, não identificado, abre o olhar para uma outra realidade, a cena noturna. Enxerga mais que o visto. Recorda a Walpurgisnacht de Goethe. O episódio mais longo na tragédia de Goethe repercute no capítulo mais longo e mais complexo de Ulisses. O narrador apresenta teatralmente os falantes. Magicamente como em Goethe, falam plantas e objetos. Com os olhos de Goethe o narrador joyciano vê a Walpurgisnacht (Noite de Valpurga), festejada no dia 30 de abril, homenageada é a de Santa Valpurga. Nos festejos cristianismo e paganismo se misturam em fogos, cantos, contos e danças. A imaginação popular reflete a passagem da Idade Média cristã para a Renascença, período em Antiguidade e Modernidade se confundem, abre-se nova etapa da história ocidental. Nas artes e no pensamento o mundo antigo revém renovado. No Fausto, Goethe se levanta contra a razão setecentista em favor da sensibilidade. Fausto é herói da crise; cansado de pensar, opta pela vida dos sentidos. O cão se transfigura em Mefistófeles, uma das máscaras do diabo. JoyceJames Joyce. Ulisses. Organização Henrique Xavier. Tradução coletiva. Ateliê editorial (No prelo). vai de dog a god (deus a sued), mistura de sagrado e profano, da linguagem vulgar e da língua sagrada. A presença do cão, mais insistente aqui do que em outros capítulos, é símbolo de andança livre, de transformação. Na velhice, o homem se torna místico, afirma Santayana. Isso vale para Goethe. Joyce morre antes da velhice, é místico desde a juventude. Leva o catolicismo às últimas consequências, religião universal, acolhimento de todos os contrários, céu e inferno, deus e o diabo.

Bloom, depois de um dia de andanças, entra na rua dos Prazeres, lugar escuro, vultos movem-se nas sombras, mundo negado pela sociedade organizada, lugar em que sentimentos reprimidos se escondem e se liberam:

Mabbot, streeita ruela, a dos prazeres, boca da zona, solo desnudo no breu da noitícia. Lá diante, o fim de linha, sítio de carros, trilhos skiléticos, solo desnudo, brilhos vermelhos, verdes, mágico-bruxuleantes-bruxas, bruxarias. Perigo! Desfilam paredes peladas, portas abertas. Raros lampejos, lampiões, leques arco-íris puídos. Bate boca ronda Rabaiotti, gôndola de gelados, parada, varões e varoas. Empunham casquinhas, manchas de carvão, de cobre, de neve, sugam, sespalham a passo lento. Pirralhos. A gôndola brancazul, pescoço empinado de cisne, rompe o pretume do breu à luz do farol. Assobios: apelo e resposta.

(No prelo)

Em “Circe” despontam recursos desenvolvidos em Finnegans Wake. Destaco processos novos na tradução: streeita (street + estreita) ruela – skiléticos (ski + esqueléticos) ...

“A história é um pesadelo do qual tento me libertar”, observou Stephen Dedalus na manhã do dia 16 de junho. Pesadelo é a história entendida como narrativa determinada por princípios de causa e efeito. A história, tida como força, aparece como destino que escraviza. Artistas subordinados a leis elaboradas na renascença não são livres. Determinista é a história na concepção de Walter Benjamin. O Angelus Novus de Paul Klee lembra o ente alado de asas abertas e olhos voltados ao passado, soprado a um futuro incerto por uma corrente de ar que vem de paragens míticas, paradisíacas. Ruínas acumulam-se na passagem. Frustrado é o idadesejo de acordar os mortos, de juntar fragmentos. A tempestade chama-se progresso. Assim comporta-se a história vista como acontecimento global. Não há como detê-la, a marcha dos acontecimentos não para.

O procedimento da arte é diferente. Vanguardistas das primeiras décadas do século XX negam subordinação ao passado, tudo o que retarda o movimento de mãos, pés, cabeça entra na categoria de pesadelo. A insubordinação de Dedalus define personalidades inventivas. Joyce recolhe ruínas, lixo para inventar nova narrativa:

Num degrau um gnomo se arrasta rodeado de porcaria; curvado, suspende às costas o saco de trecos, de ossos. A coroca, por perto, de fumarenta lanterna a óleo na mão, soca a última garrafa na boca do saco. Ele carrega o botim, torce pro lado o boné bicudo, manca mudo. A coroca, balouça a lanterna, sentoca na toca. Um fedelho sentado na soleira de peteca na mão, brinquedo papeloso, se arrasta aos trancos e barrancos, alcança a coroca, agarra a saia, levanta-se em pernas arqueadas.

(No prelo)

Joyce ataca a língua universal, quebra palavras e sintagmas para inaugurar outra rota para a narrativa. Na tradução o texto se liberta a língua que lhe deu origem, ritmo e sonoridade renascem na língua portuguesa com outra cara. Só assim o tradutor desperta do pesadelo.

Circe é pesadelo? Aspectos de pesadelos apresenta a vigília, feita de obstáculos que o protagonista não consegue remover. O ambiente mágico em que se passam as façanhas libertam de subordinações físicas, sociais e artísticas. Sentimentos reprimidos, em luta pelo direito de existir, lembram na reelaboração joyciana as alucinações da Walpurgisnacht do Fausto de Goethe. Noite de bruxarias, de alquimia, de transformações.

Personagens se desprendem do observado, rodopiam em metamorfoses, tudo se transforma em tudo. No mundo da mente tecem-se e se desfazem conexões, a livre interpretação do comportamento humano não se subordina a leis. O narrador retoma Ulisses desde o princípio em andanças, divagações, ações, emoções. Os pobres que vagam nas sombras como fantasmas recordam experiências da manhã enredadas em lembranças infantis. Bloom se vê vilipendiado e engrandecido, crápula e herói, homem e mulher. A aparência tomou o lugar das essências. Entramos no século da imagem, da superfície, do passageiro.

Não surpreenda a reinvenção de nomes:

(O meganha Carr Ancudo e o meganha Compintão, relho socado no sovaco, passos de ganso zonzo, da boca estrondam peidos ritmados. Gargalhadas de gente do beco. Berros roucos de mulher macho.)

(No prelo)

Nomes próprios estão integrados na invenção literária desde a antiguidade grega. Joyce elege nomes com muito cuidado. Nomes joycianos têm associações significativas na língua de origem; transpostos literalmente para outra língua, significações empalidecem. A ousadia de reinventá-los favorece a vitalidade da tradução. A tradução vibrante se desprende da origem.

A palavra não é a casa do ser (Heidegger), o abrigo do que é, do que vem é a tenda, habitação móvel, morada de nômades. Peregrinamos nas ciências e nas artes. Palavras deixam rastros no tempo e no espaço. Traduzir é viajar de um modo de ser a outro, traduzir é transformar, móveis são as formas, movimentam-se palavras, nomes, conjuntos verbais. Traduções negam o império de comunicação fixa, triunfa a divisão, a pluralidade. O vigia (watch) de “Circe” está na posição do observador, do leitor, do tradutor. Vigiar é observar, despertar da imobilidade.

Referências

  • James Joyce. Ulisses. Organização Henrique Xavier. Tradução coletiva. Ateliê editorial (No prelo).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Out 2022
  • Aceito
    13 Dez 2022
  • Publicado
    Dez 2022
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