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SIMIC, Charles. Charles Simic: mestre dos disfarces. Tradução e organização de Maysa Cristina da Silva Dourado e Maria Lúcia Milléo Martins. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021, 184 pp.

SIMIC, Charles. Charles Simic: mestre dos disfarces. Dourado, Maysa Cristina da Silva; Martins, Maria Lúcia Milléo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021. 184 pp.

O poeta sérvio-americano Charles Simic é relativamente desconhecido no Brasil, apesar de escolhido como décimo quinto Poeta Laureado dos EUA e premiado com o Pulitzer. No próprio meio acadêmico, Simic ainda não tem o alcance proporcional à atualidade de sua obra. Seus temas vão das macrovisões da história e da geopolítica até o exame atento de singularidades como um rádio ouvido no escuro, uma receita apreciada por dois amantes e o abandono de um morador de rua. Tanto a história pública quanto esse universo lírico particular formam em Simic um quadro coeso: sua obra restaura indivíduos ao devido lugar de agentes históricos e propõe a particularidade e a empatia como saídas para a desumanização do positivismo histórico.

Essa lacuna em relação à obra de Simic é o que Charles Simic: mestre dos disfarces (2021) vem preencher. O livro apresenta um recorte da produção de Simic aos leitores (acadêmicos ou não) com uma seleção de prosa e poesia que foi meticulosamente pensada não só para introduzir, mas também aprofundar a relação do leitor com o texto, propiciando encantamento e compreensão crítica. As tradutoras tiveram o cuidado, por exemplo, de iniciar o leitor pela via da prosa autobiográfica e de ensaios que são fundamentais ao entendimento da poética de Simic antes de abrir as portas de sua poesia. A seleção de poemas dá uma mostra do início à produção atual do poeta e, por vezes, remete o leitor à temática da autobiografia e dos ensaios. Além disso, oferece um amplo leque da diversidade de assuntos que figuram nessa frutuosa trajetória.

O contexto da produção do livro inclui décadas de crítica literária, tradução de poesia e envolvimento com a obra de Simic. Maria Lúcia Milléo Martins convive com a obra de Simic há quase 30 anos e é pioneira nos estudos sobre o poeta no Brasil. Apresentou a poesia de Simic a muitos pesquisadores, entre os quais Maysa Cristina da Silva Dourado, que foi também pioneira com sua dissertação de mestrado sobre o poeta. Após o mestrado, Dourado seguiu com sua pesquisa sobre Simic no doutorado, sendo orientada por Maria Clara Paro, que escreve o prefácio do livro. Não há dúvida de que os leitores dessa coletânea de traduções estão em boas mãos.

Dourado inicia sua série de traduções de prosa com o texto apropriadamente intitulado “No início...” — vital para uma iniciação à obra do autor. Nesse relato autobiográfico, Simic traz seus leitores para perto com sua história de menino durante a Segunda Guerra Mundial. Essa narrativa, seguida pela saga dos deslocamentos até chegar à América, é algo que já coloca os leitores frente a frente com um dos elementos mais importantes da poética de Simic: a voz da experiência. Simic faz uso de uma prosa coloquial, recriando não só a perspectiva, mas por vezes a fala do menino. Clareza e concisão se aliam à maestria das imagens, aproximando o leitor dos eventos descritos. Isso traz uma responsabilidade especial à tradução, que não pode perder o fascínio desse registro enquanto preserva o impacto e a tensão em seu relato. Dourado cumpre essa responsabilidade traduzindo Simic em frases curtas, em linguagem precisa e familiar. Nas entrelinhas, os horrores da história humana assomam. O livro começa apresentando Simic como uma voz equilibrada entre dois mundos: a grande história coletiva e a pequena história pessoal que, em muitos aspectos, tem significado abrangente.

Essa tensão entre histórias ocupa o primeiro plano em “Poesia e História”, um ensaio que representa uma tese poética de Simic. A frase inicial, “Tenho em mente a história de assassinatos” (SIMIC, 2021SIMIC, Charles. Charles Simic: mestre dos disfarces. Tradução e organização de Maysa Cristina da Silva Dourado e Maria Lúcia Milléo Martins. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021., p. 52), já estabelece a visão da história humana como um processo brutal. Simic fala da opressão dos poderosos sobre os indivíduos que, por não participarem da história da forma como é registrada por historiadores, são considerados irrelevantes. Nesse ensaio, Simic estabelece que os poetas devem falar a partir de suas experiências pessoais e dar testemunho do momento histórico no qual vivem, o qual invariavelmente será marcado por massacres de inocentes por motivos ideológicos. Frente à história de assassinatos, a poesia deve restaurar a história dos eventos "sem importância" (SIMIC, 2021SIMIC, Charles. Charles Simic: mestre dos disfarces. Tradução e organização de Maysa Cristina da Silva Dourado e Maria Lúcia Milléo Martins. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021., p. 53) que equilibram o indivíduo entre as histórias monumental e pessoal. Na prosa traduzida por Dourado, encontramos esse testemunho histórico de Simic tanto na forma do relato autobiográfico quanto na visão crítica acerca das narrativas históricas fundamentadas em ideologias dominantes. “No início...” traz na história da infância e juventude de Simic o ponto de vista do indivíduo "sem importância", que é vítima das engrenagens sangrentas da história, vive entre ruínas bombardeadas e é ele mesmo parte dessa ruína: "Os soldados são cinzentos e as pessoas também" (SIMIC, 2021SIMIC, Charles. Charles Simic: mestre dos disfarces. Tradução e organização de Maysa Cristina da Silva Dourado e Maria Lúcia Milléo Martins. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021., p. 34).

"Poesia e História" traz o exame crítico do discurso histórico que apaga o indivíduo, reduzindo-o a uniformidades estatísticas e ao papel de figurante anônimo em grandiosos eventos geopolíticos. Simic estabelece neste ensaio a responsabilidade que os poetas devem assumir de resgatar e dar visibilidade a histórias pessoais. Em "Paraíso Assustador", Simic relata sua chegada aos Estados Unidos da América, com todas as esperanças e apreensões do imigrante europeu do pós-guerra. A vida na cidade de Chicago é descrita pelo poeta à sua maneira mais característica: com um misto de fascinação, desolamento e espírito aventureiro. Na prosa traduzida por Dourado, delineia-se um poeta imigrante (e de poesia migratória, hifenizada) que se coloca entre o macrocosmo da história coletiva e o microcosmo dos eventos do dia a dia, e que propõe uma história reversa com elementos que são tradicionalmente desprezados como não tendo importância histórica.

A seção do livro que traz as traduções de poemas, feitas por Martins, confirma esse padrão de conhecimento profundo acerca da poética de Simic aliado à sensibilidade poética que é requisito do trabalho criativo de tradução literária. Martins oferece uma tradução do tipo que os teóricos chamam isométrica, levando em consideração tanto os aspectos formais do texto quanto a dimensão semântica, a sonoridade, o ritmo, a musicalidade da poesia. Um bom exemplo disso é a tradução do poema Two dogs (Dois cães):

It made me remember the Germans marching Past our house in 1944. The way everybody stood on the sidewalk Watching them out of the corner of the eye, The earth trembling, death going by... (SIMIC, 2021SIMIC, Charles. Charles Simic: mestre dos disfarces. Tradução e organização de Maysa Cristina da Silva Dourado e Maria Lúcia Milléo Martins. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021., p. 11-15)

Dentre os demais poemas em verso livre da coletânea, esse surpreende pelo aspecto formal. Martins recria essa estrutura peculiar e oferece uma tradução com métrica e rima, de grande musicalidade.

Isso me lembrou alemães marchando Em frente de casa em 44. Como todos paravam na calçada Só com o canto do olho espiando, A terra tremendo, a morte rondando... (SIMIC, 2021SIMIC, Charles. Charles Simic: mestre dos disfarces. Tradução e organização de Maysa Cristina da Silva Dourado e Maria Lúcia Milléo Martins. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021., p. 11-15)

Essa abordagem, respeitando diversos aspectos da poesia de Simic, faz com que o leitor observe sutilezas do estilo do poeta em uma seleção de poemas que igualmente permite uma apreciação de suas diversas temáticas. Em Breasts (Seios), Bed music (Música de cama) e Café Paradiso, o erotismo habilmente se desenha ligado à paixão pela gastronomia. A experiência da guerra, em imagens surpreendentes, figura nos poemas Two dogs (Dois cães), Frightening toys (Brinquedos assustadores), The Big War (A Grande Guerra) e Paradise Motel (Hotel Paraíso). Entre esses extremos de Eros e Tânatos, perambulam personagens e objetos enganosamente "sem importância", em poemas como Lost glove (Luva perdida) e Master of disguises (Mestre dos disfarces), que dá título ao livro.

Um outro tema presente na seleção de poemas é a própria prática da tradução. Snowy morning blues (Blues da manhã de neve) inicia com “O tradutor é um leitor íntimo” (1), e isso se aplica não só ao trabalho de Simic, experiente tradutor, mas evidencia a própria tradução da coletânea. O poema sustenta a ideia de que toda criação poética é também uma tradução de imagens em linguagem; o poeta, um tradutor capturando em versos “Apenas o que os olhos percebem, / E o coração intui de seu idioma.” (“Only what the eyes discern, / And the heart intuits of its idiom”) (9-10). Aqui, a metapoesia faz o encontro do processo de criação poética e da tradução, em uma espécie de autorretrato do poeta em seu duplo ofício. Como tradutora, Martins produz um trabalho de recriação poética, preservando aspectos líricos, linguísticos e traços marcantes de estilo, resultante de uma necessária intimidade com a obra do poeta.

A tradução de um texto literário envolve a recriação, para os leitores, de uma experiência de leitura. O teórico Javier Marias (MARIAS, 2016MARIAS, Javier. Ausencia y memoria en la traducción poética. In: MARIAS, Javier. Literatura y fantasma. Barcelona: DeBolsillo, 2016.) aponta que a tradução é um ato criativo que faz reconhecível ao público-alvo a lembrança de uma experiência literária. Isso salienta a necessidade de a tradução literária ser realizada por tradutores não apenas conhecedores das línguas envolvidas, mas também possuidores de sensibilidade poética, de intimidade com a literatura e, idealmente, também conhecedores profundos da obra em nível crítico. Todas essas condições são cumpridas, com excelência, pelas tradutoras/organizadoras de Charles Simic: mestre dos disfarces. O livro alcança estudiosos da obra de Simic e, também, não iniciados, estabelecendo um diálogo envolvente, dando as boas-vindas e convidando a explorações mais profundas do universo do poeta.

Referências

  • SIMIC, Charles. Charles Simic: mestre dos disfarces Tradução e organização de Maysa Cristina da Silva Dourado e Maria Lúcia Milléo Martins. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2021.
  • MARIAS, Javier. Ausencia y memoria en la traducción poética. In: MARIAS, Javier. Literatura y fantasma Barcelona: DeBolsillo, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Aceito
    27 Abr 2022
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