Acessibilidade / Reportar erro

AMORIS LAETITIA: ACOLHIDA, DISCERNIMENTO E INTEGRAÇÃO DA FAMÍLIA

O Sínodo para a Família, convocado pelo Papa Francisco em 2013, ainda no primeiro ano de seu pontificado, trouxe a novidade de se dividir em duas Assembleias Gerais, celebradas em 2014 e 2015. O tema norteador foi “A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”. O último sínodo sobre esta temática tinha sido em 1980, cujo fruto foi a Exortação Familiaris Consortio (1981), de João Paulo II. Mais de três décadas depois, viu-se como necessário afrontar a realidade das famílias, em tempo de tantas mudanças, na sociedade e na Igreja. Como fruto das reflexões sinodais, Francisco elaborou a Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia, publicada no dia 19 de março de 2016, dia de São José.

Francisco seguiu a metodologia utilizada pela Igreja para a realização do Vaticano II e pelas Conferências do CELAM: parte não das normas e categorias pré-fixadas, mas da vida concreta, com suas alegrias e angústias, as quais serão iluminadas pela Palavra de Deus e pela tradição da Igreja, para finalmente ser inspiração para o agir da comunidade de fé. Até o Concílio Vaticano II, as reflexões teológicas sobre a família se restringiam basicamente ao âmbito do casal. De ora em diante, “decididamente já não nos encontramos em uma simples pastoral voltada para casais e para famílias, mas em uma pastoral verdadeiramente familiar, que busca integrar justamente aquelas ovelhas que parecem estar fora do rebanho”. (MOSER, 2016MOSER, A. A importância da pastoral familiar: ecos do Sínodo dos Bispos de 2015. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 76, n. 302, p. 280-303, abr./jun. 2016., p. 303).

O Instrumetum Laboris (2013) foi formulado tendo por base um documento anterior, preparatório, que reuniu aspectos da realidade atual, dos ensinamentos da Igreja a respeito da família e trouxe em sua terceira parte, um questionário de 38 perguntas, encaminhadas às conferências episcopais a fim de encaminhá-las aos fiéis. Infelizmente, estas consultas não se popularizaram como esperado.

Todo este processo preparatório já demonstra a importância que Francisco dá à sinodalidade, na tentativa de envolver sempre mais pessoas, mesmo as vozes dissonantes, a fim de chegar a consensos possíveis a respeito do tema. Inspirando-se no postulado de João Crisóstomo, Francisco insiste que “‘Igreja e Sínodo são sinônimos’, pois a Igreja nada mais é do que este ‘caminhar juntos’ (...). Dentro dela ninguém pode ser ‘elevado’ acima dos outros. Pelo contrário, na Igreja, é necessário que alguém se abaixe pondo-se a serviço dos irmãos ao longo do caminho” (FRANCISCO, 17.10.15FRANCISCO, Papa. Discurso de comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos, 17 de outubro de 2015.). No pontificado de Francisco, podemos lembrar ainda do Sínodo da Juventude (2018), e da Amazônia (2019), os quais também se propuseram a escutar acuradamente as realidades em questão.

O Cardeal Walter Kasper, no Consistório sobre a Família (20 e 21 de fevereiro de 2014), em preparação ao Sínodo que aconteceria em outubro daquele ano, apresentou sua reflexão tentando traçar possíveis caminhos de reintegração das pessoas cujo matrimônio fracassara. Segundo ele, era preciso encontrar possibilidades dentro da tradição da Igreja que tenha na misericórdia o seu ponto de referência. Mas esclarecia: “Não podemos limitar o debate à situação dos divorciados em segunda união e a muitas outras situações pastorais difíceis que não foram mencionadas no presente contexto. Devemos tomar um ponto de partida positivo e redescobrir e anunciar o Evangelho da família em toda a sua beleza” (KASPER, 2014KASPER, W. Bíblia, eros e família: o discurso do cardeal Walter Kasper no consistório. IHU on-line, São Leopoldo, 03.03.2014).

Desde sua convocação, o Sínodo da Família fez ebulir muitas reações: algumas, esperançosas de que “agora toda a doutrina da Igreja a respeito irá mudar”; ou do receio de que o Sínodo colocaria a perder todo o patrimônio da Igreja com relação à família. Francisco, no início da Exortação Amoris Laetitia (AL), destaca essas tensões, “desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação até à atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas” ( n. 2). Temas como comunhão dos recasados e casamento de pessoas do mesmo sexo acaloraram ainda mais os debates.

As expectativas para com Amoris Laetitia foram tantas que logo após a publicação houve quem afirmasse que ela seria o documento mais poderoso que o Papa Francisco já publicara até aquele momento, com potencial de transformar a Igreja: “Será o documento pelo qual Francisco será mais lembrado” (DEBERNARDO, 2016DEBERNARDO, F. Potência transformadora e conservadorismo num mesmo ato. IHU on-line, São Leopoldo, n. 483, Ano XVI, p. 44-46, 2016., p. 45).

Quando, porém, o texto da Exortação Pós-Sinodal veio a público, os sentimentos novamente se distinguiram: houve os que comemoraram a maneira pastoral e de acolhida misericordiosa com que Francisco apresentava a realidade da família, e quem a interpretasse como uma proposição ‘herética’, por apresentar uma reflexão diferente do modelo vigente. Ainda na esteira crítica, o fato de que a Exortação não esteja endereçada primeiramente às famílias, mas aos bispos, presbíteros e diáconos também causou desconforto: “Isto significa que os pobres que quiserem entender alguma coisa do texto não poderão fazê-lo em forma direta, mas sempre através da mediação interpretativa de bispos, presbíteros, diáconos, etc” (GEBARA, 2016GEBARA, I. A Igreja solteira, masculina e hierárquica que fala à família. IHU on-line, São Leopoldo, n. 483, Ano XVI, p. 35-39, 2016., p. 35).

Francisco tem consciência das polaridades dentro da Igreja, e pontua: “Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada” (AL, n. 308). Dessa forma, Francisco ressalta um aspecto moral não muito comum nos documentos do magistério: não se fixa no dado objetivo da normalidade, mas valoriza o bem possível a ser alcançado pelas pessoas.

Amoris Laetitia não se baseia nos aspectos jurídico-canônicos, mas gira seus holofotes para a vivência místico-sapiencial da família. Seus nove capítulos refletem desde a experiência bíblica, da tradição da Igreja e se dedica pausadamente aos aspectos pastorais, ressaltando tanto o papel dos membros da família, desde os nascituros até os idosos, sem deixar de destacar o papel dos pastores da Igreja. O número 308, há pouco citado, assim continua: “Os pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O próprio Evangelho exige que não julguemos nem condenemos” (AL, n. 308).

Francisco corajosamente assume que nem sempre a Igreja agiu de modo adequado para com as famílias e enumera alguns motivos para uma autocrítica, os quais vão desde a maneira de apresentar as convicções cristãs, incluindo até a forma como tratar as pessoas. E continua: “apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação”. Em seguida, Francisco reconhece a falta de um bom acompanhamento dos jovens casais e ainda o ideal teológico do matrimônio apresentado de modo abstrato. E conclui o papa: “Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertamos a confiança na graça, não fez com que o matrimônio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário” (AL, n. 36). O parágrafo seguinte reconhece: “Temos dificuldade em apresentar o matrimônio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira” (AL, n. 37).

Amoris Laetitia insiste que o matrimônio não é uma realidade acabada, mas a ser construída gradualmente. Nem mesmo a imagem tão frequentemente utilizada da união entre Cristo e a Igreja (Ef 5, 21-33) deve ser considerada como uma realidade impositiva, mas como ideal inspirador: “não se deve atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimônio como sinal implica um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus” (AL, n. 122). Consideremos bem as expressões aqui utilizadas: “processo dinâmico’, “que avança”, “gradualmente”, “progressiva integração”.

Essa perspectiva reflete o sentido da alegria de acolher, vivenciar e pregar o Evangelho, inspiração fundamental do pontificado de Francisco. Nesse sentido, Amoris Laetitia tem como um dos objetivos centrais é a valorização da família e da vida conjugal junto com o incentivo aos cônjuges para cultivarem, na mística da vivência matrimonial, a alegria de sua vocação e missão na Igreja e na sociedade.

Amoris Laetitia não idealiza as famílias, não prescreve um ideal perfeito, inalcançável, não condena os modelos “irregulares” (Francisco emprega a palavra com as aspas). Ao contrário, faz questão de dizer que “não existem as famílias perfeitas que a publicidade falaciosa e consumista nos propõe” (AL, n. 135). Francisco convida a todos ao empenho necessário para relações amorosas, na valorização de cada membro da família, à escuta atenta do Senhor.

Todos estes acentos querem mostrar que, para Francisco, a realidade da família, a luz para seus dilemas e a clareza necessária em cada situação não se dão de forma imediata nem utilizando respostas predefinidas, mas convida as pessoas ao discernimento necessário em cada situação, o que exigirá abertura, tempo e empenho. No capítulo VIII de Amoris Laetitia, cujo título é “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”, Francisco passa a apresentar algumas perspectivas pastorais muito úteis. As expressões de destaque neste capítulo são novamente: gradualidade, discernimento, circunstâncias atenuantes, misericórdia pastoral.

Esta pedagogia de Francisco de “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade” é apresentada não só com relação à família, mas aparece também, por exemplo, na mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado (2018). Naquela ocasião, o papa enfatizou a importância de “acolher, proteger, promover e integrar os migrantes e os refugiados”. Percebe-se assim que não se trata simplesmente de algo aplicável unicamente às realidades das famílias, mas de um modelo pastoral de acolhimento, nos mais diversos contextos.

O discernimento proposto pelo Papa não se restringe aos esposos, mas envolve também os pastores da Igreja: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações. O grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, e podem existir fatores que limitem a capacidade de decisão. Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações, e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição” (AL, n. 79). Mais uma vez, Francisco adverte que a clareza doutrinária não deve ignorar as situações concretas das famílias, com atenção especial ao modo como vivem e sofrem.

Além da palavra “discernimento”, outra ideia muito presente em Amoris Laetitia é a valorização da consciência dos fiéis, tão presente na teologia conciliar (Gaudium et Spes, n. 16). Francisco admite: “nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL, n. 37).

Seria ingênuo e falacioso imaginar que o discernimento e a escuta da consciência se deem num ambiente calmo e esterilizado. Pelo contrário, as decisões são tomadas frequentemente em meio aos terremotos e precipitações da vida. Para além das questões internas da família, há todo o drama do contexto sociocultural, afinal, o desemprego, a habitação, o alimento dos filhos, o cuidado dos idosos não são situações que possam ser ignoradas (AL, n. 25; 44).

Passados cinco anos de sua publicação, não se tem percebido, até agora, o empenho que esperava da Igreja para que as intuições e perspectivas pastorais do documento tomem corpo na pastoral prática. Falta uma recepção ativa da exortação, de modo que os casais sejam animados através da ação evangelizadora, a aprofundarem sua vocação conjugal, inclusive na Igreja do Brasil. Se outros documentos de Francisco continuam a serem recepcionados e serviram de referência para outras discussões, ainda se deve agir para que o mesmo aconteça em relação à Amoris Laetitia. Valeria a pena interrogar-nos do porquê da falta de recepção desse documento. Suas proposições foram acatadas? A maneira de acolher e acompanhar as famílias, sobretudo as mais fragilizadas, mudou? Ou ainda uma questão anterior a todas essas: seu texto tornou-se conhecido? Talvez tenha razão quem interpretou a Exortação não como um ponto final, mas “com a força de um ‘início’, ou, melhor, do início de um início”. (GRILLO, 2016GRILLO, A. Amoris Laetitia e a superação de contraposições estéreis, IHU on-line, São Leopoldo, nº 483, Ano XVI, p. 40-43, 2016., p. 41).

O aniversário de cinco anos desta Exortação deve ressaltar mais uma vez seus grandes objetivos: apreciar os dons do matrimônio e da família e manter um amor forte e cheio de valores como a generosidade, o compromisso, a fidelidade e a paciência; e encorajar todos a serem sinais de misericórdia e proximidade para a vida familiar (AL, n. 5).

Referências

  • DEBERNARDO, F. Potência transformadora e conservadorismo num mesmo ato. IHU on-line, São Leopoldo, n. 483, Ano XVI, p. 44-46, 2016.
  • FRANCISCO, Papa. Discurso de comemoração do cinquentenário da instituição do Sínodo dos Bispos, 17 de outubro de 2015.
  • FRANCISCO, Papa. Exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia do Sumo Pontítice [...] sobre o amor da família São Paulo: Loyola, 2016.
  • GEBARA, I. A Igreja solteira, masculina e hierárquica que fala à família. IHU on-line, São Leopoldo, n. 483, Ano XVI, p. 35-39, 2016.
  • GRILLO, A. Amoris Laetitia e a superação de contraposições estéreis, IHU on-line, São Leopoldo, nº 483, Ano XVI, p. 40-43, 2016.
  • KASPER, W. Bíblia, eros e família: o discurso do cardeal Walter Kasper no consistório. IHU on-line, São Leopoldo, 03.03.2014
  • MOSER, A. A importância da pastoral familiar: ecos do Sínodo dos Bispos de 2015. Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 76, n. 302, p. 280-303, abr./jun. 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2021
  • Aceito
    26 Mar 2021
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) Avenida Doutor Cristiano Guimarães, 2127 - Bairro Planalto, Minas Gerais - Belo Horizonte, Cep: 31720-300, Tel: 55 (31) 3115.7000 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: editor.pt@faculdadejesuita.edu.br