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Direito Animal e a Inconstitucionalidade da 96a Emenda à Constituição Brasileira

Animal law and the Unconstitutionality of the 96th Amendment to the Brazilian Constitution

Resumo

O presente artigo de revisão utiliza o método interpretativo sistemático e, a partir de pesquisa bibliográfica e documental, a análise da constitucionalidade da Emenda Constitucional n. 96, de 6 de julho de 2017, que excepcionou a norma constitucional proibindo a prática de atividades que submetam os animais à crueldade, sempre que a atividade for considerada uma manifestação cultural registrada como patrimônio cultural imaterial. O artigo demonstra que as emendas constitucionais, promulgadas pelo poder constituinte derivado, não podem exceder os limites materiais de reforma constitucional estabelecidos em cláusulas pétreas, dentre eles, a estabilidade dos direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, IV da CF). O artigo analisa, ainda, os argumentos apresentados pela Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 227.175/2017, concluindo pela inconstitucionalidade da referida Emenda, uma vez que a prática de atos cruéis contra os animais constitui uma ofensa direta ao direito fundamental individual desses animais a um meio ambiente sadio e equilibrado.

Palavras-chave:
Controle de Constitucionalidade; Vaquejada; Direitos de Terceira Dimensão

Abstract

This review article uses the systematic interpretive method, and from a bibliographical and documentary research, analysis of the constitutionality of Constitutional Amendment No. 96 of July 6, 2017, which excepted the constitutional norm that prohibits the practice of activities that subject the animals to cruelty, whenever the activity is considered a cultural manifestation registered as intangible cultural heritage. The article demonstrates that constitutional amendments promulgated by the derived constituent power can not have the material limits of constitutional reform set forth in substantive clauses, including the stability of individual rights and guarantees (article 60, § 4, IV of the CF). The article also analyzes the arguments presented by the Declaratory Action of Unconstitutionality n. 227,175 / 2017, concluding that the said Amendment is unconstitutional, since the practice of cruel acts against animals constitutes a direct offense against the individual fundamental right to a healthy and balanced environment.

Keywords:
Control of Constitutionality; Rodeo; Third-dimensional Rights

1 Introdução

No dia 6 de junho de 2017 foi publicada a Emenda Constitucional (EC n. 96/17), que, ao acrescentar o § 7º ao artigo 227 da Constituição Federal (CF), estabelece que as práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis, desde que sejam manifestações culturais registradas como patrimônio cultural imaterial.

O Congresso Nacional (CN) inicialmente aprovou a Lei n. 13.364/2016 para declarar a vaquejada como patrimônio cultural imaterial, em processo legislativo que sequer ouviu a opinião do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), órgão competente para realizar estudos científicos e o registro das práticas que integram o patrimônio cultural imaterial do país.

Na verdade, a Emenda n. 96/17 foi promulgada apenas oito meses após a decisão que julgou a ADI n. 4.983/15 que, em 6 de outubro de 2017, declarou inconstitucional a Lei do Estado do Ceará que regulamentava a prática de vaquejada, em um claro exemplo “ativismo congressual”, uma espécie de reação legislativa com o mero objetivo de reverter uma decisão do STF (BRASIL, 2017BRASIL. Congresso Nacional. [2017]. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc96.htm >. Acesso em: 15 maio 2017.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
), o que se constitui em grave ofensa ao princípio da separação dos poderes.

Em razão desse movimento de deslegitimação do STF, em 5 de setembro de 2017, o Procurador Geral da República (PGR), por meio da ADI n. 227.175/2017, arguiu a inconstitucionalidade da Emenda n. 96/17, uma vez que o próprio STF já havia, repetidamente, decidido que práticas desportivas e culturais que violem a integridade física dos animais, inclusive a vaquejada, são inconstitucionais.

Inicialmente, este artigo irá abordar os limites materiais das mudanças constitucionais a partir da teoria das normas constitucionais inconstitucionais de Oto Barchof. Em seguida, será demonstrado que o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, em sua dimensão subjetiva, é um direito fundamental individual de terceira dimensão, constituindo-se, assim, em uma das cláusulas pétreas da Constituição Federal.

Por fim, a partir da análise da ADI n. 227.175/2017 impetrada pelo PGR, serão apresentados os fundamentos que ensejam a inconstitucionalidade da Emenda n. 96/17, que flagrantemente viola os limites materiais da mudança constitucional.

2 Normas Constitucionais Inconstitucionais e os Limites das alterações Constitucionais

Existem diferentes categorias axiológicas de normas constitucionais, uma vez que essas normas não são todas categorizadas no mesmo patamar. Isso não significa que existe hierarquia entre elas, uma vez que hierarquia pressupõe a retirada de força da uma norma por uma norma superior, mas diferença valorativa nos casos concretos (BARROSO, 2014BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014., p. 209).

Dentro dessa perspectiva, para uma melhor interpretação da Constituição, deve-se, através do método sistemático, identificar a valoração (e não a hierarquia) das normas constitucionais, e observando o sistema constitucional em sua integralidade, identificar a escala axiológica de cada uma delas em caso de conflito.

A interpretação sistemática consiste em “[...] comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto [...]” (MAXIMILIANO, 2011MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011., p. 104), e tendo como objeto um dispositivo constitucional, o hermeneuta deve interpretá-lo tomando como base os mais diversos dispositivos apresentados pelo Direito Constitucional.

Como as normas constitucionais possuem uma mesma categoria hierárquica, em caso de conflito, não se deve utilizar a técnica de solução de antinomias contida no brocardo latino lex superior derrogat legi inferior, mas realizar uma interpretação sistemática com base na escala axiológica da Constituição (BARROSO, 2014BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014., p. 209).

Para Bachof (1994BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. e nota prévia de José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994.), em casos em que uma norma constitucional vá de encontro a outra norma constitucional de um nível axiológico menor, estar-se-á diante de uma inconstitucionalidade de norma constitucional.

É que as normas constitucionais não provêm de um mesmo poder constituinte, mas de dois poderes distintos. O primeiro é o poder constituinte originário, que é aquele que, sem nenhum limite positivo - a não ser os limites do Direito Natural para aqueles que o reconhecem - elabora a lei fundamental, ao passo que o poder derivado retira a sua competência das normas estabelecidas pelo poder constituinte originário (FERRAZ, 1985, p. 22FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Constituinte: assembleia, processo, poder. São Paulo: RT, 1985.).

Além disso, o poder constituinte originário está submetido, não apenas aos limites do Direito Natural, mas a outros limites transcendentes como os objetivos da sociedade civil e os direitos e garantias fundamentais do homem devidamente preservados pelo direito internacional (BRITO, 1993BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 1993., p. 92).

As emendas e as revisões constitucionais, todavia, são obra do poder constituinte derivado, e, entre as hipóteses que autorizam a declaração de inconstitucionalidade dessas normas que alteram a CF, destacam-se: a) inconstitucionalidade de normas constitucionais em virtude da promulgação de reformas à constituição que violam as normas estabelecidas pelo constituinte originário; e b) inconstitucionalidade por infração de direito supralegal não positivado (BACHOF, 1994BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. e nota prévia de José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994.).

Na primeira hipótese, diante de uma alteração decorrente, por exemplo, de uma emenda constitucional, esta mudança não pode contrariar a vontade do constituinte original, pois “[...] os preceitos sobre a revisão de uma Constituição apenas podem obrigar o poder constituído, nunca o poder constituinte” (BACHOF, 1994BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. e nota prévia de José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994., p. 103). Dessa maneira, caso haja uma emenda constitucional que viole um preceito estabelecido pelo legislador constituinte, essa norma deverá ser declarada inconstitucional.

Sobre a declaração de inconstitucionalidade de emenda constitucional, não há novidade (BARROSO, 2014BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014., p. 209), pois, há muito tempo, a jurisprudência brasileira tem decidido que “[...] uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, do Constituinte derivado, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal FederalSUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.856/RJ. Relator(A): Min. Celso De Mello, Tribunal Pleno, Julgado Em 26/05/2011, Dje-198 Divulg 13-10-2011 Public 14-10-2011 Ement Vol-02607-02 Pp-00275 Rtj Vol-00220-01 Pp-00018 Rt V. 101, N. 915, 2012, p. 379-413). 2011., cuja função precípua é de guarda da Constituição” (BRASIL, 1988, art. 102, I, “a”BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal. 1988.).

Como ensina Edvaldo Brito (1993BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris. 1993., p. 92-93), as alterações da Constituição não são poder, mas competência e, portanto, têm seus limites, uma vez que “[...] a Constituição jurídica é legítima na medida em que garante as expectativas sociais contra a contingência a que estas estão sujeitas”.

É que embora a última palavra sobre o direito constitucional positivo seja do Congresso Nacional, que no exercício de seu poder constituinte derivado pode, através do quórum de três quintos dos membros de cada casa e respeitando os requisitos do processo legislativo, previstos no artigo 60 da CF, alterar interpretações estabelecidas pelo STF, esta alteração não pode prevalecer quando violarem os limites materiais estabelecidos nas cláusulas pétreas (BARROSO, 2006BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva , 2006., p. 74-75).

De fato, o Supremo Tribunal Federal (STFSUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.983/CE. 2016. Disponível em: < Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12798874 >. Acesso em: 3 maio 2018.
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) distingue normas materialmente e formalmente inconstitucionais e considera uma limitação material ao poder de reforma qualquer ofensa feita aos direitos fundamentaisNOGUEIRA, Vânia Márcia Damasceno. Direitos Fundamentais dos Animais: a construção jurídica de uma titularidade para além dos seres humanos. Belo Horizonte: Arraes, 2012. 1 1 V.g. STF. Plenário. ADI 939/DF. Rel.: Min. SYDNEY SANCHES; STF. Plenário. ADI 2.666/DF. Rel.: Min. ELLEN GRACIE. 3/10/2002, un. DJ, 6/12/2002; STF. Plenário. ADI 2.024/DF. Rel.: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. 3/5/2007, un. DJ, 22 jun. 2007. 15/12/1993, maioria. DJ, 18 mar. 1994. :

[...] as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2007, p. 128SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.024 -2/DF. 2007. Disponível em: < Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=466214 >. Acesso em: 2 maio 2018.
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).

A segunda hipótese versa sobre a inconstitucionalidade decorrente do descumprimento de direito supralegal não positivado, ou seja, aquelas normas de ordem interna ou de ordem internacional que, apesar de não estarem positivadas em leis ou tratados internacionais devem ser cumpridas pelo fato de protegerem a dignidade da pessoa humana.

É possível referir-se a esse direito como direito humano e universal: universal pelo fato de permear sobre todos os ordenamentos jurídicos e humanos, por ser aplicável a todos os seres humanos, independentemente de etnia, raça, credo, religião, ideologia política etc. O direito supralegal, na verdade, se confunde com a legitimidade, que nada mais é do que a vontade do povo consubstanciada nos princípios éticos, morais e humanísticos da sociedade e da própria Constituição (PASSOS; PESSANHA, 2008PASSOS, Thais; PESSANHA, Vanessa. Normas Constitucionais Inconstitucionais? A Teoria de Otto Bachof. In: XVII ENCONTRO PREPARATÓRIO PARA O CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, Salvador, 2008. Anais... Salvador, 2008, v. XVII, p. 3.758-3.778. Disponível em: <Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/salvador/thais_bandeira_oliveira_passos.pdf >. Acesso em: 28 mar. 2018.
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, p. 3.763)

Mesmo entre os positivistas, é comum a menção a normas superiores que devem ser respeitadas, e o que costuma variar, nesses casos, é, justamente, o grau de abrangência desse direito supralegal, embora os direitos à vida, à liberdade e à integridade física estejam quase sempre incluídos nesse rol.

3 A Proibição de Práticas que Submetam os Animais à Crueldade como um Direito Fundamental Individual

Uma interpretação apressada do artigo 60, §4º, VI da CF pode nos levar a considerar a expressão “direitos e garantias individuais” como sinônimo de “direitos essenciais titularizados pelo indivíduo”, restringindo as cláusulas pétreas apenas aos direitos fundamentais individuais, excluindo os direitos fundamentais de segunda e terceira dimensão positivados pela própria Constituição e pelos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil (RAMOS, 2017RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva , 2017., p. 455).

Acontece que o artigo 5º, §2º da CF expressamente dispõe que “[...] os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 1988, art. 5º).

Assim, tanto normas internacionais de direitos humanos, quanto as normas constitucionais internas de direitos fundamentais devem ser interpretadas de forma sistemática já que, por conta do princípio da não exaustão, esses direitos não se esgotam no artigo 5º da CF.

Se, no atual cenário do Direito Constitucional ocidental, pode-se depreender que a hermenêutica que mais contribui para a efetividade das Constituições é aquela que privilegia e potencializa a força normativa de seus princípios fundamentais (a serem levados em conta desde o primeiro vislumbre da norma abstrata até o momento da decisão dos casos concretos), imperioso é ressaltar que, dentre eles, com força deontológica predominante, está o princípio da dignidade da pessoa humana. (PIOVESAN, 2012PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva , 2012., p. 315)

De fato, o STF tem entendido dessa forma em diversos julgados a exemplo da ADI 3.345, Rel. Min. Celso de Mello e da ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie. É que no controle de constitucionalidade, o STF assume um caráter eminentemente político, de modo que na ação direta de inconstitucionalidade por ação e na ação declaratória de constitucionalidade, ele se torna um legislador negativo, ao passo que na ação de inconstitucionalidade por omissão e no mandado de injunção, um legislador ativo (CUNHA JR. 2016CUNHA JR., Dirley. A judicialização da política, a politização da justiça e o papel do juiz no estado constitucional social e democrático de direito. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, [S.l.], v. 26, n. 28. 2016., p. 156).

Como intérprete da Constituição, o STF visa proteger a lei fundamental, evitando que ela seja distorcida por maiorias legislativas transitórias ou no interesse de alguns poucos membros do Poder Legislativo.

É preciso ter em conta que, após a Segunda Guerra Mundial, com a criação da Organização das Nações Unidas (1945) e da Organização Internacional do Trabalho (1919), a proteção internacional dos direitos humanos tem se voltado para os destinos da humanidade, onde o homem passa a ser visto não apenas como um indivíduo ou uma coletividade determinada, mas em uma dimensão universal perante os regimes políticos, ideologias e progressos tecnológicos que colocam em risco a sua qualidade de vida e a própria natureza.

De fato, nas Constituições modernas o meio ambiente passa a ter uma dimensão objetiva, quando é tratado como fim e tarefa do Estado e da comunidade, e/ou subjetiva, quando assume a natureza de direito subjetivo individual (BELCHIOR, 2011BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica jurídica ambiental. São Paulo: Saraiva , 2011., p. 100-103).

No Brasil, o direito fundamental ao meio ambiente, a exemplo das Constituições de Portugal e da Espanha, assume as dimensões objetiva e subjetiva, ora como elementos fundamentais da comunidade, mas também como direito subjetivo individual (MEDEIROS, 2004MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004., p. 85).

É que a divisão dos direitos fundamentais em “gerações” é apenas pedagógica, já que a ideia é demonstrar a construção histórica desses direitos, associando-os aos momentos históricos que os fizeram surgir, uma associação que favorece a compreensão sobre o tema, mas não dita qualquer ordem hierárquica.

Tal é a importância da compreensão dessa ausência de sobreposição de direitos, que parte da doutrina prefere o uso do termo “dimensão” no lugar de “geração”, para que não reste qualquer dúvida sobre essa aplicação em conjunto dos direitos fundamentais.

Segundo Cançado Trindade (2013, p. 56TRINTADE, Antônio Augusto Cançado. Apresentação. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14. ed. São Paulo: Saraiva , 2013. p. 5.), imaginar os direitos humanos como gerações é uma fantasia:

[...] a qual corresponde a uma visão atomizada ou fragmentada destes últimos no tempo. A noção simplista das chamadas “gerações de direitos”, histórica e juridicamente infundada, tem prestado um desserviço ao pensamento mais lúcido a inspirar a evolução do direito internacional dos direitos humanos. Distintamente do que a infeliz invocação da imagem analógica da “sucessão generacional” pareceria supor, os direitos humanos não se “sucedem” ou “substituem” uns aos outros, mas antes se expandem, se acumulam e fortalecem, interagindo os direitos individuais e sociais.

Dessa maneira, a doutrina majoritária e a jurisprudência determinam a necessidade de realização de uma hermenêutica extensiva, de modo que a ampliação da noção de dignidade humana passa pela conscientização dos valores ambientais (MIRANDA, 2012MIRANDA, Robinson Nicácio. A Proteção ao Meio Ambiente e o Processo de Afirmação dos Direitos Humanos no Estado de Direito Ambiental. In: BUCCI, Daniela; SALA, José Blanes; CAMPOS, José Ribeiro (Coord.). Direitos Humanos: proteção e promoção. São Paulo: Saraiva , 2012. p. 311-322., p. 319), e cria um novo humanismo ecológico resultante da relação indissociável do direito à vida ao meio ambiente equilibrado, com vistas à proteção e preservação ambiental (PINHEIRO; COSTA, 2015PINHEIRO, Maria Lenir Rodrigues; COSTA, Maria Rosineide da Silva. Direitos Humanos e Transnacionalidade: o meio ambiente sustentável no contexto da cidadania global. In: CAMPELLO, Livia Gaigher Bosio; PADILHA, Norma Sueli; MARÉS FILHO, Carlos Frederico. Direito Ambiental e Socioambientalismo. Florianópolis: CONPEDI , 2015. p. 274-294. Disponível em: < Disponível em: https://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/gb7cf8t2/iMawJ36EZsa99cYv.pdf >. Acesso em: 3 maio 2018.
https://www.conpedi.org.br/publicacoes/c...
, p. 284).

Segundo Paulo Bonavides (2006BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 563-569., p. 563-569), os direitos fundamentais se constituem em uma categoria jurídica que tem por finalidade proteger a dignidade em todas as suas dimensões, protegendo os sujeitos de direito em sua liberdade (direitos individuais), em suas necessidades (direitos sociais, econômicos e culturais) e em sua preservação (direitos relacionados à fraternidade e à solidariedade).

Desse modo, na terceira dimensão dos direitos fundamentais é o próprio direito individual à vida que está em jogo, embora ele também seja tratado como um direito suscetível de ser lesado coletivamente, já que direitos como o direito ao meio ambiente e os direitos do consumidor são tipicamente direitos transindividuais (ALARCÓN, 2004ALARCÓN, Pietro de Jésus Lora. O patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método, 2004. p. 81., p. 83).

O direito ao meio ambiente equilibrado é um direito fundamental inerentemente ligado ao direito à vida e à saúde, de modo que a poluição de um rio por metais pesados, por exemplo, pode comprometer a saúde das populações ribeirinhas, levando à morte dos infectados. É por isso que os direitos fundamentais devem ser previstos e garantidos em bloco, pois todos eles acabam impactando o fundamento de sua existência, qual seja, a dignidade da vida.

Seja como for, o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado é um direito fundamental com status formal (art. 225, caput da CF) e material de cláusula pétrea, porque tem conteúdo imprescindível à dignidade humana (BELCHIOR, 2011BELCHIOR, Germana Parente Neiva. Hermenêutica jurídica ambiental. São Paulo: Saraiva , 2011., p. 104) e dos próprios animais (GORDILHO, 2018GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo Animal. Salvador: Evolução, 2018.).

É que a depender do paradigma utilizado, os animaisFERREIRA, Ana Conceição Barbuda Sanches Guimarães. A proteção aos animais e o direito: o status jurídico dos animais como sujeitos de direito. Curitiba: Juruá, 2014. podem ser considerados objeto de direito ou sujeito de direito. Na primeira hipótese, eles são considerados seres sensíveis ou sencientes e, por esta condição, merecem uma proteção diferenciada em nosso ordenamento jurídico.

Isto se torna ainda mais complexo pelo fato do nosso ordenamento adotar uma posição dúbia em relação aos animais, ora tratando-os como res, ora como seres sensíveis. O fundamento legal para a posição que considera os animais como seres sensíveis é o artigo 225, VI da Constituição Federal, que proíbe toda e qualquer prática que os submeta à crueldade 2 2 Apesar da incerteza que o termo crueldade animal pode trazer. Um animal enjaulado, sem o espaço mínimo para viver, não seria, de per si, uma forma de crueldade? Existem questionamentos nesse sentido, mas, como este não é o objeto do presente artigo, não entraremos nessa seara. e artigo 32 da Lei n. 9.605/98 que considera crime toda conduta que os maltrate.

Por outro lado, a exploração institucionalizada dos animais é largamente permitida por outras leis infraconstitucionais, a exemplo do Código Civil, que em seu artigo 441, §2º, ao regular os vícios redibitórios inerentes, trata os animais como bens semovente, bem como o artigo 1.442 do mesmo Código, que admite que os animais sejam objeto de penhor agrícola.

Até mesmo a Lei n. 9.705/98 permite que os animais sejam maltratados em experiências científicas quando não existirem recursos alternativos, uma vez que esse tipo de conduta é considerado pelo senso comum como um “mal necessário” que visa promover a cura de enfermidades que acometem a população. Em nenhum caso, porém, a lei admite que os animais sejam tratados de forma cruel, isto é, que tenham a sua integridade física violada apenas para satisfação e divertimento de alguns indivíduos.

Reforçando o argumento da defesa dos direitos fundamentais, por causa dos maus-tratos apontados, além da proteção conferida aos direitos difusos e coletivos, cabe ressaltar a importância da compreensão dos direitos dos animais como individuais, ou seja, de primeira geração (XAVIER, 2017, p. 272XAVIER, Fernando César Costa. Para Além da “Vaquejada” e da “Farra Do Boi”: Justiça para o Direito dos Animais. Revista Direito e Justiça: reflexões sociojurídicas, [S.l.], v. 17, n. 28. 2017. Disponível em: <Disponível em: http://srvapp2s.santoangelo.uri.br/seer/index.php/direito_e_justica/article/view/2172/997 >. Acesso em: 20 abr. 2018.
http://srvapp2s.santoangelo.uri.br/seer/...
).

As doutrinas que se mostram reticentes quanto à aceitação dessa perspectiva, costumam evocar os ensinamentos de Immanuel Kant, alegando que apenas os seres racionais teriam direitos inerentes a sua condição supostamente superior (GORDILHO, 2009, p. 113GORDILHO, Heron; FIGUEIREDO, Francisco José Garcia. A vaquejada à luz da Constituição Federal. Revista de Biodireito e Direito dos Animais, [S.l.], v. 2, p. 78-96, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://indexlaw.org/index.php/revistarbda/article/view/1363 >. Acesso em: 2 jul. 2017.
http://indexlaw.org/index.php/revistarbd...
). Por isso, fala-se em direitos humanos, por que é o atributo da razão que confere aos animais humanos uma superioridade jurídica em relação aos outros animais.

Apesar da alta adesão, esse argumento demonstra sérias falhas. Por exemplo, o que dizer dos bebês e dos indivíduos que, por portar alguma necessidade especial mental, não consegue exprimir sua vontade de forma clara?

Essas pessoas, mesmo sem poder desenvolver um raciocínio complexo, não perdem, por essa razão, a condição de humanos, nem os direitos que a acompanham (XAVIER, 2017, p. 272).

4 Os Fundamentos da ADI n. 227.175/2017 e o porquê da Emenda n. 96/17 ser Inconstitucional

A ADI n. 227.175/2017 proposta pelo PGR pleiteia a declaração da inconstitucionalidade: a) da Emenda Constitucional n. 96/17, b) da expressão “Vaquejada”, nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei n. 13.364, de 29 de novembro de 2016, que elevou esta atividade à condição de patrimônio cultural imaterial brasileiro e c) da expressão “as vaquejadas”, no artigo 1º, parágrafo único, da Lei n. 10.220, de 11 de abril de 2001 3 3 Emenda Constitucional 96/2017: Art. 1º O art. 225 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 7º:Art. 225. [...] § 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do §1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.” Lei n.13.364/2016: Art. 1º Esta Lei eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial. Art. 2ª O Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, passam a ser considerados manifestações da cultura nacional. Art. 3º Consideram-se patrimônio cultural imaterial do Brasil o Rodeio, a Vaquejada e expressões decorrentes [...] Lei n. 10.220/2001: Art. 1º Considera-se atleta profissional o peão de rodeio cuja atividade consiste na participação, mediante remuneração pactuada em contrato próprio, em provas de destreza no dorso de animais equinos ou bovinos, em torneios patrocinados por entidades públicas ou privadas. Parágrafo único. Entendem-se como provas de rodeios as montarias em bovinos e equinos, as vaquejadas e provas de laço, promovidas por entidades públicas ou privadas, além de outras atividades profissionais da modalidade organizadas pelos atletas e entidades dessa prática esportiva. .

Segundo o ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot (2017JANOT, Rodrigo. ADI n. 227.175/2017. Revista Brasileira de Direito Animal, [S.l.], v. 12, v. 3, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/24399/15025 >. Acesso em: 26 mar. 2018.
https://portalseer.ufba.br/index.php/RBD...
, p. 178), o constituinte derivado encontrava-se diante de uma limitação material, de modo que não poderia modificar o texto constitucional com a finalidade de permitir atos cruéis aos animais em manifestações culturais:

Em evidente desrespeito à ordem constitucional, o poder constituinte derivado aprovou emenda à Constituição da República incompatível com normas constitucionais que vedam expressamente tratamento cruel aos animais, que protegem o núcleo essencial de direitos fundamentais e o princípio da dignidade humana, porquanto a emenda legitima práticas totalmente incompatíveis com o dever constitucional e direito fundamental de proteção da fauna, ao rotular, de forma artificiosa, como não cruéis práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam “manifestações culturais” reguladas por lei específica.

Em vários precedentes, o STF tem entendido ser inconstitucional as práticas que submetem os animais à crueldade apenas para o simples entretenimento das pessoas, mesmo que isso ocorra em uma manifestação cultural, como na Rinha de Galo, na Farra do Boi ou na Vaquejada.

O STF, com base no artigo 225, § 1º, inciso VII da CF, já havia declarado a inconstitucionalidade das normas estaduais que regulamentavam as “rinhas de galo” nos Estados do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Norte, sob o argumento de que a submissão dessas espécies de animais à luta é uma forma de tratá-las com crueldade, e que, na maioria das vezes, as aves vão até à exaustão e à morte. Em seu voto, o ministro Marco Aurélio Mello afirma que os galos são seres vivos, e que da tortura de um galo para a tortura de um ser humano é um passo (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2011, p. 115).

Segundo o Ministro Marco Aurélio Mello, Relator da ADI n. 4.983/CE, ao analisar inconstitucionalidade da Lei n. 15.299/13 do Estado do Ceará, a prática da Vaquejada, de per si, atenta contra o bem-estar dos animais:

[...] a derrubada do boi pelos vaqueiros, o que fazem em arrancada, puxando-o pelo rabo. Inicialmente, o animal é enclausurado, açoitado e instigado a sair em disparada quando da abertura do portão do brete. Conduzido pela dupla de vaqueiros competidores vem a ser agarrado pela cauda, a qual é torcida até que caia com as quatro patas para cima e, assim, fique finalmente dominado (BRASIL, 2016, p. 3).

Para fundamentar a sua decisão, o Ministro menciona os laudos técnicos anexados ao processo que demonstraram claramente os danos causados pela prática.

É interessante observar que, diante do conflito entre os direitos fundamentais à livre manifestação cultural e o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, o STF tem utilizado a técnica da ponderação, um método de conciliação entre princípios ou direitos fundamentais em conflito (ASSIS JR.; SILVA, 2016ASSIS JR., Carlos Pina de; e SILVA, Lucas Gonçalves da. Desafio ao neoconstitucionalismo: a busca do ponto de equilíbrio na nova interpretação constitucional. In: LOBATO, Anderson Orestes Cavalcante; FREITAS, Lucas Gonçalves da Silva, Riva Sobrado de. (Coord.). Constituição e Democracia I. Organização CONPEDI/UNICURITIBA. Florianópolis: CONPEDI, 2016. p. 118-134. Disponível em: <Disponível em: https://www.conpedi.org.br/publicacoes/02q8agmu/3yms1d13/78YkEvw8HbI59K0K.pdf .> Acesso em: 27 mar. 2018.
https://www.conpedi.org.br/publicacoes/0...
, p. 123 ) concluindo que nesses casos o direito ao meio ambiente deve prevalecer frente ao direito à manifestação cultural (BRASIL, 2005).

Por outro lado, o voto do relator deixa bem claro que os animais são as verdadeiras vítimas dos atos de crueldade que violam o direito à integridade física dessas criaturas:

O autor juntou laudos técnicos que demonstram as consequências nocivas à saúde dos bovinos decorrentes da tração forçada no rabo, seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo ou até o arrancamento deste, resultando no comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental. Apresentou estudos no sentido de também sofrerem lesões e danos irreparáveis os cavalos utilizados na atividade: tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica. Ante os dados empíricos evidenciados pelas pesquisas, tem-se como indiscutível o tratamento cruel dispensado às espécies animais envolvidos. O ato repentino e violento de tracionar o boi pelo rabo, assim como a verdadeira tortura prévia - inclusive por meio de estocadas de choques elétricos - à qual é submetido o animal, para que saia do estado de mansidão e dispare em fuga a fim de viabilizar a perseguição, consubstanciam atuação a implicar descompasso com o que preconizado no artigo 225, § 1º, inciso VII, da Carta da República. (BRASIL, 2005)

É importante ressaltar que a dignidade pós-humana tem sido objeto de controvérsias, pois, segundo a doutrina tradicional antropocêntrica, apenas os seres humanos estariam incluídos nesse conceito (FIORILLO, 2013FIORILLO, Celso A. P. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. Rio de Janeiro: Saraiva. 2013., p. 69), ao passo que outros entendem que alguns animais possuem valor inerente e são os verdadeiros titulares do direito de não serem tratados de forma cruel (REGANREGAN, Tom. A causa dos direitos dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal , [S.l.], v. 8, n. 12. 2013. Disponível em: <Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/8385/6003 >. Acesso em: 26 mar. 2018.
https://portalseer.ufba.br/index.php/RBD...
, 2013AUGUSTINE. The City of God against the Pagans. New York: Cambridge Press, 2013., p. 27).

Seja como for, as constituições devem obedecer ao disposto em normas supralegais não positivadas que assegurem a dignidade da pessoa humana, ou pós-humana (SILVA, 2012SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Animais em juízo: direito, personalidade jurídica e capacidade processual. Salvador: Evolução , 2012., p. 77), de modo que uma norma constitucional não pode, por exemplo, restringir a vida e a liberdade ou a integridade física delas, institucionalizando, por exemplo, a tortura.

Assim, ao permitir que práticas ofensivas à integridade animal sejam protegidas pela CF, por resguardar uma tradição cultural, a EC n. 96/2017 tenta promover um verdadeiro retrocesso constitucional, indo de encontro a precedentes já consolidados no Supremo Tribunal Federal.

É que o artigo 60, § 4º, IV da CF estabelece que os direitos fundamentais não podem ser violados, por consubstanciarem cláusulas pétreas irreformáveis dentro do sistema constitucional, de modo que a partir de uma interpretação constitucional sistemática (MAXIMILIANO, 2011MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011., p. 104) percebe-se facilmente que esta norma viola a vontade do constituinte originário de garantir aos indivíduos a defesa de seu direito fundamental a um meio ambiente sadio e equilibrado.

De fato, o controle de constitucionalidade está ligado a princípios superiores e, dentro dessa categoria axiológica, a CF está protegida material e formalmente pelo seu artigo 64, §5, uma vez que ela pode ser violada tanto formalmente, quando a mudança não preencher os requisitos formais necessários, quanto materialmente, quando a mudança infringir alguma das suas cláusulas pétreas.

É evidente a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 96/17, uma vez que, no artigo 225, §1º, VII da CF, o constituinte originário demonstrou, claramente, o seu intento de proibir atos de crueldade contra os animais, preservando assim a integridade física dessas criaturas (GORDILHO; MOURA, 2017GORDILHO, Heron; MOURA, Judy Cerqueira. Direito Animal e a instabilidade das decisões do Supremo Tribunal Federal no Brasil. Revista De Direito Ambiental, [S.l.], v. 88, p. 183-200, 2017., p. 198).

Ao promulgar uma emenda constitucional que institucionaliza a prática de atos de crueldade contra os animais, o poder constituinte derivado extrapolou materialmente o poder constituinte derivado, de modo que esta norma já nasce eivada pelo vício da inconstitucionalidade (BARROSO, 2014BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014., p. 209).

Se considerarmos os animais como sujeitos de direito, essa afirmação se torna ainda mais verdadeira, pois a prática de atos cruéis contra eles representa a violação de um dos seus principais direitos fundamentais: o direito à integridade física.

Segundo David Cassuto (2015CASSUTO, David. Sacrifício de animais e a primeira emenda: o caso da igreja Lukumi babalu Aye. Revista Brasileira de Direito Animal, [S.l.], v. 10, n. 19, 2015., p. 27), para a Suprema Corte Americana, uma lei deve ser imparcial e de aplicabilidade geral, sob pena se ser submetida ao controle rigoroso, e caso não passe no controle rigoroso deve ser invalidada.

No caso brasileiro, tanto a Lei n. 13.364/16 e a Lei n. 10.220/01 quanto a Emenda n. 96 tiveram como único objetivo desconstituir o STF do papel de guardião da Constituição e modificar, caprichosamente, a sua decisão de declarar inconstitucional uma lei que regulamentava a vaquejada, em uma grave violação do princípio da separação dos poderes, o que seria inimaginável no Estado de Direito de uma democracia avançada.

5 Conclusão

Como vimos, as emendas constitucionais são obra do poder constituinte derivado e, entre as hipóteses que autorizam a declaração de inconstitucionalidade dessas normas, está a violação das cláusulas pétreas, que estabelecem os limites materiais de reforma constitucional, dentre eles, os direitos e garantias individuais (BRASIL, 1988, art. 60, § 4º, IV).

O direito ambiental, em sua dimensão subjetiva, se constitui em um direito fundamental que estabelece direitos e garantias individuais, de modo que estão inserido dentro dos limites materiais de reforma constitucional.

Com informa a ADI n. 227.175/2017, proposta pelo PGR, EC n. 19/17, juntamente com a Lei n. 13.364/2016 e a Lei n. 10.220/2001, são inconstitucionais por violarem o artigo 226, VI promulgado pelo poder constituinte originário, que expressamente proíbe as práticas que submetem os animais à crueldade.

É que além dos danos que a prática da vaquejada traz para os animais, notadamente equinos e bovinos, esta Emenda poderá ter efeitos perversos para a sociedade, permitindo que surjam novas leis que venham a tornar lícitas outras práticas culturais que submetem os animais à crueldade como as rinhas de galo e a farra do boi, em direta violação ao disposto no artigo 225, § 1º, inciso VII, da CF (BRASIL, 1988).

Por fim, é preciso destacar que existe uma clara tendência pós-humanista de extensão do conceito de dignidade humana, para incluir os animais em nossa esfera de consideração moral, de modo que eles sejam considerados titulares do direito fundamental de não ser submetidos a práticas cruéis como à vaquejada.

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    » http://srvapp2s.santoangelo.uri.br/seer/index.php/direito_e_justica/article/view/2172/997
  • 1
    V.g. STF. Plenário. ADI 939/DF. Rel.: Min. SYDNEY SANCHES; STF. Plenário. ADI 2.666/DF. Rel.: Min. ELLEN GRACIE. 3/10/2002, un. DJ, 6/12/2002; STF. Plenário. ADI 2.024/DF. Rel.: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. 3/5/2007, un. DJ, 22 jun. 2007. 15/12/1993, maioria. DJ, 18 mar. 1994.
  • 2
    Apesar da incerteza que o termo crueldade animal pode trazer. Um animal enjaulado, sem o espaço mínimo para viver, não seria, de per si, uma forma de crueldade? Existem questionamentos nesse sentido, mas, como este não é o objeto do presente artigo, não entraremos nessa seara.
  • 3
    Emenda Constitucional 96/2017: Art. 1º O art. 225 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 7º:Art. 225. [...] § 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do §1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.” Lei n.13.364/2016: Art. 1º Esta Lei eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestações da cultura nacional e de patrimônio cultural imaterial. Art. 2ª O Rodeio, a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, passam a ser considerados manifestações da cultura nacional. Art. 3º Consideram-se patrimônio cultural imaterial do Brasil o Rodeio, a Vaquejada e expressões decorrentes [...] Lei n. 10.220/2001: Art. 1º Considera-se atleta profissional o peão de rodeio cuja atividade consiste na participação, mediante remuneração pactuada em contrato próprio, em provas de destreza no dorso de animais equinos ou bovinos, em torneios patrocinados por entidades públicas ou privadas. Parágrafo único. Entendem-se como provas de rodeios as montarias em bovinos e equinos, as vaquejadas e provas de laço, promovidas por entidades públicas ou privadas, além de outras atividades profissionais da modalidade organizadas pelos atletas e entidades dessa prática esportiva.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2018

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2018
  • Revisado
    22 Mar 2018
  • Aceito
    29 Mar 2018
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