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Os acordos substitutivos de atividade sancionatória unilateral em contratos da Administração Pública no Brasil

The substitutive agreements of unilateral sanctioning activity in Public Administration contracts in Brazil

Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar as hipóteses em que é possível a substituição de sanção unilateral decorrente de infrações contratuais pelo acordo administrativo, bem como os critérios a serem observados para escolha entre o acordo ou o ato unilateral sancionatório. Para tanto, será feita a análise dos dispositivos normativos que autorizam a adoção da consensualidade na Administração Pública brasileira e os casos em que é possível a substituição do ato administrativo unilateral pela bilateralidade. Após a definição dos referidos pressupostos, será analisada a existência de autorização no Direito brasileiro para a substituição da atividade sancionatória unilateral, no âmbito dos contratos administrativos, por acordos. Em seguida, serão apreciados os critérios balizadores que devem ser utilizados pela Administração para decidir entre celebrar o acordo ou aplicar a sanção administrativa unilateral em caso de ocorrência de infrações administrativas contratuais. Ao final, a conclusão apreciará o processo de tomada de decisão pela Administração com base em tais critérios balizadores.

Palavras-chave:
Direito administrativo sancionador; Contratos administrativos; Sanções administrativas; Acordos substitutivos

Abstract

This article aims to analyze the hypotheses in which it is possible to replace a unilateral sanction resulting from contractual breaches by an administrative agreement, as well as the criteria to be observed when choosing between an agreement or a unilateral sanctioning act. To this end, an analysis will be made of the normative provisions that authorize the adoption of consensus in the Brazilian Public Administration and the cases in which it is possible to replace the unilateral administrative act with bilaterality. After defining these assumptions, the existence of authorization in Brazilian law for the replacement of unilateral sanctioning activity, within the scope of administrative contracts, by agreements will be analyzed. Then, the guiding criteria that must be used by the Administration to decide between entering into the agreement or applying the unilateral administrative sanction in the event of contractual administrative infractions will be assessed. In the end, the conclusion will assess the decision-making process by the Administration based on such guiding criteria.

Keywords:
Sanctioning administrative law; Administrative contracts; Administrative sanctions; Substitute agreements

1 INTRODUÇÃO

O tema do Direito Administrativo Sancionador tem ganhado relevância especial nos últimos tempos, haja vista a intensificação da atividade de controle no Brasil. A forma tradicional de aplicação destas sanções é a abertura de processo administrativo, no âmbito do qual se garante aos envolvidos o direito à ampla defesa e ao contraditório, culminando com a aplicação da penalidade administrativa ou sua isenção. Tal procedimento é adotado nas diversas áreas do Direito Administrativo Sancionador, inclusive nos processos de aplicação de sanção no âmbito dos contratos administrativos.

Ocorre que o método tradicional por meio do qual se resolve um conflito a partir de um ato administrativo unilateral, embora ainda predominante, vem gradativamente sendo substituído por outras possibilidades de provimento administrativo. Observa-se o surgimento de meios de resolução de conflitos que buscam a solução pelo acordo, fazendo com que o ato administrativo unilateral deixe de ser a única alternativa da Administração. Neste sentido, a alternativa da solução dos conflitos pelo acordo no âmbito dos contratos administrativos se torna uma alternativa de suma importância, dado que o contrato é o espaço mais familiar da bilateralidade, ainda que se tenha a Administração Pública como uma das partes da relação jurídica.

O objetivo do presente artigo é analisar a possibilidade, a importância e a função da celebração do acordo como alternativa à aplicação da penalidade de forma unilateral no bojo das relações jurídicas contratuais celebradas pela Administração. Inicialmente, será feita a análise do surgimento dos acordos substitutivos de ato administrativo unilateral e sua aplicação no Direito brasileiro. Na sequência, será analisada a aplicação destes acordos substitutivos ao Direito Administrativo Sancionador e, mais especificamente, às sanções decorrentes de infrações em contratos administrativos. Para tanto, será importante tratar da finalidade das sanções administrativas e sua compatibilidade com o acordo, bem como a funcionalidade do acordo para a resolução de conflitos na Administração Pública. Ao final, pretende-se discorrer a respeito dos critérios a serem observados na tomada da decisão administrativa entre celebrar o acordo ou aplicar a sanção unilateral.

O surgimento de novas Leis no Direito Administrativo Brasileiro, especialmente a Lei n. 13.655, de 2018, a qual alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4657, de 1942), e a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133, de 2021) apresenta-se como o cenário ideal para que essas discussões sejam desenvolvidas, haja vista que tais leis trouxeram luzes para a aplicação da consensualidade na resolução de conflitos da Administração.

2 OS ACORDOS SUBSTITUTIVOS DE ATOS UNILATERAIS DA ADMINISTRAÇÃO NO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO

A celebração de acordos em substituição a atos administrativos unilaterais tem sido uma das tônicas do Direito Administrativo atual. A atuação unilateral e hierarquizada começa a dar lugar a uma atuação baseada na consensualidade e na contratualização das decisões. Embora ainda se possa observar resistência frente à referida atuação consensual, já se pode notar aumento da atuação acordada da Administração. Conforme destaca Pedro Costa Gonçalves, no período atual, assim entendido após a década de 1970, houve uma grande ampliação da utilização da prática contratual, inclusive no que se refere à contratualização do exercício de poderes públicos. Após enfrentar forte resistência, o contrato passou a ser entendido como instrumento de exercício de poderes públicos (Gonçalves, 2020GONÇALVES, Pedro Costa. Direito dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 2020., p. 104).

Conforme explica Juliana Bonacorsi de Palma, um dos argumentos contrários utilizados para se criticar a atuação consensual da Administração é o princípio da indisponibilidade do interesse público (Palma, 2015PALMA, Juliana Bonacorsi de. Sanção e Acordo na Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2015., p. 174). Todavia, em sentido contrário a este argumento, cabe questionar: afinal, decidir de forma consensual, por meio de acordos, implica dispor de interesse público?

Nesse sentido, sem a pretensão de esgotar as polêmicas que envolvem a existência, ou não, de princípios como os da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, o que se sustenta aqui é que não há incompatibilidade entre a busca pelo interesse público e a celebração de acordos. Na verdade, o interesse público tanto pode ser alcançado por meio do ato administrativo unilateral quanto com a celebração de um acordo com o particular.

Assim, pode-se afirmar que a ação da Administração por meio de acordos administrativos, em substituição ao ato administrativo, não significa, por si só, disposição de interesse público. O exercício contratualizado dos poderes-deveres administrativos é, antes de tudo, uma forma de agir da Administração, não se podendo afirmar que ao agir de forma consensual ela foi omissa ou dispôs de interesse público. Ou seja, quando a Administração exerce seus poderes de forma acordada com o particular, ela continua no exercício dos poderes-deveres administrativos, porém de uma forma não unilateral, não representando ofensa ao princípio da indisponibilidade do interesse público.

Sem embargo das críticas que possam existir, a utilização de métodos consensuais pela Administração no Brasil não é recente, embora tenha se ampliado nos últimos anos. Antes mesmo da Constituição de 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 5 ago. 2023.
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, o ordenamento jurídico brasileiro já admitia a desapropriação consensual. Prevê o Decreto-lei n. 3.365, de 21 de junho de 1941, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-lei n. 9.282, de 1946 (Brasil, 1941BRASIL. Decreto-lei n. 3.365, de 21 de junho de 1941. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3365.htm Acesso em: 30 abr. 2023.
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), em seu art. 10, § 2º, a possibilidade de que a fase executória da desapropriação se faça mediante acordo administrativo entre o órgão expropriante e o particular expropriado, em alternativa à judicialização do procedimento.

No âmbito da Ação Civil Pública, a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, a partir da inclusão pela Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Brasil, 1985BRASIL. Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1985. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7347orig.htm. Acesso em: 30 abr. 2023.
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) estabeleceu a possibilidade de entidades competentes para proposição da ação civil pública substituírem a judicialização pela celebração de termo de ajustamento de conduta às exigências legais, que tem natureza de título executivo extrajudicial.

No âmbito do Direito Administrativo brasileiro não há disposições uniformes a respeito da celebração de acordos substitutivos de ato administrativo. Os métodos de resolução consensual de conflitos surgem inicialmente no direito processual civil e penal e foram incorporados de forma mais lenta ao processo administrativo. Essa letargia na incorporação dos institutos consensuais deveu-se, especialmente, à resistência na aceitação das práticas consensuais no Direito Público, a qual se baseava, sobretudo, nessa suposta violação ao princípio da indisponibilidade do interesse público, conforme já se abordou neste trabalho.

No âmbito das sanções administrativas, o uso de acordos em substituição a atos administrativos unilaterais teve como um de seus precursores o direito regulatório, podendo se destacar os acordos de leniência no âmbito do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), previstos inicialmente na Lei n. 4.137, de 1962 (Brasil, 1962BRASIL. Lei n. 4.137, de 10 de setembro de 1962. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1962. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/1950-1969/L4137.htm. Acesso em: 30 abr. 2023.
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) e, posteriormente, na Lei n. 8.883, de 1994. Atualmente, o assunto é regulado no âmbito do Cade pela Lei n. 12.529, de 30 de novembro de 2011 (Brasil, 2011BRASIL. Lei n. 12.529, de 30 de novembro de 2011. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2011. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9656.htm .Acesso em: 30 abr. 2023.
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), na qual também se prevê, em seu art. 86, o acordo de leniência, exigindo-se do infrator à ordem econômica o oferecimento de provas que colaborem efetivamente para as investigações. Além disso, a nova Lei prevê, em seu art. 85, a celebração de compromisso de cessação com a pessoa que cometa infração à ordem econômica.

No âmbito da Advocacia-Geral da União, a Lei Complementar n. 73, de 10 de fevereiro de 1993 (Brasil, 1993BRASIL. Lei Complementar n. 73, de 10 de fevereiro de 1993. Diário Oficial da União, DF, 1993. Brasília, 1993. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp73.htm. Acesso em: 30 abr. 2023.
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), estabeleceu competência para o Advogado-Geral da União “transigir, acordar e firmar compromisso” em ações judiciais envolvendo a União. Embora nesse caso se trate de acordos judiciais, a Lei n. 9.469, de 10 de julho de 1997 (Brasil, 1997BRASIL. Lei n. 9.469, de 10 de julho de 1997. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9469.htm. Acesso em: 30 abr. 2021.
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), que regulamenta a referida Lei Complementar, prevê, em seu art. 4º - A (incluído pela Lei n. 12.249, de 2010), a possibilidade de a AGU celebrar termo de ajustamento de conduta nas hipóteses que envolvam interesse público da União.

Ainda no âmbito da atividade regulatória, a Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998BRASIL. Lei n. 9.656, de 3 de junho de 1998. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9656.htm. Acesso em: 30 abr. 2023.
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, com as alterações que lhe foram feitas pela Medida Provisória n. 2.177-44, de 2001, regula os planos de seguro privados de assistência à saúde. Ao tratar das infrações a serem apuradas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), também prevê, em seu art. 29, a possibilidade de celebração de termo de compromisso de ajuste de conduta a ser assinado antes da aplicação da penalidade, com a respectiva suspensão do processo administrativo.

No âmbito do Sistema Financeiro Nacional, a Lei n. 13.506, de 13 de novembro de 2017 (Brasil, 2017BRASIL. Lei n. 13.506, de 13 de novembro de 2017. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13506.htm. Acesso em: 17 abr. 2021.
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), estabelece a possibilidade de celebração de “acordo administrativo em processo de supervisão”, o qual equivale ao acordo de leniência. Já A Lei n. 13.506, de 13 de novembro de 2017, por sua vez, também estende, em seu art. 33, a possibilidade do acordo administrativo ao processo administrativo sancionador da Comissão de Valores Mobiliários - CVM (Brasil, 2017BRASIL. Lei n. 13.506, de 13 de novembro de 2017. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13506.htm. Acesso em: 17 abr. 2021.
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).

Na seara do combate à corrução, a Lei n. 12.846, de 2013 trouxe importante inovação ao prever a possibilidade da celebração do chamado acordo de leniência, previsto nos arts. 16 e 17 (Brasil, 2013). Para que tal acordo seja celebrado, o art. 16 exige o preenchimento dos seguintes requisitos: (a) a pessoa jurídica ser a primeira a manifestar o interesse na cooperação; (b) que ela cesse o envolvimento na infração; (c) que ela admita sua participação e coopere com o fornecimento de informações e provas para a investigação.

O referido acordo de leniência adota perspectiva integradora entre a Administração Pública e o particular, visto que busca uma fórmula para que ambos possam ganhar (Daniel, 2022DANIEL, Felipe Alexandre Santa Anna Mucci. O Direito Administrativo Sancionador Aplicado aos Contratos da Administração Pública e os acordos substitutivos de sanção. Curitiba: Editora Ithala, 2022., p. 265). O Estado possui um interesse muito claro em optar pelo acordo: a busca por novas provas e novos fatos que possam ser relevantes para a investigação. Ao mesmo tempo, o particular também é beneficiado, na medida em que há um abrandamento da sua penalidade.

No âmbito do processo administrativo disciplinar dos servidores públicos também surgiram, em alguns estatutos, hipóteses de acordos substitutivos de sanção administrativa. Nesses casos, em situação similar ao que ocorre no âmbito dos processos penais, cria-se instrumento de suspensão condicional do processo administrativo disciplinar e, caso o servidor cumpra com suas obrigações durante o tempo que dura o respectivo acordo, o processo será arquivado ao final. Sobre o instituto, Luciano Ferraz destaca que ele foi implantado de forma pioneira no Município de Belo Horizonte por meio da Lei Municipal n. 9.310, de 2006, a qual alterou o Estatuto dos Servidores Públicos Municipais para inserir a possibilidade de acordo para suspensão do processo administrativo disciplinar. De um lado, o servidor se compromete a cessar e não reiterar a falta cometida. De outro, a Administração se compromete a suspender o processo administrativo disciplinar por um período determinado, entre um e cinco anos. O autor ressalta também que, além do exemplo da cidade de Belo Horizonte, outros Municípios aderiram ao modelo, tais como Betim (MG), Niterói (RJ) e Londrina (PR), além do próprio Estado de Minas Gerais (Ferraz, 2019FERRAZ, Luciano. Controle e consensualidade. Fundamentos para o controle consensual da Administração Pública. (TAG, TAC, SUSPAD, acordos de leniência, acordos substitutivos e instrumentos afins). Belo Horizonte: Fórum, 2019., p. 169-173).

Na seara de responsabilização de agentes públicos, destaca-se a modificação realizada pela Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Brasil, 2019BRASIL. Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/d9830.htm. Acesso em: 5 ago. 2023.
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) e Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021 (Brasil, 2021BRASIL. Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2021. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14230.htm .Acesso em: 30 abr. 2023.
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), que alteraram o art. 17 da Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992BRASIL. Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8429.htm. Acesso em: 5 abr. 2023.
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(Lei de improbidade administrativa), para admitir a possibilidade de acordo em matéria de improbidade administrativa. O texto originário do referido dispositivo vedava a celebração de transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa. A Lei n. 13.964, de 2019 já havia alterado o art. 17, § 1º, passando a admitir o acordo de não persecução cível em matéria de improbidade administrativa. No mesmo sentido, o art. 17, § 10-A passou a prever a possibilidade de as partes solicitarem a suspensão do prazo de contestação quando houver possibilidade de solução consensual.

A Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021 (Brasil, 2021BRASIL. SEGES. Portaria SEGES/ME N. 8.678, de 19 de julho de 2021. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-seges/me-n-8.678-de-19-de-julho-de-2021-332956169. Acesso em: 21 abr. 2023.
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) trouxe alterações mais profundas no texto da Lei de Improbidade Administrativa, modificando quase todo o art. 17. Além da possibilidade já estabelecida no art. 17, § 10-A, foi feita a inclusão do art. 17-B o qual passou a prever a possibilidade de o Ministério Público celebrar acordo de não persecução cível em matéria de improbidade administrativa, desde que o acordo resulte, no mínimo, em ressarcimento integral do dano e reversão da vantagem indevida obtida. Além disso, o art. 17-B, em seu § 4º (incluído pela Lei nº 14.230, de 2021) tornou clara a possibilidade de que o acordo seja celebrado no curso de investigação, de apuração de ilícito, na ação de improbidade ou até mesmo no momento da execução da sentença condenatória. A partir das modificações promovidas pelas referidas leis, passou a ser possível tanto o acordo extrajudicial quanto o acordo judicial em caso de improbidade administrativa.

Merece especial destaque a previsão da Lei n. 13.655, de 2018 (Brasil, 2018BRASIL. Lei n. 13.655, de 25 de abril de 2018. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 2018. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13655.htm. Acesso em: 30 abr. 2023.
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), a qual alterou o Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro - LINDB). A LINDB possui natureza interpretativa e se insere no âmbito da Teoria Geral do Direito, sendo utilizada como referência para interpretação do Direito brasileiro. O papel da Lei n. 13.655, de 2018, foi inserir normas capazes de orientar a interpretação do Direito Público, já que as normas anteriores eram voltadas, em sua maioria, para o Direito Privado.

Dentre as novidades trazidas pelas alterações promovidas pela Lei n. 13.655, de 2018, está a inclusão do art. 26 no referido Decreto-Lei para prever a possibilidade da celebração de compromisso com os interessados com o objetivo de “eliminar incerteza, insegurança jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público”. No mesmo dispositivo, em seu parágrafo único, estão consignados os objetivos do compromisso a ser celebrado, a saber, buscar “solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais”.

De forma complementar, o art. 27 da referida Lei prevê a possibilidade de que a decisão em processo administrativo, judicial ou controlador pode se dar por meio de “compromisso processual entre os envolvidos”, podendo a decisão impor compensações “benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos”.

As alterações promovidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657, de 1942) foram regulamentadas pelo Decreto n. 9.830, de 10 de junho de 2019 (Brasil, 2019). Prevê o decreto regulamentar dois instrumentos jurídicos para a celebração do compromisso de que trata o citado art. 26. Em seu art. 10, estabelece a possibilidade de celebração de “compromisso” com os interessados, o qual tem como objetivo “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situações contenciosas na aplicação do direito público”. O art. 11 do mesmo Decreto regulamentar, por sua vez, traz previsão a respeito da celebração do termo de ajustamento de gestão, que pode ser celebrado entre agentes públicos e órgãos de controle interno com o objetivo de “corrigir falhas apontadas em ações de controle, aprimorar procedimentos, assegurar a continuidade da execução do objeto, sempre que possível, e garantir o atendimento do interesse geral”.

Pode-se compreender que o termo de compromisso de que que trata o art. 26 acima citado é norma geral de interpretação do Direito Público, já que a norma se insere na seara da Teoria Geral do Direito Público, conforme anteriormente explicitado. Neste sentido, a previsão do referido art. 26 da LINDB contém autorização geral para a celebração de acordos substitutivos de ato administrativo unilateral no Direito Administrativo brasileiro. Em posição similar ao que se defende no presente trabalho, destacam-se Thiago Marrara (Di Pietro, 2021DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (org.). Licitações e contratos administrativos: inovações na Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Rio de Janeiro: Forense, 2021., p. 256) e Luciano Ferraz (Ferraz, 2019FERRAZ, Luciano. Controle e consensualidade. Fundamentos para o controle consensual da Administração Pública. (TAG, TAC, SUSPAD, acordos de leniência, acordos substitutivos e instrumentos afins). Belo Horizonte: Fórum, 2019., p. 169).

Não obstante toda a evolução legislativa descrita a respeito da previsão de acordos substitutivos de ato administrativo unilateral, especialmente no âmbito do direito regulatório, do regime disciplinar dos servidores públicos, na esfera de controle da Administração Pública e, mais recentemente, até mesmo no âmbito da improbidade administrativa, no que se refere às sanções em contratos administrativos o assunto ainda é incipiente, exceto quanto aos acordos de leniência decorrentes de prática corruptiva. Buscar-se-á analisar, na sequência, a possibilidade de acordos substitutivos em matéria de sanções administrativas e, em especial, no âmbito das sanções decorrentes de infração em contratos administrativos.

3 ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE ACORDOS EM MATÉRIA DE SANÇÕES ADMINISTRATIVAS

Dentre os argumentos utilizados para negar a possibilidade de celebração de acordos no âmbito de sanções administrativas, um dos principais é o veto ao inciso II do art. 26, § 1º da Lei n. 13.655, de 2021, o qual previa a celebração de acordos em matéria de sanções e créditos relativos ao passado. Na oportunidade, o Poder Executivo, por meio da Mensagem de veto n. 212, de 25 de abril de 2018 (Brasil, 2018BRASIL. Mensagem n. 212, de 25 de abril de 2018, Brasília, DF, 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Msg/VEP/VEP-212.htm. Acesso em: 30 abr. 2023.
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) justificou a decisão com base no princípio da reserva legal, o qual impediria transações em matéria de sanções. Além disso, sustentou-se na mensagem de veto que a substituição da sanção pelo acordo estimularia o não cumprimento delas. Deste modo, se poderia argumentar que o veto aposto pelo Presidente ao dispositivo, que não foi derrubado pelo Congresso, representaria vedação ao acordo em matéria de sanção administrativa.

Entende-se que a sustentação de impossibilidade de celebração de acordos com base no referido veto não se justifica. Primeiramente, não obstante o veto ter impedido a previsão expressa do acordo, não há vedação na Lei para que eles sejam celebrados. O efeito do veto ao dispositivo foi tão somente não trazer a almejada positivação. Ademais, conforme já se sustentou neste trabalho, a cláusula geral do art. 26 serve como autorização legal para que técnicas de consensualidade no âmbito do processo sancionatório sejam devidamente regulamentadas e praticadas.

Além disso, conforme destaca Victor Carvalho Pessoa de Barros e Silva (Silva, 2021SILVA, Victor Carvalho Pessoa de Barros e. Acordos administrativos substitutivos de sanção. Belo Horizonte: Dialética, 2021., p. 50), o dispositivo vetado regulamentaria especificamente sanções relacionadas ao passado, e este foi um dos motivos invocados pelo Presidente da República para vetá-lo. De fato, a previsão de efeito retroativo ao dispositivo, admitindo-se acordos sobre sanções já aplicadas, poderia causar insegurança jurídica na determinação de seu conteúdo, e esse foi o objetivo contemplado pelo veto. Portanto, não se tratou de sanções futuras.

Gabriel Machado também sustenta que o veto não gera a proibição do acordo de forma reflexa (Machado, 2021MACHADO, Gabriel. Acordos Administrativos: uma leitura a partir do art. 26 da LINDB. São Paulo: Almedina, 2021., p. 74). Para o autor, o inciso II do art. 26 era redundante, visto que o caput do dispositivo já trazia autorização genérica e aberta para celebração de acordos substitutivos de atos administrativos. Há extenso campo de aplicação do dispositivo e sua restrição somente deverá existir nas hipóteses de legislação específica aplicável, conforme reza a parte final do caput do art. 26.

Outro argumento apresentado pela Presidência da República ao vetar o dispositivo foi de que a autorização do acordo representaria estímulo para o descumprimento de obrigações sancionáveis. Todavia, o argumento é desprovido de qualquer critério técnico ou científico e a celebração de acordo substitutivo é compatível com a natureza da sanção e pode, inclusive, colaborar para o aumento de eficiência na Administração.

O estudo mais detalhado da finalidade da sanção indica sua compatibilidade com a celebração de acordos em lugar do ato sancionatório unilateral. A finalidade da sanção no Direito Administrativo tem peculiaridades que a diferenciam das finalidades da sanção penal. No âmbito do Direito Penal, a sanção possui finalidade muito mais retributiva, no sentido de castigar o malfeito. Já no caso da sanção administrativa é possível detectar também sua natureza dissuasória, ou seja, a característica de demover o possível infrator da prática da respectiva infração. Para Alejandro Nieto (Nieto, 2018NIETO, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. Madri: Tecnos, 2018. p. 148., p. 148), o que se busca evitar com a sanção administrativa não é o resultado lesivo concreto para o bem jurídico protegido da infração, mas a própria utilização dos meios que possa resultar nesta lesão. Ou seja: o que se busca prevenir com o Direito Administrativo Sancionador não é apenas o resultado, mas a utilização dos meios para produzir esse resultado.

Alice Voronoff, em obra dedicada ao tema, aponta duas teorias básicas que justificam a existência da sanção: a dissuasória e a retributiva. A teoria dissuasória, com ideias alinhadas, especialmente, à Escola de Chicago, parte do pressuposto de que o infrator faz avaliação de custo-benefício para cometer o ato ilícito. Desse modo, a sanção teria o objetivo de tornar o ato ilegal desinteressante (Voronoff, 2019, p. 84). Quanto à teoria retributiva, que encontra respaldo em Kant e Hegel, a autora aponta a natureza de castigo da sanção para quem agrediu o ordenamento jurídico. Assim, a punição se justificaria não para evitar comportamentos futuros, mas para castigar o infrator por desvio ético-moral. Assim, são levados em conta, na aplicação da sanção, a gravidade da conduta e a proporcionalidade na aplicação da pena (Voronoff, 2019VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum , 2019., p. 89-90).

Defende-se, pois, que a sanção administrativa tem natureza instrumental, ou seja, não se trata de um fim em si mesma, pois está voltada para colaborar com a melhoria da gestão administrativa. Além disso, a sanção tem como finalidade a prevenção dos riscos inerentes à sociedade. Ou seja, a finalidade preventiva da sanção administrativa não se volta propriamente para tentar evitar o dano, mas, sobretudo, para se evitar o risco do dano.

Além dessa natureza preventiva, defende-se, ainda, a finalidade prospectiva da sanção. Essa finalidade vai ao encontro da função regulatória da sanção administrativa. Trata-se, pois, de medida regulatória que tem como objetivo evitar a reincidência, tanto por parte do apenado quanto dos demais particulares. Nesse sentido, e não sendo um fim em si mesma, a sanção também não é a única alternativa como resposta à infração administrativa. Podem e devem existir outras medidas que atendam igualmente ao interesse público e que devem ser colocadas à disposição da gestão administrativa, em especial o acordo substitutivo de sanção.

Neste sentido da natureza regulatória da sanção, pode-se destacar a teoria da regulação responsiva, defendida especialmente por Ian Ayres e John Braithwaite, em sua obra “Responsive regulation: transcending the deregulation debate” (Ayres; Braithwaite, 1992AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive regulation: transcending the deregulation debate. New York: Oxford University Press, 1992, p. 22-27. Apud DELGADO, Pablo Soto. Determinación de sanciones administrativas: disuasión óptima y confinamiento de ladiscrecionalidaddel regulador ambiental. In: Anuario de Derecho Publico de la Universidad Diego Portales, p. 374-4007, 2016. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6387208. Acesso em: 3 abr. 2023.
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, p. 22-27). Os autores apresentam crítica à tese da regulação dissuasória (baseada na sanção) por considerarem que nem todos os atores são movidos pelas mesmas motivações. Enquanto alguns agem conforme a racionalidade, visando a maximização de seus benefícios, outros objetivam a reputação, a responsabilidade social, o apego às normas, entre outros valores.

Em oposição à regulação dissuasiva apresenta-se a regulação persuasiva (baseada no incentivo e no estímulo), que tem como ênfase a cooperação e a conciliação de interesses em detrimento da coerção, estando associada ao controle preventivo. A proposta desse modelo persuasivo é dar cumprimento à regulação mediante o acordo entre o regulador e o regulado.

Conforme defende Alice Voronoff, a teoria da regulação responsiva sustenta que a punição como única resposta ao desvio de conduta (regulação dissuasória) acaba por desconsiderar a boa-fé dos agentes responsáveis. Reconhece-se que há dois tipos de pessoas/empresas reguladas. De um lado, alguns agentes econômicos, ao agir no cumprimento ou descumprimento da lei, o fazem de forma racional e a partir de cálculos econômicos, descumprindo propositalmente a norma quando isso se mostra economicamente mais interessante. De outro lado, há aqueles agentes que vão cumprir a lei porque consideram isso como um valor e uma responsabilidade social relevante. Se ambos forem tratados da mesma forma, tendo a punição como primeira ou única alternativa de resposta, os cidadãos cumpridores da norma e que, por descuido, podem tê-la infringido, terão resistência similar à sanção que aqueles que já possuem o perfil de descumprimento da lei. Portanto, a regulação responsiva busca oferecer mecanismos de persuasão, com o objetivo de criar incentivos ao cumprimento da norma e, ainda, quando ela for descumprida, mecanismos de consensualidade que possam distinguir os agentes bem-intencionados dos que estão imbuídos de má-fé (Voronoff, 2019VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum , 2019., p. 135).

Neste sentido, explicam Aires e Braithwaite:

Rejeitar a punição como ferramenta regulatória é ingênuo; estar completamente comprometido com ela é investir forças no lugar errado. O truque do sucesso na regulação é criar sinergia entre punição e persuasão. A punição aplicada estrategicamente reforça a regulação por meio de persuasão, e há algo ainda a destacar. A persuasão legitima a punição como razoável, justa, e mesmo algo que possa provocar remorso ou arrependimento (Ayres; Braithwaite, 1992AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive regulation: transcending the deregulation debate. New York: Oxford University Press, 1992, p. 22-27. Apud DELGADO, Pablo Soto. Determinación de sanciones administrativas: disuasión óptima y confinamiento de ladiscrecionalidaddel regulador ambiental. In: Anuario de Derecho Publico de la Universidad Diego Portales, p. 374-4007, 2016. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6387208. Acesso em: 3 abr. 2023.
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, p. 26-17 apudVoronoff, 2019VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum , 2019., p. 141).

Assim, os autores propõem que os modelos sancionatórios sejam formados a partir de pirâmides. Na base ficariam as medidas persuasivas, que vão se tornando mais severas quando se aproximam do vértice. Ou seja: o ideal é que a maior parte das medidas esteja na base, evoluindo-se para instrumentos intermediários ou mais severos nas hipóteses em que as mais brandas não surtirem efeito (Voronoff, 2019VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum , 2019., p. 143).

Nesse sentido, é necessário que haja um “cardápio” diversificado e flexível de respostas do regulador”, regido por uma dose de discricionariedade, para que haja a possibilidade de negociação e de barganha. Dessa forma, torna-se possível alcançar resultados mais eficientes (Voronoff, 2019VORONOFF, Alice. Direito Administrativo Sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum , 2019., p. 145).

Para os fins do presente trabalho, as teses que giram em torno da regulação responsiva reforçam que a sanção não deve ser nem a única e nem a primeira resposta da Administração diante do descumprimento de deveres legais ou contratuais. O modelo da pirâmide sancionatória coloca na base de atuação do Direito Administrativo Sancionador medidas persuasivas e preventivas, que devem ter preferência em detrimento das que estão no topo da pirâmide (medidas punitivas). Na base da pirâmide e como medidas prioritárias a serem aplicadas pela Administração, devem estar as respostas que se baseiam na consensualidade, especialmente os acordos substitutivos de sanção. O que deve motivar a mudança de patamar no corpo da pirâmide é o comportamento do agente regulado/empresa contratada ou a gravidade da conduta.

No mesmo sentido, a finalidade das sanções decorrentes de infrações contratuais coaduna-se com a finalidade das sanções administrativas em geral, visto que elas buscam exatamente inibir a ocorrência de infrações contratuais. No caso das sanções contratuais, ainda há outro componente importante, visto que o órgão aplicador da sanção administrativa é também o gestor do contrato. Ou seja: o mesmo órgão que detém o poder sancionador é, também, aquele que tem o dever de gerir o contrato e fazer com que os objetivos almejados com aquele instrumento sejam alcançados em prol do interesse público. Portanto, a primeira alternativa da Administração não deve ser usada por esse órgão para perturbar a execução contratual, o que pode trazer para a Administração danos ainda maiores com a aplicação de penalidades severas ou até a interrupção prematura do contrato administrativo. Por tudo isso é que o manejo das sanções administrativas não pode se dar de forma desprendida do resultado que se busca alcançar, que é a boa execução contratual.

Nesse sentido, é necessário reconhecer que, além da sua finalidade preventiva e dissuasória, a aplicação da sanção administrativa decorrente de infração contratual é, também, uma atividade de gestão da Administração. A decisão de sancionar o contratado e/ou rescindi-lo tem repercussões práticas sérias para a Administração, já que, muitas vezes, pode representar a suspensão da prestação de um serviço, a paralisação de uma obra ou a suspensão, por um período, de um fornecimento, o que pode trazer prejuízos para o interesse público. Pode a Administração ter que contratar uma nova empresa e, a depender da urgência, até mesmo sem licitação. A nova contratação pode ocasionar custos mais elevados e interrupção momentânea da prestação de serviços necessários à população. É claro que sempre haverá a possibilidade de indenização por parte da empresa, mas o prejuízo ao interesse público também existirá. Portanto, diferentemente de outras sanções administrativas, a sanção contratual tem inegável natureza de atividade de gestão.

Por fim, importante ressaltar que não se defende aqui a eliminação da sanção administrativa, a qual continua sendo resposta adequada para comportamentos inidôneos perante a Administração. Porém, ao lado dela, a Administração deve ter à sua disposição outros instrumentos que possam induzir o particular ao cumprimento de normas e cláusulas contratuais nas hipóteses em que se mostre aberto à cooperação.

4 REGIME JURÍDICO SANCIONATÓRIO NA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS NO BRASIL E AS ALTERNATIVAS À SANÇÃO

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133, de 01 de abri de 2021) trouxe diversas inovações no que se refere ao regime sancionatório. A primeira delas foi a tipificação das condutas consideradas infrações administrativas no seu art. 155. Sabe-se que o princípio da tipicidade não tem aplicação no Direito Administrativo tal qual no Direito Penal (Daniel, 2022DANIEL, Felipe Alexandre Santa Anna Mucci. O Direito Administrativo Sancionador Aplicado aos Contratos da Administração Pública e os acordos substitutivos de sanção. Curitiba: Editora Ithala, 2022., p. 166-167). Todavia, é importante destacar que a tipificação mínima voltada a balizar o intérprete é viável e necessária, com o objetivo de se garantir o maior grau de segurança jurídica possível. Portanto, a criação de um rol de infrações atrelada a determinadas penalidades é um notável avanço em matéria de segurança jurídica no processo administrativo sancionador da Lei n. 14.133, de 2021.

Além desta importante inovação, a Nova Lei de Licitações e Contratos também trouxe critérios a serem observados pela Administração na dosimetria da penalidade, o que não existia na Lei n. 8.666, de 1993. O art. 156, § 1º, estabelece que essa dosimetria deve levar em conta cinco critérios: (1º) natureza e gravidade da infração; (2º) peculiaridades do caso concreto; (3º) circunstâncias agravantes e atenuantes; (4º) danos decorrentes da infração para a Administração e (5º) a existência de programa de integridade. Trata-se de previsão que deve ser observada pelo intérprete no momento da aplicação da penalidade, sendo, portanto, uma inovação positiva.

Quanto ao elenco das penalidades, houve uma melhor sistematização no art. 156 das 4 penalidades cabíveis: advertência, multa, impedimento de licitar e contratar com a Administração por até 3 anos e declaração de inidoneidade para licitar e contratar com a Administração de 3 a 6 anos. A nova sistematização coloca fim a algumas controvérsias a respeito do regime sancionatório previsto na Lei n. 8.666, de 1993, especialmente o âmbito de aplicação de cada uma das penalidades (visto que no art. 156, §§ 3º e 4º da Nova Lei está definido que o impedimento se aplica no âmbito do respectivo ente federado que aplicou a penalidade e a declaração de inidoneidade se estende a todos os demais), bem como o prazo de duração da penalidade da penalidade de declaração de inidoneidade.

Para além dos avanços relacionados ao regime sancionatório, é possível detectar que houve também outras inovações importantes no que se refere às soluções alternativas de solução de controvérsia no âmbito dos contratos administrativos regulados pela Lei nº 14.133, de 2021. No art. 151 a Lei trouxe a possibilidade de utilização de meios alternativos de soluções de controvérsias nas contratações por ela regidas, e citou como exemplos a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.

A possibilidade de acordo em matéria de sanções administrativas decorrentes de infrações contratuais já existia no âmbito da Lei anticorrupção empresarial (Lei n. 12.846, de 2013), conforme já se explicitou aqui. Todavia, há controvérsia se esse acordo de leniência poderia se estender para os casos de sanções administrativas contratuais em que não se detecta a prática de corrupção.

A discussão está relacionada à previsão do art. 17 da Lei n. 12.846, de 2013, o qual estabelece que as sanções previstas nos arts. 86 a 88 da Lei n. 8.666, de 1993, também poderão ser objeto de isenção ou atenuação por meio de acordo de leniência (Brasil, 2013BRASIL. Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm. Acesso em: 2 abr. 2023.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Obviamente que, com a entrada em vigor da Lei nº 14.133, de 2021, o referido dispositivo deve ser lido como aplicável às penalidades previstas no art. 156 da nova Lei, nas mesmas hipóteses em que anteriormente se aplicava aos dispositivos correspondentes da Lei nº 8.666, de 1993. A dúvida que surge, a partir dessa previsão, é se o art. 17 tem natureza autônoma ou se seria dependente do art. 16. Ou seja: poderia um descumprimento contratual que não se caracterize como corrupção ser objeto de acordo de leniência?

Em estudo dedicado ao tema Cristiana FortiniFORTINI, Cristiana. Comentários ao art. 17. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 233-241. pontifica que o art. 17 não dá origem a um ajuste diferente daquele previsto no art. 16, mas apenas admite o alargamento dos efeitos para atingir as sanções previstas nos arts. 86 a 88 da Lei n. 8.666, de 1993, nos casos em que o descumprimento do contrato público tenha concorrido com a prática corruptiva (Di Pietro, 2017DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (org.). Licitações e contratos administrativos: inovações na Lei 14.133, de 1º de abril de 2021. Rio de Janeiro: Forense, 2021., p. 233-241).

Independentemente da intepretação que se dê ao art. 17 da Lei anticorrupção empresarial, o que se questiona aqui é a interpretação restritiva quanto à possibilidade de acordo em matéria de sanções administrativas contratuais. A positivação pela Lei n. 12.846, de 2013, da possibilidade de acordos em matéria de sanções aplicáveis no âmbito de condutas ligadas à prática de corrupção, faz surgir uma constatação: se é possível que se negociem sanções diante de condutas dessa gravidade, envolvendo práticas corruptivas, é adequado que se permita a negociação também para condutas menos graves, em que não se detecta prática corruptiva.

Defende-se a autorização geral para contratualização da sanção, não em decorrência de interpretação extensiva do art. 16 da Lei n. 12.846, de 2013, mas especialmente em razão da positivação do acordo em outros instrumentos normativos, especialmente a previsão da possibilidade de solução de controvérsias do art. 151 da Nova Lei de Licitações e Contratos quanto da previsão do art. 26 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro que, tal como já se defendeu no presente trabalho, tem caráter de norma geral de interpretação jurídica para o Direito Público.

No caput do art. 151 da Lei nº 14.133, de 2021 há previsão genérica para os meios alternativos de solução de controvérsia, estabelecendo de forma exemplificativa, pois utiliza a expressão “notadamente”, os institutos da conciliação, mediação, comitê de resolução de disputas e a arbitragem. Ou seja, não houve limitação de hipóteses de solução alternativa de controvérsias, podendo ser estabelecidas outras com esse objetivo de solução consensual dos conflitos.

Quanto ao âmbito de incidência desses meios alternativos, no seu parágrafo único a Lei limita a utilização dos respectivos termos às hipóteses de “direitos patrimoniais disponíveis”, citando como exemplo “as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.” (Brasil, 2021BRASIL. Lei nº 14.133, de 01 de abril de 2021. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14133.htm. Acesso em: 5 ago. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_A...
).

Veja-se que houve previsão específica para que o inadimplemento de obrigações contratuais e as indenizações decorrentes de contratos administrativos sejam tratados em instrumentos alternativos de resolução de controvérsias. Dessa forma, a Lei correlacionou as controvérsias oriundas de inadimplemento contratual com o conceito de direitos patrimoniais disponíveis.

Assim, seguindo-se os ensinamentos de Onofre Alves Batista Júnior (Batista Júnior, 2007BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Transações Administrativas: Um contributo ao estudo do contrato administrativo como mecanismo de prevenção e terminação de litígios e como alternativa à atuação administrativa autoritária, no contexto de uma Administração Pública mais democrática. São Paulo: Quartier Latim, 2007., p. 512) para que se possa celebrar transação no âmbito do Direito Público é necessário que o bem ou direito seja disponível ou que haja autorização legal para tanto. Neste caso, a Lei classificou a ocorrência de inadimplemento de obrigações contratuais no rol exemplificativo das questões que se relacionam a direitos patrimoniais disponíveis.

Dito isso, com a previsão do parágrafo único do citado dispositivo, ficaram solucionadas as duas questões principais em torno da possibilidade da celebração de acordos substitutivos de sanção em contratos administrativos. A primeira é quanto à possibilidade de se tratar a sanção por meio de outros instrumentos que não seja o ato administrativo unilateral, o que, pelo teor do citado dispositivo, fica claro que sim. Ora, quando se admite que infrações contratuais sejam resolvidas por meio de instrumentos alternativos ao ato administrativo, por via de consequência também se está tratando a consequência jurídica que dela advém, ou seja, a sanção. Não se pode imaginar que a Lei permitiria tratar a causa (infração contratual) e não a sua consequência (penalidade) por meios alternativos ao ato administrativo unilateral.

Já a segunda questão diz respeito ao instrumento que poderá substituir o ato administrativo unilateral. A Lei deixa claro que é possível se utilizar a arbitragem, a mediação, a conciliação e as câmaras de arbitragem, mas sem se limitar a eles. Pela interpretação sistemática da legislação, reconhece-se a possibilidade da celebração de acordos substitutivos de sanção administrativa no âmbito dos contratos administrativos, denominados pela Lei n. 13.655, de 2018, como termos de compromisso.

Desse modo, a possibilidade de celebração do acordo substitutivo de sanção administrativa em contratos administrativos está demonstrada tanto do ponto de vista da substância (aplicabilidade à sanção administrativa) quanto do ponto de vista do meio a ser empregado (acordo substitutivo).

5 CRITÉRIOS PARA A DECISÃO ADMINISTRATIVA: ENTRE A SANÇÃO UNILATERAL E O ACORDO

A partir do reconhecimento de que é possível a celebração do acordo em substituição à sanção unilateral em matéria de contratos administrativos, a dúvida que permanece é quando decidir por um ou por outro. Afinal, conforme já se ressaltou em outras passagens do presente trabalho, não se defende aqui a extinção do instituto da sanção unilateral, mas sim que esta não seja a única opção à disposição do gestor público. Considerando-se que a escolha entre aplicar a sanção de forma unilateral ou substituí-la por um instrumento consensual é discricionária, quais são os critérios que devem balizar a decisão da Administração? Por se tratar de uma decisão discricionária, seja qual for a decisão, ela deverá ser devidamente motivada, ainda mais quando houver interesse e solicitação do particular pela celebração de um acordo substitutivo.

Importante destacar que este acordo não tem a mesma motivação do acordo de leniência da Lei anticorrupção empresarial. No acordo de leniência, há um objetivo muito claro no abrandamento da sanção: o oferecimento de novas provas que colaborem para o resultado da investigação em curso. Nas sanções que não envolvem prática corruptiva não há essa “moeda de troca”. Portanto, os motivos que inspirarão a tomada de decisão da administração na escolha de uma alternativa diferente da sanção unilateral são outros.

O primeiro critério balizador da decisão da Administração deve ser a busca pelo atingimento do princípio constitucional da eficiência. Ainda em relação ao aspecto pragmático do acordo e sua ligação com a ideia de eficiência, destaca-se que os contratos administrativos são instrumentos de gestão administrativa e, como tais, necessitam apresentar resultados para a sociedade. Diante da prática de uma infração, sendo a aplicação da penalidade um caminho único a ser percorrido pela Administração, é possível que ela inviabilize a continuidade da contratação, uma vez que pode redundar, inclusive, na rescisão do contrato. Essa decisão, portanto, tem impacto significativo na gestão da Administração, com consequências de paralisação de obras ou interrupção na prestação de serviços públicos, convocação de outras empresas para continuidade na prestação dos serviços, dentre outras consequências. Desse modo, admitir a existência de alternativas ao ato administrativo unilateral de aplicação de sanções e, inclusive, sua preferência em relação à unilateralidade é medida que tem pertinência com a governança púbica.

No âmbito das contratações públicas, a Lei n. 14.133, de 2021, estabelece também, em seu art. 11, parágrafo único, que a governança das contratações públicas, a ser exercida pela alta administração dos órgãos públicos, deverá “promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações”. Para regulamentar a governança nas contratações públicas, foi publicada, pelo Governo Federal, a Portaria SEGES/ME n. 8.678, de 19 de julho de 2021, que estabelece, em seu art. 17, as diretrizes para a gestão dos contratos administrativos, tendo previsto, no inciso IV, a obrigatoriedade de se modelar o processo sancionatório em contratos administrativos para se estabelecer critérios objetivos e isonômicos na dosimetria das penas, em consonância com o que prevê o art. 156, § 1º da Lei n. 14.133, de 1º de abril de 2021 (Brasil, SEGES, 2021BRASIL. SEGES. Portaria SEGES/ME N. 8.678, de 19 de julho de 2021. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-seges/me-n-8.678-de-19-de-julho-de-2021-332956169. Acesso em: 21 abr. 2023.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
).

Toda a regulamentação citada demonstra a preocupação existente do legislador e dos regulamentos administrativos com a gestão dos contratos administrativos e a integração da sanção com essa atividade. A boa gestão dos contratos administrativos também implica na garantia de segurança aos particulares contratados quanto às possíveis consequências que poderão advir da prática de infrações administrativas e na existência de mecanismos, à disposição das partes, para mediar as consequências dessas infrações, sob pena de inviabilização da continuidade do vínculo.

Certamente que diante da ocorrência de algumas infrações o caminho pode e deve ser o fim do vínculo com aplicação de penalidades severas. Assim, o que está aqui a defender não é a extinção do caminho da sanção unilateral e a rescisão do contrato, mas apenas que ele não seja o único e, nem mesmo, o primeiro, nos termos em que se sustentou a respeito da regulação responsiva e da estruturação piramidal da aplicação de sanções.

Embora se reconheça que na aplicação da sanção administrativa há discricionariedade da Administração para escolher entre acordo ou ato administrativo unilateral, defende-se aqui, com base no princípio constitucional da eficiência, que o acordo tem preferência em relação à sanção e que seu afastamento, se ocorrer, deve ser feito de forma motivada, estando tal decisão sujeita a controle pelo Poder Judiciário.

Com efeito, dizer que o acordo é preferencial em relação à sanção não significa que a via do acordo substitutivo sempre será a mais adequada ou eficiente. Entretanto, ela é a via preferencial e, para afastá-la, deve o administrador motivar sua decisão. Ao analisar o caso concreto, na hipótese de se detectar que há razões suficientes, amparadas no ordenamento jurídico, que indicam que o acordo é a via mais eficiente que a sanção, poderá a celebração do acordo se tornar medida vinculada e, assim, a decisão em sentido contrário poderá ficar sujeita a anulação por parte do Poder Judiciário.

Outro critério que deve ser utilizado na tomada de decisão da Administração é a proporcionalidade, avaliando-se a compatibilidade entre o acordo e a gravidade da infração. Nesse sentido, a decisão em optar pelo acordo em detrimento da sanção também deverá avaliar se, em resposta à infração, é mais adequado aplicar a sanção ou se é possível substituí-la pelo acordo. A propósito, o art. 20, parágrafo único do Decreto-Lei n. 4.657, de 1942 (alterado pela Lei n. 13.655, de 2021) estabelece que a Administração deverá decidir de forma motivada, hipótese em que deve demonstrar a “necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”. Trata-se, pois, da aplicação do princípio da proporcionalidade.

Na esteira do que prevê a referida Lei, o art. 156, § 1º da Lei n.14.133, de 2021, trouxe como critérios a serem observados na aplicação das sanções administrativas a natureza e a gravidade da infração cometida, as peculiaridades do caso concreto, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os danos que dela provierem para a Administração Pública. Com isso, a Lei nada mais fez que regulamentar o princípio da proporcionalidade na aplicação das sanções administrativas.

A compatibilidade entre o meio (acordo) e o fim visado pela Administração (a função dissuasória e preventiva da sanção) devem ser o objetivo da decisão entre aplicar a sanção ou celebrar o acordo. Caso se chegue à conclusão de que a Administração consegue alcançar a finalidade da sanção de forma mais efetiva por meio do acordo, ele terá preferência; ao mesmo tempo, caso se perceba que a finalidade é igualmente alcançada seja pela sanção seja pelo acordo, ainda assim o acordo terá preferência. O acordo somente deverá ser afastado quando, do ponto de vista da proporcionalidade, ele não representar resposta adequada em função da gravidade da conduta praticada pelo particular.

O terceiro critério que deve ser observado pela Administração na escolha entre a sanção aplicada de forma unilateral e o acordo é a existência de precedentes administrativos, os quais funcionam como auto vinculação da Administração. Por atenção ao princípio constitucional da isonomia, segurança jurídica e proteção à confiança legítima, é necessário reconhecer que os precedentes administrativos devem ser utilizados como parâmetros vinculantes da decisão administrativa. Na verdade, ao decidir, com alguma frequência, sobre um determinado assunto, a Administração cria um costume, uma experiência, uma práxis, que geram para o particular uma expectativa quanto ao seu comportamento diante de determinadas circunstâncias. Desse modo, esse comportamento esperado somente pode ser afastado mediante a existência de motivação suficiente.

Por fim, deverá ser observada na decisão da Administração a necessidade de manutenção do pacto celebrado. Um dos efeitos colaterais da infração administrativa é o seu impacto na manutenção do vínculo entre a empresa contratada e a Administração. Sabe-se que a escolha de uma empresa para celebrar contrato com o poder público depende de processo licitatório que é, invariavelmente, moroso e burocrático. Entre decidir adquirir um bem material, contratar uma obra, a prestação de um serviço ou a realização de um serviço público há longo caminho a ser percorrido, desde a fase interna de planejamento da licitação, passando pela fase externa e assinatura do contrato.

Não bastasse todas as dificuldades inerentes a esse processo de contratação, ocorre que em determinadas circunstâncias a empresa não cumpre o pactuado ou cumpre de forma insatisfatória, gerando a abertura de processo administrativo sancionatório, que poderá redundar em sanções e rescisão do contrato. Se esse último efeito se concretizar, resta à Administração tomar as providências para: (1) licitar novamente; (2) convocar os demais colocados na licitação para assumirem o remanescente não executado pela empresa vencedora ou (3) contratar empresa diretamente sem licitação com fundamento em situação emergencial, desde que se trate de serviço essencial.

Neste sentido, a própria Lei n. 14.133, de 2021 trouxe a indicação de que a regra geral é a manutenção dos contratos administrativos e não a sua anulação ou rescisão. É que o art. 147 da Lei determina que mesmo diante de ilegalidade insanável e desde que haja justificativa é possível e necessário se manter o vínculo contratual, quando as circunstâncias práticas o exigirem. Se até mesmo diante de vício insanável é possível se falar em manutenção do contrato, com mais razão na hipótese em que se busca evitar a rescisão do contrato por descumprimento contratual, quando a natureza do descumprimento for compatível com a manutenção do pactuado.

Assim, ao decidir no caso concreto se aplica a sanção de forma unilateral ou opta pelo acordo, a Administração deve observar que há fundamentos legais que indicam a manutenção dos pactos administrativos. A rescisão unilateral e aplicação de sanções é, muitas vezes, necessária para se proteger o interesse público contra uma empresa-contratada que pode causar prejuízos à Administração ou aos cidadãos com a má prestação dos serviços. Porém, esse não deve ser o único e, nem mesmo, o primeiro caminho a ser observado pela Administração. Em virtude de todas as dificuldades inerentes à extinção prematura do vínculo contratual em um contrato necessário para a Administração, a manutenção do pacto deve ser a primeira alternativa buscada pela Administração.

Por tudo que aqui se expôs, a celebração do acordo, em substituição à sanção, sempre que possível, colabora de forma mais adequada com a manutenção do contrato do que a aplicação unilateral da sanção, haja vista que prestigia, de forma mais efetiva, a pacificação do conflito gerado no âmbito contratual.

6 CONCLUSÃO

A gestão dos contratos administrativos convive, frequentemente, com a prática de infrações contratuais pelos particulares contratados e diversos problemas têm sido gerados em decorrência destas falhas cometidas. O presente trabalho teve como objetivo demonstrar que a sanção unilateral não é e nem deve ser a única alternativa à disposição da Administração para responder a essas infrações praticadas pelos contratados. É preciso que haja alternativa que possa viabilizar que em situações de menor complexidade ou menor potencial ofensivo ao interesse público, a decisão possa ser pela celebração de acordo substitutivo de sanção unilateral.

Conforme se defendeu aqui, o problema não é mais de autorização legislativa. Tanto a Lei n. 13.655, de 2021, com as alterações que promoveu no Decreto-lei n. 4.657, de 1942, quanto a Lei n. 14.133, de 2021, já respaldam a celebração de acordos substitutivos de sanções unilaterais. O problema agora parece ser cultural. É preciso que a Administração se desarme e compreenda que a aplicação da sanção unilateral não é o único caminho possível e que, muitas vezes, não é o adequado do ponto de vista jurídico e para a gestão administrativa.

Os quatro critérios aqui propostos, embora não exaustivos, são balizas que podem e devem ser utilizadas pela Administração no momento da decisão entre aplicar a sanção ou celebrar o acordo administrativo. A eficiência, a proporcionalidade, o respeito aos precedentes e a necessidade de manutenção dos pactos são critérios que levam em conta o caráter pragmático da decisão administrativa. Conforme se observa de forma clara no art. 20 da LINDB, não se deve decidir sem considerar as consequências práticas da decisão.

A reação automática de aplicação de sanção administrativa unilateral frente a infrações contratuais não colabora com a boa gestão contratual e gera resultados que já são velhos conhecidos da Administração: obras e serviços paralisados, perda de recursos públicos e má qualidade das entregas para a população. Portanto, o acordo substitutivo de sanção unilateral surge como alternativa para colaborar na gestão dos contratos administrativos nas hipóteses em que houver descumprimento de cláusulas contratuais. A alternativa do acordo deve estar na base da pirâmide das decisões possíveis, sendo a primeira a ser buscada pela Administração no deslinde da controvérsia. Somente quando comprovadamente não se mostrar adequada é que deverá se valer dos instrumentos unilaterais de aplicação de sanção.

O contrato, como ambiente natural da bilateralidade, é o espaço adequado para que as práticas consensuais sejam a regra e a unilateralidade a exceção. Portanto, a aplicação dos acordos substitutivos de sanção deve se transformar na regra e ser vista como instrumento que colabora para a boa gestão dos contratos administrativos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2023
  • Aceito
    03 Jul 2023
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