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Tipos de governança criminal: Estudo comparativo a partir dos casos da Maré

RESUMO

O estudo analisa algumas modalidades de governança criminal, partindo da comparação entre as distintas configurações do poder local que se encontram em favelas da Maré, no Rio de Janeiro. Busca-se ultrapassar os limites do território originalmente focalizado na pesquisa “Impactos sociais da exposição à violência armada na Maré”, agregando informações disponíveis sobre o universo popular fluminense. Nossa intenção é propor algumas hipóteses interpretativas que dialoguem com as tradições dos estudos sobre poder e desigualdades na sociedade brasileira.

Palavras-chave:
governança criminal; grupos criminosos armados; milícias; tráfico de drogas; impactos sociais da violência armada nas favelas

ABSTRACT

This study analyzes some of the modalities of criminal governance by means of a comparison between the different configurations of local power found in the favelas in the region of Maré, in the municipality of Rio de Janeiro. The aim is to go beyond the limits of the territory originally considered in the study “Social Impacts of Exposure to Armed Violence in Maré” by adding to it the available information about the popular universe of Rio de Janeiro state. Our intention is to propose some interpretative hypotheses that engage in dialog with the traditions of studies on power and inequalities in Brazilian society.

Keywords:
criminal governance; armed criminal groups; milícias; drug trafficking; social impacts of armed violence in favelas

Introdução

Apartir da pesquisa “Construindo Pontes: Impactos sociais da exposição à violência armada na Maré”1 1 Coordenada por Paul Heritage e Eliana Sousa Silva, a pesquisa “Construindo Pontes”, da qual participaram os autores deste artigo, foi realizada por: People’s Palace Projects, Redes da Maré, Queen Mary University of London, Escola de Serviço Social (ESS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto de Psiquiatria da UFRJ e Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com apoio do Economic and Social Research Council e do Arts and Humanities Research Council do Reino Unido, por meio do programa Global Challenges Fund e do Arts Council da Inglaterra. Registro: ES/S000720/1. Disponível (on-line) em: https://gtr.ukri.org/projects?ref=ES%2FS000720%2F1 , realizada por meio de surveys, grupos focais e entrevistas abertas no conjunto de favelas da Maré entre 2018 e 2021, examinamos as formas pelas quais diferentes grupos armados, traficantes e milicianos, exercem poder sobre o território e a população. Buscamos enriquecer a análise, agregando informações provenientes de outras fontes, relativas a outras áreas.

Conforme dados2 2 Disponível (on-line) em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101717 fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que em 2019 havia no Brasil 13.151 favelas, que contabilizavam 5.127.747 domicílios (IBGE, 2020). Especificamente na cidade do Rio de Janeiro, a estimativa é de que havia 453.571 domicílios ocupados em favelas, representando 19,3% em relação ao total de domicílios ocupados (Ibid.).

A Maré é uma unidade territorial administrativa da cidade do Rio de Janeiro que ocupa uma área de quase 6 km2 e abrange 16 favelas3 3 São elas: Baixa do Sapateiro, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Conjunto Pinheiros, Marcílio Dias, Morro do Timbau, Nova Holanda, Nova Maré, Novo Pinheiro (popularmente chamado Salsa e Merengue), Parque Maré, Parque Roquete Pinto, Parque Rubens Vaz, Parque União, Praia de Ramos, Vila do João, Vila dos Pinheiros e Conjunto Esperança. , configurando-se como o maior conglomerado popular da capital fluminense. Localizada à margem da Baía de Guanabara e sendo atravessada por importantes vias expressas (Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela), a região recebeu esse nome por conta dos mangues e das praias que dominavam a paisagem durante o início de sua ocupação, ainda no período colonial. Naquela época, o local exercia importante papel econômico devido aos portos Inhaúma e Maria Angu, por onde se escoava a produção das fazendas locais, e à presença dos mangues, que alimentavam os engenhos de cana-de-açúcar e as olarias ali instaladas (FERNANDES, 2015FERNANDES, Fernanda. “Maré: Uma cidade dentro do Rio de Janeiro”. MultiRio, Reportagens, 12 ago. 2015. Disponível em: http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/leia/reportagens-artigos/ reportagens /3086-mare-uma-cidade-dentro-do-rio-de-janeiro
http://www.multirio.rj.gov.br/index.php/...
). Ganhou contorno oficial na cidade em 1986, com a criação da XXX Região Administrativa (RA-Maré). Alguns anos depois, por meio da lei municipal no 2.119, de 19 de janeiro de 1994, foi criado e delimitado o bairro Maré, correspondente a toda a extensão da RA (RIO DE JANEIRO, 19/01/1994).

Entre os 161 bairros reconhecidos oficialmente na cidade, a Maré, com cerca de 140 mil habitantes, é o nono mais populoso - praticamente o dobro da Rocinha ou do Complexo do Alemão4 4 Conferir Rio em Síntese, do Instituto Pereira Passos (IPP). Disponível (on-line) em: https://www.data.rio/pages/rio-em-sntese-2 . Entretanto, ocupava o 123o lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)5 5 IDH calculado segundo 126 bairros ou grupos de bairros do município do Rio de Janeiro em 2000. Disponível (on-line) em: https://www.data.rio/ . Hoje, estimam-se 40 mil domicílios distribuídos em comunidades com fisionomias distintas, características próprias e diferentes contextos de ocupação - realidade que contribui decisivamente para a diversidade e riqueza cultural que constituem um verdadeiro mosaico, e não uma unidade homogênea (REDES DA MARÉ, 2019).

A esmagadora maioria da população que ocupou espontaneamente a Maré veio do Nordeste brasileiro e assistiu à chegada de contingentes de população removidos de várias partes da cidade pelos programas habitacionais de erradicação de favelas. Segundo depoimentos de moradores mais antigos, foi inevitável o estranhamento, que gerou distinções entre comunidades, algumas das quais perduram até hoje. A própria existência de 16 áreas com nomes diferenciados e as relações de pertencimento que seus moradores vivenciam já denotam que o grau de complexidade e autonomia no território é grande.

Segundo Souza e Silva (2003SOUZA e SILVA, Jailson. Por que uns e não outros? Caminhada de jovens pobres para a universidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003., p. 21), há “características sociais, econômicas, geográficas e históricas heterogêneas”. As localidades são claramente delimitadas e suas populações conhecem suas “fronteiras invisíveis”. Conforme o Censo Empreendimento realizado em 2014 (REDES DA MARÉ, 2014), os empreendimentos comerciais no conjunto da Maré são aproximadamente três mil, com destaque para bares e restaurantes, seguidos por salões de beleza. Calcula-se que empregavam, antes da pandemia de Covid-19, mais de nove mil pessoas. Todos foram severamente atingidos pela pandemia, em 2020 e 2021. Atualmente, o bairro conta com 50 escolas públicas da rede básica e oito unidades de saúde6 6 Disponível (on-line) em: https://peoplespalaceprojects.org.uk/wp-content/uploads/2019/05/INFOGRAFICOS_PESQUISA_CONSTRUINDO_PONTES_AGO21.pdf . Entretanto, o acesso aos serviços nem sempre é garantido. Apesar da distribuição espacial realizada pelos órgãos públicos, visando atingir o conjunto da população (em números agregados), o pertencimento a uma região dominada por grupo armado inibe a circulação em outro território, como veremos adiante. Em outras palavras, implantar uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) no “bairro Maré” não garante o livre acesso de todos os moradores a esse equipamento de saúde. Ou seja, os efeitos das políticas públicas são limitados pela violência armada. Além de bloqueios à circulação, tiroteios interrompem aulas, atendimentos e a permanência de profissionais em seus postos.

Aqui chegamos à nossa problemática central, o poder do crime armado. Atribuímos à categoria governança criminal o sentido genérico dos diferentes regimes de controle territorial extralegal, exercido por grupos criminosos, que afetam severamente ou ordenam dimensões materiais e intersubjetivas de populações vulneráveis. Por isso, podemos afirmar que governança criminal remete a liberdade e direitos. Nesse contexto, é questão de vida ou morte. Estão presentes, na Maré, três grupos criminosos armados que disputam de forma violenta o controle do território e da vida dos moradores: dois associados a facções do tráfico varejista de drogas, o Comando Vermelho (CV) e o Terceiro Comando Puro (TCP), e um grupo armado miliciano, dos quais trataremos em detalhes.

Violência armada e segurança pública

De acordo com o monitoramento da violência armada publicado nas cinco edições anuais do Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, entre 2016 e 2020 foram contabilizadas na região 151 vítimas letais e 147 pessoas feridas por armas de fogo (REDES DA MARÉ, 2019a, 2019b, 2020).

Em 2018, as 16 operações policiais registradas resultaram em dez dias de fechamento das escolas e 11 dos postos de saúde (Idem, 2019b). Das 19 mortes por intervenção de agentes do Estado7 7 Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). , apenas três foram periciadas. Naquele ano, a taxa de mortes provocadas por ações policiais na Maré foi de 13,7 por 100 mil habitantes, enquanto as taxas para o estado e o município foram, respectivamente, 9,0 e 8,4 por 100 mil habitantes (Ibid., p. 8). Nenhuma operação foi realizada em Roquete Pinto e Praia de Ramos, localidades controladas por milícias (Ibid., p. 5). Além disso, 96% das vítimas eram do sexo masculino, 79% eram negras e 72% tinham entre 13 e 29 anos.

Em 2019 foram realizadas 39 operações policiais, que resultaram no fechamento das escolas por 24 dias (Idem, 2020, p. 6) e na interrupção das atividades das Unidades Básicas de Saúde (UBS) por 25 dias, deixando-se de realizar 15 mil atendimentos (Ibid., p. 7). O aumento da frequência de operações policiais e de sua letalidade está representado na taxa de mortes por intervenção de agentes do Estado, que se elevou, em 2019, a 23,4 por 100 mil habitantes, enquanto no estado do Rio de Janeiro foi de 10,5 e, no município, 10,9. Os grupos mais atingidos repetiram o padrão de 2018: 94% eram do sexo masculino, 96% eram negros e 85% tinham entre 15 e 29 anos de idade.

No contexto da pandemia, em 2020 e 2021, foi necessário que moradores de comunidades (não apenas da Maré), coletivos, organizações, partidos políticos e movimentos sociais solicitassem a suspensão das operações policiais para evitar o agravamento da crise social e sanitária nas favelas do Rio de Janeiro. A suspensão se concretizou por decisão liminar expedida pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), em 6 de junho de 2020, acolhendo parcialmente a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) de no 635. A decisão reduziu significativamente a letalidade, seja por suprimir os efeitos diretos da brutalidade policial seja por viabilizar o funcionamento ininterrupto dos serviços de saúde.

Por isso, o resultado agregado referente a 2020 indicou queda do número de operações, de 39 para 16, que provocaram a suspensão do atendimento nas unidades de saúde por oito dias. O número de mortes caiu de 34 para cinco e o de pessoas feridas, de 45 para 17 (REDES DA MARÉ, 2020). Importante ressaltar que as mudanças ocorreram após um primeiro trimestre que vinha seguindo o padrão de 2019. A redução das operações policiais, em 2020, implicou uma queda de 59% em relação a 2019 (Ibid.).

Por outro lado, os confrontos entre grupos armados passaram de cinco, em 2019, para 26, em 2020. No entanto, o aumento dos confrontos não se traduziu em aumento de mortes ocasionadas por essas ocorrências: o número de vítimas fatais caiu de 15, em 2019, para 14, em 2020, segundo o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré. Tal constatação evidencia a inoperância do modelo de segurança pública fundado nas incursões policiais, cuja justificativa seria evitar os danos causados por tais grupos (Ibid.).

A Maré, de fato, são muitas Marés, cujas peculiaridades são vivenciadas por seus moradores em todas as dimensões da experiência cotidiana: não somente relacionadas ao histórico da formação do bairro, à dinâmica da violência sofrida e à origem diversa de seus habitantes, mas aos aspectos gerais dos direitos humanos e da cidadania, frequentemente negados a eles. Por outro lado, são inúmeras as iniciativas locais que denotam espírito gregário, consciência crítica, disposição cooperativa, criatividade e notável capacidade de mobilização de alianças e recursos, evidenciados mais uma vez ao longo da pandemia, reduzindo danos individuais e sociais (HERITAGE e SILVA, 2021HERITAGE, Paul; SILVA, Eliana Sousa (orgs). Estudo com moradores das 16 favelas da Maré. Rio de Janeiro/Londres: People’s Palace Projects do Brasil, 2021. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/br/publicacoes#livros
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).

As iniquidades estruturais e o racismo, inscritos nas relações de classe típicas do capitalismo autoritário brasileiro e associados à violência institucional produzida por agentes do Estado e à ação contínua de distintos grupos armados, afetam de diferentes formas não apenas moradores da Maré, como os demais segmentos populares fluminenses. O estudo sobre as modalidades de governança criminal deve levar em consideração o contexto mais amplo, bem como a potencialidade associativa e participativa dos grupos submetidos aos poderes locais despóticos, sejam eles impostos por traficantes, milicianos ou policiais.

Levar em conta essa potencialidade significa acrescentar à nossa análise das governanças criminais um ponto de interrogação, cujo sentido é o reconhecimento de que os processos estão em curso e reversões não podem ser excluídas do horizonte. Alguma dose de abertura para a incerteza, suscitada pela entrada em cena do protagonismo cívico - a resistência individual e coletiva -, atesta a fragilidade do que parece inabalável. Afinal, como sabemos, se há contradições fundas e conflitos recalcados, o que é sólido estará sempre sujeito a desmanchar no ar.

Efeitos dos regimes de controle territorial extralegal no conjunto de favelas da Maré: exposição à violência, experiências de vitimização e medo

Compreender a conjuntura de segurança pública do Rio de Janeiro, como resultado de um processo histórico de acumulação social da violência (MISSE, 1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.) ou de dinâmicas de vitimização e exposição à violência armada (CANO e RIBEIRO, 2016CANO, Ignacio; RIBEIRO, Eduardo. “Old Strategies and New Approaches towards Policing Drug Markets in Rio de Janeiro”. Police Practice and Research, vol. 17, n. 4, pp. 364-375, 2016.), passa por observar um conjunto de práticas de dominação e apropriação territorial por grupos criminais armados ou “grupos criminosos armados com domínio de território” (SOUZA E SILVA, LANNES-FERNANDES e BRAGA, 2008SOUZA e SILVA, Jailson; LANNES-FERNANDES, Fernando; BRAGA, Raquel Willadino. “Grupos criminosos armados com domínio de território: Reflexões sobre a territorialidade do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. In: JUSTIÇA GLOBAL (org). Segurança, tráfico e milícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008, pp. 16-24.), formados por traficantes de drogas ou milícias.

A presença desses grupos criminais, cujas atividades requerem a manutenção de territórios para a reprodução de seus negócios, está associada a uma figuração peculiar, caracterizada historicamente por elementos como grande incidência de conflitos armados, altos níveis de letalidade e domínio ostensivo sobre territórios e populações. O fato de os grupos serem territorializados implica formas de controle social diretas e indiretas sobre pessoas, relações de poder e recursos, além da sujeição das populações residentes à violência de conflitos e tiroteios entre facções rivais ou contra a polícia (MISSE, 1999MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.; DOWDNEY, 2003DOWDNEY, Luke. Crianças do tráfico: Um estudo de caso de crianças em violência armada organizada no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.; MACHADO DA SILVA, 2008SOUZA e SILVA, Jailson; LANNES-FERNANDES, Fernando; BRAGA, Raquel Willadino. “Grupos criminosos armados com domínio de território: Reflexões sobre a territorialidade do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro”. In: JUSTIÇA GLOBAL (org). Segurança, tráfico e milícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008, pp. 16-24.).

Por outro lado, as respostas ofertadas por agências de segurança e governos, a arbitrariedade da ação policial e o envolvimento histórico dos aparatos policiais com o mundo do crime tornam o contexto mais complexo, resultando em impactos que passam pela interrupção de rotinas de indivíduos e instituições (LEITE, 2008LEITE, Márcia Pereira. “Violência, risco e sociabilidade nas margens da cidade: percepções e formas de ação de moradores de favelas cariocas”. In: Vida sob cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, pp. 115-141.; FARIAS, 2008FARIAS, Juliana. “Da asfixia: reflexões sobre a atuação do tráfico de drogas nas favelas cariocas”. In: MACHADO DA SILVA, Luiz Antônio. Vidas sob cerco: Violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008, pp. 173-190.) e por entraves na vida político-comunitária, inibindo a participação (LEEDS, 2006LEEDS, Elizabeth. “Cocaína e poderes paralelos na periferia urbana brasileira: Ameaças à democratização em nível local”. In: ZALUAR, Alba; ALVITO, Marcos (orgs). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006, pp. 233-276.).

Nesse contexto, a pesquisa “Construindo Pontes”8 8 Os resultados gerais da pesquisa estão disponíveis em quatro livros e um boletim temático, todos disponíveis (on-line) em: https://www.redesdamare.org.br/br/publicacoes#livros buscou levantar dados que ajudassem na compreensão dos efeitos desses diferentes regimes de controle territorial extralegal - que aqui chamamos de modelos de governança criminal - sobre a vida e a rotina das populações de favelas e territórios periféricos, mais especificamente de moradores e moradoras do conjunto de favelas da Maré. Tais efeitos remetem a aspectos objetivos, observados em termos das experiências de vitimização e exposição à violência armada, e subjetivos, referentes a percepções e sentimentos, como medo e insegurança. Em especial, interessavam os efeitos da violência armada nas condições de saúde e no bem-estar da população da Maré.

Em seu planejamento, a pesquisa tinha um conjunto de hipóteses sobre as relações entre experiências de violência e sentimento de insegurança e seus impactos sociais e psicossociais. Neste artigo, interessa uma hipótese em particular, que, inclusive, orientou o desenho da amostra da pesquisa domiciliar, cujos resultados serão expostos a seguir. Eis a hipótese: áreas sob diferentes regimes de controle territorial, sob domínio do tráfico ou de milícias, mostram diferenças em determinadas variáveis, representando níveis distintos de exposição à violência armada segundo diferentes arranjos político-institucionais, sobretudo relacionados às formas de atuação do Estado e às relações dos diferentes grupos criminosos com as agências de segurança pública.

Com base nela, o desenho da amostra probabilística utilizado no survey domiciliar empregou procedimentos de estratificação e probabilidades desiguais de seleção de indivíduos para a amostra. O conjunto de comunidades que compõe o território da Maré foi então dividido em três estratos geográficos, definidos segundo metodologia já consolidada em pesquisas realizadas pela ONG Redes da Maré, levando em conta aspectos sociourbanísticos e habitacionais, mas, principalmente, a delimitação dos domínios dos diferentes grupos armados.

O primeiro estrato (Área 1) reúne quatro das 16 favelas, continha 24% da população adulta da Maré e está sob domínio de uma das facções do tráfico varejista de drogas. O segundo estrato (Área 2) é maior, reunindo nove favelas, 60,5% da população adulta e sendo controlado pela outra das facções do tráfico de drogas. Finalmente, o terceiro estrato (Área 3) é formado por três comunidades, reúne apenas 15,5% da população adulta da Maré e era dominado por um grupo miliciano, embora uma de suas favelas9 9 Essa favela não foi considerada nas análises aqui apresentadas. , com histórico de atuação de milícias, atualmente esteja sob o controle do tráfico de drogas

Os três estratos têm perfis demográficos e socioeconômicos muito semelhantes, em termos da composição da população por sexo, raça e faixas etárias, alfabetização e escolaridade, condições ocupacionais e de renda. Contudo, têm perfis bastante distintos em relação às experiências de vitimização e exposição à violência armada, e também à distribuição do medo e sentimento de insegurança, com consequentes reflexos em indicadores de saúde mental e bem-estar subjetivo (HERITAGE e SILVA, 2021HERITAGE, Paul; SILVA, Eliana Sousa (orgs). Estudo com moradores das 16 favelas da Maré. Rio de Janeiro/Londres: People’s Palace Projects do Brasil, 2021. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/br/publicacoes#livros
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).

Tabela 1:
Experiências de vitimização e exposição à violência armada segundo as regiões do Conjunto de Favelas da Maré - 2019
Tabela 2:
Medo e sentimento de insegurança frequentes segundo as regiões do Conjunto de Favelas da Maré - 2019

Em suma, os percentuais da população adulta que sofreram ou experimentaram violências ou eventos relacionados a conflitos armados, atividades de controle territorial ostensivo realizadas pelos grupos criminosos ou violações perpetradas por agentes policiais foram sistematicamente mais elevados nas áreas 1 e 2, sob domínio de facções do tráfico de drogas, do que na Área 3, dominada por uma milícia10 10 A Tabela 1 se refere à extorsão ou invasão de domicílios e não destaca o autor da violação, nem o medo dirigido aos agentes ou à atuação policial. Contudo, as tabelas seguintes se concentram no papel da atuação policial e a seção subsequente trabalha essa questão. .

Considerada a média dos percentuais das áreas 1 e 2, por exemplo, a razão entre os resultados atinentes aos territórios dominados pelo tráfico em relação às áreas de milícia chega a 15. Na mesma linha, o percentual de moradores que tiveram suas casas invadidas, no período de um ano, nas áreas do tráfico foi 12 vezes o percentual registrado nas áreas da milícia. No que se refere à experiência de ter estado em meio a um tiroteio, a relação foi igual a dez vezes. O mesmo se repetiu para uma série de marcadores que representavam a exposição de moradores e moradoras às dinâmicas do que chamamos violência armada, incluindo perdas materiais, prejuízos no mercado de trabalho e diferentes formas de agressão.

No que se refere ao medo, ao sentimento de insegurança e a percepções de risco e perigo, as regiões controladas pelos grupos do tráfico de drogas mostraram também desvantagens comparativas, apresentando percentuais de medo frequente - quando a pessoa relatava sentir medo muitas vezes, quase sempre ou sempre - consistentemente superiores aos registrados na área dominada pela milícia. Aqui, entretanto, as diferenças entre as áreas foram menos expressivas, chegando a duas vezes, no máximo.

Papel da atuação policial

Como apontado em Ribeiro (2021RIBEIRO, Eduardo. “Considerações metodológicas e panorama dos resultados da pesquisa construindo pontes”. In: HERITAGE, Paul; SILVA, Eliana Sousa (orgs). Estudo com moradores das 16 favelas da Maré. Rio de Janeiro/Londres: People’s Palace Projects, 2021, pp. 179-284. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/br/publicacoes#livros
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), uma limitação do instrumento de pesquisa foi a impossibilidade de distinguir pontualmente, entre os diferentes eventos e exposições a experiências de violência e vitimização, quais seriam os principais atores envolvidos nas violações, como extorsão e invasões de domicílios, agressões sofridas e testemunhadas, além das interrupções das rotinas e experiências com tiroteios.

Entretanto, era possível, pelo desenho da amostra, como vimos, verificar se o território em que a pessoa residia era dominado por facções do tráfico de drogas ou por um grupo miliciano, embora não fosse possível saber, em relação às experiências particularmente relatadas pelas pessoas, se estas teriam ocorrido devido à atuação de grupos criminosos armados ou se teriam a ver com a atuação das polícias nos territórios.

Considerando essa limitação, cabe destacar que pelo menos uma das perguntas do questionário, sobre impedimentos de acesso a equipamentos culturais e práticas artísticas e de sociabilidade na Maré, permitia, a partir de uma questão aberta, identificar as situações e os contextos em que as dificuldades ocorreram. Nessa variável, as operações e intervenções policiais foram os eventos mais frequentemente relatados, confirmando o papel relevante da atuação dessas agências estatais nas dinâmicas relacionadas à violência armada, de modo particular, e à regulação dos cotidianos das favelas, de forma mais geral.

De fato, estimou-se que, em um período de três meses, 30,5% da população adulta da Maré deixou de praticar alguma atividade sociocultural (de lazer, artística, esportiva ou religiosa) especificamente por conta do contexto de violência armada. Esse percentual foi maior nas áreas dominadas pelas facções do tráfico varejista de drogas, sendo 38,1% na Área 1 e 31,6% na Área 2. Além disso, tais impedimentos respondiam, em sua maioria, a impedimentos originados em operações policiais - 64,8% na Área 1 e 73,2% na Área 2. Os relatos de impedimentos e barreiras de acesso atribuídos a outras causas foram proporcionalmente menores, e indicavam tiroteios de uma maneira genérica, sem identificação dos atores envolvidos (33,4% na Área 1 e 25% na Área 2) e, em menor grau, conflitos entre facções e grupos criminosos (3,9% na Área 1 e 9,5% na Área 2). Por outro lado, na Área 3, território dominado pela milícia, apenas 1,9% da população reportou ter deixado de praticar essas atividades socioculturais especificamente por causa da violência na Maré.

Troquemos agora as lentes e acompanhemos os depoimentos de dois personagens relevantes. É hora de mudar o registro e o modo de abordagem para aprender com a experiência de dois entrevistados que estiveram no olho do furacão, exercendo o poder local. Eles nos dão pistas para o desdobramento analítico que nos permite articular os achados do survey com as interpretações etnográficas. Vale antecipar: as duas linhas se encontram e as hipóteses se confirmam, reciprocamente, e nos levam a outras questões relevantes.

Tráfico, milícia, polícia

- Chefiar é diferente de liderar. O líder não tira a vida de ninguém. Quem é sanguinário, assassino, não terá a solidariedade da comunidade. O chefe não consegue se estabelecer, os moradores não deixam. Só os líderes.

O autor das frases acima não é cientista político, aprendeu na prática a pensar a política como a guerra por outros meios. As contradições da vida em comunidade o submeteram a situações extremas. Ele sabe que a experiência, por mais rica e desafiadora que seja, nem sempre ensina, tanto que atribui seu amadurecimento sobretudo às leituras no período da prisão e à solidariedade incondicional dos próximos, que o impediram de descrer em si e nas relações humanas. É preciso estar forte para reconhecer a própria fraqueza, foi o que disse, com outras palavras, no depoimento que concedeu à pesquisa, em 202011 11 As falas, nesse caso como no próximo, não foram transcritas exatamente nos termos enunciados pelos entrevistados, embora as palavras sejam muito próximas às originais e fiéis a seu sentido. . Agarrar-se à imagem construída pelo machismo esteve na origem de erros seus e de tantos outros, que o seguiam ou o combatiam, na facção rival. Vingança, machismo e recalques, disputas ridículas pelo amor das meninas: esse é o resumo da ópera, no vocabulário de quem liderou o Comando Vermelho (CV) na Maré, viveu por dentro os conflitos armados e protagonizou o roteiro trágico e repetitivo. A partir de certo momento, já não se sabe por que se mata e se morre, ele admitiu. É difícil sair do redemoinho, esfriar a cabeça, pensar. Enquanto for proibido, o negócio das drogas vai sempre se sustentar, de um modo ou de outro, com altos e baixos. Mas quem está ali, na atividade, esse não dura. Se conseguir acumular recursos, não vai ter futuro para gastar.

Já os milicianos prosperam porque não encontram obstáculos.

O entrevistado não discorreu sobre as milícias. Sabemos que são grupos criminosos formados, principalmente, por policiais, ex-policiais e agregados. Originalmente, apresentavam-se como inimigos de traficantes e ocupavam territórios, impondo suas próprias regras e saqueando a seu modo as comunidades, sob a justificativa de lhes oferecer segurança e livrá-las do tráfico.

A entrevista citada ecoa declarações de outro personagem de grande destaque no mesmo universo, colhidas seis anos antes. Embora líder de facção rival, o Terceiro Comando Puro (TCP), e não só na Maré, suas percepções apresentam afinidades surpreendentes com a sabedoria tardia do arqui-inimigo: os dois se referiram ao fato de que as novas gerações têm sido recrutadas cada vez mais cedo, em toda parte; ambos extraem consequências desse processo que intensifica o voluntarismo inconsequente, a violência e a ansiedade por resultados imediatos, contrapartida da crescente preponderância da reatividade emotiva, que conduz a resultados negativos nos confrontos e nos negócios e estimula a adoção de caminhos tão desastrosos quanto irreversíveis. Ao contrário do que usualmente acontece, coube a ele a iniciativa de procurar quem se tornaria seu entrevistador. Sua intenção era sair do tráfico sem trair os companheiros. Não via mais futuro na vida que levava. Entretanto, temia apresentar-se à Justiça, porque sabia muito sobre a corrupção policial. Correria o risco de tornar-se vítima de “queima de arquivo”.

O diagnóstico, portanto, era comum. Os principais representantes dos dois lados em guerra na Maré, CV e TCP - apesar de concederem entrevistas separadas no tempo, seus destinos se parecem, quando observados em perspectiva -, reconheciam que seu verdadeiro inimigo não era a outra facção, mas as polícias, não porque os combatiam, enquanto lhes vendiam cumplicidade nos bastidores, e sim porque os substituiriam, tornariam obsoleto o modelo de negócios e governança do tráfico. Modelo esse que poderia ser sintetizado na fórmula: controle armado de território e comunidade exclusivamente para a promoção do comércio varejista de substâncias ilícitas.

É significativo que, embora estivesse presente na consciência de líderes relevantes dos dois comandos mais poderosos, a admissão do fracasso da modalidade de empreendimento e exercício de poder local consagrada pelo tráfico fluminense desde os anos 1980 ainda não tenha sido endossada pelo conjunto dos dirigentes do CV, que insistem em conservá-la, resistindo a conselhos e propostas dos dirigentes do Primeiro Comando da Capital (PCC)12 12 O PCC é uma facção do tráfico de drogas que monopolizou o comércio de drogas no estado de São Paulo. Embora atue principalmente no território paulista, atualmente pode ser considerada uma das maiores organizações criminosas do Brasil, presente, direta ou indiretamente, em todos os estados brasileiros. - eventualmente aliados, mas hoje inimigos. Conselhos esses que de resto apenas ampliavam e renovavam o que lhes sugeriram os embaixadores do Cartel de Cali, em 1997 (SOARES, 2012SOARES, Luiz Eduardo. Tudo ou nada: História do brasileiro preso em Londres por associação ao tráfico de duas toneladas de cocaína. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012., 2019).

Atualmente, no Rio de Janeiro, a facção de traficantes Amigos dos Amigos (ADA) praticamente desapareceu. O TCP tem se aliado aos milicianos e vem sendo progressivamente absorvido - embora, na Maré, se mantenha independente e atuante e domine parte do território. Por sua vez, o CV permanece ativo no Rio (não apenas na Maré), tem estabelecido vínculos com organizações em outras regiões e vem copiando significativamente estratégias milicianas: já não se limita ao comércio de drogas.

O tráfico de drogas atuava na Maré desde a década de 1980, mas foi ao longo dos anos 1990, quando confrontos entre facções sacudiram a comunidade, que a violência local assumiu maior visibilidade (SOUSA, 2014SOUSA, Eliana. Testemunhos da Maré. Rio de Janeiro: Mórula, 2014.). A milícia é mais recente. O melhor relato jornalístico da implantação da milícia, “Comunidades maiores também viram alvo de ataque das milícias”, foi publicado pela Folha de S. Paulo em dezembro de 2006. Vale a pena reproduzir um trecho:

Importantes como indicativo do poderio das milícias, as invasões das favelas Kelson’s, Roquete Pinto e Praia do Ramos mostram que as comunidades de maior porte também correm risco. Os ataques tiveram apoio da PM (Polícia Militar), acusam dirigentes locais. Parte do trecho mais vulnerável do complexo da Maré (zona norte), as favelas foram invadidas e ocupadas no mês passado. Segundo relato de moradores, os milicianos expulsaram ou mataram os traficantes. A PM nega ter auxiliado a milícia. Segundo dirigentes, as invasões contaram com um “Caveirão” - blindado da corporação. O batalhão da Maré nega, mas reconhece que as milícias instalaram-se nas favelas. Sem os traficantes, a milícia chefiada por um ex-cabo da PM controlaria agora as comunidades (FOLHA DE S. PAULO, 12/12/2006).

Nos anos subsequentes, notícias apontaram a ampliação dos negócios dirigidos pela milícia e a ambivalência das instituições, que ora investigavam, ora apoiavam a organização criminosa, por ação ou omissão. Tem sido notória a negligência das autoridades responsáveis pela segurança pública, inclusive das Forças Armadas, durante as operações de garantia da lei e da ordem (GLO) e a intervenção federal no estado, em 2018 (TORRES, 20/02/2011TORRES, Fernando. “Operação Guilhotina: milícia de Ramos usou empresas fantasmas”. Extra, Casos de Polícia, 20 fev. 2011. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/operacao-guilhotina-milicia-de-ramos-usou-empresas-fantasmas-1099846.html
https://extra.globo.com/casos-de-policia...
; CENSANET, 09/09/2018; MONKEN, 11/07/2019MONKEN, Mario Hugo. “Milícia age na Maré sem ser alvo da polícia ou do tráfico: Grupo atua nas comunidades Praia de Ramos e Roquete Pinto”. Eu, Rio!, Notícias, 11 jul. 2019. Disponível em: https://eurio.com.br/noticia/8366/milicia-age-na-mare-sem-ser-alvo-da-policia-ou-do-trafico.html
https://eurio.com.br/noticia/8366/milici...
)13 13 http://www5.mprj.mp.br/assImprensa/20140402_ES_AreasDeMilici.pdf .

Um aspecto, desde logo, distingue com nitidez os dois universos, além da média etária mais alta dos milicianos: no tráfico, não se recobre o comércio das substâncias ilícitas com a fantasia ideológica dos discursos de extração moral; seus líderes reconhecem tratar-se de um empreendimento econômico e da defesa prática, pela força, de seu funcionamento, o que não os exime - posto que são antípodas do chefe, cujo poder teria pés de barro - da responsabilidade de evitar arbitrariedades e a vitimização de moradores. Os dois entrevistados foram enfáticos quanto ao compromisso com o respeito à comunidade - o que não pode ser interpretado literalmente, dada a profusão de eventos brutais que vitimam moradores.

A realidade empírica desnuda o caráter idealizado dos discursos de ambos os entrevistados. O cotidiano mistura o que os tipos ideais (líder e chefe) separam. A separação é útil, não deve ser desprezada como simples mascaramento, serve de guia e define critérios de juízo, todavia, não corresponde à experiência de nenhum dos comandos. Inclusive, esse é o motivo que os leva a considerar que, além da idade - os mais jovens teriam dificuldade em entender a importância do respeito à comunidade -, as disputas entre as facções por pontos de venda, isto é, pelo domínio de territórios, têm sido determinantes para o aumento da violência, a expansão do repúdio comunitário e o clima de instabilidade que viria corroendo, crescentemente, os poderes locais. Segundo as avaliações de ambos, quem invade uma comunidade chega inseguro, precisa impor-se, não conhece as pessoas, não confia em ninguém, recorre ao “esculacho” para impedir delações - mais do que seria comum nas localidades em que traficantes são membros da comunidade, conhecidos das famílias desde criança. Quem invade o território de uma comunidade - ocupando-o ou desalojando rivais - tenta matar na origem qualquer sinal de fraqueza, busca esmagar todo ato que possa minar sua autoridade. Não percebe que, desse modo, humilhando e ameaçando, não conquista a comunidade; pelo contrário, dissemina medo e ódio, que se voltam contra os invasores. O preço pelos maus-tratos será cobrado aos forasteiros, em algum momento, de alguma forma.

O que os dois líderes ensinam é consabido no mundo popular fluminense: a geopolítica fratricida e expansionista das facções termina por ser contraproducente para todos e redunda em desestabilização generalizada dos domínios locais. Os grupos se tornam mais violentos porque são mais fracos, diante tanto das sempre renovadas disputas com rivais como do desenraizamento dos operadores locais, isto é, da governança criminal. Mais insegurança estimula aumento do investimento em armas e o ciclo vicioso se retroalimenta.

Tráfico de armas envolve segmentos policiais, direta ou indiretamente, seja como agentes do comércio seja como cúmplices - a denúncia do líder do TCP é corroborada pelo rival. Observe-se que o cálculo sobre a necessidade de armas se fundamenta em informações sobre os inimigos, seus planos e os movimentos em curso para a renovação de seus arsenais. Entre os inimigos, contam-se as polícias. Em outras palavras, o esforço de superação e autonomização relativamente a rivais e às polícias envolve, paradoxalmente, aprofundamento das interdependências e maior integração das malhas orgânicas, tornando indistinguíveis braços do Estado e tentáculos do crime. Compreende-se por que é inútil a aposta dos governos em dotar as instituições policiais de mais armas e mais potentes. Pior que inútil, nociva, porque o resultado agregado tende a ser o fortalecimento generalizado de todos os atores e o incremento de suas respectivas disposições de confrontar os demais. Esse giro funesto é identificado com nitidez pelos líderes entrevistados, e essa é mais uma razão para o ceticismo que compartilham.

Em síntese, agentes do tráfico não edulcoram o cenário quando se trata de definir seus objetivos e a natureza de sua prática: trata-se de negócios e do emprego da força para evitar que grupos rivais ou policiais intervenham e os interditem.

Por outro lado, na milícia (recorremos aqui ao singular, uma simplificação para efeito didático e sintético), a justificativa involucra o sentido objetivo das práticas. Vejamos o que nos diz Bruno Paes Manso (2020, pp. 9-10), resumindo o depoimento de ex-miliciano:

(Ele) se orgulhava de ter sido assassino e passado a trabalhar no exército dos paramilitares do Rio - tinha se visto numa guerra contra o crime, e os homicídios, as surras e a violência eram ferramentas de trabalho (...) Considerava a violência que praticava instrumento em defesa de um ideal coletivo. Definiu sua trajetória com base numa antiga crença segundo a qual o assassinato garantia poder ao assassino e sua transformação em herói na guerra cotidiana contra o crime.

Note-se que a crença seria compartilhada por segmentos sociais suficientemente amplos para que sua referência ao bem coletivo soasse, a ele mesmo, minimamente verossímil, isto é, repousasse sobre uma estrutura de plausibilidade, cujos pilares teriam de ser a adesão popular (mesmo que não consensual) e a emulação, tacitamente apelando à continuidade das ações. Ou seja, por ser uma crença, alcançaria dimensões sociais, transcenderia os limites da autojustificação, não se esgotaria no discurso autoindulgente interno ao grupo criminoso. E é assim que se costuma contar a história das milícias no Rio de Janeiro. A origem remete à ação de policiais justiceiros e seus agregados, esquadrões da morte, jagunços urbanos, matadores a soldo e provedores compulsórios de segurança14 14 Para a história e a pré-história das milícias, são imprescindíveis, entre outros: Souza Alves (2020), Otavio e Jupiara (2015), Burgos (2002), Paes Manso (2020), Souza e Silva, Fernandes e Braga (2008), Cano e Duarte (2012), Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos (2020) e Hirata et al. (2021). Soares et al. (2010) apresentam tratamento ficcionalizado de situações reais, segundo depoimentos reunidos até a data. Soares (2020c), em depoimento a Francisco Ourique e Marcio Scalercio, apresenta um retrato das milícias e analisa os desafios que representam para a democracia. .

Nessa função, as milícias firmam sua identidade originária, vendem serviços de segurança, produzem ordem por métodos próprios. Contudo, a venda não se inscreve na lógica do mercado, que reúne agentes supostamente livres, onde preço acompanha demanda, a qualidade pode ser aferida, acordos revisados, contratos celebrados com cláusulas e limites claros. No caso em pauta, a venda é, de fato, troca de segurança (garantia de não ser vítima de crimes) pelo pagamento de determinado valor, mediante coerção. O operador do negócio é a chantagem, sustentada no potencial de geração de danos que se imputa ao grupo armado.

O desafio para a análise é o ajuste fino entre apoio popular, mesmo que parcial e provisório, e a onipresença virtual da chantagem. Obediência é diferente de aprovação. Coerção enseja a primeira, não a segunda. Entretanto, aqui é imprescindível introduzir um ingrediente chave: a natureza comparativa da avaliação popular sobre as milícias, mesmo nos primeiros estágios de sua implantação. Em se tratando de “guerra contra o crime”, se “os homicídios, as surras e a violência eram ferramentas de trabalho”, por que não cobrar pelo trabalho realizado? A cobrança soaria razoável, quase um corolário da equação enunciada. Em certo sentido, assumiria ares de legitimidade. Quem endossasse a imagem da guerra, coonestando as práticas e concordando com a definição das vítimas das ações milicianas como inimigos, poderia aceitar o pagamento e compreender seu caráter compulsório como único meio de garantir a continuidade do “trabalho”.

Haveria pelo menos duas situações a serem comparadas com aquela produzida pelo “trabalho” dos milicianos: a desordem resultante da permanência em atividade dos “inimigos”, os criminosos, e a humilhação a que estariam submetidas centenas de comunidades, dominadas por facções do tráfico, nas quais tiroteios eram constantes e “adolescentes drogados de sandálias davam ordens a pais de família, ditando até a cor da roupa que se pode vestir ” - conforme declaração emocionada de um trabalhador nordestino, morador da Rocinha, a um dos autores, em 2010, cujo sentido reaparece em inúmeras situações e testemunhos, nas mais diversas comunidades, inclusive na Maré, e não é alheio à votação massiva que obtiveram, nas áreas populares, em 2018, governador e presidente de ultradireita, afinados com o discurso miliciano.

O poder miliciano ofereceria vantagens relativas a ambas as hipóteses alternativas: 1) à primeira, porque o imaginário social está povoado por imagens e emoções negativas sobre criminosos e seus atos - a palavra guerra dá conta do grau elevado de perigo que esses personagens acarretariam e responde à intensidade das emoções investidas; 2) à segunda, porque nada pode ser pior do que expor-se e ver a família exposta a humilhações, tiroteios e à aleatoriedade trágica da “bala perdida”, esse nome da loteria mefítica convertida em destino nos cenários intoxicados pelo conflito armado.

Neste ponto, flagramos o elo chave que fecha o circuito e explica a percepção de superioridade da opção miliciana do ponto de vista de quem experimenta a angústia da imprevisibilidade: áreas sob controle das milícias não são importunadas por incursões policiais15 15 Segundo dados relativos a 2019, as facções do tráfico ocupavam 233,13 km2 do território do estado do Rio e as milícias, 267,27 km2. Desagregando: o CV dominava 166,16 km2, o TCP, 61,88 km2 e o ADA, 5,09 km2. As operações policiais realizadas nos territórios ocupados por milícias foram 65 e pelo tráfico, 712. Desagregando: no território do CV, 554; do TCP, 146; do ADA, 12. Se tivesse havido tratamento igual, teriam ocorrido, nos territórios sob controle das milícias, 816,27 operações, em vez de 65 (HIRATA et al., 2021). .

A equipe responsável pelo referido survey domiciliar (RIBEIRO, 2021RIBEIRO, Eduardo. “Considerações metodológicas e panorama dos resultados da pesquisa construindo pontes”. In: HERITAGE, Paul; SILVA, Eliana Sousa (orgs). Estudo com moradores das 16 favelas da Maré. Rio de Janeiro/Londres: People’s Palace Projects, 2021, pp. 179-284. Disponível em: https://www.redesdamare.org.br/br/publicacoes#livros
https://www.redesdamare.org.br/br/public...
), que realizou, em 2019, 1.211 entrevistas no complexo da Maré, teve o cuidado, como vimos acima, de dividir a amostra em três segmentos, justamente porque há três áreas na Maré em que, por hipótese, os moradores tenderiam a responder distintamente às questões relativas à exposição à violência armada: duas áreas onde se destaca a presença de grupos civis armados ligados a dois diferentes comandos do tráfico de substâncias ilícitas, o CV e o TCP, e uma em que atuam milicianos, cujas relações com as polícias são bem conhecidas e onde, portanto, não há incursões policiais.

Os resultados, conforme exposto anteriormente, confirmaram a hipótese, revelando diferenças significativas e consistentes não entre as áreas em que estão grupos do tráfico, mas entre essas e a terceira, na qual a influência da milícia bloqueia operações policiais. Ficou evidente que o fator decisivo na exposição traumática à violência armada é a brutalidade policial. Confrontos entre grupos civis são relevantes, provocam tiroteios e vítimas, produzem danos graves, mas o eixo de referência central é a relação com o Estado, o grande divisor de águas é a ocorrência ou não de invasões policiais16 16 Ver o ensaio “Maré e a longa gestação do novo mundo”, com base na pesquisa “Construindo Pontes” (SOARES, 2021). .

Vê-se quão despropositado seria valorizar as vantagens comparativas de uma governança criminal sobre outra, especialmente quando a vantagem provém da atenuação dos danos provocados pelo próprio Estado. Ao mesmo tempo, compreende-se que fazem sentido eventuais avaliações positivas das milícias por parte da população diretamente envolvida, confinada ao repertório opressivo que restringe seu horizonte a dois tipos de tirania. É conhecida a tendência de grupos submetidos a poderes despóticos a optarem pelo que se mostrar capaz de oferecer grau mais elevado de previsibilidade (cf. SOARES, 2000SOARES, Luiz Eduardo. Meu Casaco de general: 500 dias no front da segurança pública do estado do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.).

Evidentemente, o prolongamento no tempo do poder miliciano suscita novas tensões e desencadeia problemas cada vez mais graves. O aspecto menos percebido e talvez mais importante na história recente das milícias é a transformação do preço da segurança em taxa de licenciamento, que reativa a tradicional imobilização da força de trabalho como forma de interferência política na esfera econômica. Tal transformação inscreve a “governança miliciana” no tipo de dominação consagrado na história como expressivo da natureza autoritária da via de desenvolvimento do capitalismo brasileiro - definindo-o como modernização conservadora (VELHO, 1976VELHO, Otavio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo: Difel, 1976.; SOARES, 2019dSOARES, Luiz Eduardo. “Capitalismo autoritário, novo individualismo e a superação da divisão ontológica”. In: O Brasil e seu duplo. São Paulo: Todavia, 2019d, pp. 171-191.). A metamorfose da segurança (coercitivamente mercantilizada) em licença ou autorização (concessão de títulos informais e provisórios para operação dos negócios ou fruição da propriedade) corresponde à atualização mitigada e reconfigurada, dados o novo contexto e os novos atores, do modelo que se manifestou no bloqueio do acesso à terra (e aos frutos do próprio trabalho) via concessão de títulos de monopólio, na instauração jurídico-política do latifúndio, que engendrou as diversas modalidades de espoliação do trabalho rural e de exploração de classe, nos sistemas de plantation e nos engenhos - a escravidão consistiu no modo mais violento e radical dessa estratégia de poder. Em alguma medida, a economia regida pelo poder miliciano se articula à dinâmica do capital por subsunção formal: a política da força impõe mediação ao processo que, fluindo sem travas, promoveria a subsunção real. Algo similar ocorre no esquema do tráfico. A ligação da economia das drogas com o circuito do capital apresenta características análogas, nesse caso não por meio do domínio via autorização, mas pela cadeia de dependência que se instala, no interior da organização que opera o tráfico, quando a divisão de trabalho se subordina à disciplina organizacional, tributária de determinada linha hierarquizada, protomilitar, de comando e controle (SOARES, 2019 b).

Mesmo com o risco de alguma redundância, vale retomar e detalhar o argumento. No cenário contemporâneo, as prerrogativas estatais (qualquer que seja o ente federado, da União aos municípios) são aquelas previstas legalmente, cuja institucionalidade encontra amparo constitucional: cobrança de impostos, reconhecimento de títulos de propriedade, provisão de licença para operação dos estabelecimentos comerciais ou de “habite-se”, autorização para edificações ou para oferta de transporte público, aprovação por parte da Defesa Civil para iniciativas que envolvam riscos, reconhecimento oficial da transmissão de bens, assim como a própria provisão de segurança pública. Esses são apenas alguns exemplos. Muito diferentes são as ações de agentes do Estado não agindo como tais, embora beneficiando-se do poder e da proteção que sua inserção profissional lhes concede: provocar insegurança para “vender” segurança ou chantagear cidadãos, cometer extorsão etc. Como vimos, e vale reiterar com ênfase, o prolongamento no tempo do poder miliciano rotiniza o domínio ilegal, a violência passa aos bastidores, tornando-se uma ameaça surda e tácita, e a governança criminal miliciana alcança o estágio aparentemente estável, que se poderia descrever como correspondente à naturalização. Nessa etapa, quando a força já foi substituída pela rotina, torna-se (como que) natural pagar (à milícia) para funcionar, para trabalhar, para manter os estabelecimentos comerciais e os serviços prestados no âmbito da comunidade. É assim, com o recuo aos bastidores do poder armado, com o rarear das punições e sua consumação fora do olhar público, que o esbulho é assimilado, metabolizado no senso comum da comunidade, e o roubo covarde torna-se uma espécie perversa de dever, invertendo os polos e transferindo para as vítimas o polo da agência. O poder real aspira à legitimidade, investindo na repetição, apostando na obediência condicionada.

No passado brasileiro colonial e pós-colonial, o poder político cancelava o livre acesso à terra, impedindo que os portadores da força de trabalho se deslocassem para espaços desocupados e colocassem em movimento a fronteira agrícola. A intervenção do jurídico-político no econômico forjou a imobilização da força de trabalho - cuja expressão mais brutal e ostensiva foi a escravidão - como estratégia chave para a acumulação de capital e o exercício do domínio de classe. O poder colonial e imperial concedeu títulos e licenças, atendendo aos interesses e, mais que isso, forjando a classe proprietária. Aí está a dinâmica distintiva do que se convencionou denominar “capitalismo autoritário”. Não parece excessivamente especulativo, portanto, sugerir a hipótese de que haja traços estruturais análogos que justifiquem a comparação analítica entre a imobilização da força de trabalho por incidência da força jurídico-política (operação distintiva e estruturante, reitere-se, do “capitalismo autoritário”) e a instauração da milícia como fonte de autoridade (afirmando-se como fonte de uma normatividade paralela que licencia). Como vimos, a instauração da autoridade que caracteriza esse tipo de governança criminal corresponde à passagem do poder miliciano da chantagem à rotinização da cobrança de taxas como condição de funcionamento da economia local, isto é, como condição para a realização do trabalho e a mera permanência de indivíduos e famílias na comunidade.

Para o desdobramento da análise, além do detalhamento do modelo miliciano de negócios e exercício de poder, para o qual a passagem segurança-autorização é chave, e à qual voltaremos adiante, algumas observações são cruciais:

  • 1) Há variações entre formas de presença e de ação tanto no interior do universo das facções como no interior do universo das milícias, seja na Maré seja em outras regiões. As diferenças dizem respeito ao espaço - às características das comunidades e bairros - e ao tempo - implicando, por exemplo, desgaste ou consolidação, existência ou não de projetos expansionistas -, a conjunturas peculiares das disputas geopolíticas - a afirmação de poder local envolve relações mais ou menos estáveis com os demais, sobretudo os que atuam em áreas contíguas -, nas quais se chocam facções do tráfico e coalizões milicianas, considerando-se que cada um desses segmentos também é atravessado por conflitos. A qualificação das conjunturas depende de avaliações sobre mudanças políticas aos níveis municipal, estadual e federal, assim como do exame de alterações na orientação das chamadas políticas de segurança pública, muitas vezes decorrentes de disputas travadas no interior das instituições policiais, de que participam milicianos ou atores a eles diretamente vinculados. Portanto, o uso do singular e as generalizações, “a milícia”, “o tráfico”, porventura convenientes à formulação sintética de hipóteses interpretativas, precisam ser lidos com cautela.

  • 2) O controle sobre a circulação de pessoas e veículos é um dos aspectos mais importantes tanto para a sociabilidade, o acesso a serviços públicos, o lazer, a vida religiosa, cultural e econômica, quanto para a formação de mapas mentais. O estabelecimento de fronteiras, por meio do constrangimento e da ameaça de uso da força, aciona uma espécie de fixação ortopédica de identificações totêmicas (SOARES, BILL e ATHAYDE, 2005SOARES, Luiz Eduardo; BILL, Mv; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.) com os territórios artificialmente delimitados - cujas bordas não coincidem, do ponto de vista qualitativo, dada sua origem na violência, com os registros dos afetos, com os contornos da vida prática, nem com as definições que normatizam as cartografias oficiais. Tais fronteiras correspondem ao âmbito de alcance dos poderes locais, de que os espaços recortados representariam extensões simbólicas (metonímicas), contaminando os moradores com suas marcas distintivas, isto é, comprometendo, verticalmente, o conjunto de habitantes com alianças e antagonismos, transferindo-lhes direitos de acesso e interdições. Como se sabe, a identificação com totens serve para distinguir grupos e, apenas vicariamente, promove comunhão ou igualdade. Em si, assim como os signos, os totens são a priori arbitrários e motivados apenas a posteriori, isto é, ao produzirem, pela grade de oposições, determinada ordem. Transpondo para o campo da circulação entre territórios, poder-se-ia sugerir o seguinte exemplo: moradores das áreas controladas pelo CV ficam impedidos de transitar nos domínios do TCP - nos quais o uso de roupas vermelhas é vetado. Isso não significa que moradores se identifiquem com o CV ou com a facção rival, nem que se sintam pertencentes a um ou outro grupo. Simplesmente são obrigados a conviver com as classificações e suas consequências. O ordenamento restritivo da circulação opera simbolicamente como reafirmação de poder. Funciona como linguagem performativa que incita o atrito com a vontade livre, isto é, fricciona a hipótese do poder para acender sua chama - para fazê-lo passar do plano virtual para a realidade vivida. Recordemo-nos de que o poder é virtualidade e expectativa, por isso depende de sinalizações ritualizadas e evocações sucessivas. As limitações à circulação angustiam namorados, amigos e parentes, frequentadores de igrejas e de postos de saúde, profissionais de saúde e assistência social, estudantes, funcionários de escolas e professores, usuários de serviços diversos e quem se dirige a quadras de esporte, shows musicais, bailes e outros ambientes de lazer. Os bloqueios não separam apenas territórios vizinhos, não são absolutos, nem contínuos no tempo. Há lapsos, relaxamento e possibilidade de negociação, sobretudo para quem consegue justificar a motivação para ingressar no terreno inóspito. Mas exatamente porque há alguma flexibilidade, maior ou menor de acordo com a temperatura das tensões conjunturais, é grande o temor de mal-entendidos - em certas circunstâncias eles são fatais, e as narrativas sobre episódios dramáticos fervilham no espírito dos transeuntes. Gênero e idade, vestuário, linguagem corporal, dias da semana e horários são fatores de agravamento ou neutralização dos mecanismos de controle.

Por ser muito presente no cotidiano de moradores e moradoras, os limites à circulação emergem com frequência nos diálogos com os pesquisadores, se nos ativermos ao caso da Maré - embora se trate de questão significativa e indissociável da problemática da violência para as camadas populares fluminenses de um modo geral. A situação mais destacada, na Maré, é aquela conhecida por “faixa de Gaza”, que divide comunidades sob domínio do CV e do TCP. Contudo, a área dominada por milícia também regula eventualmente a travessia de fronteiras, inclusive associando normas de circulação a regras de conduta. O exemplo a seguir serve para ressaltar que os temas separados pela análise muitas vezes surgem combinados na experiência cotidiana. Em 11 de julho de 2019, o repórter Mario Hugo Monken, do site Eu, Rio!, na matéria “Milícia age na Maré sem ser alvo da polícia ou do tráfico”, afirma que

recentemente, surgiram informações de que os paramilitares teriam imposto uma regra para moradores que curtem bailes fora das comunidades (refere-se à Praia de Ramos e Roquete Pinto, controladas pela milícia desde 2006). Segundo a denúncia, quem for para baile em favelas dominadas por facções do tráfico é aconselhado a não voltar para Ramos. Será expulso da comunidade com a roupa do corpo, sem direito a levar nada (MONKEN, 11/07/2019MONKEN, Mario Hugo. “Milícia age na Maré sem ser alvo da polícia ou do tráfico: Grupo atua nas comunidades Praia de Ramos e Roquete Pinto”. Eu, Rio!, Notícias, 11 jul. 2019. Disponível em: https://eurio.com.br/noticia/8366/milicia-age-na-mare-sem-ser-alvo-da-policia-ou-do-trafico.html
https://eurio.com.br/noticia/8366/milici...
).

Na sequência, a reportagem lembra que dois milicianos respondem na Justiça pelo homicídio de um rapaz, que teria sido assassinado em 2016 por urinar em local impróprio.

Valeria a pena acrescentar que os limites impostos à circulação pelos diversos poderes criminosos locais redefine a relação da sociedade com a territorialidade, sobretudo aquela em que os indivíduos se radicam por biografia, vínculos afetivos, moradia e trabalho. Assim como as percepções do pertencimento, as experiências de distância e proximidade transcendem a dimensão material, geográfica ou física, na medida em que o lugar onde se vive, a própria paisagem, como Tim Ingold (2000INGOLD, Tim. The Perception of Environment: Essays. Londres: Routledge, 2000.) nos ensina, é muito mais do que o pano de fundo do cotidiano: imbrica-se com os movimentos do corpo e do espírito, tornando-se parte do que somos (SOARES, 2019cSOARES, Luiz Eduardo. “A grande transformação”. In: SOARES, Luiz Eduardo. O Brasil e seu duplo. São Paulo: Todavia, 2019c, pp. 93-108.). Sublinhe-se este fenômeno: no Rio de Janeiro, um vetor particularmente insidioso e perverso opera a mediação entre o pertencer, o habitar e frequentar, o reconhecer-se vinculado ao território e o apropriar-se de cenários da cidade - a interdição seletiva do acesso a espaços públicos, ditada por governança criminal.

Projetam-se sobre os territórios outros efeitos dos poderes locais, entre eles os deslocamentos populacionais (migrações intrametropolitanas), atraídos por empreendimentos imobiliários milicianos. O adensamento demográfico nas áreas sob seu domínio interessa às milícias, na medida em que expande a base da exploração econômica, como veremos. Por isso, e também porque constituem fontes pródigas de ganhos, algumas milícias, sobretudo na última década, têm investido na construção de prédios para o mercado de baixa renda. Os preços são inferiores à média porque os terrenos, muitas vezes públicos (há também tomada pela força de propriedades privadas), são invadidos, os materiais são precários, a mão de obra não é qualificada e as obras fogem de parâmetros técnicos, impostos e do escrutínio estatal para licenciamento. Não surpreende que tenha havido desabamentos com vítimas fatais.

  • 3) É importante notar que milícias e facções do tráfico encontram sociedades locais com graus distintos de organização e diferentes, sob vários aspectos, entre os quais a presença maior ou menor de entidades que prestam serviços de interesse comum. Os poderes não atuam no vácuo, nem oprimem massas homogêneas numa realidade uniforme. A dominação local enfrenta refrações, resistências e se choca com - ou tenta articular-se a - políticas e instituições públicas, associações e movimentos sociais. As articulações variam da aliança à tentativa de controle e cooptação, até o extremo do antagonismo, que por sua vez varia do boicote a ataques frontais.

  • 4) A milícia vem se convertendo em projeto político de alcance institucional, não apenas econômico e micropolítico. Nas áreas sob domínio de grupos armados de traficantes, a postura adotada relativamente à política, a políticos e eleições, pouco mudou ao longo das décadas. O acesso ao território para fazer campanha, sobretudo boca de urna, e o direito de distribuir material e afixar cartazes é restrito e negociado. A exclusividade é mais cara. Além de valores pecuniários, podem entrar no acordo com o candidato outros itens, como, por exemplo, o compromisso, confirmando-se a eleição, de providenciar o atendimento a certas demandas da comunidade por serviços e infraestrutura, de mudar as condições do encarceramento a que porventura estejam submetidas lideranças do tráfico ou de evitar intervenções do Estado nocivas aos interesses do grupo criminoso. O tráfico, geralmente, não parece ter ido além dessa pauta. A referência a demandas populares é especialmente importante porque indica a fidelidade ao padrão clientelista convencional (DINIZ, 1982DINIZ, Eli. Voto e máquina política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.) e, ao mesmo tempo, a substituição pelos “donos do morro” dos antigos líderes comunitários, os intermediários (brokers), cuja influência na comunidade dependia de contatos privilegiados com atores políticos e tomadores de decisão, responsáveis por alocação de recursos e obras públicas. A troca de votos por obras, antes da nova governança criminal, dava o tom da política “populista”. Sob o regime do tráfico, a mudança se concentra no interior da comunidade, reduzindo-se o espaço para a emergência e a consolidação de lideranças. A dinâmica que esvaziou lideranças independentes também garroteou o associativismo local, tão vivo e promissor nos primeiros anos da redemocratização (BOSCHI, 1987BOSCHI, Renato. A arte da associação: Política de base e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Iuperj, 1987.).

O caso das milícias é bem diferente. Quando se firmaram sob o formato atual, no estado do Rio de Janeiro, a partir dos primeiros anos do século XXI - beneficiando-se da longa história de respaldo institucional a scuderies e esquadrões da morte, sob diferentes nomes, nos quais os porões da ditadura recrutaram agentes de tortura e assassinato, cuja atuação na Baixada Fluminense prescindia de disfarces ou justificativas -, as milícias escudaram-se na proteção de autoridades. Prefeitos, políticos e responsáveis pela segurança pública declaravam que elas não existiam ou que constituíam autodefesa comunitária. Apesar de ter contado com o apoio de milicianos na eleição de 2006, em 2007 o governo estadual autorizou a primeira ação policial contra as milícias, por meio da Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco), sob o comando do delegado Claudio Ferraz. Até 2010, conforme entrevista que ele nos concedeu, quase 500 milicianos foram presos. Esse resultado foi possível porque, em maio de 2008, a tortura e as agressões de que foram vítimas um fotógrafo, um motorista e uma repórter do jornal O Dia, que investigavam a milícia na favela do Batan, na Zona Oeste do Rio, impactaram a opinião pública, forçando a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) a instaurar a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre essas organizações criminosas, solicitada pelo deputado estadual Marcelo Freixo mais de um ano antes e, desde então, engavetada pelo presidente Jorge Picciani17 17 Matéria publicada no jornal Extra em 31 de maio de 2008 (O GLOBO, 14/10/20210) sintetiza os fatos. .

A popularidade conquistada pela CPI facilitou o trabalho de Ferraz, garantindo-lhe apoio para avançar pelo menos até que instâncias superiores fossem ameaçadas, o que acabou ocorrendo em 2011, provocando sua destituição. De todo modo, o novo quadro impediu que políticos continuassem a negar a existência das milícias ou a defendê-las ostensivamente, obrigando-as a mudar seus métodos. “No sapatinho”: A evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011), influente pesquisa coordenada por Ignacio Cano e Thais Duarte (2012CANO, Ignacio; DUARTE, Thais. ‘No Sapatinho’: A evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). Rio de Janeiro: LAV/Uerj; Fundação Heinrich Boll, 2012.), mostrou os primeiros efeitos desse esforço de adaptação: multiplicaram-se os cemitérios clandestinos, porque já não era conveniente exibir as punições sádicas de moradores recalcitrantes e as execuções de contestadores da ordem local.

Mais desinibidos e imprudentes ou mais discretos, os milicianos jamais deixaram de pleitear espaços nos governos e nas casas parlamentares, de início em gabinetes alheios, depois assumindo cadeiras. O principal traço distintivo das milícias, no que tange o relacionamento com a política, tem sido sua disposição de concorrer a cargos eletivos. Os próprios milicianos assumem candidaturas, em vez de vender apoio a terceiros, no varejo ou no atacado - neste caso, tentando reduzir comunidades a simulacros dos “currais eleitorais”, típicos da Primeira República. Essa vocação política reforça o - e é reforçada pelo - aumento progressivo da quantidade de candidatos policiais (lembremo-nos de que milicianos, com frequência, também o são), tendência que se intensificou desde que os valores autoritários dominantes nas polícias deixaram de servir apenas a agendas corporativistas, graças à mediação de operadores da ultradireita que vislumbraram seu potencial na ideologização da disputa pelo poder no Brasil. Se, na origem, as motivações foram vantagens materiais, garantia de impunidade, “lavagem” de imagem, legitimação dos poderes locais, facilidades para agir, hoje a tudo isso acrescenta-se a adesão a bandeiras antidemocráticas, por oportunismo, mas também por afinidades naturais.

  • 5) Chegamos às polícias, novamente. Tomemos apenas o caso da Maré: as entrevistas que nos concederam lideranças de ambas as facções do tráfico são respaldadas por depoimentos informais de moradores, que, sob a garantia de anonimato e se referindo a cada uma das facções, descrevem cenas em que policiais recolhem o pagamento do “arrego”. O material relativo à cumplicidade entre traficantes e policiais é farto, e não apenas lá (SOARES, BILL e ATHAYDE, 2005SOARES, Luiz Eduardo; BILL, Mv; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.).

Considerando-se os vínculos que atestam a mútua permeabilidade entre os mundos “inimigos” e relativizam a própria ideia de legalidade, poder-se-ia afirmar que a experiência autoritária conduzida pelas facções do tráfico de drogas corresponde a uma espécie de ensaio geral e cumpre tarefa terceirizada - embora, evidentemente, não planejada - pelo Estado. Na prática, as facções inauguraram um campo de experimentação de competitivas startups, dedicadas ao comércio varejista de substâncias ilícitas. E o fizeram graças a seu empreendedorismo extralegal, induzido por política pública oficiosa, que consiste na articulação entre proibição das drogas e proteção mitigada. O adjetivo mitigado é necessário porque a referida proteção é ambivalente, oscila conforme as conjunturas políticas e a circulação de diferentes grupos policiais em postos cuja autoridade incide sobre as negociações que se dão no terreno - o “arrego”18 18 Conferir a tese de doutorado de Michel Misse, pioneiro na conceituação e na análise do mercado de bens de proteção (MISSE, 1999). . O campo de experimentação que o tráfico representou e a duradoura linhagem histórica das autonomizações de nichos policiais serviram de laboratório para a adoção plena, por parte de policiais, do protagonismo criminal, sob modelo miliciano19 19 Observe-se que a história das autonomizações de nichos policiais culminaria — projetando-se o fenômeno no plano superior — no engendramento do enclave institucional, que, por sua vez, pode ser compreendido como a realização dialeticamente exponenciada e transfigurada dos nichos autônomos, tomados por aquilo que essencialmente os definiria. .

A experimentação tráfico-de-drogas-em-favelas, posta em marcha pelo Estado (por sua conivência, depois seu enlace), terceirizou custos, responsabilidades criminais e os riscos envolvidos na montagem do laboratório de testes com vistas à efetivação (interpretando-se em retrospecto) de uma ordem criminal mais lucrativa e segura (cf. SOARES, 2020SOARES, Luiz Eduardo. “Democracia despedaçada: A polícia contra o Estado - e como meu nome foi parar no dossiê do Ministério da Justiça”. Piauí, Anais da Segurança, n. 168, set. 2020.).

Aspectos centrais da governança miliciana

Em síntese, eis o que é e o que faz a milícia, no estado do Rio de Janeiro - segundo informações que se encontram dispersas na mídia e nas pesquisas citadas. A milícia que ocupa uma área da Maré constitui apenas um dos casos incluídos na descrição abrangente. As situações empíricas correspondem a combinações distintas das modalidades elencadas.

  • 1) Grupo armado sob comando centralizado e organizado por divisão de trabalho, que visa a benefícios econômicos e políticos por meios ilegais - sem excluir os legais, sempre que conveniente, como a participação em eleições -, dominando territórios e populações. Entre os membros do grupo criminoso há policiais e/ou ex-policiais, ou associados a policiais da ativa, capazes de influenciar decisões institucionais e proporcionar acesso a informações sobre atividades policiais. O domínio se manifesta sob a forma de ocupação, isto é, presença permanente, ostensiva ou não, de agentes armados em território habitado por comunidade vulnerável ou de baixa renda, cujo acesso aos poderes republicanos é precário.

  • 2) Vicariamente, atua em bairros de camadas médias ou condomínios, provendo serviços de segurança privada informal (ilegal), eventualmente valendo-se de meios extralegais (sutis ou rudimentares) para impor-se. Nesse caso não há ocupação nem controle da sociedade local, tampouco se agenciam as outras modalidades de ganho assinaladas na sequência.

Vejamos com mais detalhes as diferentes modalidades de intervenção:

  • a) Instaura-se monopólio da venda de botijões de gás a preços superiores aos da concorrência (portanto, abolindo-a), viabilizado por ameaças sustentadas na coerção - que corresponde ao potencial reconhecido pela comunidade de mobilização de força armada, coletiva e organizada -, sendo vedado o recurso às polícias e demais instituições. Ressalte-se que a referida vedação deriva da expectativa de retaliação, mas também da convicção de que as instituições não se opõem às milícias, pelo contrário, abrigam e protegem policiais associados diretamente aos delitos em questão - as entidades são vistas, salvo exceções, como continuidades ou extensões uma da outra, com o que se transfere autoridade (originalmente policial, no plano do idealismo legalista) à milícia, e arbitrariedade (originalmente miliciana) às polícias.

  • b) Instaura-se monopólio na provisão de serviços de TV por assinatura por meio de alteração material na infraestrutura de comunicação.

Note-se que o caso (a) não envolve o bloqueio material nem a extinção física da concorrente, que ocorre no caso (b), mas sim interdição ao ato de consumo em fonte alternativa de abastecimento: é de obediência que se trata. Exige-se disposição ativa de consumo na fornecedora da milícia. Suprime-se a liberdade negativa do cidadão, vale dizer, seu direito de não consumir onde não desejar, que corresponde ao cancelamento da liberdade positiva de escolher onde consumir - a opção não consumir está excluída pelo imperativo da necessidade, evidentemente. Vale salientar a supressão da liberdade negativa porque o tema é pertinente à reflexão mais ampla sobre tipos de governança. Na segunda modalidade, basta à milícia que os moradores se mantenham passivos ante a adulteração na rede física que estabelece as conexões de TV, por exemplo. Pagarão pelo acesso, o que envolve disposição ativa, porém não necessariamente um valor maior do que pagariam aos provedores formais.

  • c) Instaura-se o monopólio do transporte público, o que não impede que sejam negociadas autorizações para taxistas e motoristas de aplicativos.

  • d) O comércio é submetido a “exação fiscal” paralela. As taxas cobradas aos comerciantes podem variar de acordo com localização, dimensões e rendimento. Na etapa histórica de implantação do poder local miliciano, pretendia-se justificar a cobrança como pagamento pela prestação do serviço de segurança, ainda que o constrangimento que envolvia a negociação impedisse defini-la como operação típica de mercado, que supõe equidade entre contratantes e o livre exercício da vontade. A consolidação das relações assimétricas produziu o deslocamento semântico do discurso ordinário em que se descreve a prática do “fisco” informal: da compra e venda de segurança se passa ao valor da autorização para funcionar - aqui retomamos a reflexão anterior para estendê-la em uma direção distinta, mas complementar. Salta-se da troca, embora assimétrica, sob chantagem, para a admissão tácita do poder que, convertendo-se em fonte de credenciamento ou licença, aspira a alguma forma de legitimidade. É pela mediação desse poder que o agente econômico alcança reconhecimento, viabilizando-se como tal. Reconhecer, licenciar, autorizar: eis o movimento criminoso simulando a operação jurídico-política que confere titularidade sobre terras ou imóveis, atestando o direito de propriedade ou de usufruto que licencia agentes econômicos.

Entre a força e o sujeito, entre a rusticidade brutal da chantagem e a “visão de mundo”, entre a violência direta da ameaça e o imaginário, interpõe-se o instituído, a referência objetiva que o tempo e a reiteração consolidam. O instituído, por definição, é o que vigora: o fait accompli - a imposição reiterada de determinada realidade- acaba acionando uma paradoxal dinâmica de autolegitimação (SOARES, 2020SOARES, Luiz Eduardo. “Democracia despedaçada: A polícia contra o Estado - e como meu nome foi parar no dossiê do Ministério da Justiça”. Piauí, Anais da Segurança, n. 168, set. 2020.b).

Portanto, poder-se-ia sugerir que a transição da venda de segurança para a cobrança de taxa de licenciamento da atividade, isto é, a passagem da chantagem nua e crua para a autorização, corresponde tanto à reativação de um atavismo histórico brasileiro (imobilização da força de trabalho articulando o autoritarismo), quanto à incorporação de novos ingredientes intersubjetivos e micropolíticos no processo de enraizamento do poder local miliciano.

  • e) Apropriação de terra pública (eventualmente confiscam-se terrenos privados) para edificações irregulares. Ocupação de conjuntos habitacionais construídos no âmbito de programas governamentais de habitação popular, antes que sejam distribuídos aos beneficiários. Nesse caso, a milícia vende as unidades e controla o condomínio, exigindo dos residentes o pagamento de taxas mensais. Há situações em que a milícia assume o controle de conjuntos habitacionais populares já ocupados, mas nesses casos reproduzem-se, em escala limitada, os métodos e as estratégicas já expostas, aplicadas a comunidades.

  • f) Merece abordagem especial a questão das drogas, que se associa à problemática do controle das condutas. Fez parte da construção da imagem positiva das milícias, que circulou amplamente nas etapas iniciais de sua implantação no formato atual, isto é, sob a forma de domínio territorial, o repúdio às drogas, que se manifestava seja na recusa a envolver-se com seu comércio seja a admiti-lo em seus domínios. Mais ainda: sequer seu consumo era permitido, ao menos ostensivamente. Fazia sentido. Afinal, o produto que se oferecia era segurança e os traficantes personificavam a matriz do crime, da qual derivariam as demais práticas, como roubos e furtos, a cuja repressão as milícias, supostamente, se destinavam20 20 Sobre tais vínculos, as diferenças e os problemas de qualificação, é fundamental consultar Misse (2011). . A milícia figurava como a alternativa, para as classes populares, ao tráfico. De um lado, a ordem, a disciplina, o reino de condutas compatíveis com os princípios tradicionais da família, herança que os imigrantes nordestinos prezavam. Do outro, caos e humilhação, o espaço das inversões: pré-adolescentes armados dando ordens a pais de família, filhos expostos ao consumo público de drogas, bailes funk celebrando a devassidão, meninas precocemente sexualizadas etc. Eram evidentes também os ecos dos discursos religiosos, propagados por igrejas evangélicas neopentecostais que proliferavam. O preço a pagar às milícias, portanto, se justificaria, e a promiscuidade entre milicianos e policiais, até mesmo a sobreposição entre ambos os papéis e personagens, era bem-vinda. O moralismo proibicionista cumpriu sua função legitimadora, mas não era suficientemente relevante - ou deixou de sê-lo, na medida em que o poder miliciano se consolidou - para contrapor-se aos interesses econômicos, que terminaram por se impor: as milícias aderiram ao lucrativo negócio das substâncias ilícitas. Seu grande recurso continua sendo o vínculo orgânico com as polícias, que por vezes se mobilizam para neutralizar o inimigo comum, favorecendo-as. O maior empecilho para os grupos milicianos, sobretudo depois do avanço político da ultradireita no país, de que se beneficiaram os segmentos policiais que lhes são mais afins, talvez sejam as disputas internas a seu campo de atuação. Os ganhos atiçam ambições e conflagram relações geopolíticas no mundo do crime, enquanto as instituições definham, à sombra de ameaças protofascistas.

As diferenças entre legalidade e ilegalidade, na vida social, são neutralizadas pelas conexões que ligam as organizações criminosas às polícias, cujas formas variam do “arrego”, no caso do tráfico, ao protagonismo, no caso das milícias: o pano de fundo permanente é a inconfiabilidade de instituições cujas ações são arbitrárias, ameaçadoras e imprevisíveis, gerando medo e insegurança.

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Fontes da imprensa

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  • 2
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  • 3
    São elas: Baixa do Sapateiro, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Conjunto Pinheiros, Marcílio Dias, Morro do Timbau, Nova Holanda, Nova Maré, Novo Pinheiro (popularmente chamado Salsa e Merengue), Parque Maré, Parque Roquete Pinto, Parque Rubens Vaz, Parque União, Praia de Ramos, Vila do João, Vila dos Pinheiros e Conjunto Esperança.
  • 4
    Conferir Rio em Síntese, do Instituto Pereira Passos (IPP). Disponível (on-line) em: https://www.data.rio/pages/rio-em-sntese-2
  • 5
    IDH calculado segundo 126 bairros ou grupos de bairros do município do Rio de Janeiro em 2000. Disponível (on-line) em: https://www.data.rio/
  • 6
    Disponível (on-line) em: https://peoplespalaceprojects.org.uk/wp-content/uploads/2019/05/INFOGRAFICOS_PESQUISA_CONSTRUINDO_PONTES_AGO21.pdf
  • 7
    Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP).
  • 8
    Os resultados gerais da pesquisa estão disponíveis em quatro livros e um boletim temático, todos disponíveis (on-line) em: https://www.redesdamare.org.br/br/publicacoes#livros
  • 9
    Essa favela não foi considerada nas análises aqui apresentadas.
  • 10
    A Tabela 1 se refere à extorsão ou invasão de domicílios e não destaca o autor da violação, nem o medo dirigido aos agentes ou à atuação policial. Contudo, as tabelas seguintes se concentram no papel da atuação policial e a seção subsequente trabalha essa questão.
  • 11
    As falas, nesse caso como no próximo, não foram transcritas exatamente nos termos enunciados pelos entrevistados, embora as palavras sejam muito próximas às originais e fiéis a seu sentido.
  • 12
    O PCC é uma facção do tráfico de drogas que monopolizou o comércio de drogas no estado de São Paulo. Embora atue principalmente no território paulista, atualmente pode ser considerada uma das maiores organizações criminosas do Brasil, presente, direta ou indiretamente, em todos os estados brasileiros.
  • 13
    http://www5.mprj.mp.br/assImprensa/20140402_ES_AreasDeMilici.pdf
  • 14
    Para a história e a pré-história das milícias, são imprescindíveis, entre outros: Souza Alves (2020), Otavio e Jupiara (2015), Burgos (2002), Paes Manso (2020), Souza e Silva, Fernandes e Braga (2008), Cano e Duarte (2012), Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos (2020) e Hirata et al. (2021). Soares et al. (2010) apresentam tratamento ficcionalizado de situações reais, segundo depoimentos reunidos até a data. Soares (2020c), em depoimento a Francisco Ourique e Marcio Scalercio, apresenta um retrato das milícias e analisa os desafios que representam para a democracia.
  • 15
    Segundo dados relativos a 2019, as facções do tráfico ocupavam 233,13 km2 do território do estado do Rio e as milícias, 267,27 km2. Desagregando: o CV dominava 166,16 km2, o TCP, 61,88 km2 e o ADA, 5,09 km2. As operações policiais realizadas nos territórios ocupados por milícias foram 65 e pelo tráfico, 712. Desagregando: no território do CV, 554; do TCP, 146; do ADA, 12. Se tivesse havido tratamento igual, teriam ocorrido, nos territórios sob controle das milícias, 816,27 operações, em vez de 65 (HIRATA et al., 2021).
  • 16
    Ver o ensaio “Maré e a longa gestação do novo mundo”, com base na pesquisa “Construindo Pontes” (SOARES, 2021).
  • 17
    Matéria publicada no jornal Extra em 31 de maio de 2008 (O GLOBO, 14/10/20210) sintetiza os fatos.
  • 18
    Conferir a tese de doutorado de Michel Misse, pioneiro na conceituação e na análise do mercado de bens de proteção (MISSE, 1999).
  • 19
    Observe-se que a história das autonomizações de nichos policiais culminaria — projetando-se o fenômeno no plano superior — no engendramento do enclave institucional, que, por sua vez, pode ser compreendido como a realização dialeticamente exponenciada e transfigurada dos nichos autônomos, tomados por aquilo que essencialmente os definiria.
  • 20
    Sobre tais vínculos, as diferenças e os problemas de qualificação, é fundamental consultar Misse (2011).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2021
  • Aceito
    03 Dez 2021
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