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Um questionamento na oclusão percutânea das comunicações interatriais: com quantas cajadadas se mata um, dois ou mais coelhos?

A questioning of the percutaneous occlusion of interatrial communication: how many birds can you kill with one, two or more stones?

EDITORIAL

Um questionamento na oclusão percutânea das comunicações interatriais: com quantas cajadadas se mata um, dois ou mais coelhos?

A questioning of the percutaneous occlusion of interatrial communication: how many birds can you kill with one, two or more stones?

Carlos A. C. Pedra

Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia - São Paulo, SP. Hospital do Coração da Associação do Sanatório Sírio - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Carlos A. C. Pedra Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia Av. Dr. Dante Pazzanese, 500 - 14º andar - Ibirapuera São Paulo, SP - CEP 04012-909 Tel.: (11) 5085-6114 - Fax: (11) 5085-6196 E-mail: cacpedra@uol.com.br

Nesta edição da Revista Brasileira de Cardiologia Invasiva, Chamié et al.1 publicam um artigo interessante sobre oclusão de defeitos do septo interatrial utilizando mais de uma prótese. O artigo, além de bem escrito e de refletir o excelente nível técnico do autor e sua equipe, mostra que o implante de duas próteses para oclusão de defeitos do septo interatrial é factível, seguro e eficaz. Apesar de tal abordagem ter sido descrita anteriormente, os resultados imediatos e de seguimento favoráveis apresentados por esse grupo com sólida experiência no fechamento percutâneo das comunicações interatriais (CIAs) nos incentivam a aplicá-la sempre que necessário.

As comunicações interatriais múltiplas correspondem a cerca de 10% dos defeitos do septo interatrial do tipo ostium secundum, como demonstra a literatura e o artigo em questão. Esse diagnóstico freqüentemente passa despercebido durante o ecocardiograma transtorácico. Mesmo a ecocardiografia transesofágica possui limitações, como bem ressaltado pelos autores, já que o septo póstero-inferior, onde se localiza a maioria dos orifícios adicionais, é de difícil avaliação por esse método. A ecocardiografia intracardíaca, nem sempre disponível na nossa realidade, é, provavelmente, a modalidade de imagem mais sensível para detecção de um defeito adicional no septo interatrial. A angiografia por ressonância magnética também pode ser utilizada para detecção dessas CIAs.

É importante ressaltar que defeitos múltiplos do septo interatrial podem se apresentar de formas distintas do ponto de vista morfológico, necessitando, portanto, de estratégias terapêuticas variadas2. Existem as CIAs múltiplas decorrentes da presença de septo multifenestrado: os orifícios em geral são pequenos e se encontram adjacentes uns aos outros (como uma peneira), estando freqüentemente associados a septo redundante ou mesmo aneurismático. Nesses casos, a estratégia mais apropriada é a utilização de um único dispositivo com duplo disco de tamanhos iguais e "sem" cintura central (apenas uma mínima cintura ou pino de conexão), implantado através do orifício mais central, assegurando-se que ambos os discos cubram todos os defeitos mais periféricos. As próteses Amplatzer Cribiforme (AGA), Intrasept (Cárdia), Helex (Gore) e CardioSEAL (NMT) possuem essas características e podem ser utilizadas nessas situações, dependendo da disponibilidade e da preferência do operador, gerando resultados semelhantes.

Existem as CIAs múltiplas, caracterizadas pela presença de defeito maior geralmente localizado na porção mais anterior (retroaórtica) do septo e de um ou mais defeitos adicionais próximos a esse orifício, com distância menor que 7 mm a 8 mm. Esses defeitos adicionais, como comentado anteriormente, em geral se localizam na porção posterior ou póstero-inferior do septo. Como se localizam perto da veia cava inferior, invariavelmente o cateter de furo terminal utilizado para o posicionamento do guia na veia pulmonar para posterior determinação do diâmetro estirado acaba por atravessá-los, muitas vezes sugerindo um diagnóstico que previamente não fora realizado pela ecocardiografia, como bem ilustrado pelos autores. Nesses casos, a insuflação do balão durante a determinação do diâmetro estirado do maior orifício geralmente causa um desvio do septo interatrial que comprime o defeito adicional, levando a sua oclusão ou redução sensível de seu tamanho. Tal manobra é importante para se estimar se os discos do dispositivo a ser utilizado realmente recobrirão o defeito adicional. Como o disco esquerdo da prótese Amplatzer de CIA possui um raio 7 mm a 8 mm maior que a cintura central (dependendo de seu tamanho), acredita-se que defeitos adicionais dentro dessa área de alcance serão recobertos pelo mesmo. Tal pensamento pode ser aplicado para utilização da prótese Figula (Occlutech), que é muito semelhante à Amplatzer, ou da Atriasept (Cardia), cujos discos possuem diâmetro 14 mm maior que a cintura central. Nesses casos, o implante de um dispositivo único no defeito maior geralmente é suficiente para cobrir o(s) orifício(s) adicional(is) e resultar em desfechos favoráveis.

Outros tipos de CIAs múltiplas caracterizam-se pela presença de defeitos múltiplos distantes entre si (mais que 7 mm a 8 mm). Esses são os casos mais desafiadores do ponto de vista técnico e que necessitam do implante de dois ou mais dispositivos para oclusão completa do septo. São esses os casos que mereceram destaque no artigo apresentado pelo dr. Chamié e sua equipe. Após determinação do diâmetro estirado de ambos os defeitos, o menor em geral é inicialmente abordado com uma prótese menor, seguido do implante de uma prótese maior no maior orifício, como bem descreveram os autores. Os discos da prótese maior podem abraçar, ficar intercalados ou mesmo distantes de ambos os discos da prótese menor. Apesar da exeqüibilidade técnica e da eficácia de tal abordagem terem sido demonstradas no início desta década, vários questionamentos foram realizados em relação a sua segurança e possíveis efeitos adversos. A presença de duas (ou mais) próteses metálicas no septo interatrial poderia, teoricamente, levar a maiores riscos de perfuração cardíaca e dificultar o processo de endotelização, favorecendo a ocorrência de fenômenos tromboembólicos. Outro aspecto em questão seria se o contato ou a proximidade entre dois corpos estranhos metálicos dentro do coração não poderia alterar a carga elétrica ao redor dos mesmos e induzir o aparecimento de arritmias. Apesar de essa consideração teórica ser interessante, o seguimento desses pacientes não tem demonstrado tais complicações. Outro possível efeito adverso, felizmente não documentado na literatura, seriam as obstruções ao fluxo sanguíneo ao redor de estruturas nobres adjacentes (veia pulmonar superior direita, veias cavas e seio coronário). Talvez a única limitação para o implante de dois dispositivos no septo interatrial (e importante em nosso meio) seria o incremento do custo do procedimento, que deve ser avaliado dependendo de condições locais.

O artigo em questão ainda traz uma novidade técnica que seria o uso de um segundo dispositivo para ocluir fluxos residuais significativos após pelo menos um ano do implante de um primeiro dispositivo. É sabido que a maioria dos fluxos residuais presentes imediatamente após o implante desaparece ao longo do primeiro ano de seguimento, resultando em taxas de oclusão de mais de 90% a 95%, dependendo da prótese utilizada. Os fluxos residuais persistentes após esse período geralmente são pequenos (menos de 3 mm a 4 mm) e não geram repercussão hemodinâmica (o ventrículo direito volta às dimensões normais). O paciente, portanto, é considerado curado do ponto de vista clínico. O único cuidado que se recomenda nesses pacientes é a realização de profilaxia para endocardite, quando necessário. A ocorrência de fluxos significativos que necessitem de reintervenção, como demonstraram os autores em dois pacientes de sua casuística, é rara. Apesar de o implante tardio de um segundo dispositivo para fechamento de fluxos residuais após tratamento percutâneo do forame oval já ter sido descrito3, na Suíça, o emprego dessa estratégia para oclusão de CIAs residuais não é freqüentemente encontrado na literatura. Daí mais um mérito dos autores do artigo em questão: é bom saber que o implante de um segundo dispositivo nesses casos não oferece dificuldades técnicas e é eficaz. Apesar de raramente necessárias, um coelho às vezes só morre com duas cajadadas!

Recebido em: 21/1/2008

Aceito em: 7/2/2008

Ver artigo relacionado na página 77

  • 1. Chamié F, Chamié D, Ramos S, Tress JC, Victer R. Oclusão percutânea dos defeitos do septo atrial utilizando mais de uma prótese. Rev Bras Cardiol Invas. 2008;16(1):77-85.
  • 2. Pedra CA, Pedra SR, Esteves CA, Cassar R, Pontes Jr SC, Braga SL, et al. Transcatheter closure of secundum atrial septal defects with complex anatomy. J Invasive Cardiol. 2004;16(3):117-22.
  • 3. Schwerzmann M, Windecker S, Wahl A, Nedeltchev K, Mattle HP, Seiler C, et al. Implantation of a second closure device in patients with residual shunt after percutaneous closure of patent foramen ovale. Catheter Cardiovasc Interv. 2004;63(4):490-5.
  • Correspondência:

    Carlos A. C. Pedra
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2008
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