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DESENVOLVIMENTO SOCIOPOLÍTICO SUSTENTÁVEL: UMA LEITURA NORMATIVO-POLÍTICA

Resumo

Esta pesquisa apresenta uma análise acerca da importância e da necessidade da democracia para a proposição de um projeto de desenvolvimento sociopolítico sustentável, em que o Direito assume a função de assegurar a implementação e a legalidade dos procedimentos participativos. O texto apresenta três seções, nas quais aborda o cenário contemporâneo, a globalização e o significado de desenvolvimento sustentável, bem como descreve sobre a proposta de intensidade da democracia para alcançar um projeto viável de desenvolvimento sustentável, que consiga equilibrar crescimento econômico, preservação ambiental e promoção da dignidade humana. Como conclusão, defende a tese geral de que há a necessidade de um arranjo participativo, por meio do qual seja possível pensar soluções para os problemas sociais, de maneira coletiva e solidária, pois não há desenvolvimento sem justiça social.

Palavras-chave:
democracia; desenvolvimento sociopolítico; justiça social; participação

Abstract

This research presents an analysis of the importance and necessity of democracy for the proposition of a sustainable sociopolitical development project, where the law assumes the function of ensuring the implementation and legality of participatory procedures. The text presents three sections, where it addresses the contemporary scenario, globalization and the meaning of sustainable development, as well as describes the proposal of intensity of democracy to achieve a viable project of sustainable development, which manages to balance economic growth, environmental preservation and promotion of human dignity. In conclusion, it defends the general thesis that there is a need for a participatory arrangement, through which it is possible to think of solutions to social problems, in a collective and solidary way, since there is no development without social justice.

Keywords:
democracy; sociopolitical development; social justice; participation

Resumen

Esta investigación presenta un análisis de la importancia y necesidad de la democracia para la proposición de un proyecto de desarrollo sociopolítico sostenible, en el cual el Derecho asume la función de garantizar la implementación y legalidad de los procedimientos participativos. El texto presenta tres secciones, en las que aborda el escenario contemporáneo, la globalización y el significado del desarrollo sostenible, además de describir la propuesta de intensidad de la democracia para lograr un proyecto viable de desarrollo sostenible, que pueda equilibrar el crecimiento económico, la preservación ambiental y la promoción de la dignidad humana. En conclusión, defiende la tesis general de que es necesario un dispositivo participativo a través del cual sea posible pensar soluciones a los problemas sociales de forma colectiva y solidaria, porque no hay desarrollo sin justicia social.

Palabras clave:
democracia; desarrollo sociopolítico; justiça social; participación

Introdução

Adentrando o século XXI, dois fatos continuam a preocupar sobremaneira os pesquisadores da sociedade: a globalização e a exclusão social. À medida que a globalização se intensifica, em meio a fantásticas inovações tecnológicas, aumenta, também, a exclusão social, principalmente nos países ditos em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Nesse contexto, surge o questionamento: como promover o desenvolvimento e a inclusão social nesse panorama globalizado?

Realizar essa análise a partir da democracia é uma necessidade, uma vez que não há respostas às questões da globalização, podendo-se afirmar, também, que todos os modelos estatais centralizadores estão em decadência, há muito fadados ao insucesso, bem como os regimes totalitários, já esgotados. Até mesmo o liberalismo, que sobrevive em razão de manter suas fronteiras abertas ao capital, é totalmente incapaz de resolver a questão da exclusão social e tampouco de promover o desenvolvimento sociopolítico sustentável.

Para abordar uma proposta de desenvolvimento sociopolítico sustentável, esta investigação optou por fazer essa análise a partir de uma leitura normativo-política, ou seja, a investigação busca demonstrar que tal proposta ou projeto somente pode ser viável ao atribuir maior intensidade às práticas democráticas, ao mesmo tempo que o Direito, como sistema social, seja capaz de garantir a implementação e a realização de procedimentos democráticos.

A fim de executar a referida abordagem, esta pesquisa está dividida em três seções: (a) a primeira faz uma descrição do cenário contemporâneo, a partir da globalização mundial, e do conceito de desenvolvimento; (b) a segunda trabalha a ideia de desenvolvimento sustentável, bem como a complexidade de seu conceito, como teoria da justiça; e (c) a terceira e última seção apresenta a democracia como uma categoria necessária na promoção do desenvolvimento sociopolítico includente.

No que diz respeito ao método de investigação, este estudo adota os métodos: (a) hermenêutico-fenomenológico, no qual a categoria epistemológica fundamental é a compreensão e a meta é a interpretação dos fatos; e (b) analítico, referindo-se à análise conceitual e à busca pelo emprego rigoroso de conceitos. O procedimento metódico de tal análise caracterizou-se pelos seguintes momentos: análise e esclarecimento de conceitos; identificação da ideia-chave; identificação de teses, hipóteses e argumentos; identificação de problemas e inconsistências argumentativas; tentativa de resumo e reconstrução pessoal do texto.

1 O cenário contemporâneo e a ideia de desenvolvimento

A sociedade contemporânea é a chamada sociedade do risco, apontada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck ( 1998BECK, U. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Tradução: Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borras. Buenos Aires: Paidós, 1998.), em que está afetada a própria relação homem-natureza e, segundo a qual, as transformações das ameaças civilizatórias da natureza são transformadas em ameaças sociais, econômicas e políticas, o que se traduz em um desafio para o presente e o futuro, justificando-se o conceito de sociedade apresentado. Dessa maneira, a produção de riquezas vem acompanhada, sistematicamente, da produção de riscos.

Conforme Beck ( 1998BECK, U. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Tradução: Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borras. Buenos Aires: Paidós, 1998.), esta é a lógica do desenvolvimento, em que os riscos da própria modernização se consolidam em um jogo de tensões entre ciência, prática e esfera pública, cuja consequência resulta em uma crise de identidade, novas formas de organização de trabalho, novos fundamentos teóricos e novos desenvolvimentos metodológicos. Nesse contexto, Beck ( 1998, p. 210BECK, U. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Tradução: Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borras. Buenos Aires: Paidós, 1998.) afirma que há a necessidade de assimilação dos erros, bem como da discussão pública sobre a modernização, pois “a discussão pública dos riscos da modernização é o caminho para reconverter os erros em oportunidades de expansão nas circunstâncias da ciência reflexiva”.

A par dessa discussão, o peruano Oswaldo de Rivero ( 2002RIVERO, O. O mito do desenvolvimento: os países inviáveis no século XXI. Tradução: Ricardo A. Rosenbusch. Petrópolis: Vozes, 2002.) trouxe a público sua tese acerca do mito do desenvolvimento e dos países inviáveis neste século XXI. Mesmo reconhecendo que tanto o capitalismo quanto o comunismo foram produtos confeccionados nas fábricas da Revolução Industrial, Rivero ( 2002, p. 162RIVERO, O. O mito do desenvolvimento: os países inviáveis no século XXI. Tradução: Ricardo A. Rosenbusch. Petrópolis: Vozes, 2002.) apontou o fato de que, desde a primeira década deste século, a humanidade se defrontaria com a hegemonia mundial da versão mais predatória do liberalismo, a qual se trata

[…] de uma versão do capitalismo selvagem que, mais do que nunca, persegue a felicidade pela via da exacerbação da acumulação material, difundindo padrões de consumo ecologicamente insustentáveis e, por meio do mercado e da tecnologia, submetendo pessoas, empresas e nações a sua ação predatória. Agora que o comunismo ficou para trás, só interessa obter maiores lucros, dinheiro fácil e rápido, sem reparar nos custos sociais e ecológicos.

Aliado à versão do capitalismo selvagem, o atual modelo de globalização econômico-financeira é um processo predador que deixa os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, desconstruindo os progressos sociais obtidos pelo capitalismo do século XX, bem como subordinando a democracia e os direitos humanos aos interesses econômicos ( RIVERO, 2002RIVERO, O. O mito do desenvolvimento: os países inviáveis no século XXI. Tradução: Ricardo A. Rosenbusch. Petrópolis: Vozes, 2002.).

Como reflexo da globalização predatória e do capitalismo selvagem, os direitos políticos e sociais, assim como o meio ambiente, ficam subordinados à liberalização e à desregulamentação dos mercados, em uma sociedade global com mais exclusão social e desrespeito à natureza. De fato, a defesa das liberdades e da democracia parece ter desaparecido da agenda capitalista e liberal, ao passo que serviu tão somente como pano de fundo para seu crescimento. Nesse sentido, também há uma mudança no cenário jurídico-político, fato que, de acordo com Beck ( 2018, p. 131BECK, U. A metamorfose do mundo: novos conceitos para uma nova realidade. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.), consiste numa metamorfose normativo-política: “o imperativo da democracia e justiça aplicado às relações de poder de definição torna visível uma metamorfose de revolução: a ‘revolução’ centrada nas relações de poder de definição não acontece onde a noção marxista de revolução esperava que ela ocorresse”.

Conforme José Eli da Veiga ( 2005, p. 80VEIGA, J. E. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamound, 2005.), “num mundo de terríveis desigualdades, é um absurdo pretender que os riscos precisem se tornar ainda mais riscos para permitir que os necessitados se tornem um pouco menos necessitados”. Desenvolvimento tem a ver, inicialmente, com a possibilidade de as pessoas viverem o tipo de vida que escolheram, com provisão dos instrumentos e oportunidades para que possam fazer suas escolhas. Isso significa ir desde a proteção aos direitos humanos até o maior aprofundamento da democracia.

Para ter uma ideia, em termos estatísticos, sobre o desenvolvimento, de acordo com o Relatório anual de 2020 do Banco Mundial 1 1 O Relatório anual abrange o período de 1º de julho de 2019 a 30 de junho de 2020, foi elaborado pelas Diretorias Executivas do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID) – conhecidos coletivamente como Banco Mundial – em conformidade com os estatutos das duas instituições. , na América Latina e no Caribe, o crescimento do produto interno bruto (PIB) na região (excluída a Venezuela, cujos dados são insuficientes) foi de 0,8% em 2019, e a previsão é de um recuo para -7,2% em 2020. O crescimento deveria se recuperar para 2,8% em 2021. O trabalho do Banco Mundial ( 2020, p. 34BANCO MUNDIAL. Apoiar os países em tempos sem precedentes: relatório anual 2020. Washington, DC: World Bank, 2020. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/288211601573730320/pdf/Main-Report.pdf. Acesso em: 4 jan. 2022.
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) para a região está firmado em três pilares, quais sejam,

O primeiro se concentra no crescimento inclusivo, ao promover um aumento da produtividade, competitividade, transparência e prestação de contas; envolver grupos tradicionalmente excluídos, como os povos indígenas, os afrodescendentes e as comunidades rurais; e atrair investimentos privados. O segundo destaca o investimento em capital humano para preparar as pessoas para os desafios e oportunidades que acompanham a evolução da natureza do trabalho. O terceiro busca aumentar a resiliência para que os países possam não apenas administrar melhor os choques, como desastres naturais, convulsões econômicas, migração, crime e violência, e doenças infecciosas, mas também resistir a eles.

O relatório destaca que, no Brasil, a ajuda do Banco Mundial veio no maior investimento em capital humano, auxiliando a reforçar o programa social Bolsa Família em uma transferência condicional de renda que alcançou quase 47 milhões de pessoas. O relatório refere, ainda, que esse programa também contribuiu para o aumento dos índices de frequência escolar, alcançando 91%. Cabe registrar, também, que o relatório faz menção ao fato de a região da América Latina e do Caribe também enfrentar a maior frequência de desastres naturais do mundo, uma vulnerabilidade que a mudança do clima transforma num desafio ainda maior. Para confrontar esse desafio, o Banco Mundial ( 2020, p. 35BANCO MUNDIAL. Apoiar os países em tempos sem precedentes: relatório anual 2020. Washington, DC: World Bank, 2020. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/288211601573730320/pdf/Main-Report.pdf. Acesso em: 4 jan. 2022.
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) informa ter se concentrado na construção de uma infraestrutura melhor, que possa resistir a tempestades e outros desastres.

Para o Banco Mundial ( 2020, p. 49BANCO MUNDIAL. Apoiar os países em tempos sem precedentes: relatório anual 2020. Washington, DC: World Bank, 2020. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/288211601573730320/pdf/Main-Report.pdf. Acesso em: 4 jan. 2022.
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),

[…] o capital humano é a saúde, o conhecimento, as capacidades, as qualificações e a resiliência que as pessoas acumulam ao longo da vida. Ele as prepara para realizar todo seu potencial e se tornar membros produtivos da sociedade e é um motor fundamental do crescimento econômico, da redução da pobreza e da prosperidade compartilhada. Os países que investem de forma eficiente e equitativa na construção, proteção e mobilização de capital humano estarão mais bem preparados para competir numa economia global que recompensa as habilidades cognitivas de nível mais elevado.

Segundo o Relatório anual de 2021 do Banco Mundial 2 2 O Relatório anual, que abrange o período de 1º de julho de 2020 a 30 de junho de 2021, foi elaborado pelos diretores executivos do BIRD e da AID – conhecidos coletivamente como Banco Mundial – em conformidade com os estatutos das duas instituições. , a América Latina e o Caribe formam a região mais atingida pela Covid‑19, com uma queda acentuada na atividade econômica e impactos significativos na saúde e no capital humano. Tal fato ocorreu após vários anos de crescimento lento e progresso limitado em relação aos indicadores sociais. O PIB regional caiu 6,5% em 2020. A pobreza aumentou bastante nos países da região, embora as ajudas regionais tenham mitigado os impactos. Garantir o acesso a serviços de saúde e educação de qualidade continua a ser uma das mais altas prioridades da região. De acordo com o relatório do Banco Mundial ( 2021, p. 44BANCO MUNDIAL. Da crise à recuperação verde, resiliente e inclusiva: relatório anual 2021. Washington, DC: World Bank, 2021. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/373031633066591780/text/The-World-Bank-Annual-Report-2021-From-Crisis-to-Green-Resilient-and-Inclusive-Recovery.txt. Acesso em: 4 jan. 2022.
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),

[…] no Brasil, capacitamos cerca de 60 mil profissionais médicos em atendimento de emergência neonatal e obstétrica, o que ajudou a reduzir a mortalidade materna de 65,1 para 43,3 por cada 100 mil mulheres entre 2010 e 2019, e a mortalidade infantil de 12,2 para 10,3 por mil nascimentos no mesmo período. Nosso apoio também ajudou a aumentar as taxas de conclusão do ensino fundamental, fortalecer a formação de professores e expandir o número de professores que trabalham em áreas indígenas (de 437 em 2014 para mais de 800 em 2019).

Ainda com relação ao Brasil, o Banco Mundial ( 2021, p. 45BANCO MUNDIAL. Da crise à recuperação verde, resiliente e inclusiva: relatório anual 2021. Washington, DC: World Bank, 2021. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/373031633066591780/text/The-World-Bank-Annual-Report-2021-From-Crisis-to-Green-Resilient-and-Inclusive-Recovery.txt. Acesso em: 4 jan. 2022.
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) afirma que está prestando assistência técnica para ajudar a reformar os setores de energia, gás e mineração, que estão entre os principais motores da economia, “com o objetivo de aumentar a competitividade e eficiência; alavancar o financiamento privado para energia sustentável e infraestrutura de mineração; e fortalecer a resiliência às mudanças climáticas”. Além disso, o Banco Mundial forneceu US$ 1 bilhão para expandir o programa Bolsa Família, a fim de ajudar mais de 1 milhão de famílias adicionais a lidarem com a crise e protegerem sua renda, com a finalidade de aumentar a proteção do capital humano na América Latina e no Caribe.

O Brasil alcançou extraordinário processo de industrialização ou sofisticação produtiva desde 1930. No entanto, os países ricos apresentaram pouco desenvolvimento econômico desde os anos 1980, e o Brasil desde os anos 1990. Os países ricos, liderados pelos Estados Unidos, viram-se desafiados pelos países em desenvolvimento do Leste e do Sudeste da Ásia e abandonaram o ideal de desenvolvimento social-democrático inaugurado nos anos 1930 por Franklin Delano Roosevelt. Abandonaram a social-democracia e adentraram num liberalismo econômico radical e agressivo, de modo que, ao mesmo tempo que seus índices de crescimento declinavam, aumentava a instabilidade financeira e os trabalhadores pobres viam seu padrão de vida estagnar. Nos anos 1990, o Brasil seguiu os países do Norte, do liberalismo econômico, e desindustrializou-se, com avanços no campo social e político, vivendo, desde 2013, uma divisão social e a perda de valores republicanos e solidários ( BRESSER-PEREIRA, 2018, p. 08BRESSER-PEREIRA, L. C. Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2018.). Nesse quadro,

[…] o Brasil precisa dramaticamente de um projeto nacional; precisa vencer a quase-estagnação econômica que já dura quase 40 anos, precisa se reindustrializar ou voltar a se sofisticar produtivamente, e precisa, no plano político, recuperar a relativa coesão social perdida nos últimos cinco anos ( BRESSER-PEREIRA, 2018, p. 09BRESSER-PEREIRA, L. C. Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2018.).

Conforme aponta Bresser-Pereira ( 2018, p. 10BRESSER-PEREIRA, L. C. Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2018.), o que se espera de um país em desenvolvimento é que ele consiga crescer mais rápido do que os países ricos, ao passo que sua renda convirja para o nível de renda desses países, fato que ocorreu entre 1930 e 1979. O autor frisa que o Brasil passou por grave recessão entre os anos 2014 e 2016, quando apresentou uma queda de 7,11% e o desemprego chegou a um auge de 13,7% da população ativa, sendo que 6 milhões de brasileiros foram jogados na pobreza.

Diante de todas essas questões, deve-se refletir sobre a ideia de desenvolvimento sustentável, ou seja, buscar o crescimento econômico, político, social e tecnológico, mas sem abrir mão da preservação ambiental do planeta. Portanto, desenvolver não significa tão somente crescer economicamente, mas, acima de tudo, preservar e promover a dignidade da pessoa humana, tão esquecida pelo capitalismo predatório e pelo liberalismo global. Enfrentar, então, o desafio de dizer e/ou sustentar o que se entende e o que seja desenvolvimento requer tratar de seu conceito, bem como entendê-lo como um projeto que tenha como pano de fundo uma teoria da justiça, pois, sem isso, não haverá desenvolvimento nos termos aqui pensados e propostos.

2 Desenvolvimento sustentável como teoria da justiça

O conceito de desenvolvimento começa a tomar forma após a Segunda Guerra Mundial. Para tanto, foram implementados e aperfeiçoados modelos, hipóteses, teorias e conceitos que nortearam as opiniões públicas e acadêmicas internacionais. A partir de então, o Estado foi visto como o agente que identifica e sistematiza as demandas da sociedade e, por meio da implementação de políticas públicas adequadas, satisfaz essas necessidades. Essa concepção, com múltiplas variações, perdurou até os anos 1980, quando entra em crise em função da falta de resultados concretos na promoção do desenvolvimento.

O Estado, então, passa a ser identificado como incapaz, corrupto e sem condições de promover o bem-estar da sociedade. Resgata-se, assim, o livre mercado, com a concepção de que os agentes econômicos, sem a limitação pela intervenção do Estado, poderiam, então, liderar um processo de desenvolvimento nunca antes visto, estimulando a abertura comercial, econômica e financeira das nações, as privatizações e a redução do setor público. Essa proposta também não propiciou os resultados almejados, esgotando-se a partir do fim dos anos 1990.

O desenvolvimento sustentável, em conformidade com José Eli da Veiga ( 2005, p. 114VEIGA, J. E. Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamound, 2005.), significa equilibrar a difícil relação entre crescimento econômico versus preservação ambiental, considerando as variantes aí presentes da explosão demográfica e o perigo de guerra nuclear. Já a sustentabilidade expressa a satisfação equitativa das necessidades presentes sem o comprometimento da satisfação das necessidades futuras – também em relação aos recursos ambientais.

Nessa concepção, o crescimento econômico e o desenvolvimento humano não são conceitos antagônicos, mas, sim, complementares, pois o crescimento econômico é condição para o desenvolvimento humano. O que se impõe é a necessidade de identificação de estratégias para a implementação de processos de crescimento econômico que viabilizem a sustentabilidade do desenvolvimento e a participação popular nos processos de decisão, ou seja, não somente o desenvolvimento para as pessoas, mas também o desenvolvimento delas e por elas, de modo que participem plenamente das decisões e dos processos que afetam suas vidas.

No entendimento de Dieter Siedenberg ( 2004, p. 10SIEDENBERG, D. R. Desenvolvimento: ambiguidades de um conceito difuso. Desenvolvimento em Questão, Ijuí, v. 2, n. 3, p. 09-26, jan./jun. 2004.), há certa concordância tácita acerca da enorme complexidade de qualquer projeto de desenvolvimento, ao mesmo tempo que reina a discordância sobre as formas de implementação e condução das políticas de desenvolvimento. Nesse sentido, pode-se observar que, nas últimas décadas, os projetos de desenvolvimento com ênfase essencialmente econômica vêm perdendo fôlego perante as abordagens que agregam outros fatores, tais como sociais e ambientais, por exemplo. Parte-se, pois, da afirmação de Siedenberg ( 2004, p. 23SIEDENBERG, D. R. Desenvolvimento: ambiguidades de um conceito difuso. Desenvolvimento em Questão, Ijuí, v. 2, n. 3, p. 09-26, jan./jun. 2004.), no sentido de que o conceito de “desenvolvimento é reservado exclusivamente para identificar os processos de mudança no âmbito individual da organização, ou seja, desenvolvimento ocorre quando uma entidade passa a ter uma capacidade qualitativamente diferenciada em relação à sua condição anterior”.

Nesse contexto, pode-se afirmar, então, que desenvolvimento vai além do simples crescimento do PIB, da produção de bens de consumo e do investimento e da acumulação de capital. É preciso considerar as pessoas e o modo como o desenvolvimento amplia suas oportunidades, uma vez que o acesso a melhores rendas é uma das lutas do ser humano, mas não constitui a única de suas atividades.

Em vista dessa concepção de desenvolvimento, o crescimento econômico é um meio a fim de alcançar o desenvolvimento humano, cujo propósito deve propiciar condições para o enriquecimento da vida das pessoas, sem se deter nos aspectos quantitativos, desconsiderando os aspectos qualitativos. Como decorrência de tal empreendimento, uma concepção de desenvolvimento que leve em conta o humano tem a ver com a dignidade da pessoa humana, em que “a preservação e a promoção da dignidade da pessoa humana passam, pois, pela disciplina das relações concretas de coexistencialidade. É nessa dimensão que se dá a concretização do princípio da dignidade, que, a seu rumo, é tarefa do Estado, de todos e de cada um” ( FACHIN; PIANOVSKI, 2011, p. 19FACHIN, L. E.; PIANOVSKI, C. E. A dignidade da pessoa humana no Direito contemporâneo: uma contribuição à crítica da raiz dogmática do neopositivismo constitucionalista. In: GOMES, E. B.; BULZICO, B. A. A. (org.). Desenvolvimento, democracia e dignidade da pessoa humana. Ijuí: Editora Unijuí, 2011. p. 15-39.).

Para tanto, há que se concentrar esforços que evitem propostas de crescimento econômico com destruição de postos de trabalho, sem equidade, com aumento das disparidades entre ricos e pobres, sem a voz das comunidades que são obstruídas das formas mais básicas de democracia e a contrapelo dos direitos humanos, com a destruição das identidades culturais e as raízes de pertencimento dos povos na ânsia de uma homogeneização. Qualquer proposta de desenvolvimento que perpetue tais desigualdades não é sustentável e não deve ser defendida, sob pena do obscurecimento do humano e do meio ambiente, o qual já apresenta parcos recursos naturais, como insegurança hídrica, para dizer o mínimo. Nesse sentido, “o ‘desenvolvimento sustentável’ deve ser entendido, portanto, como um dos mais generosos ideais. Comparável talvez ao bem mais antigo de ‘justiça social’, ambos exprimem desejos coletivos enunciados pela humanidade, ao lado da paz, da democracia, da liberdade e da igualdade” ( VEIGA, 2015, p. 46VEIGA, J. E. Para entender o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora 34, 2015.).

No início desta segunda década do século XXI, dois fatos preocupam sobremaneira os estudiosos da sociedade: a globalização e a exclusão social. Ao passo que a globalização se intensifica, em meio a fantásticas inovações tecnológicas, a exclusão social também tem aumentado, principalmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil, por exemplo. Nesse contexto, tem-se o seguinte questionamento: como desenvolver e, ao mesmo tempo, promover a inclusão social nesse panorama globalizado?

Realizar tal análise a partir da reflexão acerca da democracia é essencial, considerando que não há respostas às questões da globalização, podendo-se afirmar que todos os modelos estatais centralizadores estão em decadência, há muito fadados ao insucesso, bem como os regimes totalitários, já esgotados. Mesmo o liberalismo, que apenas sobrevive por manter suas fronteiras abertas, é completamente incapaz de resolver a questão da exclusão social e de promover o desenvolvimento sustentável, tão debatido já desde a última década do século XX.

Em sociedades complexas, como é o caso do Brasil, criou-se a “regra da maioria” para a formação do consenso. Todavia, conforme assinala Galuppo (2002, p. 149), “a regra da maioria não é ela mesma um princípio democrático, e sim um mecanismo ou instrumento democrático, que conhece como tal algumas limitações”. A partir desse entendimento, pode-se assegurar que uma das limitações existentes na democracia representativa, no que tange às políticas públicas em seus variados setores, é que se acaba por não discutir o coletivo, fragmentando-se aquilo que deveria alcançar ou beneficiar a todos os cidadãos em determinada sociedade.

3 A importância da democracia na promoção do desenvolvimento sociopolítico includente

A democracia como forma, no procedimentalismo de Kelsen ( 2000KELSEN, H. A democracia. Tradução: Vera Barkow. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), é entendida como incapaz de corresponder a um conjunto preciso de valores, já que anunciava a redução do problema da legitimidade, cabendo, posteriormente, a Norberto Bobbio ( 1986BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.) transformar o elemento procedimentalista de Kelsen em uma forma de elitismo democrático. Em outras palavras, a concepção da democracia como forma, reduzindo a participação do cidadão única e exclusivamente ao voto direto, acaba por revelar um audacioso instrumento de legitimação da elite governista.

De maneira diferente da abordagem tradicional, a análise de Habermas ( 2003HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) acerca da importância da democracia aponta a necessidade de ela ser pensada e trabalhada como uma forma de integração social. Frisa-se, ainda, que Habermas ( 2003HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) faz seu exame vinculando quatro pontos: democracia, moral, Direito e política. Nesse ponto, começa-se a vislumbrar a importância do Direito para uma defesa de um projeto de desenvolvimento sociopolítico sustentável, sendo, pois, aquele sistema social capaz de garantir a implementação e a realização de procedimentos democráticos participativos.

Em Habermas, a mediação da linguagem é o que possibilita que a razão comunicativa se distinga da razão prática, uma vez que a última está associada a um padrão interpretativo que se entende a partir da singularidade, ao passo que, ao contrário, a razão comunicativa não oferece modelos para ação. Não sendo uma norma de ação, a razão comunicativa constitui-se como condição possibilitadora e, ao mesmo tempo, limitadora do entendimento ( MOREIRA, 2004MOREIRA, L. A fundamentação do Direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.).

A razão prática parte de uma orientação vinculante para o agir, ao passo que, na razão comunicativa, o agir é orientado para o entendimento, pois, tendo a linguagem como medium, o entendimento lhe é acoplado. Habermas ( 2003HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) entende que a moral orientada em princípios depende de uma complementação por meio do Direito Positivo. De um lado, há a teoria do discurso e, de outro, o surgimento da teoria do Direito: “apoiada no princípio do discurso, a teoria do Direito – e do Estado de Direito – precisa sair dos trilhos convencionais da filosofia política e do Direito, mesmo que continue assimilando seus questionamentos” ( HABERMAS, 2003, p. 23HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.).

A teoria do Direito e da democracia habermasiana fundamenta-se na linguagem, isto é, ação que se expressa na fala, e, visando à legitimidade do processo legislativo, Habermas ( 2003, p. 53HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) aponta a necessidade de garantir aos cidadãos direitos de comunicação e de participação política, pois,

Na medida em que os direitos de comunicação e de participação política são constitutivos para um processo de legislação eficiente do ponto de vista da legitimação, esses direitos subjetivos não podem ser tidos como os de sujeitos jurídicos privados e isolados: eles têm que ser apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimento, que se encontram numa prática intersubjetiva de entendimento.

Segundo a interpretação de Moreira ( 2004MOREIRA, L. A fundamentação do Direito em Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.), os direitos de comunicação e de participação política remetem à ideia de autonomia dos cidadãos. A manifestação de uma vontade legítima, nesse sentido, emana do povo, sendo que Habermas ( 2003, p. 54HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) diz tratar-se de “uma vontade legítima, que resulta de uma auto legislação presumivelmente racional de cidadãos politicamente autônomos”.

Uma vez que a vontade legítima emana de cidadãos politicamente autônomos, os quais passam a ser parceiros do Direito e da própria democracia, e não somente meros espectadores das questões jurídico-políticas, o processo legislativo passa, então, a ser espaço de integração social. O espaço público é onde mulheres, negros, trabalhadores e minorias raciais exporão as demandas sociais necessárias, bem como expressarão, ante as normas, uma manifestação racional e livre, transformando também o Direito em fonte de integração social. Todavia, para que esse “arranjo comunicativo” possa efetivamente ocorrer, torna-se necessária a possibilidade da política deliberativa dos cidadãos, por meio da democracia participativa, desenvolvendo, para tanto, métodos e condições de debate, discussão e persuasão.

Sobre as decisões da “regra da maioria”, destaca-se que estas

[…] têm importância especial no caso do processo legislativo que, tendo em vista a complexidade e extensão social, utiliza a representação política como filtro condensador de possíveis discursos de justificação de normas jurídicas legais. Por isso mesmo, o mecanismo da representação política pressupõe que os discursos que se realizem nas casas legislativas se faça de modo advocatório, que só sejam legítimos se houver um mecanismo comunicativo que transfira os pontos de vistas e, assim, a legitimidade dos representados para os representantes ( GALUPPO, 2002, p. 152GALUPPO, M. C. Igualdade e diferença: Estado democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.).

Dessa maneira, a participação social na discussão é de fundamental importância para a formulação do processo de participação. Porém, segundo Habermas ( 2003, p. 227–228HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.),

A participação simétrica de todos os membros exige que os discursos conduzidos representativamente sejam porosos e sensíveis aos estímulos, temas e contribuições, informações e argumentos fornecidos por uma esfera pública pluralista, próxima à base, estruturada discursivamente, portanto diluída pelo poder.

À medida que os cidadãos, por meio dos direitos de comunicação e de participação política, formalizam o processo democrático, expondo os resultados obtidos, configura-se o conceito habermasiano de “política deliberativa”, a qual “obtém sua força legitimadora da estrutura discursiva de uma formação da opinião e da vontade que preenche sua função social e integradora graças à expectativa de uma qualidade racional de seus resultados” ( HABERMAS, 1997, p. 28HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.).

Em Direito e democracia, Habermas ( 2003HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) prima não apenas pelo direito dos cidadãos em deliberarem acerca de suas necessidades sociais, mas aponta, também, a necessidade da opinião pública em direcionar o poder administrativo a determinadas demandas. Assim, o filósofo alemão mostra que o conceito de discurso, incluído na democracia, acaba por diferenciar a sociedade, no momento em que permite contrastar as diversas opiniões, propiciando a contestação, a identificação e o apontamento de possíveis soluções para os problemas existentes no interior da sociedade.

Abre-se a possibilidade, então, de coletivização do social, isto é, oportuniza-se aos cidadãos que discutam e deliberem sobre suas necessidades fundamentais, podendo, inclusive, participarem da própria elaboração normativa, no que diz respeito à teoria discursiva do Direito, que ora não é o ponto central deste trabalho. Tal possibilidade é de suma importância, pois a democracia representativa há tempo já não consegue mais pensar o coletivo e acaba fragmentando as políticas públicas, tendo como consequência o não atendimento das demandas sociais oriundas das camadas menos favorecidas economicamente, incidindo, assim, em exclusão social.

A política deliberativa é fundamental para as sociedades contemporâneas e complexas, sendo que

[…] a leitura da democracia feita segundo a teoria do discurso vincula-se a uma abordagem distanciada, própria às ciências sociais, e para a qual o sistema político não é nem o topo nem o centro da sociedade, nem muito menos o modelo que determina sua marca estrutural, mas sim, um sistema de ação ao lado de outros ( HABERMAS, 2002, p. 284HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.).

Segundo Habermas ( 2002HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.), a política deliberativa, sendo realizada em conformidade com os procedimentos convencionais de formação institucionalizada de opinião pública, passa pelo filtro deliberativo, podendo seus fins serem alcançados por meio do direcionamento político.

Habermas ( 2003HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) não apresenta um conceito de democracia, mas, sim, aponta a necessária observação de procedimentos discursivos em função da própria democracia, caracterizando-a, assim, como forma procedimental. Nesse sentido, busca mostrar que os direitos de participação política e de comunicação dos cidadãos devem ser respeitados e oportunizados, podendo-se, dessa maneira, influenciar no processo legislativo como participantes orientados para o entendimento.

A importância atribuída por Habermas ( 2003HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) à esfera pública constitui-se no fato de que é o espaço no qual todos os sujeitos podem discutir acerca de seus problemas e de suas desigualdades, em que o processo legislativo tem capacidade de integração social, tornando, também, coletivo aquilo que antes se apresentava fragmentado. No entanto, mesmo concordando com a importância da esfera pública e da democracia, há que se resgatar a própria função da política nos tempos atuais, colocando a pergunta sobre para que serve a política.

Em meio às sociedades contemporâneas, problemas novos convivem com outros muito antigos, tais como a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, a ampla disseminação de fomes coletivas, a violação de liberdades políticas e liberdades formais básicas. Por isso, a expansão da liberdade mostra-se como principal fim e meio do desenvolvimento, conforme a tese central de Amartya Sen ( VEIGA, 2015, p. 56VEIGA, J. E. Para entender o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora 34, 2015.).

Para Sen ( 2000SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.), é preciso ver a democracia como criadora de um conjunto de oportunidades, ao passo que o uso dessas oportunidades requer uma análise que aborde a prática da democracia e direitos políticos. As liberdades políticas e dos direitos civis têm um papel construtivo em relação às necessidades econômicas. Os direitos políticos relacionados à garantia de discussão, debate e crítica são centrais para os processos de escolhas bem refletidas pela comunidade. Dessa maneira, “o desenvolvimento requer a remoção das principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência de Estados repressivos” ( VEIGA, 2015, p. 57VEIGA, J. E. Para entender o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Editora 34, 2015.).

Conforme Daniel Innerarity ( 2017INNERARITY, D. A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia. Tradução: João Pedro George. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.), uma sociedade moderna é uma sociedade de sistemas sociais, entre os quais o Direito, a economia, a cultura etc. Esses sistemas respondem cada vez mais a uma lógica própria, entretanto, se essa lógica não for articulada com as demais, a possibilidade de desequilibrar o conjunto é grande. Logo, a tarefa da política, em uma sociedade complexa, será a de contrabalançar a dinâmica centrífuga desses sistemas, suas turbulências e ameaças internas, considerando que

[…] não se trata, portanto, de decidir entre mais ou menos Estado (um debate antigo e superado), mas de concebê-lo de outra maneira. Deveríamos pensar, por exemplo, num Estado que não nega as forças do mercado mas que, pelo contrário, estimula-as, organiza-as ao serviço da melhoria do bem-estar coletivo. […]. Precisamos de uma nova sabedoria dos limites e de uma nova inteligência para compreendê-los como uma oportunidade para praticar uma política que volte a combinar efetividade e democracia ( INNERARITY, 2017, p. 155–156INNERARITY, D. A política em tempos de indignação: a frustração popular e os riscos para a democracia. Tradução: João Pedro George. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.).

A democracia é categoria chave para processos de desenvolvimento sociopolítico sustentável. Nesse sentido, a tese habermasiana de uma política deliberativa, capaz de proporcionar procedimentos discursivos, em que os direitos de participação política e de comunicação sejam garantidos pelo sistema de Direito Positivo, pode ser pensada como uma teoria da justiça.

A discussão feita pelos cidadãos sobre suas necessidades sociais na esfera pública garante a cidadania, uma vez que “o processo político de construção da cidadania, como anteriormente visto, tem por objetivo fundamental oportunizar o acesso igualitário ao espaço público como condição de existência e sobrevivência dos homens como integrantes de uma comunidade política” ( HABERMAS, 2002, p. 221HABERMAS, J. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução: George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002.).

A compreensão da cidade como um coletivo representa um salto na direção da inclusão e do desenvolvimento. Esse salto, no entanto, somente é possível a partir do experimentalismo democrático, por isso a importância de as lideranças mais esclarecidas aproveitarem qualquer empreendimento ou atividade que seu grupo tiver que implementar, para experimentar fórmulas que estimulem a participação de todos os interessados.

De fato, um indivíduo que participa ativamente da vida de sua comunidade é um cidadão incluído. Uma comunidade de cidadãos participativos certamente intensifica, sobremaneira, a democracia na qual se insere. A eficiência de uma democracia com tal intensidade constitui-se em terreno fértil, por excelência, paro o florescimento do desenvolvimento. Parte disso a importância da pesquisa acerca de fórmulas que intensifiquem as práticas sociais horizontais, capazes de despertar nas pessoas o gosto pela participação democrática e a compreensão de que esse é o caminho menos espinhoso na busca do desenvolvimento sociopolítico sustentável.

Considerações finais

Com esta pesquisa, podem-se apontar algumas notas conclusivas, sendo que a primeira assinala que a democracia, além de mera utilidade instrumental, tem um valor intrínseco, pois o modelo de democracia representativa liberal não pode pretender ser reconhecido como único. Essa pretensão por si só estaria a revelar uma contradição, uma vez que, ao pretender ser o único modelo, estaria afastando o princípio fundamental da democracia, que é o respeito pela diversidade.

Como segunda nota conclusiva, partilha-se da matriz teórica habermasiana de política deliberativa, reafirmando-se a necessidade de os cidadãos, efetivamente, deliberarem na esfera pública acerca de suas necessidades e desigualdades sociais, podendo orientar o poder administrativo a determinadas demandas. Para que tal arranjo participativo ocorra, basta o exercício da política deliberativa dos sujeitos por meio da democracia participativa, desenvolvendo métodos e condições de debate.

O fortalecimento das experiências sociais horizontalmente organizadas, certamente, proporcionará uma maior consciência acerca da responsabilidade social de cada indivíduo em buscar, por meio de ações coletivas, a superação das mazelas que acometem as comunidades, desenvolvendo e fortalecendo a cultura da participação e da reciprocidade como meio de buscar a inclusão social e o desenvolvimento.

A terceira nota conclusiva demonstra a importante função do Direito nesse novo e promissor arranjo participativo proposto por Habermas ( 2003HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.), pois, ao Direito, cabe assegurar a realização dos procedimentos democrático-participativos. Em outras palavras, cabe ao Direito garantir as regras do jogo democrático e a viabilidade da participação popular nas escolhas de suas necessidades, o que garante, consequentemente, tanto o desenvolvimento sociopolítico sustentável quanto a preservação e a promoção da dignidade da pessoa humana.

Como quarta nota conclusiva, pode-se afirmar que a discussão e a decisão pelos membros da comunidade acerca das prioridades de investimento, com certeza, estimulam os cidadãos a entenderem os problemas da cidade como um todo, fazendo que, civicamente, um bairro eventualmente abra mão de um investimento que melhoraria sua infraestrutura em prol de outro bairro mais necessitado. No entendimento de Corrêa ( 2002, p. 217CORRÊA, D. A construção da cidadania: reflexões histórico-políticas. Ijuí: Editora Unijuí, 2002.), “a realização democrática de uma sociedade, compartilhada por todos os indivíduos ao ponto de garantir a todos o acesso ao espaço público e condições de sobrevivência digna, tendo como valor fonte a plenitude da vida”.

Por fim, a quinta nota conclusiva desta pesquisa demonstra que a defesa de uma proposta de desenvolvimento sociopolítico sustentável que congregue uma estratégia democrático-participativa, em que o sistema jurídico seja capaz de afiançar tal procedimento, traduz-se em uma significativa teoria da justiça. É oportuno frisar que não há qualquer tipo de desenvolvimento que não leve em consideração a dignidade da pessoa humana e a preservação ambiental, de maneira que não há, pois, como pensar ou propor estratégias e processos de desenvolvimento sem pensar em justiça social.

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  • Como citar este artigo (ABNT):
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  • 1
    O Relatório anual abrange o período de 1º de julho de 2019 a 30 de junho de 2020, foi elaborado pelas Diretorias Executivas do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e da Associação Internacional de Desenvolvimento (AID) – conhecidos coletivamente como Banco Mundial – em conformidade com os estatutos das duas instituições.
  • 2
    O Relatório anual, que abrange o período de 1º de julho de 2020 a 30 de junho de 2021, foi elaborado pelos diretores executivos do BIRD e da AID – conhecidos coletivamente como Banco Mundial – em conformidade com os estatutos das duas instituições.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2022
  • Aceito
    06 Jan 2023
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