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Direito ao desenvolvimento no estado de crise: A efetividade da igualdade de gênero em xeque

Right to development in the state of crisis: The effectiveness of gender equality in check

Resumo

O presente artigo tem por objetivo pensar o direito ao desenvolvimento no estado de crise, partindo da premissa de que o aludido direito humano sofre um déficit de efetividade quando se depara com tais contextos e voltando olhar para um componente bastante sensível de sua constituição: a igualdade de gênero. Na primeira parte, expõe-se a necessidade de uma afirmação não retórica do direito ao desenvolvimento. Segue-se explorando a igualdade de gênero como objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS) e asseverando-se a importância da adoção de políticas públicas para a sua implementação, mesmo quando da vigência de medidas de contingenciamento. Passa-se, oportunamente, a se refletir sobre inquietações geradas pelo nivelamento e pela ignorância das desigualdades de gênero, a partir da análise de situações concretas em Portugal e no Brasil. Por conseguinte, ponderam-se perspectivas sobre o tema e posiciona-se no sentido de que o esvaziamento do direito ao desenvolvimento, a partir da violação à garantia de igualdade entre homens e mulheres, sob a premissa de se superar uma crise econômico-financeira é catalisador de crises sociopolíticas.

Palavras-chave:
Direito ao desenvolvimento; Igualdade de gênero; Objetivo de desenvolvimento sustentável; Estado de crise; Inquietações e perspectivas

Abstract

This article aims to think about the right to development in a state of crisis, starting from the premise that the aforementioned human right suffers a deficit of effectiveness when faced with such contexts and returning to look at a very sensitive component of its constitution: equality of gender. In the first part, it’s exposed the need for a non-rhetorical affirmation of the right to development. It follows investigating the gender equality as a sustainable development objective (SDO) and asserting the importance of adopting public policies for its implementation, even when contingency measures are in force. It's reflected timely about the concerns generated by the leveling and ignorance of gender inequalities, based on the analysis of concrete situations in Portugal and Brazil. Therefore, it's pondered the perspectives on the subject and it is proposed that the emptying of the right to development, from the violation of the guarantee of equality between men and women, under the premise of overcoming an economic-financial crisis is increased for sociopolitical crises.

Keywords:
Right to development; Gender equality; Sustainable development objective; State of crisis; Restlessness and perspectives

Recusar à mulher a igualdade de direitos em virtude do sexo é negar justiça à metade da população.”

Bertha Lutz 1 1 Bióloga que integrou a delegação brasileira na Conferência de São Francisco (1945) e colaborou nas discussões para inclusão do compromisso da igualdade entre homens e mulheres no preâmbulo da Carta das Nações Unidas.

Introdução * * Artigo desenvolvido a partir de comunicação apresentada no “Seminário de Doutorandos do Programa SPES – Socialidade, Pobreza(s) e Exclusão Social”, realizado em 12 de janeiro de 2017, no âmbito do Programa de Doutoramento em Direito Público – Estado Social, Constituição e Pobreza do Instituto Jurídico da Universidade de Coimbra.

O objetivo deste artigo é propor uma reflexão a respeito do direito ao desenvolvimento, investigando a sua amplitude e significado no contexto de crise que se observa nas democracias contemporâneas. Para tanto, toma-se a análise da igualdade de gênero como exemplificativa do conflito entre a efetividade dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) e medidas de contingenciamento. Assim, restam explícitas inquietações e perspectivas acerca da implementação de políticas públicas que asseguram (ou não) a efetividade do direito ao desenvolvimento e a construção de uma sociedade não sexista.

A afirmação não retórica do direito ao desenvolvimento

O direito ao desenvolvimento faz parte do debate internacional há mais de trinta anos, tendo as Nações Unidas o declarado, em 1986, como direito humano. 2 2 Destaca-se que a Declaração sobre o direito ao desenvolvimento (1986) é o principal instrumento internacional que reflete, de forma condensada, a abordagem mais amplamente aceita do conteúdo normativo do desenvolvimento humano como direito. Identificam-se as concepções de paz, desenvolvimento, democracia e direitos humanos como interdependentes. E também, afirmar-se o desenvolvimento como uma questão-problema que diz respeito a toda comunidade internacional, nacional, regional e local. Sendo assim, é crucial que movimentos sociais e sociedade civil organizada lutem diariamente por sua aplicação efetiva e contra a tentativa de esvaziamento de sua relevância por parte de algumas gestões públicas e de segmentos do setor privado. A mobilização social para que o direito ao desenvolvimento não cai no esquecimento é que pode conduzir sua efetiva implementação (cf. Özden, 2006 , p. 26). Todavia, em que pese a sua enunciação, percebe-se que ele ora não se apresenta no domínio prático do planejamento estatal, ora não é implementado à realidade social. De fato, os Estados tendem a demonstrar um apoio retórico ao direito ao desenvolvimento, mas negligenciam seus conteúdos básicos na prática política ( Marks, 2004 MARKS, Stephen. The human right to development: between rhetoric and reality . In: Harvard Human Rights Journal , v. 17, 2004. , p. 137), o que em um estado de crise se agrava.

O direito ao desenvolvimento se configura por três elementos: um sujeito ativo, seu titular, que pode ser qualquer ser humano, considerado individual ou coletivamente, a quem se atribui uma garantia fundamental; um sujeito passivo, frente a quem se exige o gozo e o exercício desse direito, o qual tem uma obrigação positiva (dar ou fazer algo) ou negativa (de não fazer) para a satisfação da pretensão do ativo; e um objeto determinado, consistente no desenvolvimento integral do objeto postulado. Tal estruturação, que remete à clássica angularização jurídico-processual apresenta peculiaridades, uma vez que o direito ao desenvolvimento é entendido como um direito de solidariedade, composto por outros direitos civis e políticos, e também econômicos, sociais e culturais, necessitando do atendimento integral e concorrente deles para viger faticamente em uma sociedade ( Nieto, 2001 NIETO, Miguel Ángel Contreras. El derecho al desarrollo como derecho humano . Cidade do México: CODHEM, 2001. , p. 59.).

Nesse sentido, o sujeito que: litiga contra uma parte que incorre em ato discriminatório contra uma mulher, cis ou transgênero3 3 Respectivamente, a pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído, quando do nascimento, e a pessoa que se percebe ou vivencia gênero diverso do que lhe foi identificado social, identitária ou funcionalmente (cf. Jenkins, 2016 ). , em seu país de origem; ou postula em uma corte internacional contra um Estado visando eliminar formas estruturais de violência contra mulheres e meninas; ou pleiteia, através de redes e articulações massivas, a eliminação de ações nocivas ao bem-estar feminino, está incorrendo em prática que retira do direito ao desenvolvimento o “véu” da mera retórica.

Assim, pode-se pensar no direito ao desenvolvimento como uma possibilidade para o alcance da socialidade. Para além de eventuais parcialidades ou egoísmos individuais, esse direito-síntese pugna pela vontade política e pelo compromisso coletivo com a sua efetividade. Afinal, “quem tem em suas mãos o poder político ou econômico, tem um compromisso frete a humanidade que não deve ignorar” ( Nieto, 2001 NIETO, Miguel Ángel Contreras. El derecho al desarrollo como derecho humano . Cidade do México: CODHEM, 2001. , p. 60).

Destarte, a responsabilidade pela consecução do direito ao desenvolvimento pressupõe o compartilhamento de encargos por todos os atores sociais (organizações não governamentais, organismos internacionais, iniciativa privada, e, logicamente, governos locais e nacionais). Não havendo uma participação comprometida com o bem-estar comum, dificilmente, podem se reverter as condições estruturais que impõe entraves ao desenvolvimento. Tanto no aspecto individual quanto no coletivo, o direito ao desenvolvimento supõe uma sujeição passiva dos Estados, da comunidade internacional e também do setor privado, para favorecer um melhor desenvolvimento humano, mediante solidariedade e cooperação econômica, assim como a participação comprometida de indivíduos e povos em todo esse processo ( Nieto, 2001 NIETO, Miguel Ángel Contreras. El derecho al desarrollo como derecho humano . Cidade do México: CODHEM, 2001. , p. 61-2). 4 4 O parágrafo 2º, do artigo 2º da Declaração sobre o direito ao desenvolvimento (1986), dispõe que: “todos os seres humanos têm responsabilidade pelo desenvolvimento, individual e coletivamente, levando-se em conta a necessidade de pleno respeito aos seus direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como seus deveres para com a comunidade, que sozinhos podem assegurar a realização livre e completa do ser humano, e deveriam por isso promover e proteger uma ordem política, social e econômica apropriada para o desenvolvimento”.

Afirma-se, assim, que, para “dar sentido, curso e direção à materialidade do direito ao desenvolvimento”, é necessário satisfazer exigências mínimas que representam os direitos humanos em seu conjunto ( Madrazo, 1995 MADRAZO, Jorge. Temas y tópicos de derechos humanos. Cidade do México: CNDH, 1995. , p. 84-5). Atentando-se, oportunamente, que:

O desenvolvimento há de ser concebido como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas podem usufruir [...] Acrescente-se ainda que a Declaração de Viena de 1993, enfatiza ser o direito ao desenvolvimento um direito universal e inalienável, parte integral dos direitos humanos fundamentais [...pelo qual se] reconhece a relação de interdependência entre a democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos ( Piovesan, 2002 PIOVESAN, Flávia Cristina. Direito ao desenvolvimento. In: II Colóquio Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: PUC/SP, 2002. , p. 6).

É, justamente, a condição interdependente da democracia, do próprio desenvolvimento e dos direitos humanos, que permite a afirmação da igualdade de gênero como um dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS). Sucedendo e atualizando os objetivos de desenvolvimento do Milênio (ODM), nos quais já se inseria alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas, quando da Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, em setembro de 2015, adotaram-se os ODS como forma de planejamento estratégico na orientação das políticas estatais e das atividades de cooperação internacional na agenda 2015-2030, de modo, a afastar o caráter, essencialmente, retórico ou, meramente, programático do direito ao desenvolvimento. 5 5 O ODS nº 5 informa a mesma meta do aludido ODM, especificando: 5.1. Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte; 5.2. Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos; 5.3. Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas; 5.4. Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais; 5.5. Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública; 5.6. Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão; 5.a. Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais; 5.b. Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres; 5.c. Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.

A igualdade de gênero como componente do desenvolvimento sustentável

O desenvolvimento sustentável é um paradigma axiológico , pelo qual se introduz, na integralidade da sociedade (do direito e da cultura), um modelo de valoração interpretativa (Freitas, 2012 _. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2012. , p. 31). No plano ideal, se estabelece, internamente, o princípio estruturante de sustentabilidade multidimensional, reconhecido externamente, e isto se traduz na satisfação de todos os direitos humanos dos indivíduos, que constituem, essencialmente, a razão de Estado6 6 O termo se refere ao “instrumento de todas e quaisquer causas e ideologias, podendo estar a serviço de valores, princípios ou comunidades de natureza distinta” ( Pinto, 2012 , p. 961). . Entretanto, no plano dos fatos, isso não ocorre dessa maneira. O aludido paradigma, que, em verdade, se confunde com a afirmação (não falaciosa) do direito ao desenvolvimento, se depara com a realidade das múltiplas carências e mazelas socioeconômicas nos Estados pobres e com a condição das classes oprimidas nos Estados ricos (cf. Nieto, 2001 NIETO, Miguel Ángel Contreras. El derecho al desarrollo como derecho humano . Cidade do México: CODHEM, 2001. , p. 59-60).

A dicotomia constatada entre expectativa e realidade, contudo, apenas reforça a ideia de que os direitos humanos correspondem a um processo construtivo e constitutivo. Em especial, como estabelece o item 18, da parte I da Declaração e Programa de Ação de Viena (1993):

Os direitos humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A participação plena das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural, aos níveis nacional, regional e internacional, bem como a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo, constituem objetivos prioritários da comunidade internacional.

Nota-se, desde logo, que a igualdade de gênero é um componente indispensável para que em um ambiente se possa afirmar o direito ao desenvolvimento. Trata-se de igualdade como equidade, em que prevalece o senso de justiça, permitindo à integralidade dos indivíduos o reconhecimento como pessoas humanas, semelhantes, independentemente de suas circunstâncias peculiares e diferenças que derivam de seus interesses pessoais, características físicas ou aspirações particulares. Na dicção das Nações Unidas, tal direito compreende: a erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher, a igualdade nas vidas política e pública a níveis internacional e nacional, a igualdade legal e de nacionalidade, a igualdade na educação, a igualdade de direitos no trabalho e no emprego, a igualdade de acesso aos serviços de saúde, a garantia de proteção e segurança social, e a igualdade em matéria cível e no direito da família. 7 7 Ver: Discriminação contras as mulheres (ONU, 2004, p. 19-39).

Assevera-se que a igualdade está intrinsecamente ligada à condição humana8 8 Formulação que “compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência”. Arendt, 2003, p. 17. , surge com ela e, portanto, é aspecto que se encontra em todo ser humano desde que sua concepção, independentemente do gênero que social ou culturalmente lhe é atribuído. A imputação da igualdade dá-se em todo momento que se percebe o ser humano como tal. Porém, quando se observa, a situação das mulheres no mundo percebem-se as notórias desigualdades existentes entre homens e mulheres, sobremaneira, nos domínios socioeconômicos.

Objetivando mensurar essa realidade, as Nações Unidas estabeleceram indicadores, vejam-se:

O índice de desenvolvimento de gênero (Gender Development Index – GDI) revela diferenças entre homens e mulheres em três dimensões básicas do desenvolvimento humano: saúde, medida pela expectativa de vida feminina e masculina; educação, medida pelo período de escolarização da educação infantil até os 25 anos; e comando de recursos econômicos, medido pelo rendimento estimado auferido por homens e mulheres. O GDI varia entre 0 e 1, sendo que os valores mais altos indicam níveis menores de desenvolvimento. Exemplificativamente, no último resultado disponível, Portugal, 43º colocado no ranqueamento, marcava 0,985 ponto, ao passo que o Brasil, 75º, apresentava 0,997; resultados, em linhas gerais, positivos. 9 9 Dados disponíveis em: [ http://hdr.undp.org/en/content/gender-development-index-gdi ].

O índice de iniquidade de gênero (Gender Inequality Index – GII), por sua vez, é o instrumento que mensura as desigualdades propriamente ditas. Ele revela a perda no desenvolvimento humano potencial devido às disparidades entre sexos em duas dimensões (autonomia e status econômico), refletindo a posição relativa aos ideais normativos de atendimento ao bem-estar das mulheres. O GII reflete como as mulheres se encontram em desvantagens nestas dimensões. Não há nenhum país com perfeita igualdade de gênero: todos sofrem com perdas de realizações em aspectos-chave do desenvolvimento humano no que tange à desigualdade entre homens e mulheres. Ele é influenciado por questões atinentes à saúde reprodutiva, capacitação profissional e participação no mercado de trabalho. Igualmente, varia entre 0 e 1, sendo que os valores mais altos também indicam níveis mais elevados de desigualdades. Na última verificação disponível, o Brasil, contava com 0,457 ponto, sendo aproximadamente quatro vezes mais desigual do que Portugal, que lograva 0,111 ponto. 10 10 Dados disponíveis em: [ http://hdr.undp.org/en/content/gender-inequality-index-gii ].

Outrossim, mesmo com índices que relevam perspectivas otimistas, de acordo com o The World’s Women 201511 11 Com a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995), que objetiva a promoção e proteção do pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as mulheres ao longo de seu ciclo de vida, se implementou este projeto que apresenta as estatísticas e análises mais recentes sobre a situação das disparidades de gênero nas áreas de preocupação identificadas. , as disparidades de gênero mostram-se enraizadas nas desigualdades estruturais quanto ao acesso aos recursos econômicos. Ressalta-se que em muitos países, as mulheres continuam a depender econômica e exclusivamente dos seus cônjuges. Menos mulheres do que homens têm sua própria renda como resultado da divisão desigual do trabalho formal e informal. Nos países em desenvolvimento, normas jurídicas continuam a restringir o acesso das mulheres a bens e o controle feminino sobre os recursos financeiros familiares sofre limitações. Em aproximadamente um terço dos países em desenvolvimento, não há legislações que garantam os mesmos direitos de herança para homens e mulheres e, em mais da metade deles, existem práticas consuetudinárias discriminatórias contra mulheres. Ademais, cerca de uma em cada três mulheres casadas em países em desenvolvimento não tem controle sobre os gastos familiares em compras importantes, e uma em cada dez mulheres casadas não é consultada sobre a destinação dos seus próprios ganhos.

Ainda, nos termos do estudo, as desigualdades econômicas de gênero são mais visíveis com a diversificação dos arranjos familiares, incluindo o aumento das famílias unipessoais e das famílias monoparentais. As mulheres em idade laboral nos países desenvolvidos e em desenvolvimento estão mais propensas a serem mais pobres do que os homens quando têm filhos dependentes e não possuem parceiro para contribuir para o rendimento do agregado familiar ou quando os seus rendimentos são inexistentes ou demasiadamente baixos para suportar a totalidade da família. Quando se tratam de idosas, nos países desenvolvidos, estão mais propensas do que os homens a serem pobres, particularmente, quando vivem em famílias unipessoais. A diferença entre as taxas de pobreza entre mulheres e homens, incluindo entre os pais solteiros com dependentes e entre as pessoas idosas, mostra tendência de queda em alguns países, embora persista em ascensão em outros.

Dessa sorte, inequivocamente, aponta-se à necessidade de que os Estados implementem políticas públicas de proteção social, que levem em conta os diversos modelos de famílias e que sejam sensíveis às desigualdades de gênero. Contudo, em tempos de crise, a tensão entre o papel estatal de indução de políticas de caráter social, viabilizadoras da diminuição das desigualdades e discriminações, e a necessidade de contingenciamento financeiro gera uma situação conflituosa.

De um lado, advoga-se que a não priorização da superação das desigualdades de gênero pode acarretar problemas sociais indeléveis e gerar externalidades 12 12 Ora tidos como efeitos externos às relações, fatos ou condições, prioritariamente, considerados, que se caracterizam pela imposição involuntária de custos ou benefícios às partes e a terceiros. complexas, como gastos com programas de transferência de renda às mulheres pobres. De outro, argumenta-se que a sensibilização frente à questão pode causar problemas econômicos em áreas (em tese) de maior necessidade (notadamente, saúde, educação e segurança, nos países em desenvolvimento). Afinal, quando a autoridade política possui recursos escassos, a definição das prioridades é fundamental à tomada de decisões e feitura de escolhas públicas.

“Generalizando” o estado de crise e adotando a noção adequada de políticas públicas

Objetivando minimizar o impacto da crise econômico-financeira mundial ( The Great Recession), deflagrada entre 2007-2009, as democracias mais desenvolvidas (e, consequentemente, mais afetadas naquele momento) passaram a adotar políticas de austeridade e contingenciamento. Contudo, a “combinação de políticas perseguida pelos países avançados teve impactos desestabilizadores nos mercados emergentes, exacerbando a volatilidade nos fluxos de capitais e nas taxas de câmbio” ( Costa, 2015 COSTA, Fernando Nogueira da Costa. Políticas de austeridade econômica: o debate sobre alternativas. In: Revista política social e desenvolvimento, 16, Série especial: austeridade econômica e questão social. São Paulo: Plataforma Política Social, 2015. , p. 10).

No plano das relações internacionais, assim, a construção imagética das pobrezas voltou à cena. Em uma arena global agora tomada de fundamentalismos econômicos e políticos, o estado de crise aprofundou desigualdades atingindo nevralgicamente a noção de democracia13 13 O estado de crise acentuou o seguinte paradoxo: “Só em uma sociedade internacional democratizada todos os Estados poderão tornar-se democráticos. Mas uma sociedade internacional democratizada pressupõe que todos os Estados que a compõe sejam democráticos” (cf. Bobbio, 2003 , p. 258). ( Bauman, 2012 BAUMAN, Zygmunt. Times of interregnum. In : Ethics & Global Politics, v. 5, n. 1, 2012. , p. 54). No plano interno, ao seu turno, a necessidade de se garantir a igualdade e a justiça no compartilhamento dos encargos correntes do estado de crise veio acompanhada da certeza de um retrocesso social consistente no abaixamento generalizado do nível de bem-estar – notoriamente, mais perceptível nos grupos com maior vulnerabilidade (cf. Tavares da Silva, 2011 TAVARES DA SILVA, Suzana. Sustentabilidade e solidariedade em tempos de crise. In: Sustentabilidade fiscal em tempos de crise . Coimbra: Almedina, 2011. , p. 83-4).

Se em um contexto “típico” a decisão política já parece tender ao desatendimento ao direito ao desenvolvimento, em um contexto de calamidade econômico-financeira se sente a total inobservância de ações voltada ao cumprimento dos ODS. Os compromissos firmados internacionalmente, por força de acordos decorrentes da própria vontade estatal, passam a se subordinar às medidas de enfrentamento à crise. Como consequência, a contenção dos gastos públicos, corriqueiramente, atinge em primeiro lugar as despesas com a promoção e defesa de direitos humanos, em especial, as políticas públicas voltadas ao bem-estar feminino. 14 14 Atenta-se ao “alcance e o poder da condição de agente [de transformação social] da mulher, particularmente em duas áreas específicas: (1) melhora da sobrevivência das crianças e (2) contribuição para a redução das taxas de fecundidade. Esses dois aspectos têm um interesse para o desenvolvimento em geral, muito além da busca específica do bem-estar das mulheres, embora o bem-estar feminino também esteja diretamente envolvido e tenha um papel mediador crucial na melhora dessas realizações gerais” ( Sen, 2010 , p. 263).

Logo, esvaziado de parte fundamental de seu conteúdo, o direito ao desenvolvimento humano, suma compartilhada de outros direitos humanos ( Özden, 2006 ÖZDEN, Melik. Le droit au development. Genebra: CETIM, 2006. , p. 26) e garantidor de liberdade e emancipação individuais 15 15 Importa dizer que as “liberdades substantivas incluem capacidades elementares como, por exemplo, ter [...] participação política e liberdade de expressão etc. Nessa perspectiva constitutiva, o desenvolvimento envolve a expansão das liberdades humanas, e sua avaliação tem de basear-se nessa consideração. [...] Nas visões mais estreitas de desenvolvimento (baseadas, por exemplo, no crescimento do PNB [produto nacional bruto] ou da industrialização), é comum indagar se a liberdade de participação e dissensão política é ou não ‘conducente ao desenvolvimento’. À luz da visão fundamental do desenvolvimento como liberdade, esta questão pareceria mal formulada, pois não considera a compreensão crucial de que a participação e a dissensão política são partes constitutivas do próprio desenvolvimento” ( Sen, 2010 , p. 55-6). , ganha um delineamento (quando muito) programático, com perspectiva taxativa de implementação em momento “pós-crise”. O estado de crise assegura, em certos aspectos, liberdades aos indivíduos, que frente a um ente estatal carente e ausente, passam a escolher outros meios de instrumentalização de seus direitos e interesses – no contexto não-ocidental, de modo bastante extremo. Porém, esta realidade só faz aumentar a dicotomia entre a realidade social e os objetivos sustentáveis.

“Desenvolvimento humano e os direitos humanos se reforçam mutuamente, ajudando a garantir o bem-estar e a dignidade de todas as pessoas, desenvolvendo a autoestima e o respeito pelos outros” ( Özden, 2006 ÖZDEN, Melik. Le droit au development. Genebra: CETIM, 2006. , p. 27). A negativa ao direito ao desenvolvimento, por sua vez, facilita a evolução da crise econômico-financeira para convulsões sociopolíticas.

“Generalizar”, nesse contexto, ganha uma nova perspectiva semântica. Entende-se que o gênero deve ser considerado de modo a não se incorrer na “armadilha do ajustamento” 16 16 A análise de conjunturas econômicas recessivas revela que, quando se tem um fraco crescimento econômico decorrente de um ajuste fiscal prematuro ou inadequado, é mais difícil para os Estados pobres colocarem o endividamento em uma trajetória sustentável de queda ( Costa, 2015 , p. 10). , que, em nome da sustentabilidade em sua dimensão econômica, ignora-se seu componente social. 17 17 Filia-se a ideia de que a sustentabilidade “é multidimensional, porque o bem-estar é multidimensional. Para solidá-la, nesses moldes, indispensável cuidar do ambiental, sem ofender o social, o econômico, o ético e o jurídico-político. E assim reciprocamente, haja vista o fenômeno indesmentível da interconexão. Por isso, uma dimensão carece logicamente do reforço das demais. Todas as dimensões entrelaçadas compõem o quadro de cores limpas da sustentabilidade como princípio constitucional e como valor” (Freitas, 2012, p. 57). Defende-se que:

A integração de uma perspectiva de gênero na política orçamental tem dimensões de igualdade e eficiência, contribuindo, assim, para uma concepção política mais eficaz. Um orçamento sensível ao gênero criaria um círculo virtuoso em que a própria política contribui para a redução das desigualdades de gênero e, portanto, diminui as restrições de gênero para resultados macroeconômicos bem sucedidos. O resultado é a melhora simultânea do crescimento econômico e do desempenho do desenvolvimento humano de forma a empoderar as mulheres ( Budlender; Elson; Hewitt; Mukhopadhyay, 2002 BUDLENDER, Debbie; ELSON, Diane; HEWITT, Guy; MUKHOPADHYAY, Tanni. Gender Budgets Make Cents: Understanding gender responsive budgets. Londres: The Commonwealth Secretariat, 2002. , p. 81).

Pode-se compreender, assim, que atender aos ODS, mesmo em um estado de crise, assegura a efetividade da sustentabilidade estatal. Sendo uma escolha pública que vai determinar a guarnição (ou não) da igualdade de gênero, é fundamental refletir acerca da significância das opções públicas feitas, em termos qualitativos, para o exercício do poder político. 18 18 De fato, a promoção de “processos orçamentários sensíveis à igualdade de gênero é um passo positivo que deve ser fortalecido para que as mulheres possam ter uma participação essencial nas atribuições dos componentes principais do orçamento público. A democracia na tomada de decisões nesta área e mecanismos efetivos de transparência e monitoramento pode ajudar a desenhar políticas de gasto público que ajudem a transformar as barreiras principais para a igualdade de gênero” ( Enríquez, 2012 , p. 155).

Nesse sentido, o conceito clássico de políticas públicas como o somatório das atividades governamentais, desenvolvidas direta ou indiretamente, com influencia na vida dos indivíduos, sem a necessária observância dos interesses estatais (cf. Peters, 1986 PETERS, B. Guy. American Public Policy. Nova York: Chatham House, 1986. , p. 23), mostra-se insuficiente. Essa concepção carece de substancialidade que faça frente a problemas que se postergam no tempo, como crises e recessões, e perpassam governos e administrações temporárias. Políticas públicas adequadamente concebidas são:

[...] programas de Estado Constitucional (mais do que de governo), formulados e implementados pela Administração Pública, que intentam, por meio de articulação eficiente e eficaz dos meios estatais e sociais, cumprir os objetivos vinculantes da Carta [Política; Constituição], em ordem a assegurar, com hierarquizações fundamentadas, a efetividade do complexo de direitos fundamentas das gerações presentes e futuras ( Freitas, 2013 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais . São Paulo: Malheiros, 2013. , p. 458).

Fato é que não existe direito ao desenvolvimento sem que haja mecanismos institucionais e recursos econômicos para sua concretização. Como indicado pela comunidade internacional, a implementação da igualdade de gênero é componente indissociável ao pleno desenvolvimento de um Estado e a autoridade política estatal não pode se olvidar disto.

A potencialidade feminina de transformação social é inegável e por isto é fundamental que, em momentos de crises, não se constranjam agentes de desenvolvimento ou ainda, de algum modo, os penalizem; sob pena de se agravar o estado de crise e, ainda, fomentar um quadro de desigualdade estrutural. Busca-se, nesse sentir, o controle sobre capacidades de impacto no ambiente humano ( Nussbaum, 2003 NUSSBAUM, Martha. Women and Social Justice. In: Jornaul of Human Development, v. 1, n. 2, 2003. , p. 233), em prisma: político, pelo qual mulheres sejam capazes de participar efetivamente em escolhas públicas, tendo o direito de participação política e proteção à liberdade de expressão e associação; e material, pelo qual sejam capazes de deter propriedades, bens e serviços, tenham o direito a empregabilidade em base de igualdade salarial, bem como detenham liberdade de pesquisa, apreensão de conhecimentos e reconhecimento mútuo em relação a outros cidadãos e trabalhadores.

Todavia, uma vez que tais capacidades restam negligenciadas corriqueiramente, o estabelecimento do estado de crise dá causa a algumas inquietações juspolíticas .

Inquietação I – Nivelamento dos gêneros: “quando a piora da condição masculina não melhora a feminina”

A Constituição da República Portuguesa, em seu artigo 9º, estabelece a promoção da igualdade de gênero como tarefa fundamental do Estado português. 19 19 Atenta-se que o artigo 109º do texto constitucional português estabelece a participação política direta e ativa de homens e mulheres, afirmando sua imprescindibilidade à consolidação da democracia, reservando à lei a promoção da igualdade no exercício dos direitos civis e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos. Entende-se que:

O sentido desta norma, em sede de enumeração das tarefas fundamentais do Estado, é o de estabelecer uma imposição constitucional , a cargo dos poderes públicos, no sentido de se promover activamente a igualdade entre homens e mulheres (credencial constitucional para formas de afirmative action ).

Contudo, pondera-se:

É evidente que resta uma grande margem de discricionariedade política sobre a intensidade e os meios de realizar esses objetivos, dando lugar a aproximações mais liberais ou mais intervencionistas da acção pública especialmente no plano das políticas econômicas (a Constituição está longe de ser um governo ou um cardápio de políticas públicas). (cf. Canotilho; Moreira, 2014 CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, v. I. Coimbra: Coimbra Ed., 2014. , p. 282.)

A referida ponderação pode ser aprofundada uma vez que uma agenda para o desenvolvimento humano não coincide com a sua mera declaração ou com apenas a existência de um sistema democrático no sentido formal. Quando se trata da efetividade do direito ao desenvolvimento, realmente um processo de inclusão e difusão de direitos fundamentais é necessário, bem como sua longevidade vai se sustentar nas capacidades políticas e materiais de cidadãos e cidadãs ( Giliberti, 2010 GILIBERTI, Giuseppe. La governance dello sviluppo umano. In : Studi Urbinati, B – Scienze umane e sociali , v. 80, 2010. , p. 282).

Assim, um Estado eficiente e democrático, uma sociedade civil forte, independente e organizada e um mercado acessível e bem regulamentado se identificam como requisitos necessários para o desenvolvimento ( Giliberti, 2010 GILIBERTI, Giuseppe. La governance dello sviluppo umano. In : Studi Urbinati, B – Scienze umane e sociali , v. 80, 2010. , p. 330). Em sentido oposto, em um contexto de crise, percebe-se que a capacidade reativa do sujeito ativo do direito ao desenvolvimento resta prejudicada, uma vez que as necessidades materiais que por ele são suportadas lhe conferem um déficit de bem-estar – que, não raro, lhe impossibilita de exercer e postular seus direitos.

A crise na experiência portuguesa, por exemplo, teve como principais afetados, no campo laboral, homens e mulheres mais jovens, atingindo, no primeiro trimestre de 2012, uma taxa de desemprego de 35%. Nesse contexto, com a adoção de medidas governamentais de austeridade, frente às desigualdades de gênero preexistentes, percebeu-se a diminuição das diferenças entre homens e mulheres quanto ao nível do desemprego. O estado de crise, nesses termos, aproximou o número de mulheres desempregadas do montante de homens desocupados – que compunham o segmento social mais atingido nos dois anos iniciais da crise (cf. Ferreira; Monteiro, 2015 FERREIRA, Virgínia; MONTEIRO, Rosa. Austeridade, emprego e regime de bem-estar social em Portugal: em processo de refamilização? In : Ex aequo, n. 32, Lisboa, 2015. ).

Por conseguinte, tal situação não pode ser considerada como exemplo demonstrativo da efetividade da igualdade de gênero na sociedade portuguesa, haja vista que as mulheres continuaram inseridas em um mercado de trabalho menos vantajoso e mais adverso, bem como não lograram qualquer alteração em termos remuneratórios (ou sejam, seguiram recebendo menos que os homens empregados). 20 20 A saber, a Estratégia da União Europeia para o Emprego e o Crescimento – Europa 2020 e o Pacto Europeu para a Igualdade entre Homens e Mulheres (2011-2020) são exemplos de ações políticas concretas voltadas à efetividade da igualdade de gênero. A primeira objetiva elevar para 75% a taxa de emprego de mulheres e homens, com idades entre 20 e 64 anos, até 2020. A segunda assevera a necessidade de se reafirmar a igualdade de gênero como política pública comunitária, levando o ODS a ser efetivado na União Europeia. Cf. Igualdade de gênero em Portugal (CIG, 2015, p. 62). Percebe-se, assim, que a piora da condição masculina em nada alterou (ou melhorou) a feminina.

Inquietação II – Ignorância à discriminação positiva: “quando a equiparação à condição masculina prejudica a feminina”

A Constituição da Republica Federativa Brasil, em seu artigo 5º, I, dispõe que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, e, em seu artigo 3º, IV, que é um objetivo fundamental do Estado a promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo. Assevera-se, assim, que:

O caráter peculiar da igualdade garantido a homens e mulheres titulares do direito à igualdade entre os gêneros é que, ao contrário do direito geral à igualdade, cujas principais concretizações se dão pela proibição da discriminação [...], não se trata de uma simples proibição de discriminação negativa, mas também de uma proibição de discriminação positiva ou proibição de privilégio. [...] Esse é o caráter especial que afasta o caráter genérico da igualdade baseada nos outros critérios que, falando somente em “discriminação”, deixam aberta a questão se saber se a discriminação positiva é ou não lícita, pelo menos a priori, uma vez que o teor [...do texto constitucional] não exclui tal possibilidade ( Martins, 2013 MARTINS, Leonardo. Direito fundamental à igualdade entre homem e mulher. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar; SARLET, Ingo; STRECK, Lênio. Comentários à Constituição do Brasil , v. I. São Paulo; Coimbra: Saraiva; Almedina, 2013. , p. 235).

Com a atual conjuntura de crise econômica e instabilidade política que o Estado brasileiro enfrenta, o governo federal vem tomando medidas de contingenciamento como, por exemplo, a proposição e aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016, que limita gastos públicos pelos próximos 20 anos. 21 21 Ainda, a extinção de estruturas administrativas é exemplificativa dessa realidade. Em maio de 2016, por exemplo, foi extinto o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, responsável por formular políticas públicas de promoção aos direitos da cidadania e coordenar a política nacional de direitos humanos. Após críticas da opinião pública, em fevereiro de 2017, recriou-se a pasta como Ministério dos Direitos Humanos. Na mesma linha, apresentou-se a Proposta de Emenda à Constituição (nº 287/2016) pela qual propõe mudanças nas regras previdenciárias, entre as quais fixa a idade mínima de 65 anos para a aposentadoria de homens e mulheres, marginalizando hipótese de discriminação positiva protetiva às condições de trabalho femininas. 22 22 Disponível em: [ http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=DB447924E893DF1C67DE583A7BF1227B.proposicoesWebExterno2?codteor=1514975&filename=PEC+287/2016 Em justificativa da Proposta, alega-se:

[...] ponto central da reforma é igualar os requisitos de idade e tempo de contribuição para homens e mulheres. Cabe destacar que, atualmente, a expectativa de vida ao nascer das mulheres é cerca de sete anos superior à dos homens, e as mesmas ainda têm o direito de se aposentar com cinco anos a menos, tanto na aposentadoria por idade, quanto na por tempo de contribuição, combinação essa que resulta na maior duração dos seus benefícios. [...] A justificativa de tal diferenciação no passado era a concentração da responsabilidade pelos afazeres domésticos nas mulheres (“dupla jornada”), e ainda a maior responsabilidade com os cuidados da família, de modo particular, em relação aos filhos. [...] Ocorre que, ao longo dos anos, a mulher vem conquistando espaço importante na sociedade, ocupando postos de trabalho antes destinados apenas aos homens. Hoje, a inserção da mulher no mercado de trabalho, ainda que permaneça desigual, é expressiva e com forte tendência de estar no mesmo patamar do homem em um futuro próximo. Segundo a [pesquisa nacional por amostra de domicílios] PNAD 2014, 40,6% do contingente de ocupados que contribuem para a Previdência Social são mulheres. Os novos rearranjos familiares, com poucos filhos ou sem filhos, estão permitindo que a mulher se dedique mais ao mercado de trabalho, melhorando a sua estrutura salarial.

Assim, pautada em argumentos falaciosos, a Proposta que, em tese, busca assegurar sustentabilidade financeira, constitui-se, de fato, em ato atentatório à discriminação constitucional que permite a efetividade social da igualdade de gênero e, em corolário, a afirmação do direito ao desenvolvimento. Vale-se, para tanto, de falácias, isto é, de estratégia argumentativa caudada em premissas que não são relevantes à sua conclusão e, portanto, carente de nexo de logicidade e distante do estabelecimento de verdades (Copi; Cohen, 1997, p. 127-143).

Observa-se com nitidez a utilização da falácia da falsa causa (Freitas, 2012 _. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2012. , p. 141-2) para atribuir as beneficiárias a causa do alegado déficit (“rombo”), sem corrigir os desvios sistêmicos que afetam o sistema previdenciário brasileiro; e, ainda, utiliza-se da falácia do falso consenso (Freitas, 2012 _. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2012. , p. 143-4) para afirmar que as mulheres vivem mais e trabalham menos que os homens. Fundamentação que seria risível, caso não se prestasse a mudar a realidade e a vida de milhões de pessoas. No Brasil, em verdade, existem milhares de mulheres trabalhadoras, notadamente, mulheres pobres e negras, que seguem laborando no mercado formal e informal de trabalho, se responsabilizando pelos afazeres domésticos do lar e, muitas vezes, ainda realizando outras atividades de complementação de renda, o que pode ser observado, inclusive, nos itens componentes dos índices das Nações Unidas antes referidos. 23 23 Já na década de 1980, Angela Davis apontava que as inúmeras tarefas conhecidas coletivamente como “tarefas domésticas” consumem três a quatro mil horas anuais de uma mulher, afirmando que “tão surpreendente quanto essa estatística é fato do trabalho doméstico ser virtualmente invisível” e destinado exclusivamente a mulher ( Davis, 1982 , p. 159).

Considerações finais e perspectivas críticas

Tomando a assertiva em epígrafe, adapta-se: recusar à mulher a igualdade de direitos em virtude do gênero é negar justiça à maioria da população, quando tratamos de Portugal (4.912.600 homens e 5.445.500 mulheres, em 2015) 24 24 Dados públicos disponíveis em: [ http://www.pordata.pt/Portugal/Popula%C3%A7%C3%A3o+residente +total+e+por+sexo-6]. e do Brasil (98.419.000 homens e 104.772.000 mulheres, em 2014) 25 25 Dados públicos disponíveis em: [ http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2014/default_sintese.shtm ]. . Com efeito, o desenvolvimento humano, almejado pela efetividade dos ODS, corresponde a um processo de expansão da cidadania em todos os seus aspectos e em todos os níveis (local, nacional, universal), através de uma distribuição mais equitativa de oportunidades (cf. Giliberti, 2010 GILIBERTI, Giuseppe. La governance dello sviluppo umano. In : Studi Urbinati, B – Scienze umane e sociali , v. 80, 2010. , p. 328) entre homens e mulheres.

“Consolidar, fortalecer e ampliar o processo de afirmação do direito ao desenvolvimento como um direito humano inalienável” ( Piovesan, 2002 PIOVESAN, Flávia Cristina. Direito ao desenvolvimento. In: II Colóquio Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: PUC/SP, 2002. , p. 6) é indispensável para se atender essa finalidade. Porém, no cenário atual, percebe-se um ambiente político cada vez mais hostil. O crescimento de posicionamentos públicos contrários ao diálogo e a existência da concepção de desenvolvimento sustentável é uma realidade.

De fato, desde os anos 1990, versa-se sobre o esvaziamento da democracia, entretanto, atualmente, experiencia-se a ascenção de lideranças autoritárias e populistas, que, valendo-se de posições e interesses corporativos, ignoram a realidade das pautas e agendas sustentáveis. Observa-se a dominância de um conservadorismo que avasta das pessoas a capacidade de refletir sobre problemáticas, dialogar sem melindres e construir cooperativamente soluções. Assim, o necessário debate sobre o papel e dimensionamento do Estado em tempos de crise resta prejudicado e a análise do impacto das decisões políticas tende a não ser fácil ou pacífica.

A igualdade de gênero, na experiência brasileira, é uma temática marcante desse cenário. O status quo político se posiciona contrário à implementação do atendimento a essa pauta, a temática é ignorada, se reforçam os valores sexistas da sociedade e, consequentemente, observa-se que o Brasil ostenta números alarmantes de episódios de violência doméstica e familiar contra a mulher e é o local em que mais ocorrem homicídios de mulheres transgênero no mundo.

“A crise oferece a oportunidade de repensar as missões econômicas e sociais do Estado e mesmo de melhorar a qualidade da democracia por força da maior exigência de fundamentação, transparência e participação na esfera das políticas públicas” ( Gonçalves; Pato; Santos, 2013 GONÇALVES, Maria Eduarda; PATO, João; SANTOS, António Carlos. Debater o Estado: bens públicos, direitos fundamentais e qualidade da democracia. In: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano VI, n. 4, 2013. , p. 45-46). As circunstâncias atuais, contudo, já não são mesmas do início da década de 2010. Percebe-se, hoje, que “não se trata de uma adaptação às condições de crise nem de uma escolha ideológica, mas de uma mudança na natureza da ‘política’” (Bauman, 2016 _; BORDONI, Carlo. Estado de crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. , p. 26).

O direito ao desenvolvimento, por conseguinte, segue existindo, paralelamente, aos demais direitos humanos. E, mesmo com reações pouco amistosas e constantes questionamentos, é pauta-fundamental das Nações Unidas, sendo pouco crível que deixe de ser fomentado, dado o seu enraizamento normativo e pela própria agenda dos ODS ( Vandenbogaerde, 2013 VANDENBOGAERDE, Arne. The right to development in international human rights law: a call for its dissolution. In: Netherlands Quarterly of Human Rights , v. 31/2, 2013. , p. 208-9). A dimensão internacional do referido direito, mesmo que não vinculativa, pode e deve ser utilizada, no cenário interno, como soft power26 26 Adota-se a concepção do campo das relações internacionais que explicita a habilidade ou capacidade de um organismo político, como, por exemplo, um Estado ou as Nações Unidas, influir indireta ou extrajuridicamente, no comportamento ou interesse de outros atores (cf. Nye, 2005 ). No âmbito do direito internacional do desenvolvimento, entende-se que a combinação da necessidade de ação centrada no longo prazo e a complexidade de problemas, ligada à sua dimensão propriamente técnica ou social e a interesses diversos, faz com que surjam soluções de compromisso pelas quais os Estados se “obrigam” a cooperar, trabalhar em conjunto e envidar esforços no enfrentamento das questões-chave (cf. Nasser, 2005 ). . Logo, no que se refere à igualdade de gênero de modo específico, tal perspectiva facilita a articulação em redes e a implementação de cooperação (internacional, nacional e local) sobre a matéria, possibilitando a resistência democrática no estado de crise.

“Sob pena de esquizofrenia: como lutar pelo desenvolvimento e aceitar que [outros] direitos humanos sejam violados?” ( Vargas, 1999 VARGAS, François A. Les droit de l’home: frein ou moteur au développment? Genebra: IUED, 1999. , p. 23) Isso não é concebível. Direitos humanos são indivisíveis, interdependentes, inter-relacionais, e se materializam por meio de luta por seu atendimento integral e concorrente. Crises econômico-financeiras, caso combatidas, sem o atendimento aos ODS, “evoluem” para crises sociopolíticas. Em sentido contrário, o enfrentamento ao estado de crise, com atenção máxime à efetividade do direito ao desenvolvimento, proporciona que homens e mulheres desenvolvam suas capacidades em um ambiente democrático e tornem-se agentes de transformação desse estado de coisas.

  • 1
    Bióloga que integrou a delegação brasileira na Conferência de São Francisco (1945 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conferência de São Francisco (1945). Disponível em: [https://nacoesunidas.org/carta/]. Acesso em: 07 de novembro de 2016.
    https://nacoesunidas.org/carta/] ...
    ) e colaborou nas discussões para inclusão do compromisso da igualdade entre homens e mulheres no preâmbulo da Carta das Nações Unidas.
  • *
    Artigo desenvolvido a partir de comunicação apresentada no “Seminário de Doutorandos do Programa SPES – Socialidade, Pobreza(s) e Exclusão Social”, realizado em 12 de janeiro de 2017, no âmbito do Programa de Doutoramento em Direito Público – Estado Social, Constituição e Pobreza do Instituto Jurídico da Universidade de Coimbra.
  • 2
    Destaca-se que a Declaração sobre o direito ao desenvolvimento (1986 _. Declaração sobre o direito ao desenvolvimento (1986). Disponível em: [http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-ao-Desenvolvimento/declaracao-sobre-o-direito-ao-desenvolvimento.html]. Acesso em: 07 de novembro de 2016.
    http://www.direitoshumanos.usp.br/index...
    ) é o principal instrumento internacional que reflete, de forma condensada, a abordagem mais amplamente aceita do conteúdo normativo do desenvolvimento humano como direito. Identificam-se as concepções de paz, desenvolvimento, democracia e direitos humanos como interdependentes. E também, afirmar-se o desenvolvimento como uma questão-problema que diz respeito a toda comunidade internacional, nacional, regional e local. Sendo assim, é crucial que movimentos sociais e sociedade civil organizada lutem diariamente por sua aplicação efetiva e contra a tentativa de esvaziamento de sua relevância por parte de algumas gestões públicas e de segmentos do setor privado. A mobilização social para que o direito ao desenvolvimento não cai no esquecimento é que pode conduzir sua efetiva implementação (cf. Özden, 2006 ÖZDEN, Melik. Le droit au development. Genebra: CETIM, 2006. , p. 26).
  • 3
    Respectivamente, a pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído, quando do nascimento, e a pessoa que se percebe ou vivencia gênero diverso do que lhe foi identificado social, identitária ou funcionalmente (cf. Jenkins, 2016 JENKINS, Katharine. Amelioration and Inclusion: Gender Identity and the Concept of Woman. In: Ethics: An International Journal of Social, Political, and Legal Philosophy, v. 126, n. 2, 2016. ).
  • 4
    O parágrafo 2º, do artigo 2º da Declaração sobre o direito ao desenvolvimento (1986 _. Declaração sobre o direito ao desenvolvimento (1986). Disponível em: [http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direito-ao-Desenvolvimento/declaracao-sobre-o-direito-ao-desenvolvimento.html]. Acesso em: 07 de novembro de 2016.
    http://www.direitoshumanos.usp.br/index...
    ), dispõe que: “todos os seres humanos têm responsabilidade pelo desenvolvimento, individual e coletivamente, levando-se em conta a necessidade de pleno respeito aos seus direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como seus deveres para com a comunidade, que sozinhos podem assegurar a realização livre e completa do ser humano, e deveriam por isso promover e proteger uma ordem política, social e econômica apropriada para o desenvolvimento”.
  • 5
    O ODS nº 5 informa a mesma meta do aludido ODM, especificando: 5.1. Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte; 5.2. Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos; 5.3. Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas; 5.4. Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais; 5.5. Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública; 5.6. Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão; 5.a. Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais; 5.b. Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres; 5.c. Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.
  • 6
    O termo se refere ao “instrumento de todas e quaisquer causas e ideologias, podendo estar a serviço de valores, princípios ou comunidades de natureza distinta” ( Pinto, 2012 PINTO, Jaime Nogueira. Ideologia e razão de Estado. Porto: Civilização, 2012. , p. 961).
  • 7
    Ver: Discriminação contras as mulheres (ONU, 2004 _. Discriminação contras as mulheres. Ficha informativa sobre direitos humanos, n. 22, rev. I. Genebra: ONU, 2004. , p. 19-39).
  • 8
    Formulação que “compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência”. Arendt, 2003 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2003. , p. 17.
  • 9
    Dados disponíveis _. Gender Inequality Index. Disponível em: [http://hdr.undp.org/en/content/gender-inequality-index-gii]. Acesso em: 12 de dezembro de 2016.
    http://hdr.undp.org/en/content/gender-i...
    em: [ http://hdr.undp.org/en/content/gender-development-index-gdi ].
  • 10
    Dados disponíveis _. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: [http://nacoesunidas.org/pos2015/ods5/]. Acesso em: 07 de novembro de 2016.
    http://nacoesunidas.org/pos2015/ods5/] ...
    em: [ http://hdr.undp.org/en/content/gender-inequality-index-gii ].
  • 11
    Com a Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995 _. Declaração e Plataforma de Ação de Pequim (1995). Disponível em: [http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/03/declaracao_pequim.pdf]. Acesso em: 07 de novembro de 2016. Acesso em: 07 de novembro de 2016.
    http://www.onumulheres.org.br/wp-conten...
    ), que objetiva a promoção e proteção do pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as mulheres ao longo de seu ciclo de vida, se implementou este projeto que apresenta as estatísticas e análises mais recentes sobre a situação das disparidades de gênero nas áreas de preocupação identificadas.
  • 12
    Ora tidos como efeitos externos às relações, fatos ou condições, prioritariamente, considerados, que se caracterizam pela imposição involuntária de custos ou benefícios às partes e a terceiros.
  • 13
    O estado de crise acentuou o seguinte paradoxo: “Só em uma sociedade internacional democratizada todos os Estados poderão tornar-se democráticos. Mas uma sociedade internacional democratizada pressupõe que todos os Estados que a compõe sejam democráticos” (cf. Bobbio, 2003 BOBBIO, Norberto. A democracia dos modernos comparada com a dos antigos (e com a das gerações futuras). In: Noberto Bobbio: o filósofo e a política, antologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003. , p. 258).
  • 14
    Atenta-se ao “alcance e o poder da condição de agente [de transformação social] da mulher, particularmente em duas áreas específicas: (1) melhora da sobrevivência das crianças e (2) contribuição para a redução das taxas de fecundidade. Esses dois aspectos têm um interesse para o desenvolvimento em geral, muito além da busca específica do bem-estar das mulheres, embora o bem-estar feminino também esteja diretamente envolvido e tenha um papel mediador crucial na melhora dessas realizações gerais” ( Sen, 2010 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. , p. 263).
  • 15
    Importa dizer que as “liberdades substantivas incluem capacidades elementares como, por exemplo, ter [...] participação política e liberdade de expressão etc. Nessa perspectiva constitutiva, o desenvolvimento envolve a expansão das liberdades humanas, e sua avaliação tem de basear-se nessa consideração. [...] Nas visões mais estreitas de desenvolvimento (baseadas, por exemplo, no crescimento do PNB [produto nacional bruto] ou da industrialização), é comum indagar se a liberdade de participação e dissensão política é ou não ‘conducente ao desenvolvimento’. À luz da visão fundamental do desenvolvimento como liberdade, esta questão pareceria mal formulada, pois não considera a compreensão crucial de que a participação e a dissensão política são partes constitutivas do próprio desenvolvimento” ( Sen, 2010 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. , p. 55-6).
  • 16
    A análise de conjunturas econômicas recessivas revela que, quando se tem um fraco crescimento econômico decorrente de um ajuste fiscal prematuro ou inadequado, é mais difícil para os Estados pobres colocarem o endividamento em uma trajetória sustentável de queda ( Costa, 2015 COSTA, Fernando Nogueira da Costa. Políticas de austeridade econômica: o debate sobre alternativas. In: Revista política social e desenvolvimento, 16, Série especial: austeridade econômica e questão social. São Paulo: Plataforma Política Social, 2015. , p. 10).
  • 17
    Filia-se a ideia de que a sustentabilidade “é multidimensional, porque o bem-estar é multidimensional. Para solidá-la, nesses moldes, indispensável cuidar do ambiental, sem ofender o social, o econômico, o ético e o jurídico-político. E assim reciprocamente, haja vista o fenômeno indesmentível da interconexão. Por isso, uma dimensão carece logicamente do reforço das demais. Todas as dimensões entrelaçadas compõem o quadro de cores limpas da sustentabilidade como princípio constitucional e como valor” (Freitas, 2012 _. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2012. , p. 57).
  • 18
    De fato, a promoção de “processos orçamentários sensíveis à igualdade de gênero é um passo positivo que deve ser fortalecido para que as mulheres possam ter uma participação essencial nas atribuições dos componentes principais do orçamento público. A democracia na tomada de decisões nesta área e mecanismos efetivos de transparência e monitoramento pode ajudar a desenhar políticas de gasto público que ajudem a transformar as barreiras principais para a igualdade de gênero” ( Enríquez, 2012 ENRÍQUEZ, Corina Rodríguez. Análise econômica para a igualdade: as contribuições da economia feminista. In : Orçamentos sensíveis a gênero: conceitos . Brasília: ONU Mulheres, 2012. , p. 155).
  • 19
    Atenta-se que o artigo 109º do texto constitucional português estabelece a participação política direta e ativa de homens e mulheres, afirmando sua imprescindibilidade à consolidação da democracia, reservando à lei a promoção da igualdade no exercício dos direitos civis e políticos e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos.
  • 20
    A saber, a Estratégia da União Europeia para o Emprego e o Crescimento – Europa 2020 e o Pacto Europeu para a Igualdade entre Homens e Mulheres (2011-2020) são exemplos de ações políticas concretas voltadas à efetividade da igualdade de gênero. A primeira objetiva elevar para 75% a taxa de emprego de mulheres e homens, com idades entre 20 e 64 anos, até 2020. A segunda assevera a necessidade de se reafirmar a igualdade de gênero como política pública comunitária, levando o ODS a ser efetivado na União Europeia. Cf. Igualdade de gênero em Portugal (CIG, 2015 COMISSÃO PARA A CIDADANIA E A IGUALDADE DE GÊNERO. Igualdade de gênero em Portugal – 2014. Lisboa: CIG, 2015. , p. 62).
  • 21
    Ainda, a extinção de estruturas administrativas é exemplificativa dessa realidade. Em maio de 2016 _. Gender Development Index. Disponível em: [http://hdr.undp.org/en/content/gender-development-index-gdi]. Acesso em: 13 de dezembro de 2016.
    http://hdr.undp.org/en/content/gender-d...
    , por exemplo, foi extinto o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, responsável por formular políticas públicas de promoção aos direitos da cidadania e coordenar a política nacional de direitos humanos. Após críticas da opinião pública, em fevereiro de 2017, recriou-se a pasta como Ministério dos Direitos Humanos.
  • 22
    Disponível _. Proposta de Emenda à Constituição nº 287/2016 . Disponível em: [http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=DB447924E893DF1C67DE583A7BF1227B.proposicoesWebExterno2?codteor=1514975&filename=PEC+287/2016]. Acesso em: 03 de janeiro de 2017.
    http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb...
    em: [ http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=DB447924E893DF1C67DE583A7BF1227B.proposicoesWebExterno2?codteor=1514975&filename=PEC+287/2016
  • 23
    Já na década de 1980, Angela Davis apontava que as inúmeras tarefas conhecidas coletivamente como “tarefas domésticas” consumem três a quatro mil horas anuais de uma mulher, afirmando que “tão surpreendente quanto essa estatística é fato do trabalho doméstico ser virtualmente invisível” e destinado exclusivamente a mulher ( Davis, 1982 DAVIS, Angela. Women, Race and Class. Londres: The Women’s Press, 1982. , p. 159).
  • 24
    Dados públicos PORTUGAL. População residente: total e por sexo. Disponível em: [http://www.pordata.pt/Portugal/Popula%C3%A7%C3%A3o+residente+total+e+por+sexo-6]. Acesso em: 03 de novembro de 2016.
    http://www.pordata.pt/Portugal/Popula%C...
    disponíveis em: [ http://www.pordata.pt/Portugal/Popula%C3%A7%C3%A3o+residente +total+e+por+sexo-6].
  • 25
    Dados públicos BRASIL.Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios – 2014. Disponível em: [http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2014/default_sintese.shtm]. Acesso em: 03 de novembro de 2016.
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    disponíveis em: [ http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2014/default_sintese.shtm ].
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    Adota-se a concepção do campo das relações internacionais que explicita a habilidade ou capacidade de um organismo político, como, por exemplo, um Estado ou as Nações Unidas, influir indireta ou extrajuridicamente, no comportamento ou interesse de outros atores (cf. Nye, 2005 NYE, Joseph. Soft Power: The Means to Success in World Politics . Nova York: PublicAffairs, 2005. ). No âmbito do direito internacional do desenvolvimento, entende-se que a combinação da necessidade de ação centrada no longo prazo e a complexidade de problemas, ligada à sua dimensão propriamente técnica ou social e a interesses diversos, faz com que surjam soluções de compromisso pelas quais os Estados se “obrigam” a cooperar, trabalhar em conjunto e envidar esforços no enfrentamento das questões-chave (cf. Nasser, 2005 NASSER, Salem Hikmat. Desenvolvimento, Costume Internacional e Soft Law. In : AMARAL JR., Alberto. Direito internacional do desenvolvimento. Barueri: Manole, 2005. ).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2017
  • Aceito
    30 Mar 2017
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