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“A vida mera das obscuras”: sobre a vitimização e a criminalização da mulher

“The mere life of obscures”: about women's victimization and criminalization

Resumo

O trabalho visa responder a questão: como vem sendo construída a percepção da mulher na criminologia, a partir da perspectiva feminista? Para tanto, valeu-se do método monográfico, procurando abordar criticamente a criminologia feminista e os processos de vitimização e criminalização da mulher, podendo se afirmar a necessidade de uma perspectiva macrossociológica na construção da mulher como um sujeito de direitos com suas particularidades.

Palavras-chave
s: Criminologia feminista; Vitimização da mulher; Criminalização da mulher

Abstract

This paper aims to answer the following question: how has the perception of women in criminology been developed from the feminist perspective? In order to achieve this aim, the monographic method was used, as a means to critically approach the feminist criminology and the processes of criminalization and victimization of women. It may be argued the need for a macrosociological perspective in the development of women as an individual of rights with particularities.

Keywords:
Feminist criminology; Woman victimization; Woman criminalization

Considerações iniciais 11 O título é uma referência ao poema “Todas as vidas”, de autoria de Cora Coralina.

A criminologia, ao longo dos últimos séculos, de diversas maneiras buscou reificar o papel da mulher na sociedade, para justificar sua necessidade de ser custodiada, ora pelo pai ou marido, ora pelo Estado. Somente a partir da criminologia crítica, e com o surgimento da criminologia feminista, vem se buscando compreender o papel social a ela imputado pela sociedade androcentrista e misógina, tentando assimilar questões de gênero.

É a partir do surgimento do paradigma do gênero 2 2 Harding define o paradigma do gênero através de três afirmações: 1. As formas de pensamento, de linguagem e as instituições da civilização ocidental (assim como de todas as outras conhecidas), possuem uma implicação estrutural com o gênero, ou seja, com a dicotomia “masculino-feminino”. 2. Os gêneros não são naturais, não dependem do sexo biológico, mas, sim, constituem o resultado de uma construção social. 3. Os pares de qualidade contrapostas atribuídas aos dois sexos são instrumentos simbólicos da distribuição de recursos entre homens e mulheres e das relações de poder existente entre eles. ( BARATTA, 1999 , p. 22-23). que se consegue perceber o local designado às mulheres na sociedade, e também no direito, compreendendo que vivemos numa sociedade patriarcal, estruturada sob conceitos masculinos, o que se reflete nas suas instituições. Assim, sendo a mulher vítima ou autora de delitos, passa-se a analisá-la numa perspectiva criminológica, contextualizando no paradigma do gênero e, mais atualmente, numa perspectiva feminista de empoderamento.

O presente trabalho objetiva, partindo deste olhar, verificar o lugar da mulher na criminologia e seus processos de vitimização 3 3 A vitimização a qual se refere não é “se fazer de vítima”, ou responsabilizar a mulher pelo crime do qual foi vítima, mas compreender, a partir do paradigma do gênero, que a inferiorização e subjugação da mulher a torna mais vulnerável a ser vítima de certos delitos, bem como quando a mulher se opõe ao papel de gênero e o homem com o qual convive não aceita a sua insubordinação e responde com violência. e criminalização, pretendendo demonstrar o local da mulher no palmilhar da criminologia, bem como a ausência da mulher no direito, principalmente, ressaltando o desenvolvimento da criminologia (crítica) feminista quanto a vítimas e autoras de delitos.

Destaca-se que enquanto vítima, principalmente de violência doméstica, há uma dupla violência sofrida por ela. Primeiro pelo agressor, que ocupando o papel de provedor e chefe do lar, responde através da agressão à insubordinação da companheira, pois a sociedade assim lhe permite; e depois, pelo sistema de justiça criminal, que, fazendo parte das estruturas do direito, reproduz a misoginia presente nesse.

Com relação à mulher autora de delitos, pode ser realizada uma análise por dois vieses. Questiona-se se ela não estaria mais uma vez sofrendo a influência da estrutura patriarcal de sociedade e da divisão sexual do trabalho, servindo ao companheiro, pai ou irmão, o que revelaria mais um aspecto de sua vulnerabilidade. E, de maneira diversa, ao envolver-se com a criminalidade, em delitos tidos como não tipicamente femininos, a mulher comete uma dupla transgressão, pois deixa de seguir o papel social que lhe é imposto (misógino e hegemônico), como mãe, dona de casa, custodiada pelo pai ou companheiro – sendo este seu primeiro desvio –, e também age conforme uma conduta tipificada como crime – segundo desvio.

Indispensável, pois, a concepção de uma criminologia crítica feminista, que compreenda, a partir de um olhar macrossociológico, o local de gênero onde a mulher é situada e desconstrua-o a partir do empoderamento dela. Para compreender esse contexto, este trabalho foi dividido em três partes. Em um primeiro momento, ao qual se intitula “Mulheres em conflito com a lei ou a lei em conflito com as mulheres?”, busca-se apresentar os sistemas de controle formal e informal que existem e são exercidos sobre a mulher e como essas duas formas de controle são permeadas por concepções misóginas. Na segunda parte, de título “Entre mulheres vítimas”, procura-se demonstrar de que forma as instituições de controle formal respondem às demandas de violência contra a mulher e apresentar algumas estratégias informais adotadas pelas mulheres nesses casos. Por fim, em “Entre mulheres autoras”, apresenta-se de que como o sistema trata e compreende a mulher que comete um crime, entendendo a formulação da existência de uma pressuposta dupla desviança nesses casos.

Mulheres em conflito com a lei ou a lei em conflito com as mulheres?

O direito foi construído com base em conceitos masculinos, reproduzindo na sua estrutura a ordem patriarcal do gênero, subjugando a mulher. A criminologia, dentre as várias ciências, talvez tenha sido a que mais se aprisionou a esse androcentrismo, “ com seu universo até então inteiramente centrado no masculino, seja pelo objeto do saber (o crime e os criminosos), seja pelos sujeitos produtores do saber (os criminólogos), seja pelo próprio saber” ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 129). A criminologia tradicional buscou justificar a vitimização e criminalização das mulheres através de estigmas biológicos e psicológicos, etiquetando-a como um ser volátil, facilmente influenciável, fraco de caráter e de físico, por isso também, a necessidade de sua custódia, sua proteção, pelo pai, pelo marido e pelo Estado.

A partir da teoria crítica, contudo, entende-se que é o próprio sistema que constrói a criminalidade, ao editar as leis e definir o que é crime (criminalização primária), seleciona quem será etiquetado, através da Polícia e de toda a mecânica do Poder Judiciário (criminalização secundária), e estigmatiza como criminosos aqueles que passam pelo sistema (criminalização terciária) ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 136), possibilitando, por esse processo, a compreensão do lugar da mulher na sociedade como um lugar de gênero. Logo, é somente com a criminologia crítica que se compreende que os processos de criminalização, e também, vitimização, são orientados por estereótipos, preconceitos e discriminações, presentes no senso comum e nos operadores do controle penal na desigual seleção de pessoas ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 138).

A partir da criminologia crítica, cria-se um cenário mais “ favorável às incursões feministas da criminologia” ( MATOS; MACHADO, 2012 MATOS, Raquel; MACHADO, Carla. Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia. Aná. Psicológica, Lisboa, v. 30, n. 1-2, jan. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870-82312012000100005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 08 out. 2015
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), primeiramente, com relação à vitimização da mulher, principalmente sexual, e após com os processos de criminalização da mulher e as reações do sistema jurídico penal a esses. A criminologia (crítica) feminista se opõe às que a antecederam, que justificavam a criminalidade feminina pela natureza biológica da mulher, ou então pela coação de figuras masculinas que exerciam o poder sobre elas ( MATOS; MACHADO, 2012 MATOS, Raquel; MACHADO, Carla. Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia. Aná. Psicológica, Lisboa, v. 30, n. 1-2, jan. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870-82312012000100005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 08 out. 2015
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), propondo a análise dos processos de vitimização e criminalização da mulher na conjuntura do paradigma do gênero e, atualmente, também a partir dos outros processos de estigmatização da mulher (etnia/raça, sexualidade, capacidade, classe econômica).

Procura-se, então, desconstruir os discursos da irracionalidade feminina através da análise de fatores sociais, como “a marginalização social e econômica das mulheres, o poder patriarcal e os dispositivos informais de controle do comportamento feminino” ( MATOS; MACHADO, 2012 MATOS, Raquel; MACHADO, Carla. Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia. Aná. Psicológica, Lisboa, v. 30, n. 1-2, jan. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870-82312012000100005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 08 out. 2015
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). Percebe-se que “toda mecânica do controle (enraizada nas estruturas sociais) é constitutiva, reprodutora das profundas assimetrias de que se engendram e se alimentam, afinal, os estereótipos, os preconceitos e as discriminações, sacralizando hierarquias” ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 137). Esses estereótipos, com relação à mulher, vêm sendo construídos desde a Idade Média, se não antes, através da idealização da mulher na sociedade patriarcal, isto é, mãe, esposa, cuidadora e submissa, manifestando-se restritamente no ambiente doméstico. Nesse sentido, “costuma-se comparar a casa – onde a mulher foi por séculos regalada – a uma espécie de gueto, que marcou física e espacialmente a marginalização social da mulher” ( BOBBIO, 2011 BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Editora Unesp, 2011. : 117).

Às mulheres, então, é determinado esse padrão comportamental, que vem se perpetuado como hegemônico, buscando-se impedir o desvio dele tanto através do controle social formal, quanto informal. Destaca-se que controle social, num sentido lato, são as formas com que a sociedade responde, informal ou formalmente, difusa ou institucionalmente, a comportamentos e a pessoas que contempla como desviantes, problemáticos, ameaçantes ou indesejáveis, e nessa reação seleciona, classifica, estigmatiza o próprio desvio e a criminalidade como uma forma específica dele ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 133). O controle social formal é aquele exercido pelas instituições, como o Judiciário, Polícia, Ministério Público, integrando a ele os processos de criminalização primária, secundária e terciária; já o controle social informal dá-se por meios difusos, como a família, a igreja, a escola. No entanto, no que concerne à mulher, o controle informal é muito mais presente e atuante. Destaca-se que:

O sistema de controle dirigido exclusivamente à mulher (no seu papel de gênero) é o informal, aquele que se realiza na família. Esse mesmo sistema vem exercitado através do domínio patriarcal na esfera privada e vê a sua última garantia na violência física contra as mulheres ( BARATTA, 1999 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. : 46).

Nessa linha, o controle informal infligido à mulher materializa-se na família, através da figura do pai, padrasto ou marido, bem como na escola, na religião e na moral ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 145). Percebe-se mais claramente esse controle na infância, quando se designa às meninas os brinquedos “rosa” e ligados à casa e à maternidade, quando se diz que “isso não é coisa de menina”, ou “sente como menina”, perpetuando-o durante toda a vida da mulher, no ambiente de trabalho, no casamento (na família), e até mesmo na rua.

Subsidiariamente, há o controle formal, realizado pelas estruturas do sistema penal, que age tanto de modo integrativo ao controle informal de trabalho, reforçando o controle capitalista de classe ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 144), quanto de modo residual, pois é dirigido primordialmente aos homens, constituindo um mecanismo masculino de controle para a repressão de condutas masculinas, regra geral, praticadas pelos homens, e só secundariamente pelas mulheres ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 145). Isto é, não há relevância para o sistema penal das condutas femininas, só a criminalizando residualmente, de modo que o sistema penal também resta masculinizado.

Isso se reflete claramente nas estruturas do sistema de justiça criminal, nas más condições em que se encarceram mulheres grávidas, na ausência de material de higiene básico e imprescindíveis às detentas, na própria estrutura pessoal da justiça que é machista e, por vezes, ridiculariza mulheres vítimas de violência. Em outras palavras, o sistema penal funciona de forma integrada ao controle informal feminino, o que reforça o controle patriarcal sobre a mulher, criminalizando-a em algumas situações e reconduzindo-a ao ‘seu’ lugar de vítima ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 146).

O sistema penal expressa e reproduz “a estrutura e o simbolismo de gênero, expressando e contribuindo para a reprodução do patriarcado e do capitalismo (capitalismo patriarcal)” ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 144). O sistema de justiça criminal “é concebido como um processo articulado e dinâmico de criminalização ao qual concorrem não apenas as instituições do controle formal, mas o conjunto dos mecanismos do controle informal” ( MENDES, 2014 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014. : 165). Ainda, ineficaz na proteção das mulheres contra a violência, ele duplica a violência exercida contra elas e as divide, já que,

[...] se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens como de mulheres e porque é, ele próprio um sistema de violência institucional, que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas. E, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social (Lei, Polícia, Ministério Público, Justiça, prisão) que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o sistema penal duplica, ao invés de proteger, a vitimização feminina [...] (ANDRADE, 1997 __________, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 42-49, jan. 1997. ISSN 2177-7055. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15645/14173>. Acesso em: 27 mar. 2015.
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).

Isso porque a mulher que já foi vítima da violência, passa também a ser vítima do sistema, ou seja, da violência institucional, que expressa e reproduz as relações sociais capitalistas e a violência das relações patriarcais (ANDRADE, 1997 __________, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 42-49, jan. 1997. ISSN 2177-7055. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15645/14173>. Acesso em: 27 mar. 2015.
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).

Nesse sentido, portanto, cabe perceber de que maneira a estrutura de controle formal e informal compreendem os crimes de violência contra a mulher e, em linhas breves, de que forma é dada uma resposta estatal a esses casos, tarefa que será desenvolvida no tópico que segue.

Entre mulheres vítimas

É importante compreender de que forma as mulheres estão se contrapondo a tratamentos violentos e indignos que eram justificados por uma concepção de objetificação da mulher. Assim, conforme Saffioti, muitas mulheres deixaram de admitir serem usadas como objeto para a satisfação sexual do esposo, deixando de assentir em serem tratadas como propriedades deles, e passaram a entender que o sexo só faz sentido quando convergem as vontades, e não como um dever conjugal ( SAFFIOTI, 1994 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Violência de Gênero no Brasil Atual. Estudos Feministas, Florianópolis, p. 443, jan. 1994. ISSN 0104-026X. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16177/14728>. Acesso em: 06 nov. 2015.
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).

No entanto, esse empoderamento 4 4 Necessário destacar que empoderamento aqui “compreende la alteración radical de los procesos y estructuras que reproducen la posiciona subordinada de las mujeres como género” ( YOUNG, 1997 ). Saffioti ainda complementa, afirmando que empoderamento, do inglês empowerment, “significa atribuir poder às mulheres, elevando, por exemplo, sua autoestima. Também se empoderam mulheres por meio de ações afirmativas estatais” (SAFFIOTI, 2015, p. 99 – nota de rodapé). que provoca uma atitude de insubordinação não constitui “a razão primeira da violência dos homens contra elas, mas tão-somente o fator desencadeador desta capacidade socialmente legitimada de eles converterem a agressividade em agressão” ( SAFFIOTI, 1994 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Violência de Gênero no Brasil Atual. Estudos Feministas, Florianópolis, p. 443, jan. 1994. ISSN 0104-026X. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16177/14728>. Acesso em: 06 nov. 2015.
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). Com isso quer-se dizer que não são as mulheres culpadas pela violência sofrida por elas, o que seria um vitimismo, condicionar a elas a responsabilidade pela violência sofrida, retirando do agressor a culpabilidade pela sua ação.

Nesse sentido, uma pesquisa realizada na Universidade Federal do Espírito Santo com vítimas de violência doméstica, demonstrou que as mulheres, atualmente, convivem entre compreensões tradicionais de gênero e ações de ‘insubordinação’ ao companheiro (trabalham fora, possuem amizades, questionam a vida sexual do casal). Esse aspecto de insubordinação, ainda que sutilmente, demonstra o empoderamento dessas mulheres, e “relacionam-se à agressividade dos parceiros que, excluídos dos debates feministas e buscando proteger sua masculinidade, usam a violência para suprimir as manifestações femininas de poder” ( MATOS; MACHADO, 2012 MATOS, Raquel; MACHADO, Carla. Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia. Aná. Psicológica, Lisboa, v. 30, n. 1-2, jan. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870-82312012000100005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 08 out. 2015
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). Em outras palavras, os homens usam da violência a fim de tentar controlar suas companheiras e coloca-las novamente em seus locais de subordinação.

A violência doméstica funciona como um castigo que pretende condicionar o comportamento dessas mulheres, mostrando a elas que não possuem o domínio da própria vida (SABADELL, 2010: 281). Ou seja, a violência impetrada pelos homens seria uma forma de dissuadi-las da ideia de autonomia e autodeterminação, pois, distorcidamente, na concepção deles, as mulheres devem-lhes subserviência já que esse é o pensamento hegemônico da sociedade, ao qual há anos as teóricas feministas vêm se opondo.

A pesquisa revelou que na visão das mulheres foram elas que começaram as discussões, que por vezes culminavam em agressões, quando questionavam seus companheiros, exigindo um comportamento diferente deles, ou então quando não se subordinavam às suas vontades. Essa insubordinação e as cobranças dos companheiros como pais e chefes de família,

[...] podem ser compreendidas como mais um passo no processo de empoderamento dessas mulheres, uma vez que se mostraram determinadas a cumprir suas vontades e enfrentar de alguma maneira a situação de subordinação que seus maridos impõem (MATOS, 2012).

No entanto, o “homem, ainda amplamente informado pelo poder socialmente legitimado que exerce sobre a mulher e pela experiência de impunidade quando ultrapassa os limites do tolerável, lida de forma violenta com esta nova situação ” (MATOS, 2012). Do mesmo modo, ainda muito se propaga a premissa de que em brigas de marido e mulher ninguém deve se intrometer, velando a violência sofrida por muitas e privatizando uma problemática recorrente a qual deve ser escancarada.

Mesmo assim, a vitória conquistada com a sanção da Lei n. 11.340 de 2006 deve ser celebrada, ainda que somente em partes. A lei evidencia a quebra do estigma da privatização dos conflitos domésticos e da manutenção da violência contra a mulher no ambiente privado, pois tais casos passaram-a ser cuidados pelo Estado mais amplamente, e não mais solucionados com o pagamento de cestas básicas, podendo-se identificar no texto da referida lei, apresentando “não só mudanças de caráter conceitual, como prescrições que politizam e criminalizam a violência contra a mulher, mas também determinações de criação de serviços de proteção social para as mulheres em situação de violência” ( TAVARES, 2015 TAVARES, Márcia Santana. RODA DE CONVERSA ENTRE MULHERES: DENÚNCIAS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA E DESCRENÇA NA JUSTIÇA. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 2, maio 2015. ISSN 0104-026X. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38875/29354>. Acesso em: 1º nov. 2015.
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). Além disso, contraria, positivamente, a ausência de interesse da criminologia pela família, desvelando a vitimização das mulheres e a atuação sobre elas através do controle informal, representando uma mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher.

No entanto, a maioria das mudanças permanecem só no papel e no campo teórico, pois no que diz respeito a sua execução pelo sistema de justiça criminal, persiste a reprodução do gênero, de estereótipos e estigmatização da vítima, duplicando a violência contra a mulher. Tal assertiva é corroborada pelos relatos colhidos no estudo realizado pela Universidade Federal da Bahia no ano de 2012, sendo um dos relatos de Amora, a qual afirmou que:

[...] desde 2010 venho lutando, porque meu ex-marido me agrediu, eu convivi com ele 16 anos, me agredia sempre, [...] já me violentou várias vezes, e aí denunciei ele [...] para a DEAM, chegando lá, a delegada [...] ela falou: ‘Olhe, X, volte para ele, porque ele te ama muito ainda, ele disse que não fez nada com você não’. E essa queixa que eu dei? E o que eu fui fazer corpo delito, fica aonde? [...] veio a medida protetiva, corri muito atrás também, [...] da 1ª Vara para cá, de hoje que estou lutando, tive três audiências, ele já foi intimado e nunca compareceu, [...] tem três prisões preventivas dele, nunca foi preso [...]. Dra. A.: ‘Eu já mandei a prisão preventiva dele, ele vai ser preso’. Esperei, aguardei e nada. Retornei lá. ‘Nada ainda?’ Eu: ‘Não’. Quem entrega intimação? No oficial de justiça, não achei oficial de justiça nenhum. Ninguém sabia se entregou ou não a intimação para ele [...]. E assim eu acho que precisa melhorar bastante, sabe? A 1ª Vara da Justiça, porque está horrível (Amora) ( TAVARES, 2015 TAVARES, Márcia Santana. RODA DE CONVERSA ENTRE MULHERES: DENÚNCIAS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA E DESCRENÇA NA JUSTIÇA. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 2, maio 2015. ISSN 0104-026X. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38875/29354>. Acesso em: 1º nov. 2015.
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).

Nesse relato, fica evidente a falta de preparo dos agentes que cuidam dos processos de violência doméstica. Quando a delegada sugere que a vítima volte a conviver com o ex-marido, justificando com “ele te ama muito ainda” e afirma que ele sustentou que não havia feito nada, fica clara a desqualificação da denúncia de Amora, uma vez que ao sugerir a reconciliação entre os dois, a delegada nada mais faz do que desacreditar o discurso da vítima, colocando a palavra do ex-marido acima da dela, sem nem mesmo ter apurado os fatos.

No caso de Tina, após um ano aguardando uma medida protetiva, o seu relato foi ouvido no dia em que teria seu primeiro atendimento psicossocial. Nesse caso em particular, existe uma nota no trabalho relatando que a ida das pesquisadoras à Vara não havia sido programada naquele dia, uma vez que a juíza estava ausente, mas que avisada pelos funcionários, retornou quando a equipe entrevistava Tina e, após tomar conhecimento do caso, imediatamente emitiu a medida protetiva. Na época, a entrevistada relatou que:

[...] e quase um ano depois eu continuo na mesma situação. Nada mudou, ele bebe e vai na minha casa, continua me agredindo [...]. Procuro saber como tá o processo, chego aqui e dizem que está na mesa da juíza, mas que ela ainda não deu o parecer [...]. Eu esperava que a medida protetiva saísse no máximo em uns vinte dias, em dez dias [...]. Dizem que é assim mesmo, tem que esperar. Aí volto pra casa, espero uns quinze dias, dez dias, retorno [...]. O medo permanente e a exposição a situações de risco, apesar de ter buscado os serviços e a ausência pronta de socorro... (Tina) ( TAVARES, 2015 TAVARES, Márcia Santana. RODA DE CONVERSA ENTRE MULHERES: DENÚNCIAS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA E DESCRENÇA NA JUSTIÇA. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 2, maio 2015. ISSN 0104-026X. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38875/29354>. Acesso em: 1º nov. 2015.
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).

Tais situações ocorrem em todos país, pois ainda que a legislação possa quebrar, em partes, o paradigma de gênero, o sistema penal continua reproduzindo estereótipos. E, então, novamente, a mulher que já foi violentada em casa, passa a ser violentada pelas estruturas da Justiça, já que não há um preparo dos profissionais em realizar uma escuta humanizada, m acolhimento, e eles acabam aparentando descaso, indiferença e omissão com relação as situações denunciadas ( TAVARES, 2015 TAVARES, Márcia Santana. RODA DE CONVERSA ENTRE MULHERES: DENÚNCIAS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA E DESCRENÇA NA JUSTIÇA. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 2, maio 2015. ISSN 0104-026X. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38875/29354>. Acesso em: 1º nov. 2015.
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). Percebe-se logo o machismo presente nas estruturas e instituições que compõe a sociedade, e a falta de preparo de profissionais que lidam cotidianamente com situações como as relatadas, e ao invés de fornecerem o auxílio corajosamente buscado por essas mulheres, as discriminam novamente.

Infelizmente, “algumas juízas ainda conduzem as audiências de modo a promover a reconciliação do casal, respaldadas em valores patriarcais que limitam a questão da violência à esfera privada e naturalizam a desigualdade de poder presente no seio familiar” ( TAVARES, 2015 TAVARES, Márcia Santana. RODA DE CONVERSA ENTRE MULHERES: DENÚNCIAS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA E DESCRENÇA NA JUSTIÇA. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 2, maio 2015. ISSN 0104-026X. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38875/29354>. Acesso em: 1º nov. 2015.
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). Ou seja, a vítima mulher, quando passa pela estrutura do controle social formal, vivencia, toda a cultura de discriminação, humilhação e estereotipia que o sistema penal reproduz da sociedade ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 132). Além disso, manter essa postura, atualmente, é se fazer surdo à fala feminina, refletindo, mais uma vez, a objetificação da mulher, de convencimento, de tutela, do outro que sabe mais que ela própria sobre suas necessidades e desejo de futuro. Além da surdez à fala feminina, soma-se nessa postura a posição de se “dizer por”, ou seja, de assumir a fala pela mulher, prescrever a esta uma forma de viver sua vida, em uma atitude paternalista que reproduz concepções machistas e que mantém o não-lugar das mulheres na sociedade.

Ressalta-se que:

Apesar da crescente feminização do Judiciário, as desigualdades de gênero persistem na magistratura, que permanece um espaço gendrado, masculino, o que interfere na postura de juízas, delegadas e promotoras, cuja aceitação entre os pares parece estar condicionada à negação de sua identidade feminina. Assim, na tentativa de imprimirem racionalidade e objetividade às sentenças formuladas, adotam uma postura mais rígida, que associam ao sexo masculino ( TAVARES, 2015 TAVARES, Márcia Santana. RODA DE CONVERSA ENTRE MULHERES: DENÚNCIAS SOBRE A LEI MARIA DA PENHA E DESCRENÇA NA JUSTIÇA. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 2, maio 2015. ISSN 0104-026X. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38875/29354>. Acesso em: 1º nov. 2015.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/re...
).

Isso corrobora o quão misógino o sistema de justiça criminal demonstra ser, sendo necessário muito mais que conquistas legislativas e punitivistas para mudar a ordem patriarcal do gênero. Buscar no sistema penal respostas à vitimização da mulher, de certo modo, recai novamente na já denunciada dependência masculina, na busca da autonomia e empoderamento feminino, pois recorre-se à proteção de um sistema sexista e crê-se encontrar nele “o grande pai capaz de reverter sua orfandade social e jurídica” (ANDRADE, 1997 __________, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, p. 42-49, jan. 1997. ISSN 2177-7055. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15645/14173>. Acesso em: 27 mar. 2015.
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). Há necessidade de procurar, fora do direito, possíveis soluções à violência contra a mulher, soluções informais para controles informais para que, quem sabe, possa ser possível, de alguma forma (em algum momento) modificar inclusive os controles formais.

Nessa perspectiva, interessante o relato compartilhado por Soraia da Rosa Mendes de um projeto do Grupo de Mulheres Cidadania Feminina, apoiado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos, que mantém, desde 2003, o Apitaço – Mulheres enfrentando a violência . A partir dele, as mulheres passaram a sair às ruas, apitando e inibindo possíveis criminosos, mostrando que elas podem reagir ( MENDES, 2014 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014. : 179). Assim, quando uma mulher está sofrendo uma situação de violência, ela mesma apita, as vizinhas ouvem e começam a apitar também. Conforme a autora, o projeto é um exemplo de que o direito penal não precisa ser a solução dos conflitos, de que se deve repensar as respostas punitivistas que se dão como solução dos conflitos ( MENDES, 2014 MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014. : 179-181).

Outra situação nesse mesmo viés ocorre na comunidade do Jardim Columbia, na cidade de Campinas (SP). A própria comunidade e, principalmente, as mulheres estão envolvidas na resolução de conflitos de Violência Doméstica, majoritariamente, ameaças ou agressões verbais. Algumas das medidas tomadas pelas mulheres são o controle e fiscalização de atividades recreativas dos agressores, bem como, abstinência sexual (FOLHA DE SÃO PAULO, 2014 FOLHA DE SÃO PAULO. Marido agressivo fica sem sexo em comunidade em Campinas (SP). Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/04/1437916-maridos-agressivos-ficam-sem-sexo-e-bilhar-em-comunidade-em-campinas-sp.shtml>. Acesso em: 08 nov. 2015.
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).

Com isso, quer-se ressaltar que um discurso voltado à punição dos agressores se limita a reafirmar a sedução, e a suposta eficácia, do Direito Penal, que seria capaz de solucionar o problema da violência de gênero. É necessário, na verdade, a construção de uma nova consciência social a respeito da violência doméstica, perpassando por instâncias que vão muito além do Poder Judiciário, pois o sistema de justiça criminal não possui em si a capacidade de alterar estruturas sociais e políticas de forma positiva ( GOMES, 2014 GOMES, Mayara De Souza. Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006. Revista Liberdades, Rio de janeiro, n. 17, set./dez. 2014. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/211-artigos>. Acesso em: 08 nov. 2015.
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).

Dessa forma, cabe compreender também de que forma se percebem os crimes cometidos por mulheres, de que forma são tratados pelo Sistema Penal e como são sancionados pelo mesmo, objetivo que será desenvolvido no título seguinte.

Entre mulheres autoras

Já no que diz respeito aos processos de criminalização da mulher, é preciso verificar as situações específicas que o sistema seleciona como transgressões. Primeiro, há a criminalização primária de condutas femininas contra a pessoa, crimes contra a família-casamento, crimes contra a família-filiação; segundo, a criminalização secundária das mulheres quando exercem papéis sociais masculinos, são traficantes, usam armas; e por fim, a criminalização secundária de mulheres que praticam infrações em contextos de vida diferentes dos impostos aos papéis femininos ( ANDRADE, 2012 ANDRADE, Vera Regina de. Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (de)ilusão. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2012. : 146). Essas situações se diferenciam pela forma como a mulher autora de delitos é tratada pelo sistema penal.

Os crimes próprios de mulheres (aborto, infanticídio, abandono de menores), que se encontram no primeiro grupo, ainda encontram acolhimento privilegiado no sistema penal quando criminalizados, exculpando-as de modo que a criminalização é simbólica, para reforçar os papéis de gênero, porque lugar de mãe e esposa é em casa ( BARATTA 1999 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. : 50-51). Ou seja, os delitos próprios da mulher encontram um tratamento privilegiado no direito penal, tendendo à imunidade e a um maior beneplácito às autoras desses delitos no sistema penal ( BARATTA 1999 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. : 51), pois permanecem no seu papel feminino.

Afirma Baratta que os juízes homens tem uma postura mais ‘cavalheiresca’, de maior benevolência nesses casos, pois há uma preocupação do sistema da justiça criminal em interferir no cumprimento dos papéis de reprodução da mulher, desejando-lhes demonstrar que não ‘pertencem’ à prisão, mas sim à casa, ao lado dos filhos ( BARATTA, 1999 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. : 50). Como já dito, fica presente uma postura paternalista que “fala pela e para” a mulher qual seu papel e seu lugar dentro da sociedade, ou seja, a casa - o privado.

Diferentemente, quando cometem delitos ‘masculinos’ e fogem desse lugar de mãe e esposa, as infratoras são tratadas com mais intransigência. Percebe-se, assim, uma criminalização primária (atribuição de etiquetamento pelos órgãos da justiça criminal) quando quer-se reificar o papel de gênero da mulher, pela qual possuem um tratamento privilegiado, e uma criminalização secundária (opinião pública) quando a mulher desvia do papel de gênero hegemônico, sendo mais severamente punida por isso.

Quando a mulher exercita um papel socialmente estabelecido como masculino ou quando suas “ infrações se realizam em um contexto de vida diferente daquele imposto pelos papéis femininos, v. g., não vivem em uma família tradicional ou a abandonaram, ou, ainda, se comportam como homens” ( BARATTA, 1999 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. : 51). Principalmente com relação ao envolvimento da mulher no tráfico de drogas, há uma manifesta transgressão do estereótipo de gênero, já que as mulheres que seriam tidas historicamente como pacíficas, maternais e intelectualmente inferiores, acabam por romper essa estrutura (FERREIRA, et. al in SÁ, 2015) . Além de não cumprirem as expectativas de uma função a elas imposta, essas mulheres comentem um delito, ou seja, realizam uma dupla transgressão. Em face disso, o tratamento dado a elas pelo sistema penal é muito mais severo. Por exemplo, conforme dados da pesquisa Prisão Provisória e Leis de Drogas (NEV-USP) (FERREIRA, et. al in SÁ, 2015), enquanto as penas mais brandas são majoritariamente aplicadas aos réus homens, as penas maiores são mais aplicadas às mulheres.

Agora como autora, a mulher é duplamente condenada, pelo desvio da lei, e também pelo desvio do gênero, pois as estruturas do sistema, machista que, não comportam as necessidades específicas da mulher. No entanto, se a mulher comete um crime similar ao masculino, mas num contexto de papéis diferentes, ela também é tratada com mais benevolência. Por exemplo, o furto: o homem é punido pelo furto para resguardar o patrimônio do outro e porque furtou ao invés de trabalhar; já a mulher, como não tem o “dever” do trabalho, do sustento do lar não é tão duramente sancionada ( BARATTA, 1999 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. : 53). Ou seja:

[...] as mulheres enquanto intérpretes de papéis femininos, não vêm sendo consideradas na sua qualidade de autoras de crime, mas sim, na de vítimas das formas de violência masculina não previstas pelas normas penais, ou previstas, não sob a forma de ofensas à incolumidade física e à sua autonomia, mas como ofensa a outros valores “objetivos”, ou ainda como crimes em larga escala, justificados tanto pelo sistema da justiça penal como pelo sendo comum ( BARATTA, 1999 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. : 54).

A mulher que age como criminosa é considerada duplamente desviante, em face dos papéis que a sociedade destina a ela, “transgride a lei, mas também os padrões da moral e bons costumes, intimamente ligados à sua posição de matriarca e daquilo que se considera uma conduta feminina apropriada” ( FERREIRA, et. al, 2015 FERREIRA, Fernanda Macedo; et al. Opressão e transgressão: O paradoxo da atuação feminina no tráfico de drogas. In: SÁ, Priscilla Plach (Org.) Dossiê: as mulheres e o sistema penal. Curitiba: OABPR, 2015, p. 160. Disponível em: <http://www.oabpr.org.br/downloads/dossiecompleto.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2015
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). Essa transgressão ao gênero é resultado do empoderamento da mulher, já que o empoderamento é essa alteração do local de subordinação da mulher, por ser mulher. Ou seja, ao agir conforme fato tipificado como crime ela se opõe ao preceito de que certas coisas não são próprias de mulher, e determina aquilo que quer para ela mesma. Além disso, por diversas vezes o mundo do crime é a única opção para muitas mulheres, já que o mercado formal também reproduz estigmas de gênero e a divisão sexual do trabalho, o que impede o acesso delas a vagas de emprego, ou ainda, as faz receber remuneração inferior 5 5 Sabe-se que as mulheres, embora possuam a mesma qualificação que os homens, são menos valorizadas financeiramente e até discriminadas no mercado de trabalho. Esta afirmação foi corroborada por pesquisa desenvolvida pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), indicando que, no Brasil, “a renda média de uma mulher com educação superior representa apenas 62% da renda média de um homem com o mesmo nível de escolaridade” (2015, p.3). .

De modo um pouco diverso, alguns autores afirmam que na base das escolhas da mulher pela desviança estarão “constrangimentos quer a nível económico, quer a nível da complexa interacção entre padrões de dinâmica familiar, estruturas sociais patriarcais e factores culturais” ( MATOS, MACHADO, 2012 MATOS, Raquel; MACHADO, Carla. Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia. Aná. Psicológica, Lisboa, v. 30, n. 1-2, jan. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870-82312012000100005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 08 out. 2015
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). Também há quem entenda que quando os crimes que as mulheres cometem têm como vítima um perpetrador de abuso, soma-se um outro significado ao cometimento desse delito, pois é através dele que elas de alguma forma iriam adquirir o respeito e o controle de que foram até então privadas ( MATOS, MACHADO, 2012 MATOS, Raquel; MACHADO, Carla. Criminalidade feminina e construção do género: Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia. Aná. Psicológica, Lisboa, v. 30, n. 1-2, jan. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870-82312012000100005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 08 out. 2015
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).

Contudo, essa anterior vitimização da mulher que a leva a ser autora de delitos, ou então, que a coloca como influenciada por um outro indivíduo (o que pode acontecer em alguns casos), retira-lhe a autonomia de escolha, coloca-a diante de um determinismo. Essas afirmações retiram a autonomia e a racionalidade do ato feminino. Afirma-se aqui que o ato de transgressão à lei, que também é um ato de transgressão ao gênero, é uma escolha da mulher, é essa escolha que marca seu empoderamento.

Nesse sentido, destaca-se que “a transgressão feminina seria uma via de escape, uma forma de demonstrar sua insatisfação e questionamento da estrutura machista” (SOUZA, 2009), isto é, a mulher nega o seu papel de gênero, tornando-se sua antítese. Por isso, a mulher autora de delitos quebra com o paradigma do gênero ao inserir a mulher no espaço público antes proibido, o que se dá a partir da sua busca de autonomia, com o empoderamento feminino. Desse modo, a mulher, ao decidir contra seu papel de gênero, ainda que “[...] através da violência, ganha fala, sai do espaço privado e adentra o espaço público, antes dominado somente pelo homem, mesmo de forma enviesada e negativa, por meio de um ato de violência” (SOUZA, 2009).

Nesse aspecto, interessante o relato da norte-americana Marcia Bunney, condenada pelo homicídio de seu abusador, que dentro da prisão, ao cursar aulas sobre a história das mulheres na América, começou a se empoderar, mas ressalta:

It is difficult for a woman who has suffered abuse to achieve a meaningful degree of insight and healing in the prison environment. Conditions within the institution continually reinvoke memories of violence and oppression, often within devastating results. Unlike other incarcerated battered women who have come forward to reveal their impressions of prison, I do not feel “safer” here because “the abuse has stopped.” It has not stopped. It has shifter shape and paced itself differently, but it is as insidious and pervasive in prison as ever it was in the world I knew outside these fences. What has ceased is my ignorance of the facts concerning abuse – and my willingness to tolerate it in silence (BURNEYin COOK, 1991 BURNEY, Marcia. One Life in Prision: Perception, Reflection, and Empowerment. In: COOK, Sandy; DAVIES, Susanne (Ed.) Harsh punishment: International experiences of women’s imprisonment. Boston: Northeastern University, 1991. : 30). 6 6 Tradução livre: É difícil para uma mulher que sofreu abuso alcançar um grau significativo de introspecção e cura no ambiente prisional. As condições dentro da instituição continuamente reinvocam memórias de violência e opressão, muitas vezes com resultados devastadores. Ao contrário de outras mulheres violentadas encarceradas que se apresentaram para revelar suas impressões de prisão, eu não me sinto "mais segura" aqui porque "o abuso parou”. Ele não parou. Ele muda de forma e move-se diferente, mas é tão traiçoeira e generalizado na prisão como sempre fora no mundo que eu conheci fora desses muros. O que cessou foi a minha ignorância dos fatos relativos ao abuso – e a minha vontade de tolerá-los em silêncio.

É imprescindível destacar, dentro do contexto da mulher autora de delitos, os dados liberados pelo Ministério da Justiça através do INFOPEN MULHERES, de junho de 2014. Com relação às mulheres autoras de delitos que acabam cumprindo pena privativa de liberdade – que no Brasil, entre 2000 e 2014, teve um aumento da população feminina de 567,4% ( MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES JUNHO DE 2014. Brasília, 2015. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-mulheres_05-11.pdf>. Acesso em 5 nov. 2015.
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) –, a própria estrutura do sistema penitenciário reifica o papel de gênero e as violenta profundamente. A educação e a formação profissional recebida pela população carcerária feminina reproduzem a sua subordinação, também nas relações de produção (BARATTA in CAMPOS, 1999: 50). Elas não recebem uma educação, não tem acesso a um conhecimento que lhes possibilite uma vida autônoma, ficando restritas a uma lógica que reproduz e reafirma seu papel enquanto esposas e proletárias, reproduzindo os papéis femininos socialmente construídos (BARATTA in CAMPOS, 1999: 50). Desse modo, elas permanecem dependentes dos maridos, emocional e economicamente, e não conseguem ter acesso a uma perspectiva diferente. Novamente, a estrutura lhe imputa um lugar, um local tomado como o ideal para o feminino, um espaço que a sociedade lhe deixa ocupar, qual seja, o privado, o de resguardo, ficando clara essa perspectiva na medida em que aprendem também na prisão, ‘trabalhos de mulheres’, ‘trabalhos de casa’.

No mesmo sentido,

[...] as mulheres em situação de prisão têm demandas e necessidades muito específicas, o que não raro é agravado por históricos de violência familiar, e condições como a maternidade, a nacionalidade estrangeira, perda financeira, ou o uso de drogas ( MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES JUNHO DE 2014. Brasília, 2015. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-mulheres_05-11.pdf>. Acesso em 5 nov. 2015.
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).

Ainda conforme relatório do INFOPEN MULHERES, 49% das unidades femininas não possuem cela ou dormitório adequado para gestantes; nas unidades mistas esse número aumenta para 90% ( MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES JUNHO DE 2014. Brasília, 2015. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-mulheres_05-11.pdf>. Acesso em 5 nov. 2015.
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). Esse dado se destaca, principalmente, em face de fatos como ocorrido em 11 de outubro de 2015, na Penitenciária Feminina Talavera Bruce, no Rio de Janeiro, no qual uma mulher deu à luz a seu filho, sozinha, numa solitária, sem auxílio, apesar dos gritos de pedidos de ajuda (O GLOBO, 2015 O GLOBO. Parto na prisão. Disponível em: <http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/parto-na-prisao.html>. Acesso em: 07 nov. 2015.
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).

Com relação à existência de berçário, o relatório mostra que 48% das unidades femininas e 86% das unidades mistas não os possuem ( MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES JUNHO DE 2014. Brasília, 2015. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-mulheres_05-11.pdf>. Acesso em 5 nov. 2015.
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). Do mesmo modo, somente 5% das unidades femininas possuem creche, enquanto as unidades mistas não possuem registro de creches. Em estudo realizado pelo Ministério Público na Penitenciária Feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre, constatou-se que 68% das mulheres entrevistadas não sabiam onde seus filhos moravam. Outro dado triste desse estudo é que 50,41% não recebem visitas dos filhos ( ZERO HORA, 2015 ZERO HORA. Metade das detentas da madre pelletier não recebe visita dos filhos, diz estudo. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/09/metade-das-detentas-da-madre-pelletier-nao-recebe-visita-dos-filhos-diz-estudo-4844027.html>. Acesso em: 08 nov. 2015.
http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/no...
). Isso reforça mais ainda a vulnerabilidade sofrida pelos filhos das mulheres presas, além de exemplificar em como a reclusão feminina intensifica a fragilização dos laços sociais e afetivos (FERREIRA, et al in SÁ, 2015).

Tais dados demonstram que “a distinção dos vínculos e relações familiares estabelecidos pelas mulheres, bem como sua forma de envolvimento com o crime, [...] impacta de forma direta as condições de encarceramento a que estão submetidas” ( MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES JUNHO DE 2014. Brasília, 2015. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-mulheres_05-11.pdf>. Acesso em 5 nov. 2015.
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). A maternidade, por exemplo, é amplamente ignorada pelo sistema penitenciário violentando e vulnerabilizando as mulheres que serão mães. Infelizmente, o que se vê é a completa “ausência de políticas públicas com o objetivo de suprir as necessidades específicas das mulheres encarceradas, desde instalações inadequadas para a manutenção de creches e itens básicos de higiene ao reduzido número de presídios femininos [...]” ( FERREIRA, et al, 2015 FERREIRA, Fernanda Macedo; et al. Opressão e transgressão: O paradoxo da atuação feminina no tráfico de drogas. In: SÁ, Priscilla Plach (Org.) Dossiê: as mulheres e o sistema penal. Curitiba: OABPR, 2015, p. 160. Disponível em: <http://www.oabpr.org.br/downloads/dossiecompleto.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2015
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). Fica claro que, ao reproduzir a estrutura de encarceramento masculino na prisão feminina não se questiona e, portanto, não se contemplam as necessidades específicas das mulheres, como gravidez, maternidade, etc.

Um aspecto se destaca no que diz respeito às mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade, também demonstrado pelo Ministério da Justiça: em torno de 58% dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não relacionado a grandes redes de organizações criminosas, ou seja, por terem realizado serviços de transporte de drogas e pequeno comércio ( MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2015 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES JUNHO DE 2014. Brasília, 2015. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-mulheres_05-11.pdf>. Acesso em 5 nov. 2015.
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). Nesses casos, essas mulheres acabam por interpretar papéis menos relevantes, e comumente, não por sua escolha, mas coagidas por outra figura, quase sempre masculina, que exerce poder sobre elas (MATOS;MACHADO, 2012).

A divisão sexual que existe no mercado de trabalho, logo, se perpetua no tráfico de drogas, reforçando a atuação feminina em serviços inferiores e a liderança é um papel desempenhado por uma figura masculina, o que resulta na maior vulnerabilidade da mulher no crime. Essa vulnerabilidade feminina se evidencia nos “frequentes casos de mulheres que são encarceradas por prisões em flagrante ao levar drogas até a penitenciária durante as visitas aos seus parceiros, filhos ou pais” (FERREIRA, et. al in SÁ, 2015). Justamente por essa subordinação que há esse grande número de mulheres presas por tráfico de drogas, já que não possuem poder decisório, estando na ponta da cadeia de atividades, têm mais chances de serem pegas e menos poder de negociar com os policiais e agentes de segurança (FERREIRA, et. al in SÁ, 2015). E mais, à medida que a mulher se insere cada vez no ambiente público, exercendo papéis considerados masculinos, mais vulneráveis elas se tornam ao controle do poder punitivo (PEREIRA;SILVA 2015 PEREIRA, Luísa Winter; SILVA, Tayla de Souza. Por uma criminologia feminista: Do silêncio ao empoderamento da mulher no pensamento jurídico criminal. In: SÁ, Priscilla Plach (Org.) Dossiê: as mulheres e o sistema penal. Curitiba: OABPR, 2015. Disponível em: <http://www.oabpr.org.br/downloads/dossiecompleto.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2015.
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).

Considerações finais

O presente trabalho, ao se propor analisar a construção da mulher como sujeito e objeto da criminologia, procurou ampliar perspectivas quanto aos processos de vitimização e criminalização dessa, em busca da construção de uma epistemologia feminista criminológica.

Daí a relevância, num primeiro momento, do conceito de gênero e do paradigma do gênero, brevemente abordados nesse trabalho, que demonstram que os papéis determinados ao sexo, e a relação de poder que existe entre eles é uma construção social, e, num segundo momento, do conceito de empoderamento, que transforma as mulheres em protagonistas de suas vidas e detentoras de autonomia para realizarem as escolhas que entendem melhor para si mesmas. Portanto, somente ao reconhecer a lógica androcentrista que rege a sociedade, pode-se denunciá-la, apontá-la como errônea, lutar contra ela. Assim, a partir desse reconhecimento, desse olhar para o todo como um local que coloca o feminino em nível inferior ao masculino, é que se pode descontruir esse pensamento. E, após a desconstrução, repensar novas formas de se pensar, construir e modificar a sociedade. Mais especificamente, a criminologia feminista busca desconstruir esse pensamento dentro da própria criminologia, que por anos analisou a mulher a partir de perspectivas biológicas e psicológicas.

Do mesmo modo, averiguou-se que o controle social informal, aquele exercido pela família, escola, igreja, etc., é o que mais incide sobre a mulher, pretendendo mantê-la dentro do padrão de gênero. Como vítima, é lhe requisitado que não torne pública a violência que ocorre dentro do lar, e que cumpra seu papel de esposa e mãe. Como autora, é amplamente violentada pelo sistema, que age informalmente punindo- a mais severamente, pois lugar de mulher não é na cadeia, mas em casa servindo ao marido e aos filhos.

O objetivo deste trabalho era verificar o lugar da mulher na criminologia e os processos de vitimização e criminalização dessa. O desenvolvimento a pesquisa, então, revelou que por muito tempo a mulher foi tratada como um objeto de estudo irrisório, pois não era considerada um sujeito de direitos, tendo tanto sua criminalização, quanto vitimização, ligada a determinismos biológicos e psicológicos e que só a partir da adoção do gênero pela criminologia e o surgimento de uma criminologia (crítica) feminista a mulher passou a ser vista como objeto de estudo, e também como produtora de conhecimentos.

A pesquisa revelou-se satisfatória ao expor a realidade e ao demonstrar que as mudanças que vem ocorrendo, principalmente em face do empoderamento feminino, são resultado da quebra de paradigma proporcionada pelo feminismo. Contudo, essas mudanças são pequenas diante de toda a estrutura patriarcal construída socialmente. Destaca-se, que, durante a pesquisa, foram lançados pelo governo relatórios quanto à criminalização (Infopen Mulheres) e vitimização das mulheres (Mapa da Violência), o que reitera a atenção que esse tema passou a exigir.

Dessa forma, o presente trabalho buscou entender o papel hegemônico de gênero da mulher, para que cada vez mais se construam conhecimentos que desconstruam o paradigma do gênero. A criminologia feminista tem buscado compreender a influência do gênero, e do empoderamento feminino, nos processos de vitimização e criminalização dessa. Nesse contexto, tentou-se esclarecer que o desenvolver da mulher na criminologia, através dos processos de vitimização e criminalização dela, foi estabelecido a partir de estigmas de inferioridade e submissão, percebendo que somente nas últimas décadas a crítica feminista conseguiu construir uma criminologia crítica que pense na conjuntura do gênero, e busque mudá-la.

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    Harding define o paradigma do gênero através de três afirmações: 1. As formas de pensamento, de linguagem e as instituições da civilização ocidental (assim como de todas as outras conhecidas), possuem uma implicação estrutural com o gênero, ou seja, com a dicotomia “masculino-feminino”. 2. Os gêneros não são naturais, não dependem do sexo biológico, mas, sim, constituem o resultado de uma construção social. 3. Os pares de qualidade contrapostas atribuídas aos dois sexos são instrumentos simbólicos da distribuição de recursos entre homens e mulheres e das relações de poder existente entre eles. ( BARATTA, 1999 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: Da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. , p. 22-23).
  • 3
    A vitimização a qual se refere não é “se fazer de vítima”, ou responsabilizar a mulher pelo crime do qual foi vítima, mas compreender, a partir do paradigma do gênero, que a inferiorização e subjugação da mulher a torna mais vulnerável a ser vítima de certos delitos, bem como quando a mulher se opõe ao papel de gênero e o homem com o qual convive não aceita a sua insubordinação e responde com violência.
  • 4
    Necessário destacar que empoderamento aqui “compreende la alteración radical de los procesos y estructuras que reproducen la posiciona subordinada de las mujeres como género” ( YOUNG, 1997 YOUNG, Kate. El Potencial transformador en las necesidades prácticas: empoderamiento colectivo y el proceso de planificación. In: LEÓN, M. (comp.). Poder y empoderamiento de las mujeres. Bogotá: TM Editores; U.N.: Facultad de Ciencias Humanas, 1997. Disponível em: <http://biblioteca.hegoa.ehu.es/system/ebooks/15813/original/Antolog__a_preparada_para_el_1___cu rso_en_desarrollo_humano_local.pdf#page=111>. Acesso em: 08 ago. 2015
    http://biblioteca.hegoa.ehu.es/system/e...
    ). Saffioti ainda complementa, afirmando que empoderamento, do inglês empowerment, “significa atribuir poder às mulheres, elevando, por exemplo, sua autoestima. Também se empoderam mulheres por meio de ações afirmativas estatais” (SAFFIOTI, 2015, p. 99 – nota de rodapé).
  • 5
    Sabe-se que as mulheres, embora possuam a mesma qualificação que os homens, são menos valorizadas financeiramente e até discriminadas no mercado de trabalho. Esta afirmação foi corroborada por pesquisa desenvolvida pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), indicando que, no Brasil, “a renda média de uma mulher com educação superior representa apenas 62% da renda média de um homem com o mesmo nível de escolaridade” (2015 ORGANIZAÇÃO DE COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO. Education at the glance 2015: country note. OCDE, 2015. Disponível em:< http://www.oecd.org/brazil/Education-at-a-glance-2015-Brazil-in-Portuguese.pdf>. Acesso em: 04 out. 2015.
    http://www.oecd.org/brazil/Education-at...
    , p.3).
  • 6
    Tradução livre: É difícil para uma mulher que sofreu abuso alcançar um grau significativo de introspecção e cura no ambiente prisional. As condições dentro da instituição continuamente reinvocam memórias de violência e opressão, muitas vezes com resultados devastadores. Ao contrário de outras mulheres violentadas encarceradas que se apresentaram para revelar suas impressões de prisão, eu não me sinto "mais segura" aqui porque "o abuso parou”. Ele não parou. Ele muda de forma e move-se diferente, mas é tão traiçoeira e generalizado na prisão como sempre fora no mundo que eu conheci fora desses muros. O que cessou foi a minha ignorância dos fatos relativos ao abuso – e a minha vontade de tolerá-los em silêncio.

Referências bibliográficas

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  • 1
    O título é uma referência ao poema “Todas as vidas”, de autoria de Cora Coralina.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      Apr-Jun 2018
    • Data do Fascículo
      Jun 2018

    Histórico

    • Recebido
      11 Set 2016
    • Aceito
      24 Abr 2017
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