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Giro Decolonial e o Direito: Para Além de Amarras Coloniais

Resumo

O artigo reflete sobre a possibilidade da construção epistemológica e hermenêutica que reconheça a pluralidade e a interculturalidade brasileiras, com o devido compromisso socioambiental para com a vida. Baseando-se em uma pesquisa bibliográfica, buscou-se demonstrar como a decolonialidade, por intermédio do giro decolonial, pode lançar luzes para que o campo jurídico ultrapasse as amarras coloniais.

Palavras-chave:
Epistemologia jurídica; Saberes emergentes; Interculturalidade

Abstract

The aim of this article was to analyze an epistemological and hermeneutical construction that would recognize Brazilian plurality and interculturality, with a due social and environmental commitment to life. Based on an interdisciplinary bibliographical research, it was tried to demonstrate how the decoloniality, by means of the decolonial gyration, allows to approach the legal field with the heterogeneous and alternative knowledge.

Keywords:
Legal epistemology; Emerging knowledge; Interculturality

Introdução1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

As reflexões brasileiras, historicamente, são elaboradas por intermédio de um centro epistemológico eurocêntrico que subalterniza os saberes locais e regionais, em especial, dos territórios latino-americanos que foram objetos de colonização2 2 O sistema jurídico hierárquico adotado, e herdado, é descrito como uma abordagem top-down, ou seja, do topo para a base. Em que pese a legitimidade deste constitucionalismo traga uma harmonia entre as normas ali postas, ele figura um modelo de força que empurra sobre as bases uma lógica dominante que, nem sempre, reflete a pluralidade e complexidade do âmbito social. Assim, de acordo com Avritzer (2016), as formas de participação top-down têm sido apontadas como muito pouco efetivas e, frequentemente, antidemocráticas. Sob este paradigma, a norma jurídica se torna um exemplo de violência epistêmica, de imposição de uma única manifestação jurídica (FOUCAULT, 2006) e do silenciamento daqueles outros sistemas que tenham intenções de contestar o Direito posto. Este racionalismo, eminentemente, cartesiano, serve como base fundante da lógica jurídica solipsista da qual “dentro da concepção de um Direito supra-social, o Direito, desligado das condições em que o homem efetivamente vive e se associa e, por isso mesmo, igualmente alienado da realidade social”. (MARQUES NETO, 2001, p. 135). . O ordenamento jurídico reflete esta premissa ao obter como base axiológica e normativa, princípios e regras porvindouros de construções teóricas europeias e hegemônicas. Desta forma, em que pese as antinomias sejam cada vez menos presentes e a validade impere como fator fundamental de todas as normas, as mesmas são carentes de uma eficácia material, claramente insuficiente no âmbito social pelas suas desigualdades gritantes.

A meta dos textos constitucionais modernos, incluindo a Constituição Federal brasileira de 1988, pode ser resumida na promoção do bem-estar do homem, assegurando-lhe condições necessárias para sua própria dignidade, incluindo, a proteção aos direitos individuais e os pressupostos materiais mínimos que perpetuem uma vida digna.

Entretanto, ao colocar, unicamente, o Homem no centro das preocupações constitucionais, promove-se a imperatividade de um discurso universal e neutro em detrimento da diversidade de saberes locais. A inclusão e a alteridade tornam-se variáveis que exigem um questionamento na relação ao conhecimento pautado no regionalismo e na marginalização de saberes colocados de fora dos centros epistêmicos considerados como relevantes.

Objetiva-se a aproximação ao campo jurídico3 3 Ao reivindicar o Direito como um “campo” tem-se a intenção de verificá-lo a partir de uma situação global cuja influência de seus fenômenos é sentida em partes com características diversas, sendo que, nesta situação são apreciados inúmeros aspectos que formam estruturas sociais distintas. Assim, “[...] a teoria do campo jurídico é a aplicação, no mundo das leis e da ciência do direito, das instituições da psicologia da forma (Gestalt), com vistas a superar as visões apenas dogmáticas ou críticas do direito, procurando compreendê-lo em perspectiva envolvente e dinâmica, como uma estrutura simbólica da sociedade, destinada a dar segurança e estabilidade a determinados interesses”. (MENDES, 2008, p. 57) do conceito de decolonização4 4 Importante estabelecer que, conforme Walsh (2009), o termo aqui empregado será decolonial, suprindo o “s” para marcar a intenção de distinguir-se com o conceito clássico de descolonização. Portanto, “quer salientar que a intenção não é desfazer o colonial ou revertê-lo, ou seja, superar o momento colonial pelo momento pós-colonial. A intenção é provocar um posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. O decolonial implica, portanto, uma luta contínua” (COLAÇO, 2012, p. 7-8) dos saberes com o intuito de complementar o entendimento do princípio constitucional da dignidade, trazendo para si, a emergência de uma pluralidade nas perspectivas constitucionais condizentes à busca pela eficácia material na realidade brasileira.

Sob um aporte metodológico dedutivo-dialógico, eminentemente bibliográfico, a tendência crítica demonstrada ressalta não somente uma exegese constitucional que reconheça suas limitações, bem como proponha um caminho de pesquisa fértil de intersecções entre a alteridade, a efetividade de normas e a libertação epistemológica.

Justamente pela amálgama que o campo jurídico cria, pesquisas que se preocupem na interculturalidade são bem-vindas ao passo que fortalecem os escudos sociais e dão voz ativa àqueles que estavam esquecidos pela deusa da modernidade em sua versão eurocêntrica.

Pretende-se concluir se há ou não abordagens suficientes acerca do giro decolonial e de alternativas ao desenvolvimento que expandam o método hermenêutico a partir de uma visão que quebre com o antropocentrismo e com o reducionismo do conhecimento homogêneo.

2 A Colonização e seus Reflexos

Para que se possa romper os grilhões epistemológicos brasileiros, deve-se observar como foi possível a colonização do saber e, mais especificamente, a partir de um paradigma de conquista, de que maneira o pensamento eurocêntrico trouxe um legado de injustiças sociais e desigualdades profundas oriundas de um pensamento que impede a compreensão do mundo a partir do próprio mundo.

Assim, “[...] desde a conquista das Américas, os projetos de cristianização, colonização, civilização, modernização e o desenvolvimento configuraram as relações entre Europa e suas colônias em termos de uma oposição nítida” (CORONIL, 2005CORONIL, Fernando. Natureza do pós-colonialismo: do eurocentrismo ao globocentrismo. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 58). Evocando um processo indiferenciado de desenvolvimento, os agentes sociais e políticos se tornam seres indefinidos e subordinados às fontes de poder hegemônicas.

A partir de um olhar colonial, a humanidade estaria dividida em espécies e subespécies (MBEMBÉ, 2017MBEMBÉ, Achille. Crítica da Razão Negra. 2017. São Paulo: Antígona, 2017., p. 119), devendo ocorrer uma hierarquização para diferenciar e separar os homens, diante de suas particularidades, por intermédio de instrumentos legais que permitam o distanciamento entre seres estranhos.

Os colonizadores operam sob diversas condições e configurações de um universo relacional de dominação europeia às demais populações globais. O processo de colonização, por sua vez, induz a um distanciamento da realidade ao adotar uma identidade universal que não reflete os anseios contemporâneos brasileiros. O domínio colonial marca a história latino-americana não só no intuito de transformar a realidade (ARAÚJO, 2008ARAUJO, Sara. Pluralismo jurídico em África: ficção ou realidade? Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 83, p. 121-139, 2008. Disponível em: https://rccs.revues.org/468. Acesso em: 15 set. 2017.
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), bem como a maneira de contá-la. Sob uma ótica eurocêntrica5 5 Tratando-se de uma perspectiva crítica do eurocentrismo, importante salientar que não se refere a todos os modos de conhecimento europeus, “mas a uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo” (QUIJANO, 2005, p. 115) , a modernidade seria um processo emancipatório da imaturidade a partir de um esforço racional que proporcionaria um novo desenvolvimento a ser imposto à humanidade.

A perspectiva binária disseminada pelo eurocentrismo, impôs um fluxo de expansão colonial no intuito de dominação sobre o globo terrestre. “[...] para lá do enclausuramento europeu, reina o estado de natureza – um estado sem fé, nem lei” (MBEMBÉ, 2017MBEMBÉ, Achille. Crítica da Razão Negra. 2017. São Paulo: Antígona, 2017., p. 107). Por intermédio de um fluxo falacioso do qual o culmina na Europa e que as diferenças que o ser europeu e o não-europeu derivariam de uma diferença natural, e não de poder, possibilitaram o fundamento da perspectiva hegemônica que necessita ser debatida.

Esta percepção biológica foi assumida como um elemento constitutivo e fundamental das relações de dominação. Os povos dominados, portanto, a partir de traços fenotípicos, tiveram suas contribuições culturais e epistemológicas deixadas de lado, em prol de uma racionalidade eurocêntrica universal.

Por este aspecto, o eurocentrismo conseguiu transitar pelos demais continentes no intuito de legislar o uso da razão, mostrando como suas concepções de Direito, Estado e Cultura eram os únicos caminhos possíveis à transcedentalidade e evolução.

No princípio tudo era América, ou seja, tudo era superstição, primitivismo, luta de todos contra todos, estado de natureza. O último estágio de progresso humano, aquele alcançado pelas sociedades europeias, é construído, por usa vez, como o outro absoluto do primeiro e à sua contraluz. (CASTRO-GÓMEZ, 2005b_____. La hybris del punto cero: ciencia, raza e ilustración en la Nueva Granada (1750-1816). Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, 2005b., p. 84)

A colonialidade de poderes, como um fator constitutivo da realidade moderna liberal é fundada a partir de uma ciência que considera o espaço/tempo dicotômico, colocando o continente europeu como ponto de partida para o crescimento dos saberes. Possível afirmar que “a colonialidade é constitutiva da modernidade” (MIGNOLO, 2005MIGNOLO, Walter D. A Colonialidade de Cabo a Rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo (Org.). A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 44).

Sob uma hegemonia ibérica, a colonização epistemológica, levando em considerações todos os elementos sociais que Quijano (2005)QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgar (org.) A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Clacso, 2005. aponta, se desenvolveu como pensamento hegemônico para assinalar uma ordem mundial que derivasse de discussões, objetos e sujeitos pensados por uma tensão, exclusivamente, do continente Europeu.

O processo de descobrimento6 6 O termo descobrimento é utilizado de forma errônea, quando associado ao processo de conquista do continente americano, sendo válido, somente, sob uma perspectiva eurocêntrica. “Na verdade, os espanhóis e portugueses não descobriram nada. Tudo já existia e tinha nome e dono. A América já está povoada milenarmente, ainda que parcamente em algumas regiões” (ZIMMERMANN, 1986, p. 88). do continente americano e do indivíduo que ali se encontrava, instaurou uma assertiva de conhecimento do Outro não para entendê-lo, mas sim, para dominá-lo. “A relação básica entre os centros e as periferias foi o saque e a exploração, tanto da mão de obra, indígena e posteriormente africana, como também de recursos naturais” (COLAÇO, 2012COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2012., p. 127). Possível afirmar que, como paradigma eurocêntrico, a modernidade se tem compreendida no final do século XV e com a conquista do continente americano e do oceano Atlântico. Portanto, “a América Latina entra na Modernidade (muito antes que a América do Norte) como a outra face: dominada, explorada, encoberta” (DUSSEL, 2005DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 28)

O mundo colonial deixa de perceber as conflitivas e variadas manifestações econômicas, sociais, jurídicas e políticas que transformam as estruturas sociais de uma determinada região. “A imagem hegemônica não é, portanto, equivalente a estruturação social, e sim a maneira pela qual um grupo, o que impõe a imagem, concebe a estruturação social” (MIGNOLO, 2005MIGNOLO, Walter D. A Colonialidade de Cabo a Rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo (Org.). A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 43). As relações de poder se tornam assimétricas e a participação ativa das diferenças é reduzida, justificando as intenções decoloniais que rompem com tendências hegemônicas do poder.

Em que pese o caráter global, resta evidente que a colonialidade do poder é gerada em diferentes locais e tempos, de formas específicas e mutantes, das quais as constantes transformações históricas permitem uma perpetuação destes movimentos e seus fundamentos respectivos: conflito, exploração e dominação.

O potentado colonial reproduz-se, assim, de várias maneiras. Primeiro, inventando o colonizado. Foi o colono quem fez e continua a fazer o colonizado. Depois, ao esmagar esta invenção de inessencialidade, fazendo dela uma coisa, um animal, uma pessoa humana em perpétuo devir. E, por fim, ferindo, constantemente a humanidade do submisso, multiplicando os golpes no seu corpo e atacando o seu cérebro com o intuito de lhe criar lesões (MBEMBÉ, 2017MBEMBÉ, Achille. Crítica da Razão Negra. 2017. São Paulo: Antígona, 2017., p. 188)

As expressões culturais dos dominados são extirpadas e ocultadas, uma vez que o caráter universal dos conhecimentos eurocêntricos tende a negar aquele Outro que não corresponda com as manifestações de poder hegemônico (FOUCAULT, 2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 29 ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2011.) que fundamentam o campo epistemológico. As manifestações da colonização compelem que os dominados se questionem, constantemente, acerca da realidade que lhe norteia.

O projeto de colonização descarta os valores regionais em prol da ética civilizatória eurocêntrica. O Outro, portanto, é capturado e reproduzido como “negação absoluta, como ponto mais distante do horizonte” (HARDT; NEGRI, 2001HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução de Berilo Vargas. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 141). A barbárie contra o ser dominado se vislumbra como uma máquina de supressão da identidade e criação da alteridade, funcionando por uma ótica universalizante. “O Outro foi importado para a Europa – em museus de história natural, em exposições públicas de povos primitivos e, assim por diante – e dessa maneira, posto cada vez mais à disposição do imaginário popular.” (HARDT; NEGRI, 2001HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução de Berilo Vargas. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 142)

Desta forma, as expressões dos dominados são conceituadas como tradicionais e contrárias ao desenvolvimento proposto pela cientificidade europeia, negando-lhes a possibilidade de compor visões de mundo próprias. “Ao colocá-las como expressão do passado, nega-se sua contemporaneidade” (LANDER, 2005LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 15).

O projeto decolonial entende a libertação da alteridade como fator essencial para a realização das intenções de alternativas ao desenvolvimento e compreensão hermenêutica dos textos normativos propostos. Assim, seria uma realização de solidariedade entre: “[...] Centro/Periferia, Mulher/Homem, diversas raças, etnias, classes, Humanidade/Terra, Cultura Ocidental/Culturas do mundo ex-colonial, etc, não por pura negação, mas por incorporação partindo da Alteridade” (DUSSEL, 2005DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 29).

A tarefa consiste em uma teoria crítica que, ao observar os limites eurocêntricos impostos à epistemológica latino-americana, inventivamente, perceba a realidade que operam as ciências sociais, jurídicas e a filosofia no intuito de promover a integração entre discursos de validade e eficácia.

E ainda que este não seja um programa novo entre nós, do que se trata agora é de livrar-nos de toda uma série de categorias binárias com as quais trabalharam no passado: as teorias da dependência e as filosofias da libertação (colonizador versus colonizado, centro versus periferia, Europa versus América Latina, desenvolvimento versus subdesenvolvimento, opressor versus oprimido) entendendo que já não seja possível conceitualizar as novas configurações de poder com ajuda desse instrumental teórico. Deste ponto de vista, as novas agendas dos estudos pós-coloniais poderiam contribuir para revitalizar a tradição da teoria crítica em nosso meio. (CASTRO-GÓMEZ, 2005aCASTRO-GÓMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005a, p. 86)

A desconstrução proposta exige um esforço para superar as raízes deste conjunto de saberes que, globalmente, fundam as ciências sociais como instrumentos de dominação, ao invés de serem mecanismos de emancipação.

3 O Giro Decolonial

Pensar o campo jurídico a partir de saberes locais que rompam com as heranças coloniais, significa localizar os pontos inicias do conhecimento latino-americano que abram espaços para questionamentos epistemológicos direcionados aos objetos particulares desta realidade.

O projeto de colonialidade se trata de uma disposição das formas de poder constituídas de uma forma hierárquica, levando em consideração a língua e o privilégio de comunicação e conhecimento produzido pelo controle de conceitos e teorias que possibilitam a subalternização dos objetos e sujeitos além daqueles reconhecimentos por um movimento eurocêntrico.

Em especial, esta manifestação discursiva engloba processo de desumanização (HERNÁNDEZ, 2016HERNÁNDEZ, Roberto D. Decolonialidad y Política de reconomiento entre los ingigènes de la repúblique. Tabula Rasa. Bogotá, n. 25. p. 265-282, 2016.) que implicam na negação dos comportamentos éticos particulares de regiões dominadas por nações europeias. Assim, as situações coloniais, em especial materializadas pelo campo jurídico, impõem processo de opressão e exploração sexual, cultural econômica e epistêmica de grupo subordinados aos seres dominantes.

A crítica anticolonial, por sua vez, é realizada por uma posição que institui uma unificação da humanidade, levada para responder as crises do universalismo e da exploração daqueles tidos como subalternos e marginalizados. Pode-se, portanto, pontuar que: “A Europa deixou de ser o centro de gravidade do mundo” (MBEMBÉ, 2017MBEMBÉ, Achille. Crítica da Razão Negra. 2017. São Paulo: Antígona, 2017., p. 9). O poder exercido pelo colonizador é evidenciado, tanto histórica quanto juridicamente, a partir das divisões territoriais, das desconsiderações dos povos originários e da imposição de normas jurídicas portuguesas e métodos hermenêuticos eurocêntricos.

Essa forma de compreender o sistema jurídico traduzia a mentalidade europeia e uma desconsideração aos direitos produzidos por comunidades indígenas aqui existentes e, depois, pelos sujeitos que construíam, cotidianamente, espaços de sociabilidade, sejam eles escravos ou ex-escravos, mestiços, imigrantes - pessoas de diversas etnias e culturas que formavam – e ainda formam - a teia social latino-americana e, especialmente, brasileira. Essa deslegitimação de direitos costumeiros locais impôs em solo latino-americano sistemas jurídicos que lhe eram desconhecidos, e que permanecem influenciando nossos ordenamentos jurídicos e academias de direito. (HENNING; BARBI; APOLINÁRIO, 2016HENNING, Ana Clara Correa; BARBI, Milena; APOLINÁRIO, Marcelo Nunes. Para Uma Compreensão de Decolonização Jurídica Latino-Americana. 2016. Disponível em: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/01/decolonizazao.html. Acesso em: 10 out. 2017.
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).

Os teóricos pós-coloniais, por sua vez, entendem que estas heranças epistemológicas eurocêntricas permitem que haja um debate além das fronteiras europeias para apontar as relações de discurso nos campos jurídico e social que possam denunciar as estruturas de poder. O questionamento e a autoafirmação são status que contrariam as práticas coloniais, vez que estas podem ser tidas como [...] una negación de la negación de la humanidad de unos y como tal es una praxis decolonial de la afirmación de la vida y del ser.” (HERNANDEZ, 2016HERNÁNDEZ, Roberto D. Decolonialidad y Política de reconomiento entre los ingigènes de la repúblique. Tabula Rasa. Bogotá, n. 25. p. 265-282, 2016., p. 280)

A filosofia que impulsiona uma libertação (DUSSEL, 1986_____. Desafios atuais à filosofia da libertação. In: ZIMMERMANN, Roque. América Latina – o não-ser: uma abordagem filosófica a partir de Enrique Dussel (1962-1976). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1986.) dentro da complexidade filosófica e histórica inerente ao continente latino-americano, mesmo aparecendo em defesa dos direitos indígenas e da plena racionalidade livre dos povos regionais, irrompe em um movimento intelectual social, filosófico e jurídico que denota as contradições da formação ideológica do bloco dominante, hegemônico e eurocêntrico.

Ao questionar as vertentes dominantes no discurso jurídico, por uma perspectiva dos setores subalternos, problematiza-se as fontes do campo, os limites argumentativos e as problematizações daí derivadas que possam impactar as relações sociais. Há um forte esforço no intuito de promover reexames dos enunciados, com o propósito de corrigir os vieses das pesquisas que tendem ao reverencialismo do pensar hegemônico e universalizante.

Ocorre que, mesmo havendo a percepção de que as barreiras do globo se encontram além dos limites eurocêntricos, a América Latina, “[...] como um bloco, ainda não superou as barreiras de estrutura social, econômica e política que a caracterizavam ao findar-se o século passado” (STEIN; STEIN, 1997STEIN, Stanley J; STEIN, Barbara H. A herança colonial da América Latina: ensaios de dependência econômica. Tradução de José Fernandes Dias. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977., p. 148). Faz-se necessário um debate que radicalize as bases epistemológicas do campo jurídico para que se percebam as novas perspectivas para a normatividade e o pensamento do Direito aliado à decolonização.

A filosofia da libertação procura ser um movimento que não se arroga a exclusividade nem a hegemonia de pensar o tema da libertação. Tem apenas consciência de preencher de maneira explícita a necessidade de articular o discurso filosófico com a práxis da libertação histórica. (DUSSEL, 1986, p. 226)

Esta filosofia demonstra como o conhecimento e poder estão ligados e servem para construção de um projeto a partir dos subalternizados. A partir da periferia epistemológica, o sujeito não somente suporta a dominação, mas liberta-se da razão dialética entre oprimidos e opressores. Perceber a própria condição é essencial para a transformação e recuperação da humanidade (FREIRE, 2017FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 64 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.) vide o processo de desumanização imposto durante os últimos séculos.

O discurso crítico se articula por posicionar o sujeito em um processo revolucionário que começa pela filosofia da libertação, mas não estaciona ali. “É preciso descontruir a própria tradição que, muitas vezes, surge como contraponto ao discurso da diferença que revela o seu caráter inventado” (MBEMBÉ, 2017MBEMBÉ, Achille. Crítica da Razão Negra. 2017. São Paulo: Antígona, 2017., p. 166).

Pretende-se, portanto, demonstrar como a história ocidental não significa somente uma elaboração e ordenação de fatos, mas sim, processos de violência epistêmica (LANDER, 2005LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.; COLAÇO, 2012COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2012.; SANTOS, 2003_____. (Org.). Por Uma Concepção Multicultural dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense, 2003.; SPIVAK, 2010SPIVAK, Gayatry Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.). A construção do sujeito colonizado como Outro se demonstra o mais claro exemplo desta violência já naturalizada.

Além da desconstrução, importante salientar a necessidade de ultrapassar a figura do simples subalterno, pois tal é tido como uma metáfora para atribuição de menor valor aos demais. Ele é considerado um sujeito ligado às classes inferiorizadas e esquecidas pelo saber dominante. “O subalterno é identificado como o colonizado, ou com o sujeito colonial, não se trata de um ser passivo, um sujeito ausente, mas um sujeito ativo” (COLAÇO, 2012COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2012., p. 114). Além do conceito de classes (MARX; ENGELS, 1999MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Tradução de Ridendo Castigat Mores. 1999. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf. Acesso em: 10.out.2017.
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) a subalternidade se expressa por intermédio de efeitos de poder sociais, culturais, econômicos e epistemológicos.

Ocorre que, o pensamento decolonial se propõe a destacar a autonomia e as condições do ator social subalterno se tornar um agente de mediações múltiplas dentro de seu contexto social, sustentando, por intermédio do discurso, a possibilidade deste ter voz ativa ao questionar perspectivas globalizantes. Interrogando o eurocentrismo e privilegiando as formas plurais, o projeto de construção de uma modernidade compatível com a realidade experimentada.

A discussão pretendida enfrenta a seleção epistemológica que obedece um modelo colonizador que, ainda, suplanta a identidade dos países periféricos ao eixo eurocêntrico (PIZARRO, 1993PIZARRO, Ana. Palavra, literatura e cultura nas formações discursivas coloniais. In: _____. América Latina: palavra, literatura e cultura. v. 1. Campinas: Unicamp, 1993.). O surgimento de obras que rompem com o modelo colonial aponta para a evidência de particulares que, por muito anos, permaneceram às sombras de um movimento conquistador.

Trata-se de um esforço para demonstrar a heterogeneidade com intenções inter e transdisciplinares no aspecto de uma inclusão de distintos saberes sem que haja qualquer exclusão ou dominação epistemológica, dando voz às múltiplas visões da realidade.

Isso não significa que o trabalho deste grupo é apenas de interesse para as supostamente universais ciências sociais e humanas, mas que o grupo pretende intervir de forma decisiva nos discursos da ciência moderna para criar outro espaço para a produção de conhecimento, uma forma distinta de pensamento, um paradigma do outro, a própria possibilidade de falar sobre mundos e conhecimentos de outra maneira (ESCOBAR, 2003ESCOBAR, Arturo. Más alla del tercer mundo: globalización y diferencia. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropologia e Historia, 2005., p. 51)

O ato contínuo das reflexões acerca da realidade latino-americana proporciona o esclarecimento de como o pensamento filosófico e social desenvolvido no continente, ainda, sofre influências diretas de um saber eurocêntrico e excludente.

Designando subjetividades e saberes pluriversais a decolonialidade proporciona respostas para os objetos e seres colonizados. Logo, correto afirmar que “[...] significa um tipo de atividade (pensamento, giro, opção) de enfrentamento à retórica da modernidade e à lógica da colonialidade” (GROSFOGUEL; MIGNOLO, 2008GROSFOGUEL, Ramón; MIGNOLO, Walter. Intervenciones decoloniales: una breve introducción. Tabula Rasa. Revista de Humanidades. Bogotá, n. 9, p. 29-37, 2008., p. 34)

A mudança de mentalidade se revela, por intermédio de uma produção científica que repensa o desenvolvimento e sua associação com as práticas discursivas coloniais que serviram para impulsionar um avanço criador de desigualdades entre os movimentos eurocêntricos e a realidade das colônias latino-americanas.

Os estudos decoloniais, voltados ao campo jurídico, valem-se de conceitos e reflexões como verdadeiras ferramentas que problematizam os enunciados dialéticos desde as bases do saber hegemônico. “Trata-se, em contrapartida, de introduzir o paradigma da decolonialidade, o qual abarca a modernidade numa relação de coexistência e simultaneidade” (KOHLRAUSCH; MENDES, 2017KOHLRAUSCH, Regina; MENDES, Marta Freitas. A Escrita da História da Literatura da América Latino como Sintoma do Processo de Decolonização. In: Línguas & Letras. v. 18. n. 40. pp. 126-137, 2017., p. 136).

Por intermédio de uma lógica local, surgem as pretensões de quebra com a universalidade dos conceitos constitucionais, na forma que são interpretados e postos e da corrente de direitos humanos que reproduz intenções hegemônicas de exclusão e imposição discursiva.

Os estudos decoloniais possibilitam compreender os discursos jurídicos pretensamente universais como construções que surgem e perduram a partir das relações coloniais. Trata-se desta maneira, de uma perspectiva diferente de se entender o direito, pois permite que este seja pensado a partir de diferentes categorias e formas de conhecimento, inimagináveis para o direito ocidental. (COLAÇO, 2012COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2012., p. 124).

Em que pese a concepção de um mundo descolonizado, no continente latino-americano, não seja de toda falsa, vez que no século 19, houve processos de independência política dos países subalternizados, contudo, as bases epistêmicas lá implementadas ainda se perpetuam, portanto, necessário este movimento de giro para se promover o pensamento jurídico e social a partir das necessidades e emergências locais.

A experiência decolonial emerge desta inferiorização que se busca ultrapassar e da lógica de subalternização imposta pela modernidade que resiste em manter as particularidades dos povos e dos campos epistemológicos que estejam além dos limites eurocêntricos. A opção pela decolonialidade significa proporcionar um avanço no processo de descentralização e desprendimento das bases hegemônicas do pensar.

“Giro decolonial” se traduz do inglês decolonial turn. A expressão turn tem dois significados. Significa turno, no mesmo sentido quando dizemos trocar de turno e, por outro lado, significa giro no sentido de girar à direita ou à esquerda, dar um giro de 360 graus. O turno decolonial no sentido de chegar ao turno do pensamento decolonial pode verter-se na expressão opção decolonial. A opção decolonial significa então que o turno decolonial é uma opção (GROSFOGUEL; MIGNOLO, 2008GROSFOGUEL, Ramón; MIGNOLO, Walter. Intervenciones decoloniales: una breve introducción. Tabula Rasa. Revista de Humanidades. Bogotá, n. 9, p. 29-37, 2008., p. 33)

Dos pensamentos negados pela lógica eurocêntrica, a opção decolonial se radicaliza para fortalecer o discurso local, no momento em que instaura o potencial epistêmico além daquelas bases já fundadas e aceitas pelas intenções universalizantes.

Este giro do conhecimento abrange um embate histórico que permite a legitimação de outros conhecimentos e sabedorias alternativas à compreensão da natureza, das relações sociais e da própria realidade para se construir formas diferentes de se experimentar a vida. Inegável, portanto, a responsabilidade que se propõe para com o futuro da humanidade, além das fronteiras científicas objetivas eurocêntricas nas quais se construíram retóricas políticas e ecológicas insustentáveis.

Decolonizing the rich diversity of peoples/cultures and their different territorialities made visible a new theoretical perspective of historical time and space as the manifestation of the “unequal accumulation of times The Eurocentric vision of cultural evolution was imposed to the world as the only possible universality. Thus, traditional peoples became backward societies, as if they were only a stage in the way of human development and economic growth. Thus traditional cultures were quieted and remained invisible. Simultaneity of different temporalities that forge cultural territories were occluded by the hegemonic temporality that orders the world, secluding other cultures. (LEFF, 2015_____. Political ecology: a latin american perspective. MADE Desenvolvimento e Meio Ambiente. UFPR. v. 35. p. 29-64, 2015, p. 37)

Assim, em consonância com o pensamento daqueles indivíduos que são tidos como ilegítimos para definir o processo epistêmico, o pensamento decolonial preocupa-se em assumir um imaginário espacial para ampliar as fronteiras dos saberes vivos.

Desvelando a lógica de colonialidade e reprodução da matriz colonial de poder, desconectando-se com os efeitos imperialistas de categorização do pensamento, propõe-se um progressivo ato de ampliação epistemológica.

A decolonialidade, por sua vez, desenvolve-se a partir de todas as línguas, memórias, saberes, gente e lugares do planeta que foram gradativamente subalternizados pela expansão europeia e norte-americana. Trata-se de uma opção justamente por rejeitar uma única maneira de ler a realidade e, nesse sentido, pode ser caracterizada como um paradigma de coexistência. Juntamente com o pensamento fronteiriço, ela está em conflito com saberes totalizantes, criadores de totalidade. (HENNING; BARBI; APOLINÁRIO, 2016HENNING, Ana Clara Correa; BARBI, Milena; APOLINÁRIO, Marcelo Nunes. Para Uma Compreensão de Decolonização Jurídica Latino-Americana. 2016. Disponível em: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/01/decolonizazao.html. Acesso em: 10 out. 2017.
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/01/d...
).

A partir da problematização da realidade latino-americana, originam-se saberes locais, sem pretensões universalistas, mas com intenções de resolução dos problemas oriundos desta particular experiência sócio-jurídica moderna. Trata-se, portanto, de um conector “[...] entre todos aqueles e aquelas que pensam e fazem a partir do sentido do mundo e da vida que surge da tomada de consciência da ferida colonial” (GROSFOGUEL; MIGNOLO, 2008GROSFOGUEL, Ramón; MIGNOLO, Walter. Intervenciones decoloniales: una breve introducción. Tabula Rasa. Revista de Humanidades. Bogotá, n. 9, p. 29-37, 2008., p. 35).

Esta episteme luta pelo fomento da divulgação de uma interpretação que demonstre limites a partir de visões silenciadas pela ideologia colonial que se apresenta como a única intepretação possível da realidade social. Tal espírito hermenêutico, portanto, não pode prevalecer como forma brasileira de interpretação constitucional, ao passo que a mesma traz uma carga axiológica com potencial para a fortificação dos sujeitos, resguardando-lhes suas particularidades.

Ultrapassando o legado da colonialidade, requer-se pela produção que confira forças às cosmovisões latino-americanas, em especial, da hermenêutica brasileira. A decolonização, portanto, surge como uma alternativa jurídica que explicite, no solo latino-americano, a possibilidade de deslocar as perspectivas eurocêntricas e colonialistas, em prol de substratos locais, com o intuito de promoção de um conhecimento, eminentemente, ligado aos anseios experimentados neste locus espacial.

3 A Decolonização e o Campo Jurídico

Postas tais conjecturas, verificam-se os fundamentos necessários para o rompimento com a imagem eurocêntrica de portadora universal e exclusiva do progresso jurídico e racional. Utilizando-se de lentes europeias para vislumbrar a realidade sociopolítica latino-americana, não se obtém a percepção correta das distinções de identidade e do discurso de desenvolvimento que não se aplica em certos meandros.

Os legados eurocêntricos ainda bloqueiam a percepção ampla das experiências sociais, produzindo, portanto, pensamentos cíclicos que se auto-reproduzem. A perspectiva deconial, por sua vez, permite a potencialidade criativa de desvinculação de saberes silenciados e junção de conhecimentos sociais.

Neste sentido, os saberes subalternos e marginalizados possuem uma capacidade epistemológica hábil ao desenvolvimento dialógico para com outros saberes, sob perspectivas plurais e capazes de transformar o meio no qual se inserem.

O processo que culminou com a consolidação das relações de produção capitalistas e do modo de vida liberal, até que estas adquirissem o caráter de formas naturais de vida social, teve simultaneamente uma dimensão colonial/imperial de conquista e/ou submissão de outros continentes e territórios por parte das potencias europeias, e uma encarniçada luta civilizatória no interior do território europeu na qual finalmente acabou-se impondo a hegemonia do projeto liberal. (LANDER, 2005LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 12).

A partir de tanto, entende-se que as reflexões jurídicas elaboradas, unicamente, por questões europeias acabaram por subalternizar os demais saberes que não se enquadram nesta linha. “O pensamento decolonial reflete sobre a colonização como um grande evento prolongado e de muitas rupturas e não como uma etapa histórica já superada”. (COLAÇO, 2012COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2012., p. 8). Reivindica-se tanto um modelo estatal quanto um campo do saber que considere a diversidade dos conhecimentos locais e, portanto, reconheça os pressupostos de eficácia em um determinado local.

A busca de alternativas à conformação profundamente excludente e desigual do mundo moderno exige um esforço de desconstrução do caráter universal e natural da sociedade capitalista-liberal. Isso requer o questionamento das pretensões de objetividade e neutralidade dos principais instrumentos de naturalização e legitimação dessa ordem social: o conjunto de saberes que conhecemos globalmente como ciências sociais. (LANDER, 2005LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 8).

A epistemologia ocidental, durante os últimos cinco séculos, foi postulada como a única capaz de propiciar conhecimentos válidos acerca dos campos sociais, incluindo o direito, a economia, a política e a ética. Tal construção se deu em virtude da construção da episteme que produziu figuras conceituais (sujeito e objeto) que dispõem de um método de descoberta de verdades universais e colonizadoras.

Entretanto, os saberes pretensamente universais (FOUCAULT, 2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 29 ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2011.) são produzidos por um discurso que denomina como verdadeiro as condições para a validade epistemológica. A verdade, portanto, seria um produto da condição de saber-poder e da articulação política dos procedimentos de confecção constitutiva das práticas discursivas.

A consolidação da epistemologia eurocêntrica no Brasil teve como fundamento um paradigma de conquista que se utilizou da violência para justificar a intromissão do pensamento estrangeiro. Logo, já constituído, projeta-se como obstáculo na compreensão da realidade latino-americana. Ao reclamar conhecimentos de fora do continente, define como inválida qualquer episteme que esteja fora dos alcances do saber.

A justificativa da modernidade, a partir de uma visão hegemônica, permite a racionalização da violência como instrumento necessário para sustentar uma posição excludente. Sob uma ótica eurocêntrica (DUSSEL, 2005DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 29), para sustentar uma ótica eurocêntrica, a civilização moderna se coloca em um patamar superior às demais, posição esta que a obriga, como uma exigência moral, a desenvolver os bárbaros. O caminho para esta educação do desenvolvimento, se dá por uma via unilinear, determinando uma falácia impositiva que deve ter como ponto de partida a Europa. Logo, a violência é inevitável, pois o processo de dominação pressupõe vítimas inerentes ao processo civilizatório, no qual o bárbaro tem culpa e o colonizador inocente que busca a emancipação dos imaturos.

Esta ação, já naturalizada pelas experiências históricas, transforma as relações sociais, tornando o processo de colonização algo aceitável e natural ao processo de aprendizagem e de conhecimento. Nesta vertente, “[...] a modernidade e a racionalidade foram imaginadas como experiências e produtos exclusivamente europeus” (QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgar (org.) A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Clacso, 2005., p. 111).

No âmbito do campo jurídico, não se pode esquecer que o Direito não se manifesta somente na normatividade, mas, especialmente, na construção dada a partir dos discursos que determinam sujeito especiais e objetos a serem delimitados. A norma jurídica, neste processo de construção epistemológica, torna-se um produto de imposição contra àqueles que contestem a produção de raciocínio hegemônico. Este silenciamento constitui uma auto-reprodução violenta que acentua as desigualdades, não agregando qualquer valor à alteridade proposta como finalidade de união.

Por tudo isso, se se pretende a superação da Modernidade, será necessário negar a negação do mito da Modernidade. Para tanto, a outra face negada e vitimada da Modernidade deve primeiramente descobrir-se inocente: é a vítima inocente do sacrifício ritual, que ao descobrir-se inocente julga a Modernidade como culpada da violência sacrificadora, conquistadora originária, constitutiva, essencial. Ao negar a inocência pela Modernidade e ao afirmar a Alteridade do Outro, negado antes como vítima culpada, permite descobrir pela primeira vez a outra face oculta e essencial à Modernidade: o mundo periférico colonial, o índio sacrificado, o negro escravizado, a mulher oprimida, a criança e a cultura popular alienadas, etc. (as vítimas da Modernidade) como vítimas de um ato irracional (como contradição do ideal racional da própria Modernidade) (DUSSEL, 2005DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005., p. 29).

Identificando que o conhecimento predominante tem uma predileção eurocêntrica, tanto de origem quanto de pretensão, possível afirmar que os discursos são acontecimentos regionalizados e produzidos por sujeitos ancorados em um espaço-tempo definido. Logo, “não há um conhecimento universal, melhor, ou mais justo, mas discursos que possuem uma história, e esta não pode ser separada das relações de poder” (COLAÇO, 2012COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2012., p. 17).

A universalidade, portanto, se verifica uma falácia, pois demonstra uma intenção de conquista de um saber em relação a outro, seja de determinada raça, nacionalidade, cultura ou gênero. Assim, “[...] é apenas uma versão globalizada de uma tradição local extremamente provinciana. Nascidos de uma cultura dominadora e colonizadora, os sistemas modernos de saber são, eles próprios, colonizadores.” (SHIVA, 2003SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Gaia, 2003., p. 21).

Quebrando com o universalismo, ao conceituar os saberes de locais, evidencia-se a inevitável impossibilidade de separação dos instrumentos e sujeitos dos fenômenos políticos, jurídicos e culturais regionais. Assim, a construção dos conceitos de Europa e Outro (MIGNOLO, 2005MIGNOLO, Walter D. A Colonialidade de Cabo a Rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, Edgardo (Org.). A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.) se constituiu a partir do continente europeu e pela construção do discurso de dominação. O manto da verdade, posto no discurso jurídico sob a nomenclatura de universalidade, não permite denotar a localização das relações de poder estabelecidas previamente (FOUCAULT, 2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 29 ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2011.). Os saberes locais são ocultados e silenciados por uma força epistemológica estrangeira e criada na intenção de conquista.

O primeiro plano da violência desencadeada contra os sistemas locais do saber é não considera-los um saber. A invisibilidade é a primeira razão pelo qual os sistemas locais entram em colapso, antes de serem testados e comprovados pelo confronto com o saber dominante do Ocidente. A própria distância elimina os sistemas locais da percepção. Quando o saber local aparece de fato no campo da visão globalizada, fazem com que desapareça, negando-lhe o status de um saber sistemático e atribuindo-lhes os adjetivos de “primitivo e “anticientífico” (SHIVA, 2003SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Gaia, 2003., p. 23).

Neste sentido, se os conceitos jurídicos tomarem como certa uma única origem epistêmica, isto reforça a visão agigantada do pensador europeu acerca de si mesmo, ao se autodeclarar “[...] detentor de um saber universal que representaria a verdade, [ao passo que] os ‘outros’ detinham saberes ‘locais’” (COLAÇO, 2012COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2012., p. 19). As formas de conhecimento, a partir deste eurocentrismo, propõem-se a objetivar o mundo, desencadeando um risco aos sujeitos e uma incerteza perante o reconhecimento do Outro.

A desarticulação do mundo, a coisificação do ser e do planeta, e a negação da outridade são manifestações de uma racionalidade moderna eurocêntrica, que desestruturam os ecossistemas e impossibilitam a verificação material da carga axiológica prevista no texto constitucional. Logo, os padrões coloniais de poder sugerem uma perspectiva do conhecimento do qual o não-europeu seria inferior, cuja “[...] nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo de seu lugar na história da produção cultural da humanidade” (QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgar (org.) A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Clacso, 2005., p. 116). As identidades que surgem são propícias ao discurso de dominação e apropriação dualística.

As contradições não apenas se fazem manifestas na falta de rigor do discurso, mas também em sua colocação em prática, quando surgem os dissensos em torno do discurso do desenvolvimento sustentado/sustentável e os diferentes sentidos que este conceito adota em relação aos interesses contrapostos pela apropriação da natureza (LEFF, 2006LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006., p. 138)

A construção de uma nova racionalidade possibilita práticas sociais inclusivas, conduzidas por novos atores sociais, comprometidos com processos de emancipação decolonial e dispostos a fertilizar os saberes locais e interculturais.

A intenção decolonial e plural pretende uma concepção de interculturalidade para generalizar-se como um movimento que faz parte de um pensamento de reconhecimento construído do lugar político de enunciação subalterna, pois a sociedade latino-americana moderna, da forma que se encontra constituída, favorece e reproduz as práticas de monocultura epistemológica.

Nesta linha de pensamento, surge a ecologia dos saberes, fundamentada na ideia da diversidade epistemológica do mundo, no reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico. Isso implica renunciar a qualquer epistemologia geral. (PORTANOVA; CORTE, 2015PORTANOVA, Rogério; CORTE, Thaís Dalla. Descolonização e luta socioambiental: o paradigma dos saberes do sul. in: cunha, belinda pereira da. (org.) os saberes ambientais, sustentabilidade e olhar jurídico: visitando a obra de Enrique Leff. Caixias do Sul: Educs, 2015., p. 136)

Ao tornar visível a necessidade de uma produção do conhecimento que não destrua o Outro, a decolonialidade pode ser tomada como um instrumento e um processo de constituição epistemológica hábil a desnaturalizar os processos de conquista, tanto social quanto jurídica que se contrapõem à dominação das singularidades. Esta racionalidade decolonial emerge, portanto, “[...] do questionamento à racionalidade dominante” (LEFF, 2006LEFF, Enrique. Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006., p. 279)

Reconhecendo que há uma pluralidade de saberes heterogêneos, forma-se uma ecologia (SANTOS, 2010aSANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2010.) epistemológica que permite o florescer das lutas emancipatórias e emergentes dos sujeitos subalternos. Por uma episteme não violenta, orientam-se práticas de transgressão e libertação, desde às margens do saber eurocêntrico.

[...] as realidades sociais e culturais das sociedades periféricas do sistema mundo onde a crença na ciência moderna é mais tênue, onde as ligações entre ciência moderna e os desígnios da dominação colonial e imperial são mais visíveis, e onde outras formas de conhecimento não científico e não ocidental persistem nas práticas sociais de vastos setores da população. (SANTOS, 2010a, p. 108).

Ao analisar as pluralidades internas do campo social pretendido, à luz de um enfoque decolonial, abrem-se as portas para que haja uma insurreição dos saberes sujeitados (FOUCAULT, 2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 29 ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2011.), uma vez que as características ignoradas pelo cogito e pelo positivismo jurídico ganham forças.

A percepção de interculturalidade organiza uma articulação inédita da intenção colonial, sendo, segundo Walsh (2009)WALSH, Catherine. Interculturalidad, estado, sociedade: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito-Equadro: Universdade Andina Simón Bolívar, 2009., um princípio ideológico que construa uma democracia moderna e garantista da máxima participação dos povos e das nacionalistas componentes de um Estado.

Há outros direitos, outras formas de pensar o direito baseadas em outras histórias e experiências e não apenas aos modelos epistêmicos jurídicos ocidentais. Estas formas de conhecimento não almejam a universalidade, mas se reconhecem enquanto locais. É claro que quando falamos em “local”, não queremos dizer que os saberes são separados e não se comunicam entre si, pelo contrário, o local é sempre “interlocal, porém nunca epistemicamente universal (COLAÇO, 2012COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2012., p. 22).

O projeto decolonial propõe uma transformação e, diferentemente da intenção imperante na contemporaneidade latino-americana, não há como se confundir com uma reprodução ideológica de colonialismo. Nesse contexto, por intermédio da decolonialidade, propõe-se uma construção do pensar não eurocêntrico de produção contra-hegemônica frente ao projeto de colonização epistemológica. Desta forma, a interculturalidade torna-se uma importante fonte ambivalente e inspiradora, pois “[...] pode ser usada para significar um multiculturalismo inclusivo, neoliberal e, em ocasiões, conservador, como também para significar e representar um processo e projeto político-social transformador.” (WALSH, 2009WALSH, Catherine. Interculturalidad, estado, sociedade: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito-Equadro: Universdade Andina Simón Bolívar, 2009., p. 83).

Trata-se de uma interação entre sujeitos, conhecimentos, racionalidades e princípios constitucionais que se encontram subtraídos. Tais movimentos devem admitir as assimetrias e reconhecer a capacidade de produção de políticas públicas que surjam a partir das margens socioeconômicas. Este fenômeno representa uma diversidade de processos e direções dinâmicas que reconheçam os múltiplos procedimentos na construção de um novo sentido civilizatório que leve em conta as subalternidades.

Portanto, a decolonização pretende uma busca incessante por noções interpretativas que reafirmem a capacidade local de construção de saber, hábil a orientar entendimentos jurisprudenciais e a governança como um fenômeno plural e multifacetado.

Conclusão

O presente artigo responde, de modo afirmativo, pela existência de uma composição latino-americana que permita a revaloração axiológica jurídica, tendo como objetivo uma contra narrativa decolonial que forneça subsídios à um campo jurídico que tenha objetos para além da norma.

O imaginário jurídico, por sua vez, figura um papel central na contribuição de que haja uma transformação participativa e inclusiva das relações sociais, reconhecendo uma conciliação entre o campo jurídico formal e a realidade social que legitima as formas estabelecidas positivamente.

Nesta mesma perspectiva, percebendo as nuances da comunidade global heterogênea, entendeu-se como a multiplicidade interpretativa fundamenta uma consciência diferente da eurocêntrica, a qual o presente estudo contrapõe-se, por desconsiderar as peculiaridades ímpares das diferentes realidades.

Esta reavaliação clama pela transcendência paradigmática da imagem do sujeito cognoscente que compõe o campo jurídico em sua capacidade de visualizar o Outro. O ato de conhecer e compreender não pode ser aliado à morte de epistemes plurais e diversas como justificação do discurso imperante. A posição de contenção e conservação de discursos divergentes se verifica como uma posição suscetível à evolução epistemológica que entenda as emergências sociais e comunicativas que, por intermédio de atos de conquista, são subalternizadas por um discurso homogeneizante.

Para tanto, utilizou-se do projeto decolonial para que a propositura de transformação jurídica não reproduza ideologias coloniais ou se encerre em si mesma. Vislumbrou-se como, dentro desta seara, a busca por novas intenções interpretativas que reafirmem a capacidade local de construção de um saber hábil a orientar entendimentos jurídicos e administrativos a partir de fenômeno plural e multifacetado, superando um conjunto de saberes que, universalmente, transformam as ciências sociais em instrumentos de dominação.

Por fim, ao reivindicar uma produção de conhecimento que confira forças às cosmovisões regionais e latino-americanas, o giro decolonial valida-se como possibilidade explicativa do Direito brasileiro, à medida que desloca, em prol de substratos locais, o eixo epistêmico para além das barreiras eurocêntricas e colonialistas.

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    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001
  • 2
    O sistema jurídico hierárquico adotado, e herdado, é descrito como uma abordagem top-down, ou seja, do topo para a base. Em que pese a legitimidade deste constitucionalismo traga uma harmonia entre as normas ali postas, ele figura um modelo de força que empurra sobre as bases uma lógica dominante que, nem sempre, reflete a pluralidade e complexidade do âmbito social. Assim, de acordo com Avritzer (2016)AVRITZER, Leonardo. Democracia na América Latina: da inovação institucional ao velho problema do equilíbrio entre os poderes. Revista USP. São Paulo, n. 109, p. 75-86, abr./jun., 2016., as formas de participação top-down têm sido apontadas como muito pouco efetivas e, frequentemente, antidemocráticas. Sob este paradigma, a norma jurídica se torna um exemplo de violência epistêmica, de imposição de uma única manifestação jurídica (FOUCAULT, 2006_____. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 31 ed. Petrópolis: Vozes, 2006.) e do silenciamento daqueles outros sistemas que tenham intenções de contestar o Direito posto. Este racionalismo, eminentemente, cartesiano, serve como base fundante da lógica jurídica solipsista da qual “dentro da concepção de um Direito supra-social, o Direito, desligado das condições em que o homem efetivamente vive e se associa e, por isso mesmo, igualmente alienado da realidade social”. (MARQUES NETO, 2001MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A Ciência do Direito: conceito, objeto, método. Rio de Janeiro: Renovar, 2001., p. 135).
  • 3
    Ao reivindicar o Direito como um “campo” tem-se a intenção de verificá-lo a partir de uma situação global cuja influência de seus fenômenos é sentida em partes com características diversas, sendo que, nesta situação são apreciados inúmeros aspectos que formam estruturas sociais distintas. Assim, “[...] a teoria do campo jurídico é a aplicação, no mundo das leis e da ciência do direito, das instituições da psicologia da forma (Gestalt), com vistas a superar as visões apenas dogmáticas ou críticas do direito, procurando compreendê-lo em perspectiva envolvente e dinâmica, como uma estrutura simbólica da sociedade, destinada a dar segurança e estabilidade a determinados interesses”. (MENDES, 2008MENDES, Antônio Celso. Dimensões Conceituais do Direito. 2 ed. Curitiba: Champagnat, 2008., p. 57)
  • 4
    Importante estabelecer que, conforme Walsh (2009)WALSH, Catherine. Interculturalidad, estado, sociedade: luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito-Equadro: Universdade Andina Simón Bolívar, 2009., o termo aqui empregado será decolonial, suprindo o “s” para marcar a intenção de distinguir-se com o conceito clássico de descolonização. Portanto, “quer salientar que a intenção não é desfazer o colonial ou revertê-lo, ou seja, superar o momento colonial pelo momento pós-colonial. A intenção é provocar um posicionamento contínuo de transgredir e insurgir. O decolonial implica, portanto, uma luta contínua” (COLAÇO, 2012COLAÇO, Thais Luzia. Novas perspectivas para a antropologia jurídica na América Latina: o direito e o pensamento decolonial. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2012., p. 7-8)
  • 5
    Tratando-se de uma perspectiva crítica do eurocentrismo, importante salientar que não se refere a todos os modos de conhecimento europeus, “mas a uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo” (QUIJANO, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgar (org.) A Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Clacso, 2005., p. 115)
  • 6
    O termo descobrimento é utilizado de forma errônea, quando associado ao processo de conquista do continente americano, sendo válido, somente, sob uma perspectiva eurocêntrica. “Na verdade, os espanhóis e portugueses não descobriram nada. Tudo já existia e tinha nome e dono. A América já está povoada milenarmente, ainda que parcamente em algumas regiões” (ZIMMERMANN, 1986ZIMMERMANN, Roque. América Latina – o não-ser: uma abordagem filosófica a partir de Enrique Dussel (1962-1976). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1986., p. 88).

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    » https://rccs.revues.org/468
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    09 Maio 2018
  • Aceito
    15 Dez 2018
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