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O espaço do direito na Teoria da Justiça de Axel Honneth

The Space of law In Axel Honneth's Theory of Justice

Resumo

A presente pesquisa discute o espaço do direito na teoria da justiça de Axel Honneth. Para tanto, o texto está dividido em três seções, sendo a primeira a análise do direito enquanto padrão de reconhecimento intersubjetivo, ao lado do amor e da solidariedade. A segunda seção trata a consolidação da teoria da justiça honnethina e a forma pela qual a justiça é pensada no centro da teoria do reconhecimento social. A terceira e última sessão aborda o lugar do direito na teoria da justiça. Considerando a tese de uma justiça descentralizada e relacional, Honneth constroi uma teoria da justiça sem a presença do direito enquanto sistema jurídico.

Palavras-chave:
Justiça; Direito; Reconhecimento

Abstract

The present research discusses the space of law in Axel Honneth's theory of justice. For this, the text is divided into three sections, the first being the analysis of law as a pattern of intersubjective recognition, alongside love and solidarity. The second section deals with the consolidation of the theory of justice and the manner in which justice is thought at the center of the theory of social recognition. The third and final session addresses the place of law in the theory of justice. Considering the thesis of decentralized and relational justice, Honneth builds a theory of justice without the presence of law as a legal system.

Keywords:
Justice; Law; Recognition

Introdução

A teoria crítica teve a sua remissão com o direito a partir do trabalho desenvolvido por Jürgen Habermas quanto à filosofia social e política, bem como quanto a uma filosofia do direito; mas, especificamente, em relação ao próprio direito, cujo objeto e papel são diferentes daqueles analisados por uma filosofia do direito. Pode-se afirmar que Habermas consegue desenvolver tanto uma filosofia do direito quanto uma teoria crítica da sociedade com lugar de destaque para o direito contemporâneo.

Note-se, entretanto, que Habermas demorou em trazer o direito ao centro do debate de seus trabalhos, porquanto, os escritos das décadas de 1960, 70 e 80, mostram um filósofo ainda com traços marcadamente marxistas, não oferecendo uma atenção ao direito tão centralizada quanto em Faktizität und Geltung (Direito e Democracia) de 1992. Veja-se, nesse sentido, a crítica lançada ao direito na obra Para a Reconstrução do Materialismo Histórico (1990, p.229). A partir do desenvolvimento de Faktizität und Geltung a teoria crítica se reconcilia com o direito, perdendo a visão negativa presente desde o desenvolvimento dos trabalhos de Theodor Adorno e Max Horkheimer, cuja herança crítica ao direito remonta de maneira específica em A Questão Judaica (2005, p.37) de Karl Marx.

Posteriormente a Faktizität und Geltung, Habermas pouco dedicou-se ao direito, encontrando-se uma passagem aqui, outra ali, em obras posteriores como Era das Transições, A Inclusão do Outro, O Ocidente Dividido e, recentemente, em Entre Naturalismo e Religião.

No entanto, a teoria crítica não cessou a discussão sobre o direito, mesmo fora dos escritos de Habermas, porque seu antigo assistente, Axel Honneth, deu continuidade às reflexões que envolvem o direito e a justiça. O trabalho desenvolvido por Honneth já é suficientemente sólido quanto à reflexão sobre o direito em Luta por Reconhecimento e, recentemente, em O Direito da Liberdade.

Em O Direito da Liberdade, Honneth busca oferecer uma alternativa às teorias da justiça de orientação kantiana, explorando a tradição filosófico-crítica. Entre seus objetivos, a teoria crítica busca a emancipação social e trava um debate com o que chamou de teoria tradicional1 1 Para uma melhor compreensão desta discussão, ver: HORKHEIMER, Max; MARCUSE, Herbert. Teoria tradicional e teoria crítica. In: Textos escolhidos. Tradução de Zeljko Loparic e Andréia Maria Altino de Campos Loparic. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores). p.117-154. , no que Honneth dá seguimento, assim como Habermas, à pesquisa de Adorno e Horkheimer.

Por outro lado, Honneth, assim como Habermas, não abre mão de uma teoria da sociedade, cujas intenções normativas de uma teoria da justiça estão juntas à teoria da sociedade, trabalhando uma reconstrução normativa da atual eticidade pós-tradicional. Honneth vai ao encontro de uma ideia de liberdade como autodeterminação e faz uma crítica às teorias da justiça de orientações procedimentalistas (Habermas e Rawls). Para ele, a autorrealização e a autodeterminação precisam do papel das instituições. Eis o novo debate instalado quanto ao direito e a justiça a partir da filosofia de Axel Honneth, cuja teoria da justiça está novamente apoiada em uma teoria crítica da sociedade.

Dessa forma, o objeto central da presente investigação é mostrar qual o espaço (lugar) do direito na teoria crítica de Axel Honneth. Afinal, a pergunta a ser colocada é “como a teoria da justiça de Honneth trabalha o lugar e a função do direito contemporâneo?”. Para dar conta do objetivo anunciado, a presente pesquisa está dividida em três seções: a) a primeira seção analisa o direito enquanto padrão de reconhecimento intersubjetivo e faz um diálogo com as teorias baseadas em direitos; b) a segunda seção aborda, primeiramente, a posição das teorias da justiça de Michael Sandel, John Rawls e Charles Taylor, para depois situar a teoria da justiça honnethiana presente na obra O Direito da Liberdade neste debate contemporâneo tão significativo sobre a justiça, ao mesmo tempo em que procura esclarecer a ideia de liberdade jurídica; c) a terceira e última seção busca responder a pergunta acerca do espaço reservado ao direito na teoria da justiça de Honneth.

O procedimento metodológico de tal análise será o hermenêutico-fenomenológico, no qual a categoria epistemológica fundamental é a compreensão. Por isso será realizada a análise e esclarecimento dos conceitos, identificação da ideia-chave, identificação do problema, inconsistências argumentativas e reconstrução do texto.

1 O direito como padrão de reconhecimento intersubjetivo

Em meio ao debate contemporâneo sobre justiça social, redistribuição e reconhecimento, Honneth oferece não só uma teoria do reconhecimento social, algo que já aparece bem consolidado com a publicação de Luta por Reconhecimento, bem como uma teoria da justiça, a qual se mostra mais sólida na recente e exaustiva obra, O Direito da Liberdade.

Nesta seção analisa-se a tese defendida por Honneth em Luta por Reconhecimento e em textos publicados em forma de artigos, do direito enquanto um padrão de reconhecimento intersubjetivo. Ao oferecer uma teoria do reconhecimento enquanto autonomia, Honneth faz uma crítica ao liberalismo político, o qual segundo ele, não consegue apresentar uma proposta viável de justiça social, sendo que o compromisso do liberalismo de proteger os indivíduos em sua autonomia causa um compromisso de assegurar direitos individuais, cuja conseqüência negativa reside numa linguagem individualista do direito.

A concepção de justiça social baseada no liberalismo desenvolveu uma percepção individualista de autonomia pessoal, no momento em que ao buscar criar uma sociedade justa defendeu a ideia de que os indivíduos deveriam ser dependentes o mínimo possível de outros. Daí a caracterização do liberalismo como individualista. A teoria do reconhecimento honetthiana trabalha com a percepção de que a “autonomia é uma capacidade que existe somente no contexto das relações sociais que a asseguram e somente em conjunção com o sentido interno do que significa ser autônomo” (ANDERSON; HONNETH, 2011ANDERSON, Joel; HONNETH, Axel. Autonomia, vulnerabilidade, reconhecimento e justiça. Cadernos de filosofia alemã (USP), nº.17, jan/jun.2011, p.81-112., p.85). Aqui reside, então, uma concepção de autonomia baseada no reconhecimento. Na busca dessa autonomia anunciada, Honneth entende que o autorrespeito é fator necessário ao fortalecimento da autonomia, sem o qual a mesma se torna vulnerável.

A fim de evitar essa vulnerabilidade, o liberalismo optou por garantir direitos individuais, enquanto tarefa central da justiça social. Garantindo-se direitos individuais estar-se-ia protegendo os indivíduos de desrespeito. No entanto, “na abordagem baseada no reconhecimento, garantir direitos não assegura diretamente a autonomia (no sentido negativo de bloquear a interferência), mas garante a autonomia por meio da garantia do autorrespeito” (ANDERSON; HONNETH, 2011ANDERSON, Joel; HONNETH, Axel. Autonomia, vulnerabilidade, reconhecimento e justiça. Cadernos de filosofia alemã (USP), nº.17, jan/jun.2011, p.81-112., p.91-92).

No que diz respeito à ideia de autonomia, Habermas já havia desenvolvido em Pensamento Pós-Metafísico, a partir do pensamento de Mead, a elaboração da autonomia do si mesmo (self), onde entende que o indivíduo tem de se colocar a si mesmo como sujeito autônomo. “O si mesmo da autocompreensão ética depende do reconhecimento pelos destinatários, e ele só se desenvolve e forma como resposta às exigências do próximo” (1990, p.209). A partir dos desenvolvimentos da psicologia social de Mead, Habermas leva a cabo a compreensão de que a autoconsciência se forma por meio da relação simbolicamente mediada com o outro participante da interação.

O resgate feito em Habermas acerca da discussão sobre a individuação por via da socialização que resulta na questão que envolve a autonomia do sujeito mostra que também existe aqui uma crítica à filosofia da consciência e as concepções individualistas de autonomia, as quais não conseguiram entender a concepção de uma comunidade de comunicação e diálogo, onde o indivíduo é capaz de linguagem e ação. Posto em outros termos, “individualidade há de se explicar recorrendo à autocompreensão ética de uma primeira pessoa em sua relação com uma segunda pessoa” (1990, p.207).

Também a autoconfiança é necessária à autonomia de qualquer pessoa. Da mesma forma que ocorre com o fator autorrespeito, a autonomia é igualmente vulnerável a tudo quanto reduz a autoconfiança. Por isso, o compromisso da sociedade com a proteção das “condições para a autonomia também pode ser entendida como capaz de engendrar um compromisso com a proteção dos tipos de relacionamento no interior dos quais a autoconfiança é desenvolvida e protegida” (ANDERSON; HONNETH, 2011ANDERSON, Joel; HONNETH, Axel. Autonomia, vulnerabilidade, reconhecimento e justiça. Cadernos de filosofia alemã (USP), nº.17, jan/jun.2011, p.81-112., p.96). Ao que tudo indica aqui Honneth está a defender a proposta de políticas públicas setorizadas como requisito de promoção e proteção deste segundo fator constitutivo da autonomia. Como exemplo ele aponta para políticas de trabalho e família, tais como a licença maternidade e paternidade.

Além da proteção das exclusões que reduzem o autorrespeito e das ameaças que diminuem a autoconfiança, o indivíduo ainda por ter colocada em risco a sua autonomia pela perda da autoestima. Isto se dá devido a padrões de humilhação e denigração, tornando uma pessoa menos apta a se autodeterminar ante seus projetos de vida. Dessa forma, “uma noção de justiça social que esteja seriamente comprometida com a proteção da autonomia dos indivíduos tem de incluir uma proteção contra ameaças de denigração” (ANDERNSON; HONNETH, 2011, p.98).

As teorias baseadas em direitos defendem os direitos à participação plena a excluir a autoconfiança e a autoestima, tendo-se como exemplo as políticas de identidade, onde grupos procuram exigir um direito para serem reconhecidos, enquanto indivíduos, por suas necessidades culturais. Porém, Honneth entende que a ideia de tratar tais carências pela linguagem do direito se mostrou problemática. “O problema central é que ela erra seu alvo, pois o que indivíduo necessita é ser amado ou estimado - e, precisamente, não porque tem uma pretensão jurídica a isso” (ANDERSON; HONNETH, 2011ANDERSON, Joel; HONNETH, Axel. Autonomia, vulnerabilidade, reconhecimento e justiça. Cadernos de filosofia alemã (USP), nº.17, jan/jun.2011, p.81-112., p.99).

No entanto, mesmo fazendo uma crítica ao direito liberal e a forma pela qual a linguagem dos direitos se dá na sociedade, Honneth coloca o direito em Luta por Reconhecimento como sendo um padrão de reconhecimento intersubjetivo, assim como o amor e a solidariedade. Apoiado em Hegel e Mead, entende que o indivíduo só pode chegar a compreensão própria enquanto portador de direito quando possui conhecimento acerca de quais obrigações precisa observar frente ao outro. Nesse sentido, o reconhecimento jurídico se dará conforme a respectiva estima que o indivíduo goza na sociedade, de maneira que as relações jurídicas são remetidas a uma moral pós-convencional onde o reconhecimento enquanto pessoa de direito fica separado do grau de estima social, originando-se a partir daí duas formas distintas de respeito (2003, p.179-182).

A ideia de um direito universalmente válido deve ser questionado ante situações empíricas específicas ou particulares, ao passo que se deve saber qual a amplitude de indivíduos ele deve se aplicar. Para Honneth,

nas ciências do direito, tornou-se natural nesse meio tempo efetuar uma distinção dos direitos subjetivos em direitos liberais de liberdade, direitos políticos de participação e direitos sociais de bem-estar; a primeira categoria refere-se aos direitos negativos que protegem a pessoa da intervenção desautorizada do Estado, com vista à sua liberdade, sua vida e sua propriedade; a segunda categoria, dos direitos positivos que lhe cabem com vista à participação em processos de formação pública da vontade; e a terceira categoria, finalmente, àqueles direitos igualmente positivos que a fazem ter parte, de modo eqüitativo, na distribuição de bens básicos (2003, p.189).

Os direitos fazem surgir no indivíduo a consciência de poder se respeitar a si próprio, considerando-se que ele também merece o respeito de todos os outros. Com a ideia de reconhecimento jurídico, o indivíduo deve se considerar como pessoa capaz de partilhar com os outros as propriedades que o capacitam para a participação de uma formação discursiva de vontade, residindo aí o autorrespeito. Entretanto, também amparado em Hegel e Mead, Honneth entende que mesmo com o reconhecimento jurídico, para poderem chegar a uma auto-relação infrangível, os indivíduos precisam de uma estima social capaz de referi-los de maneira positiva a suas propriedades e capacidades concretas. Em outras palavras, pode-se dizer que os direitos ou o reconhecimento jurídico são incompletos enquanto forma de reconhecimento intersubjetivo e, por isso, depende das outras categorias de reconhecimento intersubjetivo para que possa cumprir o seu papel.

A teoria do reconhecimento defendida por Honneth em Luta por Reconhecimento, baseada na autonomia, reforça as condições intersubjetivas para que o indivíduo possa conduzir a própria vida. No entanto, não se pode afirmar que exista aqui uma teoria da justiça, considerando que embora o direito apareça como um padrão de reconhecimento intersubjetivo, ele é insuficiente no enquadramento da teoria de Honneth para uma ideia mais ampla de reconhecimento social.

Será, então, em O Direito da Liberdade que Honneth irá oferecer uma teoria da justiça, onde ele volta sua atenção “para uma análise da teoria da justiça apoiada em uma teoria crítica da sociedade, cujo conceito central passa a ser o de liberdade - entendida, mais especificamente, a partir da ideia de liberdade social” (CAMPELLO, 2014CAMPELLO, Felipe. Do reconhecimento à liberdade social: sobre ‘O Direito da Liberdade’ de Axel Honneth. Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), v.2, p.186-197, 2014., p.187). Nesse sentido, Campello chama atenção para o fato de que o objetivo central da obra é o projeto de reformulação de um modelo de teoria da justiça que não seja circunscrita a princípios formais.

Ao proceder nesta reformulação da teoria da justiça, Honneth faz algumas críticas aos modelos procedimentais das teorias da justiça contemporâneas, estando aí envolvidas, principalmente, as teorias de Habermas e Rawls. Definitivamente, em que pese o alto grau de abstração da teoria da justiça como equidade de Rawls, a tarefa de superá-la não é simples, podendo-se considerar que a filosofia política e social se vê envolta num marco que é antes e depois da obra de Rawls. Frente ao debate contemporâneo entre o liberalismo e o comunitarismo, o liberalismo igualitário de Rawls conseguiu não só recuperar o liberalismo de forma geral das duras críticas sofridas até então, bem como colocar uma dificuldade às teorias marxianas que reclamavam por maior justiça social.

Dentre os representantes da teoria crítica, coube a Habermas apontar críticas ao pensamento de Rawls, tendo-se resultado daí um amplo e profundo debate, o qual originou inclusive a obra Debate sobre o Liberalismo Político2 2 Nesse sentido ver: HABERMAS, Jürgen; RAWLS, John. Debate sobre el liberalismo político. Traducción de Gerard Vilar Roca. Barcelona: Ediciones Paidós, 1998. . Neste quadro da teoria da justiça contemporânea é que Honneth se coloca no debate frente ao liberalismo, enquanto um novo membro da teoria crítica a oferecer uma teoria da justiça social.

2 A consolidação de uma teoria da justiça em O Direito da Liberdade

Mesmo antes da publicação de O Direito da Liberdade, Honneth ressaltou em um ensaio publicado no ano de 2009HONNETH, Axel. A textura da justiça: sobre os limites do procedimentalismo contemporâneo, Civitas. Porto Alegre, v.9, n.3, 2009, p.345-368., que com a extinção do debate entre liberalismo e comunitarismo, onde figuraram nomes como Michael Sandel, John Rawls e Charles Taylor, o abismo entre teoria filosófica e práxis política estaria se aprofundando novamente. Ainda que sejam contínuos os esforços filosóficos na busca de um conceito apropriado de justiça, “poderia existir um consenso geral de que sociedades democráticas estão embasadas em fundamentos normativos que exigem a garantia jurídica da autonomia individual de todos os cidadãos e todas as cidadãs” (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. A textura da justiça: sobre os limites do procedimentalismo contemporâneo, Civitas. Porto Alegre, v.9, n.3, 2009, p.345-368., p.346).

A crítica dirigida por Honneth ao liberalismo e sua insuficiente resposta a uma teoria da justiça social também já é encontrada em Jürgen Habermas, Michael Sandel e Charles Taylor. Habermas entende que Rawls propôs uma lei intersubjetivista do conceito kantiano da autonomia: “agirmos de forma autônoma quando obedecemos estritamente às leis que todos os envolvidos poderiam aceitar com boas razões, com base em um uso público da razão” (2002, p.61). Rawls parte deste conceito moral da autonomia para explicar a autonomia política dos indivíduos. Dessa forma, como

Rawls se prende a uma concepção de justiça segundo a qual a autonomia dos cidadãos se constitui mediante direitos, o paradigma distributivo lhe traz dificuldades. Os direitos só podem ser “gozados” na medida em que deles se faz uso. Eles não podem ser assimilados a bens distributivos, sem abrir mão de seu sentido deontológico. Uma distribuição uniforme de direitos só ocorre quando os jurisconsortes de reconhecem mutuamente como livres e iguais (HABERMAS, 2002HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2002., p.67).

Por isso, Habermas entende que Rawls se vê obrigado devido aos constrangimentos da estratégia conceitual do modelo ainda eficiente a escolha racional a não conceber as liberdades fundamentais, mas reinterpretá-las enquanto bens fundamentais. Habermas argumenta que Rawls se apóia em uma teoria fraca do bem, no intuito de provar que instituições justas criariam condições mediante as quais os interesses gerais perseguiriam os planos de vidas particulares. No entanto, para uma teoria filosófica da justiça essa questão diz respeito às condições culturais e políticas do pluralismo de convicções axiológicas, onde deveria encontrar acento no público de cidadãos. A teoria de Rawls faria sentido, no caso de já existirem instituições justas, no entanto, as coisas são diferentes no momento em que se questiona o modo de estabelecê-las na realidade (1992, p.81).

Para ter direitos, Habermas defende a posição de que o indivíduo necessita ter autonomia privada, a qual será assegurada pelos direitos fundamentais, assegurando-se as condições sob as quais os indivíduos possam fazer uso da autonomia pública desempenhando seu papel de cidadãos do Estado, pois, “se a liberdade do poder ter e poder adquirir deve garantir justiça social, então é preciso haver uma igualdade do poder juridicamente” (2002, p.294).

Honneth entende que Habermas precisou enfrentar a questão que diz respeito à ideia moderna de igualdade de tratamento em face do princípio moral do cuidado. No entanto, se reconstruirmos o programa da ética do discurso, diz Honneth, até o ponto em que se tornou uma questão do significado das virtudes e capacidades comunicativas, rapidamente se tornará evidente que essa objeção é justificada em um sentido trivial - sem, no entanto, ter qualquer relevância sistemática inicial. Cada pessoa é, de fato, sempre incluída em um discurso prático como um indivíduo não representável, mas a pressuposição que a simetria é obtida em um discurso prático requer que todos os laços particulares sejam desconiderados e, portanto, as considerações de cuidado retrocedem (2000, p.122).

Michael Sandel, por sua vez, também desfere uma crítica severa ao liberalismo igualitário de Rawls, onde entende existir uma oposição entre a visão liberal e a concepção de pessoa. Sandel entende que a teoria de Rawls ao propor o acordo com o qual as pessoas escolhem seus fins e objetivos vitais é uma visão pobre do ser humano, considerando que esta concepção não dá espaço para o conhecimento dos valores próprios de sua comunidade. Por outro lado, a teoria de Rawls fracassa ao tentar assegurar os direitos à igual liberdade, revelando uma deficiência profunda na concepção teleológica do liberalismo igualitário. A unidade antecedente do “eu” significa que o sujeito sempre é irredutivelmente anterior aos seus valores e fins, e nunca completamente construído por eles. A noção de pessoa que existe na posição original é demasiadamente formal e abstrata (2000, p.36-39).

Para uma constituição deontológica do “eu”, Sandel entende que se deve ser um sujeito cuja identidade está dada de maneira independente das coisas que ele tem, bem como de seus interesses e finalidades das relações com os demais. A proposta de um “eu” extremamente independente acaba por eliminar a possibilidade de laços comunitários e fraternos e, consequentemente, de uma vida pública onde se discute a identidade e também os interesses particulares (2000, p.86), naquilo que Habermas chamou de “o uso público da razão”.

Honneth entende que o procedimentalismo de Rawls leva em conta a autonomia pressuposta dos sujeitos. Isto porque os indivíduos devem ser concebidos como livres e autodeterminados, de forma que a concepção de justiça não pode pretender fixar a sua revelia como deve ser realizada uma distribuição equitativa de bens. No entanto,

finge-se em geral uma “situação orignal”, o fechamento de um contrato ou uma situação de deliberação, cujas condições apartidárias no sentido de um experimento mental nos devem permitir chegar a conclusões justificadas sobre qual o tipo de distribuição de bens as cidadãs e os cidadãos preferirem (cf. a formulação de Rawls, 1979, cap.3).

Para Honneth, as teorias da justiça de orientação procedimentalista trabalham com o pressuposto segundo o qual cidadãos devem produzir por si sós os princípios de justiça, cuja implementação é atribuição única do Estado de Direito. No entanto, o perigo desta centralização estatal reside no fato de que tudo o que estiver fora do alcance do poder legal não é alcançado pelas exigências de justiça. Aí se encontram algumas esferas sociais, como a família, empresas privadas, as quais não podem ser responsabilizadas por tarefas da realização da justiça (2009, p.351).

A realização da liberdade individual só ocorre frente a autonomia individual e a objetividade da realidade. A tese de Honneth em O Direito da Liberdade reside, portanto, na eticidade democrática, onde propõe a prevalência do bem sobre o justo, negando a possibilidade de assumir um modelo procedimental. Este modelo é problemático para fundamentar os princípios de justiça, originando-se daí as críticas apontadas por Honneth tanto a Habermas quanto a Rawls.

Em meio às críticas ao liberalismo feitas por Habermas e Sandel, também aparece o comunitarismo de Charles Taylor, que embora por caminhos diferentes também direciona críticas ao modelo liberal. Para Taylor a imagem de expressão de cada cultura e cada indivíduo tem sua própria forma. Para se tornar consciente o sujeito necessita se corporificar na vida, onde as condições da sua existência estão em conflito com as exigências de sua própria perfeição (TAYLOR, 2005TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2005., p.35-36).

A crítica comunitária de Taylor ao liberalismo aponta para o fato de que a homogeneização aumenta a alienação das minorias e também o ressentimento, sendo que a resposta imediata do liberalismo está em criar programas para eliminar a pobreza, assimilar os índios, remover populações de regiões de declínio, e até mesmo implementar a vida urbana para o estilo de vida rural. No entanto, a identidade é aquilo que somos, de onde viemos, o ambiente no qual nossas opiniões e aspirações fazem sentido. A identidade depende, assim, das relações dialógicas do homem com os outros (TAYLOR, 2005TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2005., p.145).

Assumindo outro caminho, a teoria do reconhecimento social como autonomia identifica estruturas consolidadas na sociedade, para a partir daí reconfigurá-las para a ideia de liberdade social. Aqui o indivíduo somente alcança a liberdade da autodeterminação no momento em que aprende, via relação de reconhecimento recíproco, a compreender suas próprias necessidades, convicções e habilidades como algo a ser perseguido na vida pública.

Honneth defende na segunda parte da obra O Direito da Liberdade uma descentralização da justiça. As teorias de Habermas e Rawls trabalham com princípios muito abstratos, por isso Honneth quer uma teoria com uma aproximação mais empírica. Para tanto, trabalha com a orientação da descentralidade do Estado na administração da justiça. “A segunda parte é dedicada a dois modelos de liberdade anteriores ao conceito de liberdade social: a liberdade jurídica e a liberdade moral” (CAMPELLO, 2014CAMPELLO, Felipe. Do reconhecimento à liberdade social: sobre ‘O Direito da Liberdade’ de Axel Honneth. Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), v.2, p.186-197, 2014., p.191).

Reconhecer o outro como sujeito de direito, pode ser a grande questão. A ideia de reconhecimento intersubjetivo está no reconhecimento da liberdade do outro. Como é possível trabalhar a intersubjetividade? Sacrifício da autonegação: em nome da liberdade social eu devo abrir mão da minha liberdade individual. Na liberdade jurídica, o indivíduo age, tão-somente, enquanto portador de direitos subjetivos, “sendo reduzido seu espaço de liberdade ao sentido estritamente jurídico e perdendo-se, com isso, outras formas de integração social e comunicativa” (CAMPELLO, 2014CAMPELLO, Felipe. Do reconhecimento à liberdade social: sobre ‘O Direito da Liberdade’ de Axel Honneth. Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), v.2, p.186-197, 2014., p.191). Há, no entanto, uma mudança quanto ao alcance dos direitos subjetivos, conforme detectado por Honneth, sendo que

o que se transformou nas últimas décadas foi o alcance desses direitos chamados “subjetivos”, pois mediante a pressão de movimentos sociais e argumentos político-morais sobre as categorias originais, “liberais” no sentido estrito, adicionam-se ainda novas categorias, pensadas como complementares. Porém, ampliações deste tipo em nada alteram o sentido ético e a função social que correspondem a tal “liberdade jurídica” da concepção de justiça aqui representada (HONNETH, 2015HONNETH, Axel. O direito da liberdade. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2015., p.128-129).

O que Honneth está a indicar é que a liberdade jurídica depende sempre de complementações por meio de comunicações, mesmo que exista a ameaça de exclusão dos indivíduos com base em sua estrutura privatista. Nesse contexto, os direitos subjetivos fazem parte da esfera privada do sujeito, onde ele pode se retirar subtraindo-se às obrigações comunicativas ligadas à exigência de justificação de escolhas de vida. Os direitos subjetivos são direitos negativos. Por isso, na liberdade jurídica sempre há o risco de que os sujeitos identifiquem sua liberdade tão-somente com a liberdade jurídica, ou seja, com seus direitos negativos, que acabam sendo plenamente constitutivos do plano de vida dos seus titulares (PINZANI, 2013PINZANI, Alessandro. Os paradoxos da liberdade. In: MELO, Rurion (Coord.). A teoria crítica de Axel Honneth: reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo: Saraiva, 2013. p.293-315., p.301).

Conforme esclarece Dutra (2017DUTRA, Delamar José Volpado. Com Honneth contra Honneth a favor de Habermas. Veritas. Revista de Filosofiaa da PUCRS. Porto Alegre, v.62, n.1, jan./abr. 2017, p.130-168., p.148), Honneth tem um diagnóstico ruim da liberdade negativa ou jurídica, sendo que pra ele os objetivos que poderiam ser buscados pela potencialidade de tal liberdade seriam indeterminados, ao passo que a sua especificação dependeria de comunicação.

Nesse sentido, Dutra (2017DUTRA, Delamar José Volpado. Com Honneth contra Honneth a favor de Habermas. Veritas. Revista de Filosofiaa da PUCRS. Porto Alegre, v.62, n.1, jan./abr. 2017, p.130-168., p.149-150) entende que a liberdade social defendida por Honneth faz exigências cujo diagnóstico de época avançado o filósofo é incapaz de comprovar. Por isso, Dutra vê na proposta de Habermas, de uma racionalidade comunicativa trajada nos moldes da liberdade jurídica, uma possibilidade mais coerente com o próprio diganóstico de Honneth.

Quanto à liberdade moral, Honneth busca mostrar como a liberdade reflexiva influencia aquela, trabalhando como se pode entender a liberdade moral. Apresenta a moral como um sistema de ação. Honneth está preocupado com a liberdade social, entendendo que o indivíduo somente será livre ao estabelecer relações intersubjetivas de reconhecimento. A justiça acontece em várias relações, mas não de forma distributiva. O indivíduo não se relaciona só com o Estado. O princípio da autonomia moral

organizado também como sistema de ação, compartilha com a autonomia privada, garantida pelo sistema jurídico moderno, o caráter de possibilitar a liberdade, mas não de realizá-la no âmbito institucional; pois aqui também é dada aos indivíduos a oportunidade, concedida culturalmente, mas não garantida pelo Estado, de se retirar por trás dos deveres de ação, a fim de, à luz de um ponto de vista especial - o da moral -, novamente estar em conexão com um mundo real outrora vivenciado como dividido (HONNETH, 2015HONNETH, Axel. O direito da liberdade. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2015., p.175-176).

Conforme Campello (2014CAMPELLO, Felipe. Do reconhecimento à liberdade social: sobre ‘O Direito da Liberdade’ de Axel Honneth. Cadernos de Ética e Filosofia Política (USP), v.2, p.186-197, 2014., p.191-192), a liberdade moral tem seu fundamento associado à autonomia e de escolhas subjetivas, apresentando seus limites no momento em que o indivíduo se torna insensível a contextos, agindo cegamente segundo princípios morais previamente estabelecidos.

A ideia de autonomia relacional depende de complementaridade em relação ao outro. A esfera íntima é um espaço de liberdade social. Honneth vai contra o liberalismo neste sentido. Neste ponto, ao que tudo indica Honneth não se distancia da teoria crítica. Trata-se, pois, de uma teoria da justiça de modelo descentralizado, pois o modelo liberal de uma teoria da justiça não alcança a esfera íntima dos sujeitos.

3. O espaço do direito na teoria da justiça de Axel Honneth

Ao fundamentar sua teoria da justiça, em ensaio publicado no ano de 2009 sob o título de A Textura da Justiça, Honneth (p.360) esclarece que mantém o núcleo moral das outras concepções de justiça, no entanto, tratando-a a partir de uma concepção totalmente diferente de suas implicações materiais. De tudo o que foi visto até aqui, fica bastante claro que o sujeito somente alcança a liberdade de autodeterminação ao aprender em relações de reconhecimento recíproco, a compreender suas próprias necessidades, como algo a ser buscado na vida pública. Em outros termos, a teoria do reconhecimento social trabalha com a ideia de que é necessário que os sujeitos exerçam a perspectiva da tomada de conhecimento e aceitação.

A ideia do justo não pode mais ser analisada a partir de liberdades negativas ou reflexivas, mas sim ante um padrão que concede aos sujeitos, em igual medida, a oportunidade de participar em instituições de reconhecimento (2015, p.117). Logo, a justiça não tem seu centro nas liberdades negativa ou reflexiva, mas sim na garantia de participação dos sujeitos em instituições de reconhecimento.

Ao longo do texto de O Direito da Liberdade pouco se encontra a expressão direito. Honneth fala em justiça e, como um dos conceitos principais da obra, o conceito de liberdade jurídica, a qual foi abordada na seção anterior. Honneth tem uma visão bastante negativa da liberdade jurídica, a qual também chama de negativa, ao considerar que ela precisa de complementações por meio de comunicações, mesmo que a partir dessas comunicações ela ameace excluir os indivíduos com base em sua estrutura privatista (2015, p.131).

Aqui os direitos subjetivos servem, tão-somente, para a revisão de uma idealização do bem, mas não para novas formulações dela. Não se pode perseguir qualquer objetivo de vida e tomar parte em interações se anteriormente não abandonar a esfera da liberdade jurídica, a partir de justificações intersubjetivas. A liberdade jurídica não se oferece enquanto lugar da autorrealização individual (2015, p.154-155).

Os direitos subjetivos são providos de conteúdo ético ao passo em que o indivíduo, ao se ver portador de direitos subjetivo, conta com um espaço privado, podendo realizar uma autorreflexão sobre as muitas concepções de vida boa, defendendo seus valores morais frente a um pluralismo ético (DIAS; PEREIRA, 2017DIAS, Ricardo Gueiros; PEREIRA, Diogo Abdineder Ferreira. A liberdade jurídica em Axel Honneth e os tratamentos adequados de solução de conflitos. Anais do II Congresso de Processo Civil Internacional, Vitória, 2017. p.545-555., p.549).

Em sua obra Luta por Reconhecimento, ao trabalhar os padrões de reconhecimento recíproco, dentre os quais o direito, Honneth cita Ihering ressaltando tendo sido este jusfilósofo alemão a ter efetuado uma distinção no conceito de respeito, cujo desacoplamento vai ao encontro do reconhecimento jurídico e da estima social.

Note-se que para Ihering, “toda a história da humanidade repousa sobre a aplicação da existência individual aos fins da comunidade” (1946, p.42). Ihering entende que ninguém existe para si, como tampouco para si só, mas cada um existe por e para os outros, seja de forma intencional ou não. No entanto, Ihering dedica um espaço importante ao direito em seus escritos, pois na ideia da afirmação jurídica de si mesmo, o direito compreende a pessoa inteira, a afirmação do sujeito desta sua condição de existência, constitui o que Ihering chamou de afirmação jurídica de si mesmo.

Por um lado, Honneth reconhece em Ihering a contribuição para uma integração ética de uma sociedade3 3 Para Ihering, “padrões de ação dessa espécie se compõem principalmente de manifestações de reconhecimento recíproco e deferência, ele tenta nesse contexto diferenciar tipos de respeito social sob pontos de vista sistemáticos”. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Ed.34, 2003. p.184. , sendo que na própria ideia de reconhecimento jurídico já está presente a necessária consideração de todo ser humano de um “fim em si”. Por outro lado, Honneth não absorve de Ihering e espaço privilegiado que este pensador destina ao direito em sua obra, vendo a liberdade jurídica de forma incompleta.

Nesse sentido, a incompletude da liberdade jurídica demanda acomodações pela esfera social. Logo, tampouco a própria liberdade social se legitimará pela via da liberdade jurídica e moral. Há, dessa maneira, a defesa de Honneth da descentralização da justiça, desvinculando-a da forma única dos direitos subjetivos, de maneira que

o direito deve produzir uma forma de liberdade individual cujas condições de existência não podem ser produzidas, nem perpetuadas: ele depende de uma relação meramente negativa, interrompida, com um contexto de prática ético que se alimenta, por sua vez, das interações sociais de sujeitos não juridicamente cooperantes (2015, p.157).

O direito está fadado ao ostracismo na teoria da justiça de Honneth, ou seja, ao fundamentar uma teoria da justiça, a qual se apresenta consolidada, enquanto tese, com a publicação de O direito da Liberdade, ele o faz sem a presença do direito posto. Da mesma forma que Habermas, Honneth aposta na democracia, mas com forte descrédito na liberdade jurídica, ao passo que a liberdade da autodeterminação somente ocorre via relação de reconhecimento recíproco e, como já analisado na segunda seção, a partir do momento em que o sujeito passa a compreender suas próprias necessidades, convicções e habilidades como algo a ser perseguido na vida pública.

Na leitura de Gonçalves (2018GONÇALVES, Ricardo Juozepavicius. A luta por reconhecimento de direitos na teoria crítica de Axel Honneth e a experiência da audiência pública sobre cotas raciais na ADPF 186: reflexões sobre experiências de desrespeito, movimentos sociais e lutas por direitos. Revista Publicum, Rio de Janeiro, v.4, n.2, 2018. p.125-152., p.148) a teoria do reconhecimento de honnethiana apresenta permite observar o direito a partir de outra visão, tendo em vista que Honneth concebe instrumentos para uma análise do direito moderno e dos direitos modernos mais ligadas às injustiças individuais, o que o faz em uma aproximação às instituições possibilitando uma aproximação do direito aos pleitos sociais.

Para Honneth, a exigência de qualquer representação da justiça precisa ser remetida à autodeterminação individual do sujeito. O significado da realização da liberdade não se dá nos padrões de um sujeito tomado isoladamente, mas da liberdade social expressa em sentido plural e ampliado do “nós”.

Considerações finais

A partir da presente pesquisa, buscou-se responder à pergunta sobre o lugar do direito na teoria da justiça de Honneth. Por um lado, já conforme apontado na introdução, a teoria crítica sinalizou para uma consideração positiva do direito com a obra recente de Habemas; enquanto que, com os desenvolvimentos dos trabalhos de Honneth, por outro lado, o direito perde relevância em seu sistema filosófico, em que pese esteja fortemente presente em seu debate enquanto um padrão intersubjetivo de reconhecimento, mas que não se basta sozinho, necessitando de outros padrões intersubjetivos de reconhecimento.

Por óbvio, o direito aqui não tem nem a mesma função e tampouco, a mesma relevância que possui na teoria habermasiana, cujo papel seja de se apresentar enquanto medium dos procedimentos democráticos. Isto é, em Habermas, cabe ao direito assegurar a viabilidade da própria democracia. Em Honneth, o direito aparece enquanto um dos padrões de reconhecimento intersubjetivo, ao lado do amor e da solidariedade. No entanto, no reconhecimento jurídico, o sujeito precisa antes reconhecer as obrigações que possui frente ao outro. Neste sentido, reconhecimento jurídico é incompleto como forma de reconhecimento intersubjetivo, dependendo das outras categorias de reconhecimento intersubjetivo para que possa cumprir a sua função.

Na obra O direito da Liberdade está presente a teoria da justiça de Honneth, cuja tese central, reside no fato da mesma estar fundamentada na eticidade democrática, onde há a proposição da prevalência do bem sobre o justo, com negação da possibilidade de assumir um modelo procedimental, tal qual apresentado por Habermas. Nesta complexa ideia de uma teoria da justiça, Honneth examina as formas das liberdades, bem como faz um diálogo com o liberalismo e também com o comunitarismo, considerando superado o debate entre ambos. Em meio às críticas direcionadas aos liberais, aos comunitários e também ao procedimentalismo de Habermas, a teoria do reconhecimento social defende uma justiça dita relacional, ou seja, a justiça é descentralizada e a autonomia se dá via relacionamento com o outro. A justiça não se dá de modo distributivo ou procedimental, mas relacional.

Ao apontar para o que entende ser a falha do liberalismo, no que diz respeito ao reconhecimento jurídico, Honneth argumenta que nesta forma de reconhecimento o sujeito fica limitado aos direitos subjetivos, reduzindo seu espaço de liberdade ao sentido estritamente jurídico e perde-se, com isso, outras formas de integração social e comunicativa. Conseqüentemente, o liberalismo não alcança a esfera íntima das pessoas, enquanto a teoria do reconhecimento social trabalha na ideia de estima social e também autoestima e autorrespeito. Daí que a justiça não tem sua centralidade nas liberdades negativa ou reflexiva, mas na garantia de participação dos sujeitos em instituições de reconhecimento, o que não depende na teoria honnethiana do direito enquanto sistema. O direito enquanto ordenamento jurídico não tem nenhuma função na teoria da justiça de Honneth, aliás, pode-se deduzir neste ponto que a visão do filósofo volta a acompanhar a tradição da teoria crítica de um olhar negativo do direito posto, o que se pode notar, principalmente, pela crítica feita ao direito liberal. Honneth aposta muito mais no amor e na solidariedade.

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  • 1
    Para uma melhor compreensão desta discussão, ver: HORKHEIMER, Max; MARCUSE, Herbert. Teoria tradicional e teoria crítica. In: Textos escolhidos. Tradução de Zeljko Loparic e Andréia Maria Altino de Campos Loparic. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores). p.117-154.
  • 2
    Nesse sentido ver: HABERMAS, Jürgen; RAWLS, John. Debate sobre el liberalismo político. Traducción de Gerard Vilar Roca. Barcelona: Ediciones Paidós, 1998.
  • 3
    Para Ihering, “padrões de ação dessa espécie se compõem principalmente de manifestações de reconhecimento recíproco e deferência, ele tenta nesse contexto diferenciar tipos de respeito social sob pontos de vista sistemáticos”. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Ed.34, 2003. p.184.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2019
  • Aceito
    21 Ago 2019
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