Acessibilidade / Reportar erro

Interações entre crime e sexualidade nas agências punitivas

Interactions between crime and sexuality in the punitive agencies

Resumo

O artigo objetiva entender o papel da sexualidade nas agências punitivas a partir da análise de casos extraídos de processos criminais de pessoas identificadas como LGBT no Complexo do Curado (PE). Os processos convergem em narrativas nas quais o sistema de justiça utiliza ou legitima a utilização de práticas sexuais como dispositivos de criminalização e constituem prescrições estatais que inscrevem a sexualidade na delinquência.

Palavras-chave:
Criminologia; Sistema de justiça criminal; Sexualidade

Abstract

This article aims to comprehend sexuality’s role in the punitive agencies through the analysis of cases extracted from criminal procedures of people identified as LGBT from the Complexo do Curado (PE). The procedures converge in narratives in which the justice system utilizes or legitimizes the usage of sexual practices as dispositives of punishment and constitutes state prescriptions that inscribe sexuality in delinquency.

Keywords:
Criminology; Criminal justice system; Sexuality

1. Introdução

O presente artigo surge do resultado encontrado em uma pesquisa quantitativa preliminar sobre o perfil dos encarcerados LGBT do Complexo do Curado, localizado no Estado de Pernambuco. Dentre os resultados obtidos nessa primeira análise, percebemos que todas as menções à raça nos processos judiciais indicaram indivíduos pardos ou pretos (CARVALHO, 2018), de modo que surgiu o desafio de pensar como as dinâmicas de violência heterossexista do Estado pernambucano estão estruturadas a partir de lógicas raciais1 1 Este trabalho surge de uma pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco nos anos de 2017/2018 e posteriormente renovada para 2018/2019. .

Assim, a presente pesquisa centrou-se em compreender as operações de criminalização que conduziram os LGBT ao Complexo do Curado com o objetivo central de entender o papel das sexualidades nas agências punitivas2 2 Agradecemos o diálogo com Roberto Efrem Filho e Manuela Abath Valença, que nos estimulou a transformar a pesquisa no presente artigo. .

Na primeira parte, apresentamos o desenho metodológico utilizado para a obtenção e análise dos dados sobre os dissidentes de gênero e sexualidade encarcerados no Complexo do Curado e os caminhos no Sistema de Justiça Criminal que foram necessários.

Em seguida, explicamos a busca dos elementos que endereçam temáticas de sexualidade na dosimetria da pena das sentenças ou nas justificativas das imputações das prisões provisórias. Nesse percurso, selecionamos três casos por apresentarem especificidades que demandaram uma análise mais atenta sobre como sexualidade e crime podem ser construídos reciprocamente nas narrativas de processos judiciais3 3 Como Mariza Corrêa (1983), reconhecemos a impossibilidade de um projeto baseado na análise de processos judiciais recuperar a verdade dos fatos, como pretende o jargão jurídico. No relato que o Sistema de Justiça Criminal faz dos casos, resta apenas um emaranhado de narrativas que representam olhares parciais e situados das relações sociais descritas. Em meio a essas estórias, o olhar do pesquisador é, também, o produto de uma visão específica sobre aquelas relações sociais, igualmente imprestável para apresentar os fatos verídicos. Desse modo, adotar os processos judiciais como fonte consiste em um esforço de compreender o Estado e o sistema penal enquanto instituições, não os fatos discutidos por eles. .

Ao final, apresentamos uma generalização analítica que funciona como item conclusivo no qual se busca uma análise dessas informações. Neste ponto, analisamos as convergências entre os 3 (três) casos como narrativas nas quais o Estado utiliza ou legitima o uso de determinados arranjos eróticos como argumentos que reivindicam a punição.

Os casos são constituídos como fábulas em que os atos ingressam nos autos apenas quando convergem com os objetivos pretendidos pelos operadores do direito. Através desse processo, as experiências de homens negros que se relacionam com outros homens são associadas ao fato típico, aproximando determinadas formas de sexualidade ao crime e à violência em estruturas de poder que equilibram as interseções entre racismo e heterossexismo.

2. Desenho metodológico

A pesquisa apresenta como objetivo a busca qualitativa de padrões na racionalidade adotada pelos juízes e sua conexão com a sexualidade enquanto categoria de análise. Utilizamos, inicialmente, a técnica da pesquisa documental, tendo como corpus empírico as sentenças e audiências de custódia, compreendidos como momentos decisivos nos quais o juiz precisa fundamentar a responsabilidade penal e/ou a necessidade da prisão. A partir desses dados, tínhamos a pretensão de examinar que papel - se existente - essas dissidências impõem sobre a exposição desproporcional à criminalização, em especial à privação de liberdade.

Realizamos as seguintes etapas: 1) obtenção de lista dos detentos LGBT do Complexo do Curado da Secretaria de Ressocialização do Estado de Pernambuco (doravante, SERES); 2) busca nominal na consulta processual online do Tribunal de Justiça de Pernambuco para obter os números dos processos (execução penal e ação condenatória); e 3) consulta aos autos processuais físicos para complementar os dados.

Uma vez obtida a lista de “reeducandos LGBT4 4 Aqui, optou-se por manter a terminologia usada no documento, uma vez que expressa a promessa da ressocialização através da pena. ” do Complexo do Curado5 5 A lista foi fornecida pela SERES através de parceria com Neon Bruno Doering Morais, que, em sua dissertação de mestrado (2018), analisou as habitações e condições de vida das pessoas GBT no cárcere pernambucano, razão pela qual acessou documentos públicos quantificando a população LGBT nos presídios locais. Acontece que o presente trabalho deriva de uma atuação em rede do Grupo Asa Branca de Criminologia, registrado junto ao CNPq, no qual são investigadas as implicações do Sistema de Justiça Criminal nas relações de gênero e sexualidade. Mais especificamente, foi desenvolvida uma triangulação de dados e análises sobre o encarceramento de pessoas identificadas como LGBT em Pernambuco, desde os padrões percebidos no processo de criminalização até as experiências específicas dessa população no cárcere. , verificamos cinquenta e quatro nomes e algumas informações sobre os reclusos (nome, orientação sexual/identidade de gênero, idade), que utilizamos como norte para a obtenção dos demais dados.

Posteriormente efetuamos consultas processuais através dos nomes registrais. Neste ponto, verificamos que, em oito oportunidades, a consulta online ofereceu informações incoerentes com a lista, tendo em vista que os atos processuais informavam que os indivíduos mencionados não estavam presos. Esses casos foram excluídos do universo de autos a serem analisados, de modo que, junto com os oito nomes não localizados, dezesseis detentos foram eliminados das buscas.

Contando com as informações obtidas eletronicamente, iniciamos a consulta aos autos processuais, que ocorreu em visitas às varas situadas no Fórum Rodolfo Aureliano, em Recife-PE, entre março e junho de 2018. Ao final, foram consultados 29 (vinte e nove) processos entre ações penais e processos de execução penal correspondentes a 27 (vinte e sete) dos detentos listados dentre os 38 (trinta e oito) nomes existentes. Os processos são públicos, de livre acesso e nenhum deles tramita em segredo de justiça.

Contrariando as hipóteses que norteavam, inicialmente, esta investigação, a maior parte das fundamentações analisadas não era constituída por aportes relevantes de gênero e sexualidade. Em verdade, o incurso no campo demonstrou que os caminhos da racionalidade punitiva costumavam reproduzir, em grande medida, os acúmulos criminológicos sobre os padrões de encarceramento baseados em categorias bastante localizadas em termos de classe e raça.

Impressões semelhantes podem ser visualizadas na dissertação de Helena Castro (2015CASTRO, Helena Rocha Coutinho de. O dito pelo não dito: uma análise da criminalização secundária das traficantes na cidade do Recife. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2015.​, 92), que continha, dentre seus objetivos, identificar os discursos patriarcais implícitos nas sentenças de mulheres acusadas de tráfico de drogas. Acontece que, contrariando as hipóteses que conduziram o projeto de pesquisa, a pobreza argumentativa dos atos decisórios implicou na relativa ausência de elementos ligados ao patriarcado no campo investigado. Por isso, a aposta analítica da pesquisadora passou também pela análise dos silêncios ou omissões desses julgadores, o que ela chamou de “o dito pelo não dito” (Castro, 2015, 94-98).

Aqui, não se desconhece a exposição à criminalização proporcionada por experiências de dissidência e tampouco é negligenciada a possibilidade dessa influência ter sido suprimida da fundamentação. Contudo, os objetivos da pesquisa estavam em examinar o comportamento do Estado-penal registrado nos processos judiciais diante da interseção entre orientação sexual ou identidade de gênero e crime, de modo que outras formas de incidência dos elementos desse campo escapam aos limites deste trabalho.

Simultaneamente, é certo que houve casos nos quais experiências específicas de sexualidade foram determinantes para a compreensão dos fatos, a construção retórica da narrativa ou a deslegitimação da versão do acusado. Nesse sentido, o desenvolvimento do trabalho passa precisamente por uma tentativa analítica de oferecer uma interpretação que leve em consideração esse aparente paradoxo.

Por isso, optamos pela apresentação de três estudos de caso estruturados pela exposição da narrativa já pontuada por inferências interpretativas seguidas da generalização analítica, imprescindível quando há casos múltiplos (MACHADO, 2017MACHADO, Maíra. “O estudo de caso na pesquisa em direito” In: MACHADO, Maíra (org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017, pp. 357-390.: 385). Para tal, todo o conteúdo dos processos judiciais foi examinado, sendo especialmente reveladores os depoimentos de testemunhas registrados nos autos.

Para oferecer elementos de controle das inferências apresentadas, explicitamos que a escolha dos casos ocorreu a partir do contato gradual com os processos judiciais, em que alguns ocorridos chamavam mais atenção por estarem presentes, explícita ou implicitamente, experiências ou estereótipos reiteradamente ligados à homossexualidade6 6 . As menções deste trabalho ao termo homossexual têm menos relação com as preferências eróticas individuais do que com a tentativa de recuperar uma ideia que sintetiza o senso comum compartilhado sobre homens que se relacionam sexual ou afetivamente com outros homens, oferecendo as imagens mais usualmente associadas a eles. Desse modo, a utilização do itálico serve para sinalizar ao leitor que o conceito não é aplicado enquanto categoria explicativa do comportamento sexual, mas enquanto referência a um repertório cultural e registro do vocabulário empregado no próprio campo estudado (ou algumas variações, a exemplo de homoafetivo). , de forma que sua apresentação significa, por si só, uma contribuição ao campo. Essa mesma experiência foi verificada no trabalho de Maíra Machado (2017MACHADO, Maíra. “O estudo de caso na pesquisa em direito” In: MACHADO, Maíra (org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017, pp. 357-390.: 363), em que “os casos se impõem sobre nós, isto é, o interesse pelo caso precede à identificação, com alguma clareza, do interesse de pesquisa.” Portanto, a partir da investigação com algumas narrativas específicas surgem as perguntas e hipóteses que nos conduziram ao caminho do caso à pesquisa.

Nos casos que analisamos, os aportes teóricos são instrumentalizados apenas à medida que demandam os dados, segundo a Teorização Fundamentada nos Dados (TFD) que utilizaremos como modelo de análise dos materiais empíricos. Essa é a razão pela qual não apresentamos um marco teórico específico. Escolhemos conferir protagonismo à empiria diante da complexidade da realidade e minimizar o peso da carga teórica preexistente do/a pesquisador/a na interpretação dos dados (CAPPI, 2017CAPPI, Ricardo. “A ‘teorização fundamentada nos dados’: um método possível na pesquisa empírica em Direito”. In: MACHADO, Maíra (org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017, pp. 391-422.). Felipe Freitas, Luciana Garcia e Thula Pires (2018FREITAS, Felipe. GARCIA, Luciana. PIRES, Thula. “Percursos metodológicos para a escuta das vozes do cárcere”. In: FREITAS, F. PIRES, T. (Org.). Vozes do cárcere: ecos da resistência política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018. 147-166.: 148) sintetizam bem os benefícios dessa ferramenta metodológica:

Trata-se de estratégia que pretende deixar falar os protagonistas dos discursos para compreender seus pontos de vista, evitando, assim, a verificação prévia de uma proposição teórica específica e, ao mesmo tempo, investindo na teoria a partir dos dados observados.

Nesse contexto, pode-se dizer que a TFD auxilia na busca da única “objetividade possível” na pesquisa social, a presente no exame da realidade empírica de forma sistematicamente controlada (OLIVEIRA, 1988OLIVEIRA, Luciano. “Neutros & neutros.” Humanidades, Brasília, v. 19, 1988, pp. 122-127.: 124). Assim, funciona como forma de garantir a refutabilidade dos resultados obtidos que é específica do discurso científico.

Seguiremos com base nesses marcos metodológicos.

3. Apresentação dos casos

3.1 O caso de Jorge 7 7 No intuito de proteger a privacidade dos envolvidos, todos os nomes e bairros utilizados são ficcionais.Também por essa razão, os números dos processos judiciais foram suprimidos. : "ausência de autodisciplina e senso de responsabilidade”

Selecionamos o caso de Jorge por ser uma explicitação atípica do controle policial sobre determinados arranjos eróticos. No processo em análise, o recluso foi condenado a cinco meses de privação de liberdade sob o regime semiaberto por ato obsceno, tipo previsto pelo artigo 233 do Código Penal.

Desde o princípio, a visualização das informações precárias presentes no site do TJ-PE causou estranhamento. O crime mencionado é punido com detenção de três meses a um ano, caso que o Sistema de Justiça Criminal define como infração de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei 9.099/95), razão pela qual são utilizados meios processuais alternativos (rito sumaríssimo) que, conforme a previsão legal, não devem conduzir à privação de liberdade. Em verdade, delitos submetidos ao referido procedimento podem, inclusive, não significar qualquer processo judicial quando há aplicação das medidas de conciliação ou de transação penal (arts. 74, 75 e 76 da Lei 9.099/95).

Segundo a denúncia, peça inicial do processo penal, numa madrugada em meados de 2012, “a Central de Vídeo Monitoramento da Secretaria de Defesa Social visualizou dois homens mantendo relações sexuais nas proximidades de um banheiro público, local onde as pessoas transitam” localizado no centro do Recife.

Assim, foi feita a abordagem policial na qual foi constatado o fato, tendo o Denunciado conduzido à delegacia, onde foi lavrado o TCO. A materialidade do crime se faz presente através da gravação em CD, que se encontra acostada aos autos, onde se constata a prática de atos libidinosos consistentes na prática de sexo oral e anal.

Associamos esses dados disponíveis com outros obtidos na consulta dos autos processuais, como o inquérito policial, forma pela qual observamos os caminhos da criminalização. Na verdade, o ato sexual interrompido pela intervenção policial era entre Jorge, um homem preto, identificado pela SERES como bissexual8 8 A título de elucidação, é relevante demarcar que essa informação foi colhida na lista de detentos LGBT da SERES. Não havia qualquer informação sobre orientação sexual no processo judicial. , morador de Tiradentes (Olinda/PE), garçom, cuja idade era de 23 (vinte e três) anos, que estava se prostituindo; com João Paulo, de raça não indicada, morador do bairro de classe média de Sarça (Recife/PE), professor, cuja idade era de 58 (cinquenta e oito) anos.

De certa forma, esse caso confirma o padrão descrito pelas ciências sociais sobre as dinâmicas da prostituição masculina na cidade. Néstor Perlongher (1987PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.) identifica a consolidação de dois personagens, com alguma variabilidade: a bicha, tendenciosamente mais velha, de classe média ou alta, branca e lida como efeminada; e o michê, que é contratado justamente por representar uma espécie de oposição às características descritas. Eles têm maior probabilidade de serem adolescentes ou jovens, pobres, morarem na periferia, serem negros, migrantes nordestinos (o campo de Perlongher é em São Paulo) e, o que é mais fundamental, performarem uma masculinidade heteronormativa, de modo a impor os traços da agressividade, da inflexibilidade com o papel sexual exercido e da homofobia.

Embora os autos processuais não ofereçam elementos para precisar que tipo de performance cada um dos envolvidos representava, os dados disponíveis sobre classe (a partir dos bairros em que residem9 9 Segundo dados de 2010 do IBGE, predominam, no bairro corespondente a Sarça, domicílios com rendimento nominal mensal domiciliar per capita superior a cinco salários mínimos. No equivalente a Tiradentes, por outro lado, prevalece a faixa entre meio e um salário mínimo (http://www.bde.pe.gov.br/visualizacao/Visualizacao_formato2.aspx?CodInformacao=1196&Cod=3). e da profissão) e idade parecem confirmar a dicotomia descrita acima.

Nesse sentido, não nos surpreende que o sistema penal também tenha imposto tratamento diametralmente oposto: João Paulo recebeu o tratamento legal e foi conduzido à Audiência de Transação Penal (uma versão específica da Audiência Preliminar típica dos juizados recifenses10 10 Acontece que o rito previsto pela lei 9.099/95 - que disciplina o rito penal sumaríssimo - não prevê uma Audiência de Transação Penal, mas sim uma Audiência Preliminar (art. 72). Nos juizados especiais criminais recifenses, esse ato processual passou a ser dividido em dois momentos: uma Audiência de Conciliação presidida pelo conciliador judicial, em que estão presentes o autor do fato e a vítima, na qual é buscada uma solução do caso pela composição civil dos danos; e, no insucesso da primeira alternativa ou para os crimes que não têm ofendidos, uma Audiência de Transação Penal presidida pelo representante do Ministério Público, em que também será buscada uma solução consensual para o fato. ), na qual ele aceitou a proposta de doação do valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) divididos em cinco parcelas a serem pagos em favor de determinada creche. O Ministério Público também havia pedido o comparecimento ao setor psicossocial do Juizado Criminal, o que não se concretizou.

No caso de Jorge, a intimação para a audiência de transação penal ocorreu quando ele já havia sido preso, em virtude de outro processo criminal, de modo que não obteve sucesso. Posteriormente, foi intimado diretamente para comparecer à audiência de instrução e julgamento, oportunidade na qual compareceu. Embora não haja menção clara, inferimos, a partir dos demais processos, que a ausência de intimação no próprio presídio para propor a transação tenha acontecido pela configuração de uma das hipóteses que inviabilizam a aplicação do instituto, qual seja a condenação do autor à pena privativa de liberdade em outra ação (art. 76, § 2º, inc. I da Lei 9.099/95).

Com isso, o processo foi instaurado, os atos processuais usuais ocorreram e, ao fim, veio a sentença condenatória, que demarca com bastante clareza os percursos ideológicos da decisão judicial que norteiam a privação de liberdade do então acusado.

Em primeiro lugar, a fundamentação adota uma concordância com a necessidade de punição daquela relação sexual. Esse elemento é revelado a partir do momento em que o juiz afirma a existência de uma “dívida social do condenado com a Justiça e a Sociedade”.

Além disso, no discurso do juiz, essa dívida precisaria ser paga através do sistema penitenciário. Embora a pena relativamente baixa possibilitasse a substituição da privação de liberdade pela restrição de direitos ou a imposição do regime aberto (medidas alternativas ao cárcere) de acordo com os requisitos objetivos, o magistrado recusa tais opções. Para o juiz, ele não apresenta “a autodisciplina e o senso de responsabilidade” que seriam necessários, de modo que a única opção viável é a prisão.

Com isso, evidencia-se que o horizonte do cárcere não representa uma aplicação meramente acrítica da dogmática penal ou um mero exercício de implementação daquilo que impõe a norma jurídica, já que o próprio Sistema de Justiça Criminal autorizava outras formas de sanção. Mesmo sob um olhar estritamente positivista, a punição aplicada concretamente é discrepante com o tempo da pena imposto, o que indica a intervenção de outras formas de prescrição social na decisão estudada.

Para entender esse episódio de criminalização, é importante ressaltar como Jorge era explicitamente selecionável. Além da evidência da sexualidade subterrânea, a sentença descreve seu consumo de crack, as outras ocasiões em que foi criminalizado e sua soropositividade. Nesse contexto, cria-se um encontro de vulnerabilidades que não pode ser explicado pela atuação de uma única identidade ou categoria, mas a partir de uma série de reciprocidades constitutivas intrincadas umas através das outras que viabilizam a criminalização, algo semelhante ao descrito por Roberto Efrem Filho (2017).

Com isso, através da decisão judicial descrita, constituiu-se a criminalização do banheirão, uma prática bastante estigmatizada dentro da própria lógica do sexo entre homens.

O tipo imputado, de ato obsceno, está elencado como uma ofensa à dignidade sexual, reunido junto ao estupro e às demais violações da agência sexual. Contudo, o caso em estudo apresenta um sentido oposto, em que a própria voluntariedade sobre o corpo é objeto de criminalização. Nesse sentido, visualizamos certa contradição do Código Penal, que, sob o pretexto de proteger o mesmo bem jurídico (dignidade sexual), é capaz de impor destinos absolutamente opostos para a autonomia sexual.

É nos processos de criminalização primário e secundário que o Sistema de Justiça Criminal gerencia os ilegalismos, organizando qual sexualidade será concretamente punida. Nesse processo, são construídos reciprocamente o ofensor e o ofendido da dogmática penal, constituindo os personagens amplamente discutidos pela literatura criminológica do delinquente sexual (WACQUANT, 2003WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2003.: 123-146), da mulher honesta (ANDRADE, 2005ANDRADE, Vera Regina Pereira de. “A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher.” Sequência, Florianópolis, v. 26, 2005, pp. 71-102.: 89-94) e do estuprador negro (DAVIS, 2016DAVIS, Angela Y. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.: 173).

Assim, a fruição sexual consensual entre dois homens adultos no espaço público é capaz de impulsionar as agências punitivas, que, por sua vez, destinam caminhos diametralmente opostos para o michê e o cliente; o reincidente e o sem antecedentes criminais; o garçom e o professor. Além disso, o rompimento com a dignidade sexual representa algum tipo de desvalor grave o suficiente para que apenas a prisão represente uma represália compatível, rejeitando completamente as alternativas penais autorizadas pelos requisitos objetivos.

A atuação de elementos importantes de sexualidade na decisão judicial é especialmente elucidativa quando a rejeição das alternativas ao cárcere é fundamentada pela ausência de autodisciplina. Segundo Miskolci (2013MISKOLCI, Richard. O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX. São Paulo: Saraiva, 2013.: 47-48), o processo de estruturação do Brasil enquanto nação/república passou pelo projeto de agenciamento do desejo masculino em direção ao casamento e ao embranquecimento do país. Para isso, era central o desenvolvimento de um autocontrole ou autodomínio, salvando esses homens idealizados como o futuro da nação de três ameaças principais: as doenças venéreas, a masturbação e as relações sexuais entre o mesmo sexo.

Nesse contexto, as elites representadas pelos agentes de Estado e intelectuais no centro dos debates científicos apostaram parte dos incipientes estudos criminológicos e psiquiátricos brasileiros no exame daqueles que falhavam no domínio dos instintos, aproximando examinados negros de uma criminalidade irrecuperável (GREEN, 2000GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.: 194-208). Ao obter resultados discrepantes em termos de raça, os criminólogos reificam determinadas leituras sobre negritude e, implicitamente, também acerca de branquidade, estabelecendo uma dualidade que funciona em termos relacionais. Há, aqui, a produção de um “outro racializado” que silencia sobre as implicações dos brancos nas relações raciais, algo perpetuado no campo criminológico até hoje (PRANDO, 2018PRANDO, Camila Cardoso de Mello. “A criminologia crítica no Brasil e os estudos sobre branquidade.” Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, 2018, pp. 70-84.).

Analisamos, no caso, a demanda pelo cárcere fundamentada pela ausência de autodisciplina de um homem negro que se relaciona sexualmente com outros homens, mimetizando os debates da política criminal brasileira sobre a necessidade ou não de criminalização dessas relações ou dos psiquiatras que reivindicam a internação compulsória. Em ambos os casos, a liberdade dessas pessoas é negociada pelas instituições do Estado a partir de alguma notícia de comportamento homoerótico, lida como uma resistência ou incapacidade de domínio dos instintos.

No caso de Jorge, encontramos a conexão mais explícita entre as práticas eróticas e a criminalização, uma vez que a relação sexual é o ato típico propriamente dito, a agência sexual é o crime. Além disso, o cárcere é a consequência penal lida como compatível com a ausência de autodisciplina apresentada, o que remonta às demandas de agenciamento do desejo masculino que produzem discursos distintos quanto a necessidade de intervenção penal em processos construídos na intersecção entre matrizes de dominação.

3.2 O caso de Roberto: “um conturbado relacionamento homoafetivo”

O segundo caso trata do tipo penal de homicídio qualificado, constituindo um desafio, sobretudo quando percebemos que a vida social rejeita as posições idealizadas de opressor e oprimido.

Parte substancial das tensões está em apresentarmos um homicídio no qual determinada leitura sobre os assassinatos de LGBT poderia encontrar respaldo. Acontece que alguns setores contestam a reivindicação política dessas mortes feita pelos movimentos sociais, associando esses homicídios ao comportamento sexual das vítimas. Evidentemente esta não é a visão adotada neste trabalho, mas também não devem ser ignoradas as reduções de complexidade que a luta por direitos envolve11 11 Roberto Efrem Filho (2016) é preciso ao tratar das tensões produzidas nas disputas de sentido envolvendo, de um lado, a reivindicação do caráter homofóbico dos homicídios cometidos contra LGBT pelos movimentos sociais, sobretudo através da explicitação da brutalidade; e, do outro, discursos oficiais que associam as mortes a “estéticas sexuais específicas” em que a vítima se expôs ao risco, seja o homossexual que contrata um michê ou a travesti que se prostitui. . Trata-se, portanto, da dificuldade de dar um outro tipo de interpretação para os casos em que sexo e morte se encontram.

Por outro lado, as impressões contraditórias sobre este caso significaram um momento especialmente crítico das análises e de seus limites, de forma que retirá-lo seria oferecermos uma versão amputada do que os processos judiciais nos apresentaram. Há, aqui, o desafio de registrar o impacto da ida ao campo como um esforço de explicitarmos os percursos da pesquisa sem comprometer a objetividade dos dados trabalhados.

De qualquer forma, diante dessas dificuldades, é relevante elucidar que o objetivo deste tópico é tentarmos explicar como a sexualidade atravessa a recepção do Judiciário sobre os fatos descritos. A nossa preocupação não é com o ocorrido em si - mesmo porque não é possível precisá-lo (CORRÊA, 1983CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983.: 26) - mas com a apreensão dessas narrativas que mobilizam o Estado, evidenciando eventuais padrões e estereótipos compatíveis com aqueles percebidos pelos acúmulos dos estudos de gênero.

Para tal, o ato processual que mais ofereceu elementos que viabilizassem certa sofisticação na análise do caso foi a audiência de instrução e julgamento, o que pode refletir certas especificidades do procedimento do tribunal do júri, em que a sentença de pronúncia deve ser sintética para não influenciar o Conselho de Sentença e a condenatória não exige fundamentação dos jurados.

Não ignoramos a centralidade das pessoas envolvidas neste caso, mas ratificamos a crença no papel do Sistema de Justiça Criminal, uma vez que traduzir as falas para os autos já é um processo mediado por uma série de comportamentos institucionais. Além disso, inferimos que a própria assunção dos papéis de testemunha ou acusado orienta as manifestações para a linguagem do Judiciário, sobretudo sob a influência do complexo contagiante de discursos que articulam medo e crime, o que Teresa Caldeira chamou de fala do crime. (2011CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011.: 27)

Cabe, agora, relatarmos os fatos conforme os depoimentos prestados pelas testemunhas e o interrogatório colhidos na audiência de instrução e julgamento, qualificado pelo juiz como um “conturbado relacionamento homoafetivo”. Roberto, desempregado, alcoólatra e usuário de crack, e João, ator e funcionário público municipal, mantiveram um relacionamento ao longo de algum período entre sete e dez anos12 12 Os depoimentos são contraditórios sobre essa informação, por isso optou-se por registrar a variação entre os períodos de tempo relatados. , residindo na mesma casa junto ao sobrinho de João, que ele criava. Após as diversas traições do réu, decidiram que ambos poderiam ter relações sexuais com outras pessoas, “pois a vítima gostava muito do acusado e queria manter o relacionamento”.

Ao longo da relação, Roberto agredia João verbalmente (outra testemunha alega também existirem agressões físicas) em brigas por ciúmes ou causadas pelo alcoolismo, sem que a vítima revidasse. Em consequência desses conflitos, João foi morar com um ex-companheiro, Adilson, e o novo namorado desse então amigo, Luis (ambas testemunhas de acusação). Há, inclusive, registro de que a vítima teria dito à família que desejava se separar, mas tinha receio pelas ameaças do acusado.

Ao longo desse tempo, João, que “era portador de HIV mas sempre usava preservativo”, frequentava a região do Manguinhos todos os dias, “conhecido ponto de prostituição”, mas não se relacionava com outros homens mediante pagamento. Roberto também ia ao local, contudo em menor frequência. No meio da narrativa, sem nenhuma conexão clara, é exposto que “o acusado dizia publicamente que havia adquirido HIV com a vítima, ao ter relações sem usar preservativo, mesmo sabendo que ela era portadora do vírus, porque queria dar uma prova de amor para a vítima”.

Adilson já havia pedido para que o amigo deixasse de frequentar o local, pois havia ocorrido outros assassinatos lá anteriormente. Ele normalmente ia às 18:30h e voltava para casa a tempo de assistir à novela Avenida Brasil. No dia dos fatos, João não voltou para casa, de modo que a testemunha foi procurá-lo pelas proximidades e, após ouvir boatos sobre um corpo encontrado em Manguinhos, foi ao local e encontrou o amigo morto. Ao ser avisado do óbito, Roberto não demonstrou maiores emoções e, ao contrário da família e dos amigos da vítima, comeu e dormiu normalmente naquele dia.

Inicialmente, Adilson achava que a autoria do crime era de uma gangue que estava matando homossexuais na região, mas, após as suspeitas se virarem sobre Roberto, o acusado confessou o crime na delegacia, alegando ciúmes. A Defensoria Pública até questiona as testemunhas sobre eventual participação do acusado na suposta gangue, mas todas negam.

Roberto afirma que encontrou João nos Manguinhos naquela noite, brigaram e trocaram agressões (depois o acusado afirma que apenas ele agrediu), acreditando que matou o companheiro porque, quando saiu, a vítima estava desmaiada. O motivo não fica claro, mas varia entre os ciúmes e a insistência em pedir dinheiro ao companheiro. Conforme esperado, o acusado foi condenado.

Em meio a essas narrativas confusas, é bastante visível o processo de construção retórica da vítima, que trabalhava, não usava drogas ou álcool, era pacífico, criava o sobrinho e ajudava a irmã; e do acusado, desempregado, sustentado pelo companheiro, violento, usuário de álcool e drogas ilícitas. É, inclusive, por causa do réu que o relacionamento passou a ser aberto. Embora ambos sejam atravessados pelo complexo de relações sociais que vêm com os relacionamentos públicos entre homens, as leituras parecem ser contrárias em grande medida. Ao passo que João é narrativamente construído como trabalhador e de família, Roberto é o inverso, irresponsável e drogado, enfatizando a dualidade dicotômica forjada pelo “fazer jurídico” entre sujeito ativo e sujeito passivo que também é construída em gênero e sexualidade, como antecipou Roberto Efrem Filho (2018: 1881).

Esse processo pode ser lido como parte das negociações que constroem em especial o processo do Tribunal do Júri, em que a correspondência dos envolvidos com determinadas expectativas sociais generificadas assumem o protagonismo das estórias. Assim, o fato torna-se menos importante do que as pessoas que o compõem.

Ao mesmo tempo que essas categorias podem ser mobilizadas para distinguir com clareza quem merece ser punido e quem merece ser protegido, o comportamento sexual de ambos está o tempo todo em jogo na estória como ela foi contada. O cenário é o lugar da pegação, a prostituição fica como uma possibilidade em suspenso, o relacionamento é aberto e, o que chama mais atenção, o HIV é contraído como prova de amor.

Nossa intenção é visualizar como os elementos acima apresentados não têm conexão concreta com a ocorrência do fato típico. Para a dogmática penal, pouco importa se o relacionamento entre vítima e acusado autorizava as relações sexuais com outro homem para a consumação do art. 121 do Código Penal. Da mesma forma, o HIV não tem qualquer relação com a produção do resultado morte, sendo ainda menos relevante que João (a vida a ser protegida) use preservativo. Tampouco há uma razão explícita para mencionar a prostituição em Manguinhos.

Por outro lado, se todos esses elementos são penalmente irrelevantes, eles são sim importantes na construção de um enredo. Com esses detalhes, conhecemos mais sobre os personagens e as supostas circunstâncias que conduziram ao clímax desse roteiro, o homicídio. Só que, no caso concreto, os recursos narrativos acionados para construir a estória passam reiteradamente pelos estereótipos da homossexualidade masculina: a voracidade sexual, a instabilidade dos relacionamentos, o HIV. Invariavelmente, o sexo e suas consequências ligam tanto os pontos do caso de João e Roberto como a construção moderna do homossexual.

Em relação aos processos de criminalização das pessoas LGBT, Mogul, Ritchie e Whitlock (2011MOGUL, Joey L; RITCHIE, Andrea J; WHITLOCK, Kay. Queer (in)justice: the crimininalization of LGBT people in the United States. Boston: Beacon Press, 2011.: 23) argumentam que o policiamento e a punição dos LGBT estadunidenses ou pessoas lidas como tal são conduzidos por uma série de narrativas recorrentes e culturalmente enraizadas que as autoras chamam, em tradução livre, de “arquétipos criminais queer”. Nesse sentido, há uma série de presunções sobre os desviantes das normas da heterossexualidade compulsória que influenciam os processos de criminalização, noções usualmente informadas também por imagens de raça, classe e gênero. Para subsidiar essa tese, as autoras trazem uma série de casos que se tornaram paradigmáticos na criminalização de LGBT nos Estados Unidos, com especial enfoque no modo como a mídia articula essas identidades para tratar dos fatos ocorridos e na repercussão dessas narrativas no senso comum.

Embora não necessariamente discutam a verdade dos fatos de que são acusados esses LGBT, as teóricas entendem que o sistema penal parte de uma série de imagens discriminatórias desse grupo para adjetivar o crime que cometem, associando o desvio de comportamento sexual ao desvio penal. É assim que as protagonistas de casos com grande repercussão midiática passam a ser referidas como assassinas lésbicas, por exemplo. Desse modo, os processos de criminalização se baseiam nas mesmas concepções equivocadas que acabam por alimentar, a exemplo da hipersexualidade dos homens gays ou da perigosa instabilidade mental de pessoas trans ou travestis.

Além de identificar alguns arquétipos que se repetem nos casos estudados, as autoras propõem a existência de alguns temas que perpassam todas essas narrativas, unificando-as. Dentre eles, um é especialmente importante para a interpretação do caso em discussão: a ideia de que a violência é uma parte inerente do desejo e da expressão sexual queer.

A partir dessa concepção, é possível reduzir a complexidade dos fatos a uma série de recursos narrativos que conduzem à hipersexualização dos envolvidos ao mesmo tempo que associa essa sexualidade incontrolada à violência. Assim, o local da pegação é, simultaneamente, construído como palco do sexo, da prostituição e dos homicídios13 13 Sobre a dinâmica dos homicídios homo-transfóbicos em Recife/PE, ver Lemos (2017). . Ao mesmo tempo, a instabilidade do casal, a infidelidade, as alternativas eróticas e a violência precisam ser enfatizadas.

Portanto, a narrativa apresentada judicialmente aciona reiteradamente determinadas imagens disponíveis dos homossexuais e seu comportamento sexual, atualizando a associação entre o desejo e a violência. Desse modo, é construída uma narrativa desnecessária para a condenação pela lógica da dogmática penal, mas essencial para a ambientação da morte em um meio tortuoso.

3.3 O caso de Márcio: "droga como moeda de troca para favores sexuais”

Por fim, apresentamos o caso de Márcio, cabeleireiro, identificado como pardo no processo judicial14 14 Sobre a utilização do conceito de pardo, preferimos preservar os dados colhidos nos documentos examinados, mas é imprescindível ratificar a crítica que os teóricos negros têm construído acerca do termo. Ocorre que a propagação dessa identificação simboliza certa ideologia de embranquecimento da população brasileira, ocorrida inclusive pela construção ideológica do pardo como alternativa à afirmação da negritude nas dimensões burocráticas do Estado. Nesse sentido, utilizar pardo ao invés de preto nas pesquisas demográficas ou processos judiciais demonstra uma operação de minimizar a dimensão da população negra brasileira e obstruir as construções políticas de resistência a partir da afirmação do racismo estrutural. Sobre a ideologia de branqueamento, é central o estudo de Maria Aparecida Silva Bento (2002). e residente no Pina (Recife-PE), responsabilizado em duas oportunidades pelo tráfico de drogas quando já estava preso, sendo que a orientação sexual surge retoricamente nos caminhos adotados pelas agências punitivas de modo ainda mais evidente na segunda condenação.

Inicialmente preso por roubo, a privação de liberdade significou novas experiências de criminalização. Em um primeiro caso, conforme detalha o processo judicial, ele estava transitando pelas dependências do presídio com uma garrafa de café na mão, o que suscitou a desconfiança dos agentes penitenciários. Após descoberta a maconha, ele afirma que havia comprado a droga apenas com intuito de uso, juntamente com o namorado e um amigo.

Mais tarde, outro detento explica que ele estava sofrendo ameaças de morte “por ser homossexual e ter trabalhado prestando informações para os agentes penitenciários no intuito de coibir ilícitos dentro desta Unidade Prisional”, suscitando um pedido de transferência para outra unidade prisional. Pela ordem em que os atos constam no processo de execução penal, não fica clara a conexão desse depoimento com o episódio em que Márcio foi encontrado com a maconha. Mesmo assim, foi condenado pelo crime tipificado no art. 33 da Lei de Drogas.

Posteriormente, novos fatos são narrados: após ser ameaçado de morte, Márcio, que já era conhecido como caboeta15 15 Consta, nos autos examinados, o registro de que ele colaborava com os agentes penitenciários, razão pela qual era conhecido como alguém pouco confiável por vazar informações que não deveriam ser reveladas, algo que é conhecido no jargão local como caboeta. pede aos agentes penitenciários que retirem seus objetos pessoais da cela onde estava. Contudo, ao chegarem no local, eles encontram nove pedras de crack embaixo do micro-ondas do detento. Acusado desses fatos, Márcio alegou que a droga provavelmente havia sido plantada por algum dos detentos, tendo em vista que seria completamente ilógico pedir a ajuda dos agentes caso ele estivesse escondendo algo ilícito. Essa fraude seria especialmente fácil por imputar a posse de drogas para alguém que já havia sido preso por tráfico.

Ao prestarem depoimentos no processo disciplinar instaurado em virtude do crack encontrado, os agentes penitenciários suscitam versões distintas para explicar a incoerência apontada por Márcio. Um deles explica que, diante de uma série de tumultos, decidiu-se retirar os bens de Márcio do local, oportunidade em que o apenado foi bastante enfático sobre os cuidados necessários com o micro-ondas. Afirma também que a cela estava fechada a chave, inviabilizando a entrada de outros detentos.

O outro agente penitenciário constrói um outro tipo de narrativa tentando organizar os fatos:

QUE, no entanto, pelo fato dele ser homossexual, ele recebe outros reeducandos, parceiros, no local; QUE, se o entorpecente não é do autuado, existe a possibilidade de algum desses frequentadores ter deixado a droga na cela dele; QUE também existe a possibilidade dele usar a droga como moeda de troca por favores sexuais.

Ao final, o processo administrativo decidiu pela ocorrência de fato típico, razão pela qual Márcio foi condenado por falta de natureza grave, sendo imputados vinte e cinco dias de isolamento. É importante salientar que a falta grave significa o mau comportamento do apenado, comprometendo a progressão da pena. Ademais, o processo foi encaminhado ao Ministério Público e à Vara de Execuções Penais, sendo que não havia sido apresentada denúncia até o momento da última consulta dos autos, talvez pela fragilidade dos fatos imputados.

Mais uma vez, ratifica-se que a preocupação não está em resgatar os fatos conforme realmente ocorreram, mas visualizar as estratégias dos agentes do Estado que constroem o sistema punitivo para dar um sentido coeso à narrativa. Esses depoimentos podem apontar alguns caminhos importantes sobre os encontros entre dissidências e criminalização.

Inicialmente, é inevitável refletir sobre como o funcionamento do sistema punitivo serve para a perpetuação da prisão de Márcio. Afinal, após ser preso, ele é novamente responsabilizado por dois novos crimes, impondo o alongamento da privação de liberdade. É essencial, portanto, pensar como parecem funcionar determinadas estratégias de reintrodução daqueles que já passaram pelo cárcere, o que é bastante intensificado pelas consequências penais da reincidência.

Assim como são comuns narrativas de criminalização por tráfico de drogas baseadas em narrativas inverossímeis que viabilizam flagrantes forjados (ARAÚJO; MELLO, 2019ARAÚJO, Higor Alexandre Alves de; MELLO, Marilia Montenegro Pessoa de. “Presunção de culpa: o Tribunal de Justiça de Pernambuco e o flagrante forjado.” Direito Público, Brasília, v. 16, 2019, pp. 133-155.), também não parece coerente imaginar que Márcio iria requisitar a ajuda dos agentes penitenciários sabendo do crack guardado. Seja ou não verdade, o que nos interessa, aqui, é que essa aparente contradição impôs às testemunhas a necessidade de conferir algum sentido à confusão.

Para isso, a primeira testemunha usou os argumentos de que a cela estava fechada e de que havia percebido um cuidado exagerado com o eletrodoméstico. A segunda, por outro lado, apostou em um tipo de estratégia que está alicerçada em determinadas imagens de Márcio, o homossexual. Identificada a orientação sexual dele, as visitas de eventuais parceiros afetivos ou sexuais tornam-se alvo de suspeitas, mesmo não sendo apontados elementos concretos de que esses encontros acontecessem ou de como estão associados às pedras de crack encontradas. Além disso, a prostituição, assim como no caso apresentado anteriormente, fica em suspenso, sendo suscitada mesmo sem necessariamente existir indícios de que ela teria qualquer conexão com o caso.

É possível que esse tipo de discurso esteja intimamente associado a percepções específicas sobre as relações produzidas na privação de liberdade. Ana Flauzina (2016FLAUZINA, A. L. P. A medida da dor: politizando o sofrimento negro. In: I SEMINÁRIO INTERNACIONAL: REFLETINDO A DÉCADA INTERNACIONAL DOS AFRODESCENDENTES (ONU. 2015-2024), 2016. Brasília. Anais. Brasília: Brado Negro, 2016, pp.63-75.: 67-68) visualiza como “o sentido da pena que tortura os corpos é profundamente dependente do simbolismo que castra os homens negros, imputando-lhes o horizonte da homossexualidade como penitência.”

Em um primeiro momento, o surgimento de relacionamentos entre homens em espaços organizados de forma binária poderia ser interpretado através da adaptabilidade das práticas eróticas e da imprecisão das identidades baseadas nelas. Contudo, as imagens propostas para o cárcere baseiam-se na identificação do homoerotismo como forma de punição, produzindo relações sob desconfiança, desprestigiadas (MORAIS; MELLO; AMAZONAS, 2018MORAIS, Neon Bruno Doering; MELLO, Marilia Montenegro Pessoa de; AMAZONAS, Maria Cristina Lopes de Almeida. “Direito e população LGBT em cárcere: uma análise a partir da experiência pernambucana do Complexo do Curado.” Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 145, 2018, pp. 241-280.: 246-247). Assim, eventuais encontros podem ser facilmente lidos como movimentos estratégicos cujo objetivo real está em ganhos patrimoniais (hipótese da droga como meio de pagamento) ou artifício para o cometimento de um crime (hipótese da droga escondida por um dos “frequentadores”).

Na linguagem truncada em que os testemunhos são usualmente transcritos para os autos, a explicação ofertada começa designando determinado espaço que orienta a versão especulada dos fatos. “Pelo fato dele ser homossexual” inicia a suposição do porquê ele havia requisitado a ajuda dos agentes penitenciários, oferecendo possibilidades diretamente relacionadas a essa homossexualidade, correspondendo a experiências sexuais facilmente associadas com algum tipo de atividade criminosa ou com a prostituição.

Dessa maneira, visualizamos o papel da sexualidade enquanto uma categoria importante para viabilizar essa prisão. Ao decidir pela condenação baseada exclusivamente nos depoimentos testemunhais, o Estado legitima a mobilização do comportamento sexual como um argumento apto a deslegitimar a versão dos fatos apresentada pelo apenado e conferir coerência a um relato que parecia inverossímil.

4. Notas conclusivas

Ao longo deste trabalho, foram apresentados três casos que, sob o ponto de vista da dogmática penal, apresentam pouco em comum pela diversidade de crimes: contra a dignidade sexual, contra a vida e a Lei de Entorpecentes. Mesmo sob um olhar sociológico, as diferenças são visíveis, uma vez que os casos podem ser examinados como conflitos do espaço urbano, da violência doméstica e da política de drogas.

Contudo, enquanto narrativas que são, os autos encontram semelhanças nos personagens do homossexual negro e no enredo, que, invariavelmente, aposta no comportamento sexual para dar sentido, coerência ou credibilidade às histórias relatadas. Nesse contexto, os processos judiciais são lidos como narrativas de criminalização em que as práticas sexuais e seus correlatos são suscitados enquanto recursos argumentativos aptos a fundamentar a responsabilidade penal ou o recurso ao cárcere.

Indiscutivelmente, a construção judicial desses casos passa por elementos bastante distintos, mas não isoladamente. Aqui, buscamos algo semelhante a Roberto Efrem Filho (2017: 14): tanto no caso estudado pelo pesquisador quanto nos processos apresentados, não seria suficiente que falássemos apenas em crime ou exclusivamente em sexualidade, uma vez que responder à complexidade envolvida demanda uma análise capaz de observar as reciprocidades constitutivas entre essas relações sociais, percebendo que elas são construídas umas através das outras.

O objetivo do presente artigo é não cair nas armadilhas fáceis de identificar a criminalização com sexualidade de forma unidimensional, minimizando o papel de outras categorias nas agências punitivas, mesmo porque a ênfase que os dados quantitativos deram à raça não permitiria essa ingenuidade. Por outro lado, essa percepção também impõe certo desafio de uma interpretação capaz de perceber o que há de comum entre os casos estudados e qual o papel que a sexualidade exerce.

Dessa forma, não consideramos que a análise dos processos judiciais tenha conduzido a uma leitura que coloca o gênero ou a sexualidade no centro das relações sociais que constituem o crime, ao menos tomando como método o exame do conteúdo produzido pelas próprias agências punitivas. Certamente o “fazer jurídico” é generificado, mas talvez isso ocorra de uma forma mais complexa e distante das categorias usualmente mobilizadas pelos investigadores do campo, de modo que as ferramentas adotadas neste trabalho não seriam capazes de apontar satisfatoriamente.

Assim, é possível que a maioria desses homens gays ou bissexuais, mulheres trans e travestis não sejam necessariamente punidos a partir de argumentos que explicitem essas características. Desse modo, bastaria o repertório usual de um sistema de justiça no qual, como alerta Roberto Efrem Filho (2018), gênero e sexualidade estão implícitos nessa “forma fabular do ‘fazer jurídico’” (EFREM FILHO, 2018______. “Um Paraíso de Homicidas, Estupradores, Corruptos”: sexualidade e gênero no julgamento do Habeas Corpus de Lula no STF. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, 2018, pp. 1871-1896.: 1886), atravessados em raça, classe, geração e território mesmo nos casos em que teoricamente não lida com mulheres ou pessoas LGBT, constituindo, por exemplo, a própria ideia de réu (EFREM FILHO, 2018: 1884).

Entretanto, através desses três casos concretos, foi possível inferir um pouco sobre como a sexualidade perpassa de modo bastante explícito determinadas experiências de criminalização. Acontece que o Judiciário parece elaborar narrativas em que o desejo e as práticas sexuais desses homossexuais são constantemente ligados ao crime: no primeiro caso, o banheirão é o ato típico; no segundo, o local da pegação é descrito como o palco de sexo, doenças sexualmente transmissíveis, traição, prostituição e homicídios; no último, a droga encontrada pode ser de um parceiro sexual de Márcio ou mesmo um meio de pagamento pelo sexo em si. Invariavelmente, o Judiciário associa essa atividade sexual real ou pressuposta desses homens com as condutas típicas que os casos apresentam, ainda que a conexão com os fatos imputados seja pouco evidente.

Os discursos do Estado reproduzidos nos processos judiciais indicam uma reprovação de determinadas experiências sexuais. Mais do que as categorias de orientação sexual e identidade de gênero adotadas pelos movimentos sociais e pela academia, parecem ser eloquentes determinados arranjos sexuais com uma relação marginal dentro da própria lógica dos encontros sexuais entre homens. Assim, mais frequentes que as menções objetivas à homossexualidade são as reações ao banheirão, à pegação, ao crack, à prostituição e ao HIV. De diferentes formas, todos esses marcadores estão ligados a discursos discriminatórios, produzem vulnerabilidades e funcionam como dispositivos de controle.

Essas referências preferenciais a determinados arranjos eróticos em detrimento de categorias identitárias podem informar um pouco sobre o que Gayle Rubin chamou de valoração hierárquica dos atos sexuais (1998______. “Thinking sex: notes for a radical theory of politics os sexuality.” In: NARDI, Peter M; SCHNEIDER, Beth E. (Org.). Social perspectives in lesbian and gay studies: a reader. Nova York: Routledge, 1998, pp. 100-133.: 151). Em Thinking Sex, Rubin reivindica atenção analítica às dimensões políticas da vida erótica, razão pela qual considera pertinente o desenvolvimento de um campo específico de estudos para o desejo erótico (a sexualidade), distinto daquilo que se convencionou chamar de “gênero”. Há, aqui, atualização do que chamou anteriormente de “sistema sexo-gênero” (RUBIN, 1975RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on the “political economy” of sex. In: REITER, Rayna R. (Org.). Toward an anthropology of women. Nova York/Londres: Monthly Review Press, 1975, pp. 157-210.) em um esforço de aperfeiçoar a antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, através da ênfase na centralidade do tráfico de mulheres para a formação do parentesco.

Segundo Rubin (1998______. “Thinking sex: notes for a radical theory of politics os sexuality.” In: NARDI, Peter M; SCHNEIDER, Beth E. (Org.). Social perspectives in lesbian and gay studies: a reader. Nova York: Routledge, 1998, pp. 100-133.), os “pânicos morais” trazem determinadas comunidades vulneráveis com comportamento erótico específico ao centro do debate público, o que legitima a organização estatal da vida erótica como um todo. Contudo, os impactos são desigualmente distribuídos de acordo com a localização nesses modos hierárquicos de regulação sexual, o que impõe a determinados sujeitos uma série de estigmas e sanções de diversas ordens, bem como de modos variados. Há, aqui, uma “polícia dos vícios”16 16 Tradução livre do inglês vice police. que se encarrega de gerir uma série de costumes (consumo de drogas ilícitas e jogos de azar, por exemplo), especialmente no espaço público, inclusive a fruição sexual.

Nesses termos, é possível que relacionamentos monogâmicos entre homens não demandem o tipo de intervenção repressiva observada nos casos apresentados, justamente por não significar um tensionamento igualmente impactante dos modos de governo das sexualidades.

Nesse contexto, a linguagem do judiciário sobre os personagens dessas narrativas varia entre o dito e o não dito, parafraseando Helena Castro (2015CASTRO, Helena Rocha Coutinho de. O dito pelo não dito: uma análise da criminalização secundária das traficantes na cidade do Recife. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2015.​): se, em um caso, a categoria homossexual é mobilizada, nos outros dois (e, via de regra, no conjunto de processos analisados), a orientação sexual em si é pouco mencionada, mas bastante representada implicitamente pelos estereótipos que acompanham as homens que se relacionam com homens.

Para interpretar esse empasse, consideramos relevante a contribuição de Mariza Corrêa (1983CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983.). A autora fala na elaboração de fábulas pelos manipuladores técnicos, como chama os atores jurídicos. Nessas fábulas, o ato inicial de violação da lei é transformado de acordo com decisões dos envolvidos sobre o que deve ser registrado ou não no processo, seleção gerida por constrangimentos institucionais próprios do aparato repressivo (Corrêa, 1983: 23). Mais tarde, referenciando Vladimir Propp, Corrêa (1983: 33), salienta que a fábula “atrai para o seu mundo apenas os elementos que correspondem às formas de sua construção”.

Para Corrêa (1983CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983.: 24), os fatos ou, como ela chama, os atos, rapidamente perdem proeminência para os autos, um produto no qual os acontecimentos efetivamente ocorridos importam apenas em relação à narrativa construída ao longo do processo, uma operação mediada pelas regras jurídicas (escritas) e sociais (não escritas) que mobilizam os posicionamentos dos atores envolvidos. Nesse sentido, informar ou não determinado ocorrido, característica ou hábito do acusado pode refletir a produção dos personagens necessários para preencher as linhas de uma fábula que, embora já escrita e conhecida, precisa ser repetida e adaptada para aquilo que foi apresentado nos autos.

A inserção de descrições, fatos ou mesmo especulações sobre arranjos eróticos pode servir para adjetivar esses acusados sem necessariamente evocar identidades, tendo em vista os limites contextuais em que a linguagem do judiciário é produzida. Essa dinâmica também está presente no não dito, tendo em vista os outros elementos dos atos que não ingressam nos autos por não colaborarem com a fábula unidimensional que é construída.

As narrativas propostas e legitimadas pelo Estado cristalizam determinado arquétipo dos homens que se relacionam com outros homens: domínio dos instintos, ausência de autocontrole, relacionamentos tortuosos e, o que é central neste trabalho, certa identificação dos desejos e comportamentos com a violência e o crime. É certo que são padrões também imbricados com as relações raciais.

Visualizar esses caracteres oferece pistas do modo como a observação do Sistema de Justiça Criminal sobre os casos está informada por critérios raciais, uma vez que as mesmas características compõem o vocabulário associado à população negra. Acontece que, segundo Patricia Hill Collins (2004COLLINS, Patricia Hill. Black sexual politics: african americans, gender and the new racism. New York & London: Routledge, 2004.: 97), racismo e heterossexismo convergem justamente por oferecer parâmetros complementares do que seria sexualidade normal e, reciprocamente, o desvio sexual.

A análise mais detalhada dessas três experiências de criminalização possibilita alguma sofisticação dos dados à medida que apresenta um modo específico de incorporar a sexualidade nas agências punitivas. Expor a atividade sexual dissidente (ou meramente especular, como no caso de Márcio) constitui a criação dos personagens e do cenário em que o crime está situado, conferindo algum tipo de inteligibilidade para uma morte violenta ou para uma versão contraditória dos fatos contados pelos agentes de Estado. Isso quando o sexo não é a própria conduta punível. Em consequência, crime e sexo passam a ser atravessados, fazendo com que o delinquente seja generificado ou sexualizado e o homossexual, criminalizado.

5. Referências bibliográficas

  • ANDRADE, Vera Regina Pereira de. “A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher.” Sequência, Florianópolis, v. 26, 2005, pp. 71-102.
  • ARAÚJO, Higor Alexandre Alves de; MELLO, Marilia Montenegro Pessoa de. “Presunção de culpa: o Tribunal de Justiça de Pernambuco e o flagrante forjado.” Direito Público, Brasília, v. 16, 2019, pp. 133-155.
  • BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (Org.). Psicologia social do racismo - estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, pp. 25-58.
  • CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
  • CAPPI, Ricardo. “A ‘teorização fundamentada nos dados’: um método possível na pesquisa empírica em Direito”. In: MACHADO, Maíra (org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017, pp. 391-422.
  • CARVALHO, Gustavo Pires de. Quem somos? Uma análise das condições da população LGBTT a partir do Complexo do Curado, Relatório final de pesquisa no Programa de Iniciação Científica da FACEPE (PIBIC/FACEPE).
  • CASTRO, Helena Rocha Coutinho de. O dito pelo não dito: uma análise da criminalização secundária das traficantes na cidade do Recife. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2015.​
  • COLLINS, Patricia Hill. Black sexual politics: african americans, gender and the new racism. New York & London: Routledge, 2004.
  • CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
  • DAVIS, Angela Y. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • EFREM FILHO, Roberto. “Corpos brutalizados: conflitos e materializações nas mortes de LGBT.” Cad. Pagu. Campinas, v. 46, 2016, pp. 311-340.
  • ______. “Um Paraíso de Homicidas, Estupradores, Corruptos”: sexualidade e gênero no julgamento do Habeas Corpus de Lula no STF. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, 2018, pp. 1871-1896.
  • ______. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese (doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2017.​
  • FLAUZINA, A. L. P. A medida da dor: politizando o sofrimento negro. In: I SEMINÁRIO INTERNACIONAL: REFLETINDO A DÉCADA INTERNACIONAL DOS AFRODESCENDENTES (ONU. 2015-2024), 2016. Brasília. Anais. Brasília: Brado Negro, 2016, pp.63-75.
  • FREITAS, Felipe. GARCIA, Luciana. PIRES, Thula. “Percursos metodológicos para a escuta das vozes do cárcere”. In: FREITAS, F. PIRES, T. (Org.). Vozes do cárcere: ecos da resistência política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018. 147-166.
  • GOVERNO DE PERNAMBUCO. Domicílios particulares permanentes, por classes de rendimento nominal mensal domiciliar per capita, segundo os bairros. Disponível em: <http://www.bde.pe.gov.br/visualizacao/Visualizacao_formato2.aspx?CodInformacao=1196&Cod=3> Acesso em: 10 out. 2019
    » http://www.bde.pe.gov.br/visualizacao/Visualizacao_formato2.aspx?CodInformacao=1196&Cod=3
  • GREEN, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
  • LEMOS, Diego José Sousa. Contando as mortes da violência trans-homofóbica: uma pesquisa sociojurídica dos processos criminais na cidade do Recife e uma análise criminológico-queer da violência letal. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2017.​
  • MACHADO, Maíra. “O estudo de caso na pesquisa em direito” In: MACHADO, Maíra (org.). Pesquisar empiricamente o direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíricos em Direito, 2017, pp. 357-390.
  • MISKOLCI, Richard. O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX. São Paulo: Saraiva, 2013.
  • MOGUL, Joey L; RITCHIE, Andrea J; WHITLOCK, Kay. Queer (in)justice: the crimininalization of LGBT people in the United States. Boston: Beacon Press, 2011.
  • MORAIS, Neon Bruno Doering. GBT e prisões: uma análise criminológico-queer do cárcere pernambucano. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Católica de Pernambuco. Recife. 2018.
  • MORAIS, Neon Bruno Doering; MELLO, Marilia Montenegro Pessoa de; AMAZONAS, Maria Cristina Lopes de Almeida. “Direito e população LGBT em cárcere: uma análise a partir da experiência pernambucana do Complexo do Curado.” Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 145, 2018, pp. 241-280.
  • OLIVEIRA, Luciano. “Neutros & neutros.” Humanidades, Brasília, v. 19, 1988, pp. 122-127.
  • PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
  • PRANDO, Camila Cardoso de Mello. “A criminologia crítica no Brasil e os estudos sobre branquidade.” Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, 2018, pp. 70-84.
  • RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on the “political economy” of sex. In: REITER, Rayna R. (Org.). Toward an anthropology of women. Nova York/Londres: Monthly Review Press, 1975, pp. 157-210.
  • ______. “Thinking sex: notes for a radical theory of politics os sexuality.” In: NARDI, Peter M; SCHNEIDER, Beth E. (Org.). Social perspectives in lesbian and gay studies: a reader. Nova York: Routledge, 1998, pp. 100-133.
  • WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
  • 1
    Este trabalho surge de uma pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco nos anos de 2017/2018 e posteriormente renovada para 2018/2019.
  • 2
    Agradecemos o diálogo com Roberto Efrem Filho e Manuela Abath Valença, que nos estimulou a transformar a pesquisa no presente artigo.
  • 3
    Como Mariza Corrêa (1983CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983.), reconhecemos a impossibilidade de um projeto baseado na análise de processos judiciais recuperar a verdade dos fatos, como pretende o jargão jurídico. No relato que o Sistema de Justiça Criminal faz dos casos, resta apenas um emaranhado de narrativas que representam olhares parciais e situados das relações sociais descritas. Em meio a essas estórias, o olhar do pesquisador é, também, o produto de uma visão específica sobre aquelas relações sociais, igualmente imprestável para apresentar os fatos verídicos. Desse modo, adotar os processos judiciais como fonte consiste em um esforço de compreender o Estado e o sistema penal enquanto instituições, não os fatos discutidos por eles.
  • 4
    Aqui, optou-se por manter a terminologia usada no documento, uma vez que expressa a promessa da ressocialização através da pena.
  • 5
    A lista foi fornecida pela SERES através de parceria com Neon Bruno Doering Morais, que, em sua dissertação de mestrado (2018MORAIS, Neon Bruno Doering; MELLO, Marilia Montenegro Pessoa de; AMAZONAS, Maria Cristina Lopes de Almeida. “Direito e população LGBT em cárcere: uma análise a partir da experiência pernambucana do Complexo do Curado.” Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 145, 2018, pp. 241-280.), analisou as habitações e condições de vida das pessoas GBT no cárcere pernambucano, razão pela qual acessou documentos públicos quantificando a população LGBT nos presídios locais. Acontece que o presente trabalho deriva de uma atuação em rede do Grupo Asa Branca de Criminologia, registrado junto ao CNPq, no qual são investigadas as implicações do Sistema de Justiça Criminal nas relações de gênero e sexualidade. Mais especificamente, foi desenvolvida uma triangulação de dados e análises sobre o encarceramento de pessoas identificadas como LGBT em Pernambuco, desde os padrões percebidos no processo de criminalização até as experiências específicas dessa população no cárcere.
  • 6
    . As menções deste trabalho ao termo homossexual têm menos relação com as preferências eróticas individuais do que com a tentativa de recuperar uma ideia que sintetiza o senso comum compartilhado sobre homens que se relacionam sexual ou afetivamente com outros homens, oferecendo as imagens mais usualmente associadas a eles. Desse modo, a utilização do itálico serve para sinalizar ao leitor que o conceito não é aplicado enquanto categoria explicativa do comportamento sexual, mas enquanto referência a um repertório cultural e registro do vocabulário empregado no próprio campo estudado (ou algumas variações, a exemplo de homoafetivo).
  • 7
    No intuito de proteger a privacidade dos envolvidos, todos os nomes e bairros utilizados são ficcionais.Também por essa razão, os números dos processos judiciais foram suprimidos.
  • 8
    A título de elucidação, é relevante demarcar que essa informação foi colhida na lista de detentos LGBT da SERES. Não havia qualquer informação sobre orientação sexual no processo judicial.
  • 9
    Segundo dados de 2010 do IBGE, predominam, no bairro corespondente a Sarça, domicílios com rendimento nominal mensal domiciliar per capita superior a cinco salários mínimos. No equivalente a Tiradentes, por outro lado, prevalece a faixa entre meio e um salário mínimo (http://www.bde.pe.gov.br/visualizacao/Visualizacao_formato2.aspx?CodInformacao=1196&Cod=3).
  • 10
    Acontece que o rito previsto pela lei 9.099/95 - que disciplina o rito penal sumaríssimo - não prevê uma Audiência de Transação Penal, mas sim uma Audiência Preliminar (art. 72). Nos juizados especiais criminais recifenses, esse ato processual passou a ser dividido em dois momentos: uma Audiência de Conciliação presidida pelo conciliador judicial, em que estão presentes o autor do fato e a vítima, na qual é buscada uma solução do caso pela composição civil dos danos; e, no insucesso da primeira alternativa ou para os crimes que não têm ofendidos, uma Audiência de Transação Penal presidida pelo representante do Ministério Público, em que também será buscada uma solução consensual para o fato.
  • 11
    Roberto Efrem Filho (2016) é preciso ao tratar das tensões produzidas nas disputas de sentido envolvendo, de um lado, a reivindicação do caráter homofóbico dos homicídios cometidos contra LGBT pelos movimentos sociais, sobretudo através da explicitação da brutalidade; e, do outro, discursos oficiais que associam as mortes a “estéticas sexuais específicas” em que a vítima se expôs ao risco, seja o homossexual que contrata um michê ou a travesti que se prostitui.
  • 12
    Os depoimentos são contraditórios sobre essa informação, por isso optou-se por registrar a variação entre os períodos de tempo relatados.
  • 13
    Sobre a dinâmica dos homicídios homo-transfóbicos em Recife/PE, ver Lemos (2017LEMOS, Diego José Sousa. Contando as mortes da violência trans-homofóbica: uma pesquisa sociojurídica dos processos criminais na cidade do Recife e uma análise criminológico-queer da violência letal. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Pernambuco. Recife. 2017.​).
  • 14
    Sobre a utilização do conceito de pardo, preferimos preservar os dados colhidos nos documentos examinados, mas é imprescindível ratificar a crítica que os teóricos negros têm construído acerca do termo. Ocorre que a propagação dessa identificação simboliza certa ideologia de embranquecimento da população brasileira, ocorrida inclusive pela construção ideológica do pardo como alternativa à afirmação da negritude nas dimensões burocráticas do Estado. Nesse sentido, utilizar pardo ao invés de preto nas pesquisas demográficas ou processos judiciais demonstra uma operação de minimizar a dimensão da população negra brasileira e obstruir as construções políticas de resistência a partir da afirmação do racismo estrutural. Sobre a ideologia de branqueamento, é central o estudo de Maria Aparecida Silva Bento (2002BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (Org.). Psicologia social do racismo - estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, pp. 25-58.).
  • 15
    Consta, nos autos examinados, o registro de que ele colaborava com os agentes penitenciários, razão pela qual era conhecido como alguém pouco confiável por vazar informações que não deveriam ser reveladas, algo que é conhecido no jargão local como caboeta.
  • 16
    Tradução livre do inglês vice police.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2020
  • Aceito
    14 Ago 2020
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com