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Azedo Judicial: Discursos e práticas “antirracistas” que aparelham a branquitude

Judicial Sour: “Anti-racist” speeches and practices that equip white supremacy

Resumo

Neste artigo, a partir do estudo de um caso concreto em que se declarou a possibilidade de ocorrência de “racismo reverso”, busca-se refletir - tendo como chave heurística central uma concepção materialista da colonialidade - sobre como o direito e o poder judiciário se inserem nos processos de construção de subalternização e como leis antidiscriminatórias atuam para relegitimar um sistema penal, historicamente racista, em sua totalidade.

Palavras-chave:
Branquitude; Judiciário; Racismo reverso

Abstract

In this article, based on a case study where it has been declared the possibility of “reverse racism”, we aim to reflect - having as a central heuristic key a materialist conception of coloniality - on how law and the judiciary system are inserted in the processes of subalternization construction and how anti-discrimination laws act to re-legitimize a historically racist penal system, in its entirety.

Keywords:
Whiteness; Judiciary; Reverse racism

1. Introdução

Esse texto surgiu a partir de um incômodo: no início de 2020, em uma consulta de rotina à jurisprudência do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, nos deparamos - dentre as sentenças destacadas pelo próprio órgão em seu sítio na internet - com uma decisão na qual o(a) juiz(a) deliberou pela necessidade de apenamento de um homem negro sob o fundamento de que o réu teria agido de forma racista ao se referir à sua vizinha branca como “branquela azeda”. Malgrado o caso se tratasse de uma hipótese de injúria preconceituosa, em sua fundamentação o(a) magistrado(a) declarou: “inegável ser o racismo uma prática de mão dupla”.

Esse artigo é, portanto, uma tentativa de compreender como se pavimenta a estrada que leva ao que chamamos de naturalização do absurdo, potencializado pelo destaque dado ao caso pela própria instituição, que incluiu a sentença entre aquelas que, nos dizeres do TJRJ, podem “oferecer subsídios que auxiliem os consulentes em suas atividades profissionais”.

Metodologicamente, a revisão bibliográfica dos temas foi feita quando já conhecido o caso que será explorado, de modo que a teoria e o estudo empírico estão relacionados desde o início. O estudo do caso nos permitiu instrumentalizar os questionamentos centrais deste artigo quais sejam: como o direito e o judiciário se inserem nos processos de construção de subalternização, como este poder atualiza as estratégias de segregação racial e como o processamento de crimes que discutem discriminações raciais atua para a relegitimação do sistema penal em sua totalidade.

Epistemologicamente, foi mobilizado uma gama diversa de autore(a)s, nem todos póscoloniais em sua essência. Mas a chave heurística deste artigo é o conceito de colonialidade, aqui compreendida como uma “produção específica de subalternidade enraizada na história” (CAHEN, 2018CAHEN, Michel. O que pode ser e o que não pode ser a colonialidade. Uma abordagem “pós-póscolonial” da subalternidade. In: CAHEN, Michel; BRAGA, Ruy (org.). Para além do pós (-)colonial. São Paulo: Alameda, 2018. p. 31-73.).

Partimos da inexorável relação entre os processos de subalternização e o capitalismo hodierno, conforme uma perspectiva materialista da colonialidade revela. Tomamos como pressuposto que, diante da pressão dos movimentos sociais das diferentes identidades políticas, o estrato hegemônico precisou refinar sua lógica de opressão, concedendo espaço (controlado) às demandas que surgiam1 1 Sobre a relação entre Estado e movimentos sociais escreve Alessandra Devuslsky (2016, p.29): “Na medida em que o Estado sequestra a pauta de reivindicações desses movimentos, estabelece-se um processo que ‘disciplina’ o movimento, predeterminando seus limites e métodos”. .

No Brasil, a produção de subalternidades está intimamente relacionada ao mito da democracia racial que seria resultante da miscigenação. O que se evidencia é a tentativa de reduzir o racismo a um problema meramente comportamental, de falha de caráter de um indivíduo ou grupo de indivíduos, em um contínuo apagamento da raça como elemento estruturante das opressões no contexto de relações sociais. Reduzindo-se a raça a uma mera questão identitária, a retórica do direito penal exsurge como instrumento hábil e eficaz para o combate do racismo, nesse ponto reduzido à ideia de preconceito racial.

É possível também observar que, desde a Constituição de 1934, há uma preocupação institucional em retratar o Brasil como uma nação racialmente democrática. Demonstramos então como a interpretação que sinônima racismo e preconceito, apagando a dinâmica relacional e hierárquica de uma raça sobre a outra, pavimenta o caminho para a tese do “racismo reverso” e como o Poder Judiciário se insere nessa engenhosa articulação que instrumentaliza o direito (em especial o direito penal) para manter a hegemonia de uma elite branca.

Nesse sentido, é fundamental refletir sobre a situação conjuntural da magistratura brasileira, desde a sua fundação colonial, na articulação dos interesses imperiais com os aparatos de burocracia do Estado, até as suas apresentações mais atualizadas, com o protagonismo alarmante que vem assumindo na cena política neoconservadora que vivemos. Processos que deixam marcados os contínuos, ou seja, a forma como desde a origem da repartição de poderes do Estado se garante, através de respostas judiciais, os interesses das elites brancas e burguesas, especialmente a partir do maquinário genocida oferecido pelo sistema penal. Assim, é pressuposto e efeito da análise sistêmica do caso estudado implicar a magistratura na manutenção de vantagens e privilégios não nominados, especialmente em processos discursados como oposto - ou seja, como alinhados com a luta antirracista.

Por fim, dissecamos como os argumentos até aqui mobilizados se materializam não apenas na sentença do(a) magistrado(a) mas em todo o caso e como indício de uma racionalidade que se propala institucionalmente, destacando-se a estratégica falta de visão sobre o racismo como uma necessária relação de poder ubiquamente ligada à supremacia branca e da qual o judiciário historicamente é integrante.

2. Formações Nacionais de Alteridade, Direito e a astúcia do Capitalismo

Há um entendimento - senão predominante, bastante difundido no universo além dos círculos acadêmicos - de que o racismo é apenas um problema de ordem intersubjetiva, consequência de uma “falha de caráter” ou de “má-educação” do sujeito racista. Ou seja: estaríamos diante de um problema meramente comportamental, de ordem moral, um tipo de preconceito baseado na raça, de modo que os termos racismo e preconceito racial passam a ser compreendidos como sinônimos.

Esta visão, que tende ao apagamento do aspecto institucional e estrutural do racismo, reduzindo-o à dimensão intersubjetiva, não se dá por acaso: ela atende - desde que o determinismo biológico que informava o racismo até o século XX foi contestado pela medicina mais moderna - aos interesses do capitalismo hodierno e da classe hegemônica. Por isso, para compreender a articulação entre raça, direito e Estado, em toda sua densidade, precisamos olhar para as bases sobre a qual esta relação se estabelece.

É a ação direta do capital2 2 Rejeitamos a leitura reducionista do capitalismo (como um conjunto de leis puramente econômicas) para considerá-lo uma “complexa e articulada ordem social, uma ordem que tem seu núcleo constituído de relações de exploração, dominação e alienação” (ARRUZZA, 2015, p.36) , em sua constante capacidade/necessidade de se reinventar, que nos dá a chave para compreender porque a luta antirracista vem sendo direcionada pelo Estado para “ações contra preconceitos nos comportamentos individuais e na transformação de políticas públicas em compensatórias ou de promoção social” (OLIVEIRA, 2016OLIVEIRA, Dennis de. Dilemas da luta contra o racismo no Brasil. Margem Esquerda, São Paulo, n. 27, p.31-37, out. 2016. Semestral., p.36), desvinculando-a, o quanto possível, das lutas por justiça social. Assim, o racismo – essencial em uma sociedade capitalista3 3 Sobre a relação entre subalternidade e capitalismo, a partir de uma tradição gramsciana, escreve Michael Cahen (2018, p.49): “a existência de formas não capitalistas de exploração – quero dizer: formas de exploração não constitutivas do modo de produção capitalista – foi, ficou e ainda é indispensável à dominação capitalista.” (destaques no original). - passa pelo que o Prof. Silvio Almeida (2019ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 264 p. (Feminismos Plurais)., p.72), em diálogo com o pensamento de Franz Fanon, chama de refinamento: o “incremento das técnicas de exploração econômica é acompanhado de uma evolução das técnicas de violência e opressão, dentre as quais o racismo”. O racismo vulgar é, então, rechaçado, ocultando-se suas determinações econômicas e políticas.

Quando o racismo é reduzido à sua dimensão intersubjetiva, o sujeito racista é visto como causa (e não como efeito) das instituições e estrutura racistas. Esta visão leva à conclusão (equivocada) de que o racismo poderia, eficazmente, ser combatido apenas pela legislação e pela retórica dos direitos humanos (enquanto se deixa intacta a estrutura que é, de fato, sua causa). Entretanto, uma concepção estrutural do racismo demanda compreender que este direito a ter direitos (LEFORD, 1991) não foi e continua não sendo bastante, em especial quando percebemos que uma das formas pelas quais o capitalismo se refaz e se perpetua consiste justamente em absorver as demandas por representação4 4 Não estamos abraçando a tese de que movimentos sociais identitários são necessariamente um entrave à emancipação social, mas sim considerando a astúcia do capitalismo: “[...] o vaciamiento de la política y su reducción a los términos de una pelea distributiva aparentemente basada en el cerramiento de las identidades y en fobias étnicas, con el consecuente abandono de ataques a un objetivo mayor como había sido la lucha contra el capitalismo” (SEGATO, 2007, p.16). das diferentes identidades políticas (FRASER, 2019FRASER, Nancy. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 25-46. Tradução do capítulo por Anselmo da Costa Filho.).

Junto com a materialidade, é a territorialidade das relações sociais que nos permite compreender como a inscrição por mais direitos (fruto de disputas institucionais entre os grupos sociais alijados e o grupo hegemônico) acaba por ser reiteradamente esvaziada em uma sociedade de genealogia racista como a sociedade brasileira, uma vez que o processo histórico de produção das identidades políticas não pode ser universalizado. É dizer: cada Nação desenvolve seu próprio processo de outrificação, produzindo diferenças que foram e continuam sendo funcionais às elites. No Brasil, o mito da democracia racial age reforçando a tese de que o racismo é um desvio comportamental de um indivíduo (ou de um grupo isolado) em uma sociedade miscigenada e que a eventual segregação social dos grupos racializados está ligada à classe, mas não à raça.

Nesse processo – de “formações nacionais de alteridade”5 5 “Las formaciones nacionales de alteridad no son otra cosa que representaciones hegemónicas de nación que producen realidades. Con ellas se enfatiza, por un lado, la relevancia de considerar las idiosincrasias nacionales y el resultado del predominio discursivo de una matriz de nación que no es otra cosa que matriz de alteridades, es decir, de formas de generar otredad, concebida por la imaginación de las elites e incorporada como forma de vida a través de narrativas maestras endosadas y propagadas por el Estado”. (SEGATO, 2007, p.29) – o Estado e o direito desempenham um papel importante na (constante) construção das narrativas essenciais à manutenção da estrutura racista, administrando as tensões em prol de uma propagada “unidade do povo brasileiro”. Assim, hodiernamente, no Brasil, nacionalismo, Estado-mínimo, neoliberalismo, pós-política6 6 A pós-política, personalizada nos governantes que se apresentam como “bons gestores” com decisões “puramente técnicas”, livres de “ideologias de direita ou de esquerda” (por mais ideológicas que sejam suas decisões) não se confunde com a ultrapolitica, verdadeira militarização da política e cujo discurso almeja aniquilar todo pensamento divergente que passa, então, a ser tratado como “inimigo da pátria”. No Brasil contemporâneo, ambos os tipos coexistem e, não raramente, são reivindicados pelos mesmos agentes políticos conforme sua conveniência. e controle da atuação dos movimentos sociais (através, inclusive, do direito) se mesclam para que a hegemonia da elite branca seja sub-repticiamente mantida enquanto, por um lado, se declara a igualdade racial e, por outro lado, o racismo possa seguir alimentando as estruturas capitalistas e sua classe hegemônica. Olhar para a sequência dos textos normativos das Constituições brasileiras nos ajuda a visualizar esse processo que reduz a igualdade a um ideal7 7 A revisão de todo o contexto histórico que cerca a edição destes textos constitucionais extrapola, em muito, os limites do presente artigo. Nosso objetivo é menos o de realizar uma reconstrução histórica das Constituições brasileiras e sim o de evidenciar este hiato entre a igualdade “garantida” desde 1934 e a igualdade substancial e emancipação social concreta. sem, contudo, alçá-la à necessária concretude.

Desde a Constituição da segunda república, notamos esta preocupação, institucionalizada, em se afirmar o Brasil como uma nação em que todos são iguais perante a lei. A breve Constituição Federal de 1934 foi a primeira das constituições brasileiras a se referir expressamente à igualdade racial, declarando a proibição de privilégios por “motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou ideias políticas”. Todavia, ao fazê-lo, também atribuiu à União, aos Estados e aos Municípios, a incumbência de “promover a educação eugênica” (art.138, b da Constituição de 1934), ecoando a forte influência do movimento eugenista-racista brasileiro da primeira metade do século XX8 8 Como um dos principais vetores do eugenismo no período retratado, está o positivismo criminológico, que no Brasil, a partir da difusão do pensamento de Nina Rodrigues, incumbiu-se da implantação ideológica da associação entre crime e pessoas negras no Brasil, equipando o sistema penal da maquinaria sanguinária que o controle penal desde então passou a dispor (PIRES, 2013, p. 34). .

A Constituição Federal outorgada em 1937 - elaborada por Francisco Campos e amplamente apoiada por Plínio Salgado e o movimento integralista brasileiro - retrocedeu à lacônica previsão de que “todos são iguais perante a lei”9 9 Data dessa época a remoção, por empresários, ligados ao movimento eugenista e admiradores confessos do nazismo, de cinquenta meninos negros de um orfanato no Rio de Janeiro para a Fazenda Albertina, de Oswaldo Rocha Miranda, em Campina de Monte Alegre (São Paulo) para dez anos de escravidão e total isolamento, conforme abordado no documentário MENINO 23 (2016). Tal fato é bastante ilustrativo de um Brasil que ecoava o incipiente movimento nazifascista europeu e seus ideais de supremacia racial. . A Constituição do Estado-Novo (1946), por sua vez, ao se referir à liberdade de expressão, afirmava, no §5º do seu art.141, que não toleraria preconceitos de raça e classe, mas, tampouco, a “subversão à ordem política e social”. Posteriormente, em 1951, ainda sob a ditadura de Vargas, foi editada a Lei 1.390 (Lei Afonso Arinos) que tornou contravenção (punida com pena de prisão simples) o “preconceito de raça ou cor”. É emblemático que a lei tenha sido editada como resposta à repercussão negativa, no exterior, do impedimento da bailarina norte-americana Katherine Dunham de se hospedar no Hotel Serrador no Rio de Janeiro (a despeito da baixa repercussão do episódio junto à imprensa brasileira) (Jornal O GLOBO, 1951). Entretanto, até 1989 (quando foi ab-rogada pela Lei Caó) não se tem notícia de nenhuma prisão10 10 Não estamos aqui a advogar o direito penal como resposta adequada e efetiva a preconceitos raciais, mas descrevendo a efetividade da lei ao longo de sua existência no ordenamento brasileiro. efetuada com base na Lei Afonso Arinos.

A lei 1.390/51 foi recepcionada sem maiores problemas pela Constituição Federal de 1967: o mesmo regime que em seus porões perseguia, torturava e assassinava adversários políticos, declarava a igualdade de todos “perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei” (art.150, §1º).

A partir da redemocratização, há um aumento substancial de leis voltadas à promoção da igualdade racial. A Constituição Federal de 1988 tornou inafiançável e imprescritível o crime de racismo (art.5°, XLII), abrindo espaço para a lei 7.716/89 (Lei Caó) que o tipificou. A Lei nº 9.459/97 modificou o art.140 do Código Penal brasileiro para acrescentar um tipo qualificado de injúria baseado em preconceito de raça e cor.

O que deveria ser um plus em relação à Lei 7.716 terminou por reforçar a confusão entre racismo e preconceito como expressões sinônimas. Aqui, é necessário sublinhar que, ao procedermos com a revisão bibliográfica para o presente artigo, nos deparamos com uma série de textos que fazem a diferenciação entre o crime de racismo e o crime de injúria racial nos seguintes termos:

“Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Ao contrário da injúria racial, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível.” (Conselho Nacional de Justiça, 2015)

Em linhas gerais, podemos notar que a distinção é estabelecida a partir do sujeito ofendido: se o foco da ofensa é um indivíduo singular, atingido em sua honra subjetiva, teríamos “injúria racial”. Mas se a ofensa é “mais ampla” – ainda que eventualmente dirigida a um sujeito singularizado – e ofende aos negros enquanto coletividade, por exemplo, então haveria racismo. Essa distinção é replicada nos “manuais” de direito penal que alimentam diuturnamente estudantes e profissionais do direito.

Não é objetivo do presente trabalho avaliar se a distinção feita nesses termos está dogmaticamente correta, mas sim observar a falta de menção às dinâmicas que caracterizam o racismo; como se isso fosse um detalhe de menor importância: na leitura manualesca (com a exceção honrosa de artigos científicos que se propõe a uma análise crítica) não há referência à natureza sistêmica do racismo. Tampouco há referência ao poder, exercido por uma raça sobre a outra, como um elemento informador do racismo enquanto prática sistemática de discriminação11 11 Sobre isso, escreve Silvio Almeida: “O racismo - que se materializa como discriminação racial - é definido por seu caráter sistêmico. Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo um conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas”. (destaques no original). (ALMEIDA, 2019, p.34) . Esse apagamento das dinâmicas que informam o racismo acaba por pavimentar o caminho para a construção da absurda tese do “racismo reverso”, conforme trataremos adiante nesse artigo.

Para além do direito penal, a Lei 10.639/03 - além de instituir o Dia da Consciência Negra - tornou obrigatório o ensino de história africana e de cultura afro-brasileira em todas as escolas brasileiras. A Lei 12.288/10 (“Estatuto da Igualdade Racial”) estabeleceu uma série de normas programáticas com vistas ao combate da “discriminação e demais formas de intolerância étnica”. E, mais recentemente, a Lei 12.711/12 estabeleceu a reserva de 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas12 12 Em 2018, pela primeira vez na história, chegou-se à marca de 50,3% de negros nas instituições de ensino superior da rede pública (IBGE, 2019). .

Como já afirmamos anteriormente, a proliferação de leis antirracistas no período que se seguiu à Constituição de 88 não é uma simples coincidência por motivos que, apesar da aparente contradição, não são excludentes: em um ambiente mais democrático é de se esperar que as reivindicações dos movimentos sociais ecoem na legislação de um país. Mas a lógica hodierna do capital, em um ambiente democrático, vai lidar com a pressão dos movimentos sociais de forma mais refinada. Para tanto, ela mobiliza o Estado e o direito na tentativa de reduzir a política a conflitos identitários que colocam em segundo plano críticas estruturais, em uma dinâmica já analisada por epistemologias feministas (FRASER, 2019FRASER, Nancy. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 25-46. Tradução do capítulo por Anselmo da Costa Filho.; ALCOFF, 2016ALCOFF, Linda Martín. Uma epistemologia para a próxima revolução. Revista Sociedade e Estado, volume 31, número 1,janeiro/abril 2016.) e coloridas (DEVUSLKY, 2016DEVUSLKY, Alessandra. Estado, racismo e materialismo. Margem Esquerda. São Paulo, v. 2, n. 27, p. 25-30, out. 2016. Semestral.): na medida em que a crítica se volta para a cultura e se afasta de reivindicações por justiça social, o “paradigma do reconhecimento” se torna mais conveniente ao capital13 13 “Separada da crítica do capitalismo e mobilizada por articulações alternativas, essas tendências poderiam ser explicadas no que Hester Eisestein chamou de ‘uma conexão perigosa’ com o neoliberalismo” (FRASER, 2019, p.37) . É neste ambiente que o direito penal ganha destaque, sendo embalado e oferecido como “a arma mais contundente a venda no mercado” (FLAUZINA, 2016).

Igualmente, não é coincidência que, com o aprofundamento da crise econômica, a recente chegada ao poder de um presidente conhecido por declarações racistas e eugênicas14 14 Quando então deputado, por diversas vezes Jair Bolsonaro ocupou a tribuna da Câmara para discursar em favor da esterilização de pessoas pobres como “forma de controle da criminalidade” (Jornal Folha de São Paulo, 2018). Suas declarações racistas são de conhecimento do mundo mineral, com destaque para o famoso discurso no Clube Hebraica no Rio de Janeiro, proferido em abril de 2017. venha acompanhada de um forte discurso nacionalista, reacendendo o mito da democracia racial ao mesmo tempo em que desmerece os movimentos negro e indígena enquanto “massa de manobra da esquerda separatista”15 15 Em 13 de maio de 2020, data que marca a assinatura da Lei Áurea no Brasil, a Fundação Palmares (a quem compete, nos termos da Lei 7.668/1988, a “preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”) promoveu uma série de postagens nas redes sociais atacando o movimento negro brasileiro e a figura de Zumbi dos Palmares (JORNAL O GLOBO, 2020). .

A articulação entre o modo de produção capitalista e os processos de subalternização que lhe são essenciais é feita, portanto, (também) pelo Estado e pelo direito. Sabendo que leis não flutuam no espaço e que é o processo de interpretação e aplicação das normas, pelos poderes instituídos, que dá concretude aos direitos outrora enunciados, é imprescindível lançar luzes à forma como o Judiciário lê, interpreta e aplica a questão racial quando instado a fazê-lo. Engana-se quem pensa que a aparente dissonância entre o direito abstrato e a falta de combate efetivo ao racismo seja uma simples questão voluntarista na esfera do Poder Judiciário: se narciso acha feio aquilo que não é espelho, o Poder Judiciário historicamente vem falhando no combate ao racismo não por mero voluntarismo, mas porque não só não enxerga, em sua cegueira narcísica, o problema tal como de fato se põe, como também faz, ele próprio, parte essencial e nuclear do problema. E é sobre isso que passamos agora a tratar.

3. Judiciário, Branquitude e a relegitimação do Sistema Penal a partir da atuação em casos envolvendo a 9.459/97

Qualquer anotação sobre a aplicação de uma lei, atrelada ao seu percurso histórico conjuntural, deve estar situada dentro dos conflitos envolvendo os órgãos instituídos que lhe atribuem valor. No caso de uma lei criminalizadora, como a Lei 9.459/97, isso implica em dar visibilidade às instituições responsáveis pela aplicação do direito que integram e constituem o sistema penal e executam políticas relacionadas à segurança pública. A análise das incoerências e dos tensionamentos produzidos pela alegada relevância penal das discriminações raciais é como iniciamos esse debate.

As contradições podem ser divididas – embora não esgotadas - em duas questões que estão especialmente conectadas com esse estudo. Primeiro, pelo conteúdo belicista e de violações de direitos que assume, já que a esfera criminal é inevitavelmente marcada pelas violências resultantes do uso da força policial e do sistema prisional. Segundo, as vicissitudes das agências que operam nesse campo, cuja atuação, especificamente relacionada a esta política, se situa na linha tênue entre a implementação de políticas públicas discursadas como antirracistas e projetos como o “encarceramento em massa” e extermínio que se voltam, preferencialmente, contra pessoas negras no país (BORGES, 2019BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.).

Assim se inscreve a escassez de casos julgados por racismo e injúria racial16 16 Até 2017, só 244 processos de racismo e injúria racial tinham chegado no fim no Rio de Janeiro (GLOBONEWS, 2020). A importante pesquisa feita no TJSP também chegou a esta conclusão: SANTOS, 2015. , de um lado; e, de outro, a supervalorização de legislações que instituem o terror racial, especialmente, em território brasileiro (FREITAS, 2019FREITAS, Felipe da Silva. A naturalização da violência racial: escravismo e hiperencarceramento no Brasil. Perseu: História, Memória e Política, n. 17, 2019., p 53). Eis, aqui, um ponto importante de reflexão: como as “leis antirracismo” (7.716/89 e 9.459/97) tem contribuído para relegitimar ideologicamente um sistema que é conhecido por aparelhar as estratégias extermínio. São algumas das questões exploradas por Thula Pires em sua tese:

“Quando o foco da discussão sobre conflitos sociais é apropriada pela esfera penal, ficam esmorecidas as trincheiras eminentemente transformativas e o sistema, por sua vez, se retroalimenta (...) A partir do momento em que se abre mão de uma participação positiva para apostar no elemento punitivo como pacificador social, todo o processo de luta por reconhecimento empreendido e viabilizado por esses direitos, acaba sendo abafado pela renovação da violência racial.” (PIRES, 2013PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação social dos não reconhecidos. Rio de Janeiro, 2013. Tese (Direito) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2013., p. 255)

Partindo deste debate, um dos recursos para a reflexão sobre algumas das contradições lançadas é o da investigação crítica das institucionalidades do país. Nesse sentido, optamos por buscar nas origens da burocracia fundante das relações coloniais condições indiciárias para a branquitude17 17 Segundo Maria Aparecida Bento, para “para vários estudiosos, branquitude é sinônimo de opressão e dominação e não é identidade racial. É o reconhecimento de que raça, como um jogo de valores, experiências vividas e identificações afetivas, define a sociedade. Raça é uma condição de indivíduo e é a identidade que faz aparecer mais do que qualquer outra, a desigualdade humana” (BENTO, 2005). , especialmente, em órgãos que concentram e organizam o poder das elites brasileiras (FERNANDES, 1975FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro. Zahar. 1975., p. 163).

A fundação da burocracia estatal brasileira foi fruto da necessidade de constituição de um aparato que garantisse a manutenção das Cortes e dos interesses imperiais à época no país. Marcado pela expropriação e pela escravização, aos poderes constituídos tornou-se fundamental fixar as bases do racismo na própria distribuição dos organismos de Estado (ANDRADE; FERNANDES; DE CARLI, 2015ANDRADE, Bruno; FERNANDES, Bruno Diniz; DE CARLI, Caetano. O fim do escravismo e o escravismo sem fim–colonialidade, direito e emancipação social no Brasil. Revista Direito e Práxis, v. 6, n. 10, p. 551-597, 2015., pp. 566-569). Assim se inscreveram as políticas de embranquecimento18 18 Políticas públicas que acompanharam a construção da degenerescência de pessoas negras no país, fomentando a vinda de imigrantes europeus para salvar a nação, através do branqueamento. Os principais defensores foram: Nina Rodrigues, João Batista de Lacerda e Oliveira Vianna. alinhadas com a trajetória da formalização das instâncias responsáveis pelo controle penal no Brasil, que foi – e ainda é – instrumento preferencial para a estruturação do racismo à consecução do genocídio antinegro (FLAUZINA, 2017FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Brasília: Brado Negro, 2017.).

Constituído como imanência das elites brancas, burguesas e coloniais no Brasil, é possível dizer que, na sua origem e na atualidade, o sistema de justiça criminal é, não só reflexo, como organizador da supremacia branca no país. Nessa linha, a noção de continuum genocida contempla a denúncia das permanências de estratégias coloniais nas estruturas de funcionamento dos organismos que concentram poder, especialmente nas agências do sistema penal. Para João Vargas, que é quem a constrói, a expressão tem como objetivo perceber a forma como a discriminação antinegros se opera, também, em nível de políticas institucionais:

“É possível perceber a existente conexão entre tempo e espaço presente no continuum genocida. As várias geografias dos Estados nacionais do sofrimento e da morte de indivíduos negros que caracterizam a diáspora sugerem fenômenos sociais localmente impostos que são ligados necessariamente por experiências comuns da discriminação antinegros. Também, a diáspora negra, assim como o genocídio, recicla e frequentemente amplifica, a lógica da morte negra nas instituições sociais e costumes nos quais a escravidão se estabeleceu.” (VARGAS, 2010VARGAS, João Costa. A diáspora negra como genocídio: Brasil, Estados Unidos ou uma geografia supranacional da morte e suas alternativas. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v. 1, n. 2, p. 31-66, 2010., p. 49).

A compreensão do racismo, segundo o autor, enquanto organizador das “instituições hegemônicas branco dominadas que exercitam seu domínio histórico” (idem) é fundamental nesse trabalho para focar em uma das instâncias menos debatidas quando o assunto é sistema penal: o judiciário (CARVALHO, 2015CARVALHO, Salo de. O encarceramento seletivo da juventude negra brasileira: a decisiva contribuição do Poder Judiciário. Revista da Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, n. 67, p. 623-652, jul./dez. 2015.). Nesse caso, a percepção de que, na arquitetura institucional da magistratura reside a base das economias escravistas, das relações de poder e dos instrumentos geopolíticos de extermínio de pessoas não brancas no país permite refletir sobre as persistências da branquitude no presente dessas instituições. Que não desaparecem, simplesmente, quando o caso é de uma política antirracista.

Muito pelo contrário. Nesse esforço de reposicionar a magistratura na “maquinaria do genocídio” e da “sua atuação como propagadora da barbárie” (FLAUZINA; PIRES, 2020FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; PIRES, Thula. Roteiros previsíveis: racismo e justiçamentos no Brasil. Trincheira democrática. Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) - Ano 3, Nº 08, abril/2020., p. 09), é preciso refletir sobre o papel da branquitude na organização social brasileira e como incute em práticas reais de uma instituição como a magistratura, especialmente, no trato de políticas como a explorada.

Há décadas, Guerreiro Ramos (1995)RAMOS, Alberto Guerreiro Patologia social do “branco” brasileiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995[1957]. denunciou, como marca da produção de conhecimento no Brasil, aquilo que Maria Aparecida Bento, tempos depois, se referiu como “pacto narcísico” da branquitude19 19 É o objeto de um dos mais importantes trabalhos sobre branquitude no Brasil: “Tudo se passa como se houvesse um pacto entre brancos, aqui chamado de pacto narcísico, que implica na negação, no evitamento do problema com vistas à manutenção de privilégios raciais. O medo da perda desses privilégios, e o da responsabilização pelas desigualdades raciais constituem o substrato psicológico que gera a projeção do branco sobre o negro, carregada de negatividade.”(BENTO, 2002, p. 07) . Segundo a autora, haveria um legado deixado pelas análises feitas sobre as desigualdades raciais no Brasil que focaram no chamado “negro tema”, cujo efeito imediato foi não implicar, nos processos, grupos e sujeitos racialmente hegemônicos.

Nesse sentido, pesquisas voltadas para a discussão das questões raciais na sociedade brasileira passaram a investigar pessoas e populações negras, destacando o efeito das opressões racistas em diferentes campos: subjetivo, identitário, social, econômico, político entre outros. Porém, o foco esteve excessivamente voltado ao diagnóstico das exclusões vividas por negro(a)s, sem alcançar o seu alicerce fundamental: o sistema de vantagens vividas por branco(a)s. Segundo Lourenço:

“Em síntese, isso tudo significa que o modo de pensar da razão dual racial produz uma epistemologia sobre o negro. Isto é, a objetividade da racionalidade dual racial é a epistemologia sobre o negro. Portanto, o ato de produzir teoria racial significa invisibilizar o branco e pensar somente a respeito do negro de forma geral” (CARDOSO, 2014, p. 70).

Invisibilizando o branco-tema e focando, em demasiado, na investigação de pessoas negras, as teorias raciais acabaram, assim, reforçando os privilégios da supremacia branca. Isto é, silenciando simbólica e concretamente sobre o papel do(a)s branco(a)s em torno da situação das desigualdades raciais no Brasil, protegendo os interesses do grupo em jogo. Daí residiria o conteúdo narcísico dessa estrutura, trabalhado por Bento, já que a superficialidade das análises é também tática para a perpetuação do círculo concêntrico da branquitude, que se espalha e ramifica (BENTO, 2002BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos Narcísicos no Racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. 2002., p. 32).

O reforço do “negro-tema” ofuscou – e tem ofuscado -, em diversos campos, a dimensão relacional das opressões raciais e, sobretudo, os efeitos para a manutenção das vantagens históricas “que o grupo branco obtém em uma sociedade racista, tanto no contexto local quanto no global” (CARDOSO, 2010CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 8, n. 1, 2010., p. 613). Assim se perpetuam as estruturas de dominação dessa supremacia, que pressupõe a naturalização de uma série de questões, incluídas, discursivamente, i) o padrão de humanidade situado no racismo, com a neutralização do componente racial “branco”, ii) bem como seus efeitos de normatização de ordem social, já que assim não se analisam as condições de base para as geografias de exclusão (FRANKENBERG, 2004FRANKENBERG, Ruth. A mirada de uma branquidade não-marcada. In: WARE, V. (Org.). Branquidade: Identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.).

Quanto ao primeiro efeito, trata-se de um sintoma de longa duração da patologia social explorada por Ramos, relacionado com a dificuldade da autopercepção de pessoas brancas como racializadas a partir de critérios hegemônicos, excludentes e que dizem respeito à própria organização do nosso sistema capitalista periférico-colonial. Isto é, aquilo que Oliveira explora como “identidade racial branca não implicada”, já que branco(a)s sentem-se com muita facilidade, no nosso país, desrracializado(a)s e minimizam, assim, os privilégios das desigualdades raciais - embora conhecedore(a)s nato(a)s da “geografia racial do outro” (OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, Lúcio Otávio Alves. Expressões de Vivência da Dimensão Racial de Pessoas Brancas: representações de branquitude entre indivíduos brancos. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007., p. 48).

O segundo efeito, com carga central, faz com que sigam intocadas as reflexões sobre as hegemonias fundantes e estruturais do país que permitem que as desvantagens sistêmicas contra o povo negro sejam percebidas apenas como um dado, não como uma estratégia política. E aqui reside a discussão de como as análises sobre sistema penal e sobre a burocracia estatal, especialmente os cargos que concentram poder – como o judiciário – estão organizadas.

Quanto às críticas sobre o sistema penal, produzidas sobretudo na criminologia brasileira, há um acúmulo de produções que diagnosticam as relações entre racismo e seletividade no país – em especial após as edições de INFOPEN, que deixaram evidente como pessoas negras são desproporcionalmente criminalizadas (DEPEN, 2019Departamento Penitenciário Nacional. Ministério da Justiça (DEPEN). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen: Brasília, Junho, 2019., p. 32). Mas ainda são escassas as produções que problematizam os dados a partir da leitura dos efeitos para a ordem dos privilégios brancos no Brasil. Ainda falta, à denúncia do racismo estrutural nas instâncias de poder organizados, a desconstrução dos aparelhos, práticas e sujeitos que fazem reverberar os pactos da branquitude (PIRES, 2017, p. 550).

O acúmulo de pesquisas que têm diagnosticado o racismo nas instâncias de poder, dessa forma, precisa ser mobilizado de forma conjuntural para a interpretação de atividades não nomeadas que mantém a supremacia branca no cotidiano. Além disso, é preciso repensar como se tem refletido sobre o processo de escravização, evitando-se que seja deslocado para um passado longínquo (SOVIK, 2009SOVIK, Liv. A branquitude e o estudo da mídia brasileira: algumas anotações com base em Guerreiro Ramos. Comunicação e Cultura das Minorias. São Paulo. Editora Paulus, 2009., p. 05) e possa ser compreendido como base estrutural para a organização de instituições e estratégias atuais que mantêm o terror racial no nosso país.

Nesse sentido, trazemos para o debate os estudos da branquitude com a finalidade de investigar como as dificuldades de processamento dos casos de discriminação no Brasil pelo judiciário (MACHADO; SANTOS; FERREIRA, 2015MACHADO; SANTOS; FERREIRA. “Legislação antirracista punitiva no Brasil: uma aproximação à aplicação do direito pelos Tribunais de justiça Brasileiros”. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 2, n. 1, 2015.) encontram-se relacionadas à facilidade de processamento e encarceramento de pessoas negras e, ainda, da intolerância contra supostas agressões contra pessoas brancas. Como destaca Freitas em artigo central para nossas análises:

‘Os dispositivos pelos quais se mantém inalterada a hierarquia racial brasileira devem-se ao modo pelo qual se definiu e compôs o perfil, os objetivos e as estruturas do nosso sistema jurídico, conferindo aos negros posição alijada e/ou subalterna dentro dos esquemas de poder e dos programas e políticas de proteção (…) O direito não apenas tem se mostrado pouco produtivo no tratamento de questões – individuais e coletivas – de discriminação, mas também tem confirmado o modelo racial voltado ao extermínio, reiterando o discurso da igualdade universalista enquanto, na prática, omite-se diante das realidades de injustiça e de reiteração de contextos de desigualdades e violência.” (DA SILVA FREITAS, 2019FREITAS, Felipe da Silva. A naturalização da violência racial: escravismo e hiperencarceramento no Brasil. Perseu: História, Memória e Política, n. 17, 2019., p. 47)

Com essas inquietações, partirmos para a descrição e análise do caso escolhido, que nos faz refletir como uma lei inscrita no marco da militância antirracista pode ser capturada pelos organismos do Estado para reforçar os repertórios institucionais da branquitude. Através de julgados como este, que entram nas estatísticas de casos de racismo “solucionados” pelo TJRJ, o judiciário, representante de uma elite branca no país20 20 O CNJ já publicou duas pesquisas traçando o “perfil da magistratura brasileira”. Na última, publicada em 2019, utilizando a metodologia da autodeclaração, 18,1% teria cor de pele negra (incluindo-se 16,5% pardos e 1,6% pretos). Quanto à trajetória em três décadas do perfil: “Entre os magistrados que ingressaram até 1990, 84% se declararam brancos. Entre os que ingressaram no período de 1991-2000, 82% se classificaram como brancos, reduzindo para 81% entre os que ingressaram entre 2001-2010, e ficando em 76% entre os que entraram na carreira a partir de 2011”. Segundo o mesmo relatório, no TJRJ, seriam 10% negros/pardos. (CNJ, 2019, pp. 8-14). , atualiza as estratégias de segregação racial e, ainda, contribui tanto para a própria atualização das estruturas de poder de estado, quanto para a relegitimação do sistema penal em sua totalidade.

4. Estudo de caso

4.1 Aspectos metodológicos

A revisão bibliográfica dos temas selecionados nos últimos blocos foi feita quando já conhecido o caso que será explorado, que foi estopim para nos reunirmos para a elaboração deste artigo. Isso quer dizer que há um entrelaçamento inexorável entre o conjunto teórico e empírico deste estudo: o processo e as práticas jurídicas nele encontradas, que representam o “direito em movimento”, foram repensados diversas vezes ao longo da escrita que abre esse artigo, ao passo que os seus próprios elementos constituintes traziam as demandas teóricas e metodológicas aqui sintetizadas.

Optamos pela metodologia do “estudo de caso”, que resulta da escolha de um evento particular para fins diversos, entre os quais destacamos o conteúdo instrumental (ALVES-MAZZOTTI, 2006ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Usos e abusos dos estudos de caso. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 36, n. 129, p. 637-651, Dec. 2006., p. 642). Nesse particular, percebemos que as questões que a ação penal em exame traz às luzes são especialmente representativas de alguns dos questionamentos mais essenciais deste trabalho - que discute a relação entre branquitude, judiciário e a atual conjectura do processamento de crimes que envolvem discriminações raciais.

O caso foi localizado em uma consulta de rotina às “sentenças selecionadas”, destacadas no site do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Nos dizeres do próprio órgão, “a disponibilização desse acervo de Sentenças selecionadas tem como objetivo difundir o pensamento jurídico e oferecer subsídios que auxiliem os consulentes em suas atividades profissionais”. Sob a rubrica “Direito Penal - Crimes Contra a Honra: Injúria Qualificada por Preconceito de Raça, Cor, Etnia, Religião, Origem e Condição Idoso/Deficiente” no momento da pesquisa, o TJRJ destacava sete julgados, dentre os quais o caso sobre o qual nos debruçamos. Das sete “sentenças selecionadas” sob a aludida rubrica, quatro envolviam o crime de injúria racial (os outros três casos se referiam à injúria por motivo de religião, idade e deficiência física). Destes quatro casos, em um o réu foi absolvido por ausência de “animus injuriandi”. Em outro, o crime fora praticado em contexto de resistência à prisão pelo réu, restando, portanto, duas sentenças condenatórias em que a injúria racial era o tema central do processo.

Dentre as muitas sentenças que o órgão poderia ter selecionado, nos chamou a atenção que, dentre as duas sentenças destacadas, uma das decisões escolhida pelo TJRJ tenha sido justamente aquela que afirma categoricamente que é “inegável ser o racismo uma prática de mão dupla”.

Apesar do caso ter recebido destaque no sítio do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro, para fins de garantia do anonimato, não serão divulgados dados identificadores do(a)s sujeito(a)s envolvido(a)s, optando-se por suprimir os nomes, bem como qualidades específicas de qualquer das partes que pudessem singularizá-las. É preciso ressaltar, porém, que a consulta aos movimentos principais do processo é pública e disponível online. Inclusive, esta foi a forma como foi localizado e como tivemos acesso às suas peças. Por fim, é importante ressalvar que os fatos são narrados aqui a partir da “verdade processual”, ou seja, tal qual se apresentam nos documentos consultados. Isso nos impôs, também, a obrigação de nos atermos à linguagem que encontramos nos autos.

4.2 Notas sobre o conflito de fundo da ação penal

O caso que deu ensejo ao processo criminal foi uma briga de vizinhos, em que uma mulher branca teria discutido com um homem negro quando este, exaltando-se, a teria ameaçado e insultado dizendo ser uma “branquela azeda”. A ação foi resultado de uma primeira representação da mulher na delegacia e, depois, da confirmação da queixa em audiência. Para a autoridade policial, ela narrou o dia da briga e disse que o homem: “'(...) passou a proferir palavras de baixo calão, tendo ainda ofendido a declarante, chamando-a de “branquela azeda”'. Três meses depois, ela voltou na instituição dizendo que teria sido ameaçada e insultada mais uma vez, quando ele “lhe xingou de branquela azeda e mandou a declarante ir tomar no c…”. Esta é a única menção ao elemento racial nos depoimentos que serviram como pretexto para o processo criminal.

O caso foi descrito pela acusação, o Ministério Público, como crime de ameaça e injúria racial (art. 140, §3º, CP) e o homem foi defendido pela Defensoria Pública do estado - que é a instituição responsável pela assistência jurídica na hipótese de pessoas que são processadas criminalmente e informam não ter advogado particular ou quando permanecem desassistidas durante a ação. Durante a audiência21 21 Vale a anotação de que a audiência não foi gravada, tendo sido transcrita em ata própria que consultamos para escrever esse trabalho. , a mulher reforçou a versão apresentada sem trazer qualquer outra consideração em relação à possíveis questões raciais. Nenhuma palavra foi dita quanto à forma como pudesse ter se sentido racialmente ofendida, sendo que, mais uma vez, a única referência ao elemento “raça” foi feita no contexto da descrição dos xingamentos feitos pelo homem: “que o réu chamou a depoente de branquela azeda”. Ela acrescentou que “o acusado só lhe ofendeu nessa ocasião”.

O homem, durante o momento em que pôde defender-se, optou por contar os fatos segundo a sua lembrança, bastante semelhante com a versão narrada pela vizinha. Ele começou a sua fala dizendo: “que realmente ficou agitado e nervoso no dia dos fatos e acabou por xingar a vítima e também chamou-a de branquela azeda”. Respondendo às perguntas feitas pela acusação, acrescentou que, na época, estava “saindo de um processo de derrame e que ainda faz tratamento”.

Imediatamente antes da decisão do(a) juiz(a), acusação e defesa apresentaram suas considerações sobre o caso em alegações finais, por escrito. A primeira referiu-se ao crime em uma linha, afirmando que ‘a injúria restou configurada quando o réu insultou a vítima ofendendo sua integridade moral, ao proferir palavras discriminatórias de cunho racial, consistente em chamá-la de “branquela azeda”, o que foi confirmado pelo próprio autor em seu interrogatório em juízo’. A defesa, por sua vez, não se referiu ao elemento racial, tendo focado na argumentação aplicável a todos os crimes da denúncia segundo a qual “o Acusado, sofrendo após um derrame, precisava de um momento de descanso” e de que “se o Acusado realmente fosse alguém de má índole, o fato não teria sido isolado”.

Até o momento da sentença, assim, o possível crime de injúria racial desenhou-se com base na demanda trazida por uma mulher branca dizendo ter se sentido ameaçada e ofendida de forma genérica, após uma discussão episódica com seu vizinho, um homem negro. A interpretação quanto ao conteúdo racial e lesão daí decorrente partiu da autoridade policial e do Ministério Público, que investiram a legislação, com trajetória indissociável à agenda antirracista, de um sentido não só deturpado como também operacional às hegemonias (racistas) de poder.

Sem justificar o conteúdo de opressão22 22 Opressão pressupõe um sistema de hierarquizações que, nos conflitos raciais, pela história do sistema mundo- colonial, só existe através da subjugação de pessoas negras por pessoas brancas - não o contrário. Não se questiona a possibilidade de depreciação ou até sofrimento de pessoas brancas no caso de um xingamento entre partes, que poderia, a depender de outros elementos, configurar crime de injúria simples. Mas a demanda pela marcação do racismo requer, de forma inexorável, que se reconheça a ideologia do ódio por trás das ofensas, que é possível se parte do grupo que está no poder. Qualquer outra interpretação é não só uma deturpação, como também uma tática de reforço dos privilégios brancos. do conflito, em uma espécie de silêncio eloquente, o(a)s representantes das agências que documentaram a ocorrência do tipo penal o fizeram como se óbvia a ocorrência de uma ofensa com este teor. Há, assim, um acordo tácito de que a presença de um vocabulário sobre raça (“branquela”) dá ensejo ao injusto penal, independente da situação angular em que está inscrita.

Até mesmo a defesa técnica participa desta engrenagem, quando opta, nesse primeiro momento, por não explorar o fundo de base estrutural da impossível existência de racismo no conflito que impossibilita a aplicação da qualificadora no caso analisado; bem como por pessoalizar o conflito, como se a “boa índole” do acusado fosse o principal motivo para a confabulação não ter ocorrido. Esses tensionamentos ficaram ainda mais marcados nas duas decisões (de primeiro e segundo grau) que seguiram.

4.3 As decisões

Ao contrário do caminho percorrido até aqui, o(a) magistrado(a) de primeiro grau fez considerações sobre o elemento racial que era bojo do processo que julgava, optando por uma análise, logo de início, pretensiosamente conjuntural do racismo. O “sofrimento histórico-cultural” de “grande parte da sociedade brasileira negra” é o primeiro passo das considerações que faz sobre o crime, dando corpo ao “negro-tema” que exploramos no tópico anterior e indiciário da forma como a branquitude se expressa discursivamente em casos como este. O foco na condição dos efeitos do racismo para pessoas não brancas e o remetimento do racismo para um passado longínquo, sem relação com o maquinário da supremacia branca brasileira, orquestrado em tempo real, são marcas da estrutura denunciada apresentada na forma de sentença:

“De início merece destaque que no universo eminentemente branco da estrutura social brasileira, nos seus estratos médios e superiores, parece impossível que a expressão branquela azeda possa encerrar o conteúdo de humilhação semelhante a xingamentos dirigidos contra a grande parcela negra da sociedade brasileira, cujo sofrimento é histórico-cultural, longevo e irreparável.”

O “branco-tema”, porém, inusitadamente surge na fundamentação. E este é o centro de onde emergiram nossas principais inquietações a respeito dessa ação penal: a partir da conclusão expressa e apresentada no peculiar formato de uma decisão - imbuída de aparente “neutralidade”, “sublimação” e “racionalidade” - de que é possível uma “via de mão dupla” no racismo:

“No entanto, inegável ser o racismo uma prática de mão dupla. Por certo que em uma sociedade de maioria negra a agressão verbal contra brancos, direcionada contra sua cor e raça, concentra inegável injúria racial tanto quanto na sociedade branca se torna tão comum quanto criminosa a ofensa com conotação racial contra os negros; aliás, ato nefasto que carece de ser definitivamente suprimido mediante políticas e reprimendas severas. Nesse contexto, obviamente que excepcionando-se o maior volume e consequente maior abrangência das injúrias raciais contra as minorias, têm-se que a gravidade de tais ofensas ultrapassa uma só categoria de cor ou raça e sua proferição faz vítimas em qualquer “lado”, de modo que brancos também são ultrajados em sua honra quando a eles se fazem referências depreciativas em razão de sua cor e raça”.

Racismo reverso é como chamamos a sustentação, que coloca em nível de simetria ofensas direcionadas contra pessoas brancas e não brancas, dizendo que “o racismo” - descrito em termos demasiadamente abstratos, discursivamente apartados da prática em realização - faria vítimas de “qualquer lado”. É importante notar que, se os efeitos do racismo contra as populações negras são refletidos conjunturalmente, a partir de uma breve consideração na sentença sobre o passado do país (que não nomeia, mas faz pressupor tratar da escravização), quanto ao contexto das ofensas contra pessoas brancas essa conjuntura é apagada, bastando a consideração demográfica de plano. A mais rasa reflexão sobre branquitude, na linha do que apresentamos como ‘lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, objetivo, isto é, materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução do preconceito racial, discriminação racial “injusta” e racismo’ (CARDOSO, 2010CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 8, n. 1, 2010., p. 611), faria ecoar a tautologia do raciocínio levantado23 23 Para Silvio Almeida: “Racismo reverso nada mais é do que um discurso racista, só que pelo ‘avesso’, em que a vitimização é a tônica daqueles que se sentem prejudicados pela perda de alguns privilégios, ainda que tais privilégios sejam apenas simbólicos”. (ALMEIDA, 2019, pp.53-54). .

Isto se apresenta a partir da relação ambígua dos termos “maioria” e “minoria”, que conjectura as próprias contradições da decisão. Em um primeiro momento, a população não branca é descrita como uma maioria, a pressupor dizer-se sobre censos demográficos que retratam a geografia racial brasileira composta por mais pessoas negras. Em seguida, essa mesma maioria é descrita como uma minoria, fazendo-nos pensar sobre as desigualdades estruturais e o conhecido fato da concentração de privilégios sociais por branco(a)s no país.

A questão que colocamos quanto a esta ambivalência não é, necessariamente, de uma discordância com a afirmação - desde que deslocada de seu contexto. Antes, reside na conclusão falsa que pressupõe e na meticulosa linguagem com que é escrita, que i) não deixa de se referir à expressão “minoria”, vocabulário “politicamente correto” para a análise de qualquer caso que envolve disputas de conteúdo interracial; ii) e que deturpa o conteúdo básico de “maioria”, uma vez que não contextualiza a branquitude enquanto organizadora das estruturas de poder brasileiras. Assim, o não alinhamento com a tímida menção ao aspecto histórico referido no parágrafo anterior, apaga a superioridade branca a partir do qual o racismo se estrutura e as dinâmicas relativas ao sistema penal se organizam. Como afirma bem Djamila Ribeiro:

“Não existe racismo de negros contra brancos ou, como gostam de chamar, o tão famigerado racismo reverso. Primeiro, é necessário se ater aos conceitos. Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para ser racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui. Para haver racismo reverso, precisaria ter existido navios branqueiros, escravização por mais de trezentos anos da população branca, negação de direitos a elas. Brancos são mortos por serem brancos?” (RIBEIRO, 2018RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro?. Editora Companhia das Letras, 2018., p. 41).

Por fim, a decisão se relegitima através do apelo punitivista e do discurso de uma possível “democracia racial”, afirmando que a solução deveria passar pela reprimenda igualitária contra qualquer discriminação, alcançando pessoas de qualquer raça. Em seus termos: “seja, então, contra quem for, portanto, a injúria e a discriminação com base em cor e raça devem ser condenadas e reprimidas com vigor até a completa extinção dessa grotesca forma de manifestação do pior da espécie humana”.

A repressão severa, nesse caso, é retratada como capaz de extinguir o racismo, dito como algo literalmente grotesco. A punição “democrática”, além de fantasiosa, deixa de atingir o cerne da legislação, qual seja: a reparação de pessoas não brancas pelas opressões de fundo estrutural, nada grotescas, baseadas no conteúdo de dominação da branquitude. A negociação com as funções declaradas da pena, como o próprio caso revela, só tende a tornar ainda mais porosas as estratégias de ruptura com o racismo institucional, que se ampliam através de conteúdo de decisões como a exposta.

Antes da decisão de segundo grau, os recursos da defesa 24 24 Na peça processual, a defesa sustentou: “Em atenta análise das provas produzidas nos autos, a defesa técnica não vislumbra presente, no caso em discussão, elementos concretos a respeito do dolo específico de preconceito racial, ou seja, não está comprovado o ânimo de ofender e discriminar, em razão da cor, a suposta ofendida, sobretudo porque os fatos se deram no calor de desentendimentos. A lei penal busca reprimir a ofensa preconceituosa e segregacionista que afronte a dignidade daqueles pertencentes a toda uma raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e no caso, especificamente, a subjetividade do ofendido. No caso, é imprescindível que o dolo, consistente na intenção de menosprezar ou discriminar o indivíduo ofendido, esteja amplamente evidenciado pelas provas, o que, contudo, não se mostra configurado na hipótese de modo categórico”. , acusação25 25 A promotoria argumentou no seguinte sentido: “A injúria restou configurada quando o réu, ora apelante, insultou a vítima ofendendo sua integridade moral, ao proferir palavras discriminatórias de cunho racial, consistente em chamá-la de "branquela azeda", o que foi confirmado pelo próprio autor em seu interrogatório em juízo.”. e, por fim, o parecer da procuradoria de justiça26 26 Conforme o parecer do PGJ: “Ao se referir à ofendida como “branquela azeda”, o acusado evidentemente fez uma associação à cor de Patrícia com uma qualidade pejorativa (azeda), com nítido propósito de ofender-lhe a dignidade ou decoro. A existência de problemas de relacionamento entre o réu e a vítima não tem o condão de desnaturar a ofensa proferida, mormente, por ter sido a mesma proferida após Patrícia ter deixado cair ração em cima do muro, fato que o acusado considerou, no momento em que aconteceu, como tendo sido feito de propósito, fazendo acompanhar a injúria de um xingamento, mandando-a “tomar no cu”. Destarte, diante do contexto probatório apresentado, a condenação se impõe, nas iras do artigo 140, §3o do CP.” também tocaram no elemento racial, diferentemente do percurso em primeira instância, mas ainda desconectados com o fundo de base estrutural do racismo e trajetória da lei em questão. Nesse contexto, expressões técnicas como “dolo específico” e “especial fim de agir” e a disputa pela sua possível demonstração, mesmo diante das limitações do conjunto probatório, ofuscaram um debate básico que deveria ter sido travado: são mesmo comparáveis às agressões de teor moral contra pessoas brancas e negras no contexto brasileiro? A estética branca, no caso apresentado, pode ser dita como depreciativa a ponto de configurar uma lesão caracterizada como racismo?

O caso é encerrado após a decisão em sede de Tribunal, com um voto bastante simbólico, proferido pelo desembargador relator, que foi seguido pelos demais daquela Câmara. Nele, além de nenhuma palavra ter sido declarada quanto ao elemento racial, bastando considerações vagas sobre as provas produzidas27 27 São os únicos trechos sobre o caso em específico: “Em suas razões recursais, o Apelante quer ver-se absolvido por insuficiência de provas porque toda prova foi baseada na palavra da vítima. O Apelante, quando interrogado, admitiu as ofensas e xingamentos, não havendo o que se falar, portanto em fragilidade probatória diante da confissão oportunizada, restando comprovados os dois delitos (...) O dolo de agir do agente criminoso foi demonstrado até mesmo em razão da frase ameaçadora de se livrar da vítima, devolvendo-a para o Rio de Janeiro, o que constituiu o crime de ameaça, de natureza formal.” , constam colocações sobre a prática de lesão corporal e conteúdo de exame de perícia28 28 No voto, o desembargador afirmou: “Inobstante a confissão, é cristalino que a materialidade do crime de lesão corporal foi comprovada por prova técnica e, ao contrário do alegado pela Defesa, a palavra da vítima, em crimes da natureza do presente assume relevância especial, merecendo todo crédito e possuindo plena validade, permitindo a imposição de um decreto condenatório.” que, simplesmente, não ocorreram, indicando que não se referem ao caso debatido. O núcleo do voto, assim, provavelmente extraído de um modelo utilizado para outra ação penal, além de desprezar o debate iniciado em alguma medida a partir da sentença, revelando o sentido instrumental de complexificar demandas trazidas para o judiciário, representa bem os efeitos da massificação de julgamentos.

Câmaras criminais, que são órgãos de cúpula do judiciário, encarnam os sentidos da concentração de poderes referidos não só, mas também, na branquitude. São os ambientes que inspiram as condições mais acentuadas dos privilégios da magistratura, dentre as quais se destaca a possibilidade de prescindir da análise em geral do caso concreto no julgamento de um recurso - que é uma das funções mais fundamentais das Cortes. Em termos específicos, de silenciar, mesmo quando instados a se manifestar, sobre questões que demandam reflexões críticas e estruturais inexoráveis a certos casos, como os que envolvem denúncias de racismo (ainda que reverso).

Partindo dessas considerações, a violência sistêmica nos espaços do judiciário pode ser proposta como produto e também como produtora da supremacia branca. E que se realiza em processos que dependem e reproduzem a aceitação desproblematizada dessa condição de vantagens sistêmicas, tudo isso aparelhado pela assepsia do direito. O discurso jurídico, nesse caso, justifica a atuação das agências e de suas(seus) atoras(es), legitimando um aparato de exceção, de um lado, e reforço de hegemonias do outro.

5. Considerações finais: evitando a ilusão normativa

Olhar para a historicidade da relação entre Estado, direito e processos de subalternização, no Brasil, pondo em destaque o “direito em movimento” - ou seja, seu processo de concretização através da atuação do Poder Judiciário - nos permite afirmar que encerrar a luta política antirracista dentro da disputa por “mais direitos”, em especial por mais leis criminalizadoras, é uma armadilha da qual os movimentos antirracistas deveriam procurar escapar pois “as ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a casa-grande. Elas podem nos permitir a temporariamente vencê-lo no seu próprio jogo, mas elas nunca nos permitirão trazer à tona mudança genuína29 29 Reivindica-se aqui a célebre frase de Audre Lorde, pois, ainda que escrita no contexto de crítica ao apagamento das diferenças entre mulheres negras e brancas, serve como crítica ao enclausuramento da luta antirracista por “mais direitos”, diante da clarividência de Lorde de que “velhas estruturas de opressão” são “inteligentemente organizadas para imitar o progresso”. (LORDE, 1984). .

Esta afirmação não pretende ignorar, por completo, a importância da inscrição das demandas dos movimentos sociais no plano normativo: as ferramentas do senhor, quando bem manejadas, podem sim ser de alguma utilidade30 30 O advogado Luís Gama - homem negro que, no século XIX, ousou se sentar entre brancos na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco - libertou, em juízo, mais de 500 escravos (algumas estimativas falam em 1000 escravos), numa atuação que lhe confere o título de patrono da abolição da escravidão no Brasil. , como já reivindicava Audre Lorde. O antinormativistmo exacerbado (aquele que nega qualquer utilidade estratégica do fenômeno jurídico) conduz ao abstencionismo paralisante. Mas é essencial evitar as ilusões normativas que só interessam à classe hegemônica (quando se toma o direito não como ferramenta revolucionária, atravessada por contradições, mas como linha de chegada).

Numa democracia o conflito é legítimo (e não uma desordem que deve ser extirpada a qualquer custo) e o direito é um dos muitos campos de luta nas democracias liberais. As conquistas legislativas, quando resultado de processos reivindicatórios oriundos dos movimentos sociais, não são inúteis nem tampouco “pura ideologia de uma sociedade atomizada e desumana” (RAMOS, 2016RAMOS, Silvana de Souza. Claude Lefort: Democracia e Luta por Direitos. Trans/Form/Ação, Marília, v. 39, n. 2, p. 217-234, June 2016, p.230. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732016000200217&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 23 Maio 2020.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p.230). Mas é preciso sempre perguntar: pelo que lutamos? Sem jamais perder de vista que a luta “por mais direitos” pode se configurar em uma ilusão normativa, em especial quando o caminho escolhido são leis criminalizadoras que dependem da ação de instituições comprometidas com a perpetuação da branquitude. Isso é tão ou mais evidente quando se compreende o direito como uma forma social específica do capitalismo (MASCARO, 2017MASCARO, Alysson Leandro. Direitos Humanos: uma crítica marxista. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, [s.l.], n. 101, p. 109-137, ago. 2017. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/0102-109137/10.
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) e o quanto este sistema se alimenta, além do conhecido processo de proletarização (cada vez mais precarizado), de outros processos de subalternização, como o racismo e o sexismo.

  • 1
    Sobre a relação entre Estado e movimentos sociais escreve Alessandra Devuslsky (2016, p.29): “Na medida em que o Estado sequestra a pauta de reivindicações desses movimentos, estabelece-se um processo que ‘disciplina’ o movimento, predeterminando seus limites e métodos”.
  • 2
    Rejeitamos a leitura reducionista do capitalismo (como um conjunto de leis puramente econômicas) para considerá-lo uma “complexa e articulada ordem social, uma ordem que tem seu núcleo constituído de relações de exploração, dominação e alienação” (ARRUZZA, 2015ARRUZZA, Cinzia. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Revista Outubro, [S.L], v. 1, n. 23, p. 33-58, fev. 2015. Semestral. Tradução de Camila Massaro de Góes. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-content/uploads/2015/06/2015_1_04_Cinzia-Arruza.pdf. Acesso em: 08 jan. 2021
    http://outubrorevista.com.br/wp-content/...
    , p.36)
  • 3
    Sobre a relação entre subalternidade e capitalismo, a partir de uma tradição gramsciana, escreve Michael Cahen (2018CAHEN, Michel. O que pode ser e o que não pode ser a colonialidade. Uma abordagem “pós-póscolonial” da subalternidade. In: CAHEN, Michel; BRAGA, Ruy (org.). Para além do pós (-)colonial. São Paulo: Alameda, 2018. p. 31-73., p.49): “a existência de formas não capitalistas de exploração – quero dizer: formas de exploração não constitutivas do modo de produção capitalista – foi, ficou e ainda é indispensável à dominação capitalista.” (destaques no original).
  • 4
    Não estamos abraçando a tese de que movimentos sociais identitários são necessariamente um entrave à emancipação social, mas sim considerando a astúcia do capitalismo: “[...] o vaciamiento de la política y su reducción a los términos de una pelea distributiva aparentemente basada en el cerramiento de las identidades y en fobias étnicas, con el consecuente abandono de ataques a un objetivo mayor como había sido la lucha contra el capitalismo” (SEGATO, 2007SEGATO, Rita Laura. La Nación y sus Otros: raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de políticas de la identidad. Buenos Aires: Prometeo, 2007., p.16).
  • 5
    “Las formaciones nacionales de alteridad no son otra cosa que representaciones hegemónicas de nación que producen realidades. Con ellas se enfatiza, por un lado, la relevancia de considerar las idiosincrasias nacionales y el resultado del predominio discursivo de una matriz de nación que no es otra cosa que matriz de alteridades, es decir, de formas de generar otredad, concebida por la imaginación de las elites e incorporada como forma de vida a través de narrativas maestras endosadas y propagadas por el Estado”. (SEGATO, 2007SEGATO, Rita Laura. La Nación y sus Otros: raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de políticas de la identidad. Buenos Aires: Prometeo, 2007., p.29)
  • 6
    A pós-política, personalizada nos governantes que se apresentam como “bons gestores” com decisões “puramente técnicas”, livres de “ideologias de direita ou de esquerda” (por mais ideológicas que sejam suas decisões) não se confunde com a ultrapolitica, verdadeira militarização da política e cujo discurso almeja aniquilar todo pensamento divergente que passa, então, a ser tratado como “inimigo da pátria”. No Brasil contemporâneo, ambos os tipos coexistem e, não raramente, são reivindicados pelos mesmos agentes políticos conforme sua conveniência.
  • 7
    A revisão de todo o contexto histórico que cerca a edição destes textos constitucionais extrapola, em muito, os limites do presente artigo. Nosso objetivo é menos o de realizar uma reconstrução histórica das Constituições brasileiras e sim o de evidenciar este hiato entre a igualdade “garantida” desde 1934 e a igualdade substancial e emancipação social concreta.
  • 8
    Como um dos principais vetores do eugenismo no período retratado, está o positivismo criminológico, que no Brasil, a partir da difusão do pensamento de Nina Rodrigues, incumbiu-se da implantação ideológica da associação entre crime e pessoas negras no Brasil, equipando o sistema penal da maquinaria sanguinária que o controle penal desde então passou a dispor (PIRES, 2013PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação social dos não reconhecidos. Rio de Janeiro, 2013. Tese (Direito) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2013., p. 34).
  • 9
    Data dessa época a remoção, por empresários, ligados ao movimento eugenista e admiradores confessos do nazismo, de cinquenta meninos negros de um orfanato no Rio de Janeiro para a Fazenda Albertina, de Oswaldo Rocha Miranda, em Campina de Monte Alegre (São Paulo) para dez anos de escravidão e total isolamento, conforme abordado no documentário MENINO 23 (2016). Tal fato é bastante ilustrativo de um Brasil que ecoava o incipiente movimento nazifascista europeu e seus ideais de supremacia racial.
  • 10
    Não estamos aqui a advogar o direito penal como resposta adequada e efetiva a preconceitos raciais, mas descrevendo a efetividade da lei ao longo de sua existência no ordenamento brasileiro.
  • 11
    Sobre isso, escreve Silvio Almeida: “O racismo - que se materializa como discriminação racial - é definido por seu caráter sistêmico. Não se trata, portanto, de apenas um ato discriminatório ou mesmo um conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas”. (destaques no original). (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 264 p. (Feminismos Plurais)., p.34)
  • 12
    Em 2018, pela primeira vez na história, chegou-se à marca de 50,3% de negros nas instituições de ensino superior da rede pública (IBGE, 2019).
  • 13
    “Separada da crítica do capitalismo e mobilizada por articulações alternativas, essas tendências poderiam ser explicadas no que Hester Eisestein chamou de ‘uma conexão perigosa’ com o neoliberalismo” (FRASER, 2019FRASER, Nancy. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 25-46. Tradução do capítulo por Anselmo da Costa Filho., p.37)
  • 14
    Quando então deputado, por diversas vezes Jair Bolsonaro ocupou a tribuna da Câmara para discursar em favor da esterilização de pessoas pobres como “forma de controle da criminalidade” (Jornal Folha de São Paulo, 2018). Suas declarações racistas são de conhecimento do mundo mineral, com destaque para o famoso discurso no Clube Hebraica no Rio de Janeiro, proferido em abril de 2017.
  • 15
    Em 13 de maio de 2020, data que marca a assinatura da Lei Áurea no Brasil, a Fundação Palmares (a quem compete, nos termos da Lei 7.668/1988, a “preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”) promoveu uma série de postagens nas redes sociais atacando o movimento negro brasileiro e a figura de Zumbi dos Palmares (JORNAL O GLOBO, 2020).
  • 16
    Até 2017, só 244 processos de racismo e injúria racial tinham chegado no fim no Rio de Janeiro (GLOBONEWS, 2020). A importante pesquisa feita no TJSP também chegou a esta conclusão: SANTOS, 2015SANTOS, Gislene Aparecida dos. “Nem crime, nem castigo: o racismo na percepção do judiciário e das vítimas de atos de discriminação”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 2015, n. 62, 2015..
  • 17
    Segundo Maria Aparecida Bento, para “para vários estudiosos, branquitude é sinônimo de opressão e dominação e não é identidade racial. É o reconhecimento de que raça, como um jogo de valores, experiências vividas e identificações afetivas, define a sociedade. Raça é uma condição de indivíduo e é a identidade que faz aparecer mais do que qualquer outra, a desigualdade humana” (BENTO, 2005).
  • 18
    Políticas públicas que acompanharam a construção da degenerescência de pessoas negras no país, fomentando a vinda de imigrantes europeus para salvar a nação, através do branqueamento. Os principais defensores foram: Nina Rodrigues, João Batista de Lacerda e Oliveira Vianna.
  • 19
    É o objeto de um dos mais importantes trabalhos sobre branquitude no Brasil: “Tudo se passa como se houvesse um pacto entre brancos, aqui chamado de pacto narcísico, que implica na negação, no evitamento do problema com vistas à manutenção de privilégios raciais. O medo da perda desses privilégios, e o da responsabilização pelas desigualdades raciais constituem o substrato psicológico que gera a projeção do branco sobre o negro, carregada de negatividade.”(BENTO, 2002BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos Narcísicos no Racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. 2002., p. 07)
  • 20
    O CNJ já publicou duas pesquisas traçando o “perfil da magistratura brasileira”. Na última, publicada em 2019, utilizando a metodologia da autodeclaração, 18,1% teria cor de pele negra (incluindo-se 16,5% pardos e 1,6% pretos). Quanto à trajetória em três décadas do perfil: “Entre os magistrados que ingressaram até 1990, 84% se declararam brancos. Entre os que ingressaram no período de 1991-2000, 82% se classificaram como brancos, reduzindo para 81% entre os que ingressaram entre 2001-2010, e ficando em 76% entre os que entraram na carreira a partir de 2011”. Segundo o mesmo relatório, no TJRJ, seriam 10% negros/pardos. (CNJ, 2019, pp. 8-14).
  • 21
    Vale a anotação de que a audiência não foi gravada, tendo sido transcrita em ata própria que consultamos para escrever esse trabalho.
  • 22
    Opressão pressupõe um sistema de hierarquizações que, nos conflitos raciais, pela história do sistema mundo- colonial, só existe através da subjugação de pessoas negras por pessoas brancas - não o contrário. Não se questiona a possibilidade de depreciação ou até sofrimento de pessoas brancas no caso de um xingamento entre partes, que poderia, a depender de outros elementos, configurar crime de injúria simples. Mas a demanda pela marcação do racismo requer, de forma inexorável, que se reconheça a ideologia do ódio por trás das ofensas, que é possível se parte do grupo que está no poder. Qualquer outra interpretação é não só uma deturpação, como também uma tática de reforço dos privilégios brancos.
  • 23
    Para Silvio Almeida: “Racismo reverso nada mais é do que um discurso racista, só que pelo ‘avesso’, em que a vitimização é a tônica daqueles que se sentem prejudicados pela perda de alguns privilégios, ainda que tais privilégios sejam apenas simbólicos”. (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 264 p. (Feminismos Plurais)., pp.53-54).
  • 24
    Na peça processual, a defesa sustentou: “Em atenta análise das provas produzidas nos autos, a defesa técnica não vislumbra presente, no caso em discussão, elementos concretos a respeito do dolo específico de preconceito racial, ou seja, não está comprovado o ânimo de ofender e discriminar, em razão da cor, a suposta ofendida, sobretudo porque os fatos se deram no calor de desentendimentos. A lei penal busca reprimir a ofensa preconceituosa e segregacionista que afronte a dignidade daqueles pertencentes a toda uma raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, e no caso, especificamente, a subjetividade do ofendido. No caso, é imprescindível que o dolo, consistente na intenção de menosprezar ou discriminar o indivíduo ofendido, esteja amplamente evidenciado pelas provas, o que, contudo, não se mostra configurado na hipótese de modo categórico”.
  • 25
    A promotoria argumentou no seguinte sentido: “A injúria restou configurada quando o réu, ora apelante, insultou a vítima ofendendo sua integridade moral, ao proferir palavras discriminatórias de cunho racial, consistente em chamá-la de "branquela azeda", o que foi confirmado pelo próprio autor em seu interrogatório em juízo.”.
  • 26
    Conforme o parecer do PGJ: “Ao se referir à ofendida como “branquela azeda”, o acusado evidentemente fez uma associação à cor de Patrícia com uma qualidade pejorativa (azeda), com nítido propósito de ofender-lhe a dignidade ou decoro. A existência de problemas de relacionamento entre o réu e a vítima não tem o condão de desnaturar a ofensa proferida, mormente, por ter sido a mesma proferida após Patrícia ter deixado cair ração em cima do muro, fato que o acusado considerou, no momento em que aconteceu, como tendo sido feito de propósito, fazendo acompanhar a injúria de um xingamento, mandando-a “tomar no cu”. Destarte, diante do contexto probatório apresentado, a condenação se impõe, nas iras do artigo 140, §3o do CP.”
  • 27
    São os únicos trechos sobre o caso em específico: “Em suas razões recursais, o Apelante quer ver-se absolvido por insuficiência de provas porque toda prova foi baseada na palavra da vítima. O Apelante, quando interrogado, admitiu as ofensas e xingamentos, não havendo o que se falar, portanto em fragilidade probatória diante da confissão oportunizada, restando comprovados os dois delitos (...) O dolo de agir do agente criminoso foi demonstrado até mesmo em razão da frase ameaçadora de se livrar da vítima, devolvendo-a para o Rio de Janeiro, o que constituiu o crime de ameaça, de natureza formal.”
  • 28
    No voto, o desembargador afirmou: “Inobstante a confissão, é cristalino que a materialidade do crime de lesão corporal foi comprovada por prova técnica e, ao contrário do alegado pela Defesa, a palavra da vítima, em crimes da natureza do presente assume relevância especial, merecendo todo crédito e possuindo plena validade, permitindo a imposição de um decreto condenatório.”
  • 29
    Reivindica-se aqui a célebre frase de Audre Lorde, pois, ainda que escrita no contexto de crítica ao apagamento das diferenças entre mulheres negras e brancas, serve como crítica ao enclausuramento da luta antirracista por “mais direitos”, diante da clarividência de Lorde de que “velhas estruturas de opressão” são “inteligentemente organizadas para imitar o progresso”. (LORDE, 1984LORDE, Audre. Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. 110-113. Tradução de Tatiana Nascimento.).
  • 30
    O advogado Luís Gama - homem negro que, no século XIX, ousou se sentar entre brancos na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco - libertou, em juízo, mais de 500 escravos (algumas estimativas falam em 1000 escravos), numa atuação que lhe confere o título de patrono da abolição da escravidão no Brasil.

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  • JORNAL O GLOBO. Criada a lei Afonso Arinos, a primeira norma contra o racismo no Brasil. Disponível <https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/criada-lei-afonso-arinos-primeira-norma-contra-racismo-no-brasil-10477391>. Acesso em 22 de maio de 2020.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2020
  • Aceito
    15 Jan 2021
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