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O direito à desconexão do trabalho francês: perspectivas de implementação no Direito brasileiro

The right to disconnect from work: perspectives for implementation in Brazilian legal system

Resumo

O artigo objetiva fornecer uma análise das possibilidades de aplicação do direito à desconexão do trabalho, nos moldes da legislação trabalhista francesa, no sistema jurídico brasileiro, considerando as características sociojurídicas e culturais que culminaram na conformação atual das relações de trabalho no país. A partir disso, demonstra-se a essencialidade do direito de se desconectar no contexto do labor na Era Digital.

Palavras-chave:
Direito do trabalho francês; Sociologia do direito; Direito à desconexão

Abstract

This article aims to provide an analysis of the possibilities of applying the right to disconnect from work, in the molds of French labor law, in the Brazilian legal system, considering the socio-legal and cultural characteristics that culminated in the current conformation of labor relations in the country. Based on this, the text demonstrates the essentiality of the right to disconnect in the context of labor in the Digital Age.

Keywords:
French labor law; Sociology of Law; Right to disconnect

1 Introdução

As mudanças introduzidas pelas tecnologias de informação e comunicação na prestação do serviço pelo trabalhador trazem novas questões referentes à limitação da jornada de trabalho, direito conquistado após diversos embates sociais por dizer o Direito. A utilização de equipamentos de comunicação e informação facilita sobremaneira a prestação do serviço, mas também insere na relação juslaboral a problemática da disponibilidade do trabalhador em períodos fora do horário fixado pela empresa para a realização do labor, possibilitando que o funcionário esteja à disposição do empregador em momentos destinados ao descanso daquele, especialmente no que se refere ao trabalho intelectual. Tal situação fática torna tênue a fronteira entre vida profissional e vida pessoal, visto que dificulta o controle do tempo de trabalho, fazendo surgir nos sistemas jurídicos a necessidade do reconhecimento de um direito à desconexão.

A partir disso, o presente artigo busca fornecer uma análise da introdução e aplicação do instituto jurídico francês relativo ao direito à desconexão no sistema de direito brasileiro, sob perspectiva sociojurídica, buscando evidenciar as limitações práticas do instituto nas relações de trabalho na França e os fatores que dificultam a aplicação do direito, tanto no país de origem quanto no Brasil.

Para a adequada compreensão do instituto, sugere-se expor as modificações nas relações de trabalho advindas com a Era da Informação e como isso afeta os direitos trabalhistas. Após, expor-se-á como o conceito de direito à desconexão é compreendido pela doutrina e pelo Judiciário, tendo por enfoque o âmbito das relações de emprego, tipo de relação de trabalho em que está presente a subordinação jurídica, ou seja, o controle das atividades exercidas pelo trabalhador por quem adquire sua força laborativa, e é marcada pela desigualdade de poder entre as partes. Por fim, o estudo propõe-se a analisar a possibilidade e adequação da positivação do direito à desconexão, nos moldes da legislação francesa, no sistema jurídico brasileiro.

2 O labor na era digital

A inserção da tecnologia nos processos produtivos modifica a forma de estruturação e organização do trabalho, fazendo surgir padrões flexíveis de trabalho (CASTELLS, 2002CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venâncio Majer. Atual. Jussara Simões. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.) e tornando mais tênue a fronteira entre trabalho e vida pessoal, especialmente em se tratando de trabalho intelectual.

As tecnologias de informação e comunicação têm o potencial de gerar sobre as condições de trabalho o aumento do ritmo e da intensidade de trabalho, do controle patronal e do excesso de informação, além da confusão das fronteiras espaciais e temporais entre trabalho e esfera não profissional, conduzindo a uma flexibilidade espacial e temporal. A interação do trabalhador com o meio técnico modifica a forma de organização laboral, alterando o grau de autonomia e de independência do empregado e a quantidade de informações que o indivíduo recebe e tem que processar. Há, nesse sentido, o desenvolvimento de uma forma de controle do trabalhador mais eficiente e, ao mesmo tempo, sutil.

Os dispositivos tecnológicos de comunicação possuem a capacidade de libertação e de opressão, sendo necessária a constante modificação e adaptação dos instrumentos de resistência para lidar com essa nova forma de organização do trabalho (BRAGA, 2015BRAGA, E. S. Direito à desconexão do trabalho como instrumento de proteção à saúde do trabalhador. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2015.).

O direito à desconexão do trabalho está inserido nesse momento de modificação da visão clássica do trabalho pela técnica, em que a fronteira entre vida pessoal e profissional era assegurada pela referência do tempo e do local de trabalho (LOKIEC, 2015LOKIEC, Pascal. Il faut sauver le droit du travail! Paris: Odile Jacob, 2015.). A hiperconectividade laboral gera “o aumento do tempo de trabalho habitual e o acréscimo da situação de disponibilidade do trabalhador” (FERNANDES, 2018FERNANDES, Francisco Liberal. O trabalho e o tempo: comentário ao Código do Trabalho. Porto (Portugal): Universidade do Porto, 2018.), sendo o fenômeno da conexão ao trabalho caracterizado pela fragmentariedade da prestação de serviços, possibilitado pelo acesso ao ambiente virtual de trabalho por dispositivos tecnológicos em momentos de descanso. O elemento técnico constitui, por conseguinte, óbice à limitação do tempo de trabalho.

Os meios de comunicação tecnológicos também têm o potencial de acentuar as dificuldades de se limitar o âmbito dos poderes do empregador (BIDET; PORTA, 2016BIDET, A.; PORTA, J. Le travail à l’épreuve du numérique. Revue de droit du travail, 2016, p 328.). A questão do uso das tecnologias de informação e comunicação destinadas ao trabalho envolve também repensar os limites do exercício dos poderes diretivo e hierárquico do empregador sobre seus empregados, em conjunto com a fixação de fronteiras à extensão das atividades profissionais.

Essas mudanças na estrutura do trabalho, decorrentes da implementação de novas tecnologias, fazem surgir a necessidade de repensar o Direito do Trabalho, com inserção de novos institutos que proporcionem a adequada fruição dos direitos trabalhistas frente aos novos modelos de labor e da reorganização do meio ambiente de trabalho.

3 As normas protetivas de duração do trabalho

As modificações da estrutura do trabalho na Era Digital, decorrentes da inserção de equipamentos tecnológicos, produzem consequências na efetividade das normas relativas ao controle de jornada, em razão da dinamicidade e fragmentariedade dos períodos de prestação do serviço e da interrupção dos momentos de descanso.

A limitação de jornada, os intervalos intra e interjornadas e o descanso semanal remunerado inserem-se no âmbito das normas de ordem pública, cuja proteção é conferida pela Constituição Federal (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 02 dez. 2019.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
), sob o título de direitos sociais do trabalhador (art. 7º), e pela Consolidação das Leis do Trabalho (BRASIL, 1943). A respeito, o art. 7º, incisos XIII e XXII da CRFB/88, estabelece como direitos sociais que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores urbanos e rurais:

XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;

XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;

A CLT (BRASIL, 1943) regulamenta as disposições relativas à jornada de trabalho, tratando de direitos que têm por fim a garantia do direito ao não trabalho. Nesse aspecto, ressalta-se que a necessidade de preservação plena dos períodos de descanso é sustentada em três principais fundamentos:

a) de natureza biológica, pois que visa combater os problemas psicofisiológicos oriundos da fadiga e da excessiva racionalização do serviço;

b) de caráter social, pois que possibilita ao trabalhador viver, como ser humano, na coletividade à qual pertence, gozando dos prazeres materiais e espirituais criados pela civilização, entregando-se à prática de atividades recreativas, culturais ou físicas, aprimorando seus conhecimentos e convivendo, enfim, com sua família;

c) de índole econômica, pois que restringe o desemprego e acarreta, pelo combate à fadiga, um rendimento superior na execução do trabalho. (SÜSSEKIND, 1996)

Todas essas normas de duração do trabalho têm por objetivo “garantir ao trabalhador o momento de descanso para repor suas energias físicas e mentais, e poder gozar dos meios de sociabilidades afetas a cada indivíduo” (CARDOSO, 2015CARDOSO, Jair Aparecido. O direito ao descanso como direito fundamental e como elemento de proteção ao direito existencial e ao meio ambiente do trabalho. Revista de Informação Legislativa do Senado. Brasília, a. 52, nº 207, jul./set., 2015, pp. 7-26.), além de possibilitar o exercício do direito fundamental à conciliação da vida pessoal, familiar e laboral (SILVA, 2013SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. Flexibilização da jornada de trabalho e a violação do direito à saúde do trabalhador: uma análise comparativa dos sistemas jurídicos brasileiro e espanhol. São Paulo: LTr, 2013.). Desse modo, a CLT (BRASIL, 1943) regulamenta os direitos sociais trabalhistas ao dispor sobre a jornada de trabalho, vedando jornadas exaustivas e que exponham os trabalhadores a riscos psicossociais.

A fixação de limites à livre pactuação da jornada é pautada também pelos princípios orientadores do Direito do Trabalho, como o princípio da proteção, que visa o amparo preferencial ao trabalhador na relação juslaboral, a fim de proporcionar uma igualdade substancial entre as partes (PLÁ RODRIGUEZ, 2000PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de direito do trabalho. Tradução de Wagner D. Giglio. 3. ed. atual. São Paulo: LTr, 2000.).

O estabelecimento de limites ao tempo de labor encontra fundamento tanto na Carta constitucional (CFRB/1988) quanto nos princípios do Direito do Trabalho, sendo que a regulação dos direitos concernentes à duração do labor pode e deve ser adaptada ao contexto em que são aplicados, tendo em vista as modificações das relações laborais, visando a efetividade dessas normas protetivas.

O direito à desconexão do trabalho está inserido nesse contexto de adaptação das regras jurídicas de controle da jornada de trabalho à Era da Informação, com a finalidade de conferir máxima efetividade a essas garantias fundamentais. Com positivação inicial no ordenamento jurídico francês, a análise do instituto nos moldes fixados pela Lei francesa é essencial para a compreensão das possibilidades de incidência da regra e das limitações sociojurídicas à efetividade plena do direito.

4 O direito à desconexão do trabalho

4.1 O direito à desconexão no Direito francês

O Code du Travail francês, em seu art. L. 3121-1, estabelece que o tempo efetivo de serviço é aquele “durante o qual o trabalhador está à disposição do empregador e cumpre as suas diretivas sem poder participar livremente de suas ocupações pessoais”1 1 Art. L3121-1, Code du Travail: “La durée du travail effectif est le temps pendant lequel le salarié est à la disposition de l'employeur et se conforme à ses directives sans pouvoir vaquer librement à des occupations personnelles”. . No entanto, a definição tornou-se insuficiente para enquadrar juridicamente as situações de interrupção dos momentos de descanso do empregado por força de comunicações dinâmicas e fragmentadas realizadas por meio de equipamentos tecnológicos. Foi necessário o reconhecimento da existência de uma nova situação de ingerência na vida privada do empregado, até então não regulada, para então se pensar na forma mais adequada de conferir tratamento jurídico ao tema.

A lei francesa nº 2016-1088, de 8 de agosto de 2016, regulou uma série de modificações relativas à legislação trabalhista no país, dentre as quais se encontra a inserção expressa de um dispositivo que garante o direito à desconexão do trabalho, previsto no artigo 55. O dispositivo modifica o art. 2242-17, que, no parágrafo 7º, passa a dispor acerca de algumas condutas que devem ser adotadas pelas empresas com mais de cinquenta empregados para proporcionar o pleno exercício do direito de se desconectar pelo trabalhador.

A positivação do referido direito na França teve por objetivo primordial “reconhecer o direito à desconexão, a fim de permitir aos trabalhadores uma melhor conciliação entre suas vidas profissionais e pessoais” (FRANÇA, 2016FRANÇA. Assembleia Nacional de França. Étude d’impact: projet de loi visant à instituer de nouvelles libertés et de nouvelles protections pour les entreprises et les actifs, 24 mar. 2016.), de modo a garantir períodos de desconexão nos momentos de descanso.

A princípio, verifica-se que o referido dispositivo legal encontra-se no Livro do Código do Trabalho francês que trata da negociação coletiva, visto que coloca como conteúdo obrigatório da negociação anual sobre igualdade e qualidade de vida no ambiente laboral a previsão dos procedimentos necessários para o exercício do direito à desconexão pelos trabalhadores e do estabelecimento, pelas empresas, de dispositivos de regulação da utilização das ferramentas de comunicação do trabalho (FRANÇA, 2016FRANÇA. Assembleia Nacional de França. Étude d’impact: projet de loi visant à instituer de nouvelles libertés et de nouvelles protections pour les entreprises et les actifs, 24 mar. 2016.), fixando como prioridade para a elaboração desses mecanismos a via do acordo com os sindicatos de trabalhadores.

Ainda, prevê que na ausência de acordo, o empregador deverá elaborar uma carta, após avisar as entidades representativas dos trabalhadores, que definirá as formas de garantia do direito de se desconectar, mediante previsão dos meios pelos quais os trabalhadores poderão exercê-lo. A medida é compatível com a finalidade da inserção do direito em análise no ordenamento jurídico francês, a qual consiste em criar os mecanismos necessários para preservar a saúde do trabalhador, garantir o respeito ao período de descanso e à vida pessoal, como disposto no preceito normativo, de modo que não deixa o estabelecimento dos mecanismos para a concretização do direito condicionado unicamente ao sucesso da negociação coletiva.

Nos moldes da Lei francesa, as modalidades do exercício do direito à desconexão podem ser criadas e adequadas com maior flexibilidade, eis que cada empresa poderá negociar com os parceiros sociais - principalmente sindicatos - ou criar os mecanismos necessários à garantia do direito de acordo com a dinâmica da atividade desenvolvida, da organização produtiva e das funções desenvolvidas pelos funcionários. Contudo, subsistem algumas questões problemáticas, como o valor jurídico da referida carta (BURDEL, 2017BURDEL, Paul. Le droit a la déconnexion. Université Jean Moulin Lyon III - Faculté de Droit 2017.).

Alguns autores (BURDEL, 2017BURDEL, Paul. Le droit a la déconnexion. Université Jean Moulin Lyon III - Faculté de Droit 2017.; RAY, 2016RAY J.E., Droit à la déconnexion: un nouveau thème de négociation décrypté par J.-E. Ray, Liaisons sociales quotidien, 1er décembre 2016, p. 1) apontam que a força vinculante dessas cartas, segundo a redação dada pela Lei, fica dependente da vontade do empregador de acrescentá-la ao regulamento da empresa, visto que a carta não pode ser utilizada pelo empregado em juízo contra o empregador. Também, a ausência de previsão legal de sanção para o caso de não elaboração da carta e, por conseguinte, das formas pelas quais os empregados poderão exercer o direito à desconexão contribui para que a carta seja apenas um documento de boas práticas desprovido de força jurídica (RAY, 2016RAY J.E., Droit à la déconnexion: un nouveau thème de négociation décrypté par J.-E. Ray, Liaisons sociales quotidien, 1er décembre 2016, p. 1).

Segundo Laëtitia Morel (2017)MOREL, Laëtitia. Le droit à la déconnexion en droit français: la question de l’effectivité du droit au repos à l’ère du numérique. Labour & Law Issues, vol. 3, nº 2, pp. 1-16, 2017., embora a lei francesa reconheça um direito à desconexão, ela não determina o seu conteúdo, sendo que essa escolha legislativa limita o seu escopo na medida em que restringe o seu campo de aplicação e torna o seu conteúdo variável, além de gerar certa desigualdade entre os trabalhadores de diferentes empresas que desempenhem a mesma função. A autora ainda refere que o reconhecimento de um direito à desconexão consiste na própria constatação da inefetividade de um direito já existente mais amplo, o direito ao descanso, visto que se este fosse respeitado, aquele já estaria sendo exercido.

Também se questiona se a problemática da atual inadequação do Direito do Trabalho reside apenas em questões de conexão (MOREL, 2017MOREL, Laëtitia. Le droit à la déconnexion en droit français: la question de l’effectivité du droit au repos à l’ère du numérique. Labour & Law Issues, vol. 3, nº 2, pp. 1-16, 2017.). Para a pesquisadora francesa, a hiperconexão é um reflexo de um problema maior: a carga de trabalho, partindo do pressuposto de que se os serviços pelos quais o trabalhador for responsável forem incompatíveis com a jornada de trabalho, haverá uma sobrecarga. Nessa perspectiva, a Lei se mostraria ineficiente ao não estabelecer uma relação entre o direito à desconexão e a carga de trabalho, em razão do uso excessivo de dispositivos de informação e comunicação estar relacionado à sobrecarga laboral.

Entretanto, o direito à desconexão concebido no Direito francês tem conteúdo mais amplo que o simples direito ao descanso, por se tratar de direito que visa coibir a situação fática específica de ingerências na vida privada do empregado por meio do uso de dispositivos tecnológicos.

A questão da conexão ao trabalho e articulação com a vida privada do trabalhador na Era Digital também é levantada por Bruno Mettling (2015)METTLING, M. B. Transformation numérique et vie au travail. A l’attention de Madame la ministre du Travail, de l’Emploi, de la Formation Professionnelle et du Dialogue Social. Setembro de 2015., no relatório “Transformation númerique et vie au travail”, que serviu como base para a elaboração da Lei que trata do direito à desconexão na França. O relatório aborda alguns aspectos jurídicos e sociológicos relevantes para a concretização do direito em estudo, quais sejam, a possibilidade dos trabalhadores controlarem a fluidez entre as esferas da vida profissional e da vida privada, a responsabilidade do empregador em assegurar o tempo de descanso, enquanto forma de garantia da saúde do trabalhador, e a compreensão de que o direito de se desconectar implica também um dever de se desconectar por parte do empregado. A desconexão em períodos de descanso deve ser estimulada e concretizada pelo empregador por via de mecanismos no nível da empresa para que possa ser exercida a nível individual.

A previsão de um dever de desconexão como forma de reforçar a efetividade do direito implica a possibilidade de se penalizar o empregado que não respeita a obrigação de se desconectar em períodos de repouso ou não coloca em prática as modalidades de exercício do direito previstas em acordo coletivo (BURDEL, 2017BURDEL, Paul. Le droit a la déconnexion. Université Jean Moulin Lyon III - Faculté de Droit 2017.).

Incumbe ao empregador, que possui a obrigação de segurança e saúde dos seus funcionários, assegurar que a carga de trabalho e os prazos estabelecidos não tornem impossível o exercício do direito de desconexão, além de conscientizar os empregados da importância dessas medidas. Conforme assevera Paul Burdel (2017), a ausência de elaboração de medidas preventivas contra os riscos existentes e potenciais da hiperconexão na esfera da empresa pode resultar na responsabilização do empregador.

A desconexão do trabalho como meio necessário de garantir o gozo do período de descanso envolve também a capacidade dos empregados e empregadores de estabelecerem as práticas necessárias para atingir tal objetivo (JAURÉGUIBERRY, 2014JAURÉGUIBERRY, F. (2014). La déconnexion aux technologies de communication. Réseaux, 186, 4, 15-49.). Jauréguiberry (2014)JAURÉGUIBERRY, F. (2014). La déconnexion aux technologies de communication. Réseaux, 186, 4, 15-49. observa que as desigualdades existentes em função da possibilidade ou não de se desconectar envolvem não apenas as tecnologias de informação e comunicação, mas também o modo de organização e o poder exercido pelo empregador sobre os empregados. Para o autor, os dispositivos tecnológicos podem reforçar as desigualdades existentes, mediante intensificação do controle ou permitir a reorganização do trabalho, por via de atribuição de maior autonomia. A utilização de e-mails permite ao empregador exercer um controle eletrônico sobre o trabalho dos subordinados, reforçando a sobrecarga, que pode ser limitada pela regulação do uso desses dispositivos (CHARKI; CHARKI, 2008).

O estabelecimento de uma forma de medir a carga de trabalho, adequando-a à jornada de trabalho, é essencial para a boa articulação entre vida privada e profissional (METTLING, 2015METTLING, M. B. Transformation numérique et vie au travail. A l’attention de Madame la ministre du Travail, de l’Emploi, de la Formation Professionnelle et du Dialogue Social. Setembro de 2015.). A atribuição de tarefas em nível desproporcionalmente superior ao tempo de trabalho produz, por consequência, a necessidade de realizá-las em outro período, destinado ao descanso, como os intervalos intra e interjornadas. A isso se acrescenta a facilidade de realizar essas tarefas nesses períodos proporcionada pelos dispositivos tecnológicos de informação e comunicação, que permitem o acesso remoto a correios eletrônicos ligados ao trabalho, por exemplo. Nesse sentido, a preservação do período de repouso mediante implementação do direito à desconexão exige também a regulação da carga de trabalho.

A instituição do direito à desconexão pela legislação francesa, embora constitua um avanço para a efetividade das normas de limitação de jornada em meio à implementação de tecnologias na realização do trabalho, não está imune a críticas e a limitações em sua aplicação prática, sendo que a sua efetividade plena depende da adoção de outras medidas no âmbito laborativo, conforme o contexto social em que se insere.

4.2 O direito à desconexão no direito brasileiro

No Brasil, a discussão sobre o direito ao não-trabalho encontra óbices nos conceitos jurídicos e culturais tradicionalmente vigentes no país, construídos a partir de diversos embates sociais por definir as concepções que orientam o sistema normativo nacional (HARFF, 2017). Com efeito, a tutela do direito em questão encontra óbices na concepção do trabalho como identificador da condição humana e elemento de socialização do indivíduo em uma sociedade que se baseia na divisão do trabalho (SOUTO MAIOR, 2003SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Do direito à desconexão do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 23, Campinas, SP, jul./dez. 2003.).

Segundo Jorge Luiz Souto Maior (2003)SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Do direito à desconexão do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 23, Campinas, SP, jul./dez. 2003., o direito à desconexão visa tutelar o bem da vida correspondente ao não trabalho, de modo que a preservação deste direito possa ser dada por via de prestação jurisdicional, quando deduzida pretensão em juízo. No ordenamento jurídico nacional, esse direito pode ser extraído a partir da interpretação conjunta dos seguintes dispositivos constitucionais, não se podendo negar a sua consagração implícita: artigos 1º, III e IV; 5º, X; 6º; 7º, XIII e XXII; 170; 205 a 214; 225; 226; 227 e 229 (BRAGA, 2015BRAGA, E. S. Direito à desconexão do trabalho como instrumento de proteção à saúde do trabalhador. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2015.), além do art. 7º, inciso XXII, da CF/88 (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 02 dez. 2019.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
), que prevê a redução dos riscos inerentes ao trabalho como direito social.

A garantia de um direito à desconexão é sustentada, ainda, pelos princípios pelos quais se pauta a aplicação do Direito do Trabalho brasileiro, que visam à proteção do trabalhador frente ao poderio econômico do empregador, tendo em vista “à constatação fática da diferenciação social, econômica e política entre os sujeitos da relação justrabalhista” (DELGADO, 2017DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2017.), como os princípios da proteção e da tutela da saúde do trabalhador.

No ordenamento jurídico nacional, o direito à desconexão tem por objetivo a efetiva limitação de jornada, a fim de evitar que o empregado esteja à disposição do empregador permanentemente, visto que se considera como tempo de efetivo serviço “o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens”, nos termos do art. 4º da Consolidação das Leis do Trabalho.

Conforme destacam Almeida e Severo (2014)ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Direito à desconexão nas relações sociais de trabalho. São Paulo: LTr, 2014.,

o trabalho, objeto da relação de emprego, não se limita à simples execução de sucessivos atos, mas ao fato de uma pessoa se colocar à disposição de outra, inserindo a sua atividade na dinâmica da atividade econômica de quem lhe emprega.

A legislação trabalhista brasileira parte desse pressuposto ao determinar que o labor realizado por via dos meios telemáticos, mesmo que se trate de tempo à disposição e não de efetiva realização das atividades exigidas pelo trabalho, deve ser remunerado como período de efetivo trabalho.

Nesse sentido, visando equiparar o trabalho realizado no estabelecimento físico do empregador e o prestado à distância mediante utilização de meios telemáticos de informação e comunicação, a Lei 12.551/2011 alterou a redação do art. 6º da CLT e inseriu o parágrafo único que dispõe que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”, sendo considerado, portanto, trabalho efetivo.

Contudo, a inovação legislativa não se mostra suficiente para garantir o direito à desconexão, pois este não se restringe à simples correspondência com o direito ao descanso, mediante limitação de jornada: possui peculiaridades relacionadas com a utilização de meios telemáticos de informação e comunicação para a prestação de serviços, sendo a necessidade de sua garantia decorrente de novas formas de organização do trabalho advindas com a Era Digital. Trata-se, portanto, de direito cuja garantia tem por objeto a preservação da integridade física e psíquica do trabalhador frente às dificuldades de limitação de tempo e espaço de trabalho provocadas pela técnica.

A partir disso, tem-se que os fundamentos da esfera juslaboral que sustentam a necessidade de um direito à desconexão do trabalho como instrumento imprescindível para o resguardo da integridade física e psíquica do trabalhador são “a limitação do tempo de trabalho, o desenvolvimento pleno da personalidade do trabalhador e a necessidade de conciliação do trabalho com a vida fora dele” (BRAGA, 2015BRAGA, E. S. Direito à desconexão do trabalho como instrumento de proteção à saúde do trabalhador. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2015.)2 2 No mesmo sentido, ver: HARFF, Rafael Neves. Direito à desconexão: estudo comparado do direito brasileiro com o direito francês. Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, pp. 53-74, nº 205, jul./2017; CASSAR, Vólia Bomfim. Reflexos do avanço da tecnologia e da globalização nas relações de trabalho: novas profissões e métodos de execução de trabalho. Parte II. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, Rio de Janeiro, jul.-dez./2010, p. 161-169. .

João Leal Amado (2018)AMADO, João Leal. Tempo de trabalho e tempo de vida: sobre o direito à desconexão profissional. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, nº 52, pp. 255-268, Campinas, 2018., por sua vez, assevera que o Direito do Trabalho deve tentar responder ao desafio da conexão permanente por via legal, reafirmando princípios, ou convencional, de modo que os princípios justrabalhistas sejam adaptados à realidade de cada setor de atividade, conforme determinou a legislação em estudo. Ainda segundo o autor, deve haver um dever de não conexão patronal, para que o empregador se abstenha de qualquer conduta que crie obstáculos ao pleno gozo do período de descanso pelo empregado (AMADO, 2018AMADO, João Leal. Tempo de trabalho e tempo de vida: sobre o direito à desconexão profissional. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, nº 52, pp. 255-268, Campinas, 2018.).

No que concerne à jurisprudência trabalhista, a inexistência de lei que consagra o direito à desconexão resulta na aplicação de outros dispositivos para assegurar o pleno direito ao descanso e o controle efetivo de jornada. Nesse sentido, destaca-se a Súmula nº 428 do Tribunal Superior do Trabalho (BRASIL, 2012), editada com a seguinte redação:

I - O uso de instrumentos telemáticos ou informatizados fornecidos pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso.

II - Considera-se em sobreaviso o empregado que, à distância e submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados, permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso.

Segundo o entendimento da Corte Trabalhista, caracteriza-se o regime de sobreaviso quando o empregado aguarda o recebimento de ordens durante o período de descanso. É o denominado estado de disponibilidade, em que o empregado não está efetivamente prestando serviços, mas permanece disponível por via dos instrumentos telemáticos ou informatizados caso o empregador requisite a realização do trabalho sem, contudo, ter a liberdade de locomoção restringida.

O regime de sobreaviso está previsto na CLT no art. 244, destinado aos trabalhadores ferroviários, tendo sido estendido a uma nova situação fática, em que os empregados permanecem em estado de disponibilidade mediante equipamentos tecnológicos. Nesse caso, as horas de sobreaviso são remuneradas a um terço do salário normal, nos termos do art. 244, § 2º, da CLT. No entanto, se o empregado utilizar os instrumentos telemáticos para efetivamente prestar serviços no período de descanso, receberá hora extra correspondente ao período efetivamente trabalhado.

A referida súmula, em seu inciso I, mostra-se insatisfatória na plena garantia do direito de se desconectar pelo empregado, pois permite que o empregado porte instrumentos telemáticos ou informatizados fornecidos pela empresa sem que isso caracterize tempo à disposição do empregador, sendo que “o empregado pode ser importunado com questões afetas a seu trabalho sem que isso imponha algum dever a seu empregador, seja pecuniário ou não”, conforme ressalta Eduardo Braga (2015)BRAGA, E. S. Direito à desconexão do trabalho como instrumento de proteção à saúde do trabalhador. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2015..

Deve-se destacar que a inobservância do direito à desconexão poderá provocar efeitos jurídicos diversos, a depender da forma como os dispositivos digitais são utilizados: se para sujeitar o empregado a um estado de disponibilidade, aguardando chamados para a prestação de serviços, se para efetivamente prestar serviços fora do meio ambiente laboral ou se para repassar questões relacionadas ao trabalho, mantendo o trabalhador conectado.

A partir disso, podemos estabelecer alguns parâmetros interpretativos dos dispositivos existentes no sistema jurídico pátrio, embasados na literatura sobre o tema, que poderiam ser utilizados pelo Poder Judiciário para concretizar a garantia de um direito à desconexão por via de construção jurisprudencial, visto que não há jurisprudência consolidada e homogênea sobre o tema.

A violação contínua do direito à desconexão, caracterizando-se a jornada exaustiva pela interrupção constante dos períodos de descanso do empregado, pode caracterizar o dano moral, em razão do cotidiano de trabalho expor à potencialidade de trabalhar durante o período destinado ao descanso (GÓIS, 2015GÓIS, Luiz Marcelo. Adicional de desconexão: o tempo à disposição do empregador à luz das novas fronteiras da empresa. Suplemento Trabalhista LTr, São Paulo, n. 106, 2015. Disponível em: <https://www.bmalaw.com.br/arquivos/clipping/suplemento_trabalhista_lmg_106.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2020.
https://www.bmalaw.com.br/arquivos/clipp...
), caso em que surge o dever do empregador de indenizar aquele que sobre o qual a lesão foi praticada por sucessivas vezes, principalmente quando se configura como jornada exaustiva. O entendimento encontra amparo nos artigos 186 e 927 do Código Civil (BRASIL, 2002), pois “quando as horas extras se tornam ordinárias, deixa-se o campo da normalidade normativa para se adentrar o campo da ilegalidade” (SOUTO MAIOR, 2003SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Do direito à desconexão do trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 23, Campinas, SP, jul./dez. 2003.), por se tratar de conduta patronal que viola o direito aos intervalos e descansos previstos na legislação trabalhista.

O art. 187 do Código Civil (BRASIL, 2002), por sua vez, trata do abuso de direito, considerando ato ilícito aquele que ocorre quando o titular de um direito exerce-o de maneira a exceder os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Na seara da duração do trabalho, o ordenamento jurídico confere ao empregador o direito de exigir do empregado o labor além do limite de oito horas diárias, limitada a duas. Contudo, trata-se de horas de trabalho extraordinário que, se tornado habitual, constitui abuso de direito, eis que a limitação de jornada é norma de ordem pública.

A realização de jornada exaustiva pela utilização de dispositivos telemáticos conduz à caracterização de outro tipo de dano: o dano existencial, que tem por base “a supressão de direitos trabalhistas de forma reiterada e contumaz por parte do empregador, cerceando o direito de o trabalhador dispor livremente de seu descanso” (CARDOSO, 2015CARDOSO, Jair Aparecido. O direito ao descanso como direito fundamental e como elemento de proteção ao direito existencial e ao meio ambiente do trabalho. Revista de Informação Legislativa do Senado. Brasília, a. 52, nº 207, jul./set., 2015, pp. 7-26.). O dano existencial caracteriza-se não apenas pela efetiva prestação do labor, mas também pela configuração de conduta abusiva do empregador em caso de contato com o empregado em períodos de descanso para passar informações relativas ao trabalho ou realizar cobranças, ou seja, qualquer conduta capaz de afetar o direito à vida privada do trabalhador por ingerências indevidas do meio profissional. Tais condutas podem resultar na submissão de determinado trabalhador a exaustivo regime de trabalho, que “culmina na formação do dano ao projeto de vida e à sua existência, pois priva-lhe de tempo para o lazer, para a família e para o seu próprio desenvolvimento”, provocando-lhe o dano existencial (BOUCINHAS FILHO; ALVARENGA, 2012).

De outro lado, é possível discutir se o dano moral constitui uma medida superficial para o enfrentamento da questão (GÓIS, 2015GÓIS, Luiz Marcelo. Adicional de desconexão: o tempo à disposição do empregador à luz das novas fronteiras da empresa. Suplemento Trabalhista LTr, São Paulo, n. 106, 2015. Disponível em: <https://www.bmalaw.com.br/arquivos/clipping/suplemento_trabalhista_lmg_106.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2020.
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), pois não cria medidas para o exercício do direito à desconexão pelo empregado, restando apenas a reparação do dano. Luiz Marcelo Góis (2015)GÓIS, Luiz Marcelo. Adicional de desconexão: o tempo à disposição do empregador à luz das novas fronteiras da empresa. Suplemento Trabalhista LTr, São Paulo, n. 106, 2015. Disponível em: <https://www.bmalaw.com.br/arquivos/clipping/suplemento_trabalhista_lmg_106.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2020.
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propõe duas formas de compensação/remuneração pelos períodos de conexão em momentos de descanso. A primeira consiste no tratamento conferido pela jurisprudência à categoria de trabalhadores marítimos, em que se reconhece a pré-fixação de horas extras em acordos e convenções coletivas a partir do reconhecimento da dinamicidade do trabalho em embarcações, que não permite o controle adequado da jornada. A lógica poderia ser aplicada aos empregados cujo período de descanso é interrompido de forma fragmentada por acessos digitais aos ambientes de trabalho virtuais, uma vez que as horas despendidas em momentos de conexão são de difícil controle e podem ter curta duração ou ser meramente potenciais.

A segunda forma de regulamentação proposta pelo autor consiste na fixação, pela lei, de um “adicional de desconexão” (GÓIS, 2015GÓIS, Luiz Marcelo. Adicional de desconexão: o tempo à disposição do empregador à luz das novas fronteiras da empresa. Suplemento Trabalhista LTr, São Paulo, n. 106, 2015. Disponível em: <https://www.bmalaw.com.br/arquivos/clipping/suplemento_trabalhista_lmg_106.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2020.
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), pela simples potencialidade do trabalhador se conectar, consistente no pagamento de valor calculado sobre a remuneração ou outro valor independentemente do efetivo trabalho. Mas, se o empregado for submetido ao trabalho à distância de forma contínua e em que o controle de jornada facilitado, fará jus ao pagamento de horas extras pelo tempo trabalhado. A possibilidade é adequada à dinamicidade no uso dos meios telemáticos, visto que a potencialidade de trabalho está presente a todo o momento e o tempo efetivamente despendido na prestação de serviços em momentos de conexão pode não ser significativo a ponto de demandar a anotação de jornada.

Todavia, ressalta-se que se existem condições técnicas de controle e supervisão, o empregador tem o dever de não interferir de nenhuma forma na esfera da vida privada do empregado, abstendo-se de enviar mensagens cujo conteúdo seja relativo ao trabalho, sob pena de se caracterizar o abuso de direito e sujeitar o responsável ao pagamento de indenização por danos morais ou existenciais.

Verifica-se que a garantia de um direito à desconexão do trabalho no Brasil, inexistindo legislação expressa sobre o tema, decorre de uma interpretação conjunta dos dispositivos constitucionais de proteção do labor, da dignidade da pessoa humana, do direito à vida privada, entre outros. E, sendo reconhecida a existência do direito citado no ordenamento jurídico nacional, é possível demandar em juízo a sua observância ou a reparação pela violação mediante pleito de tutelas ressarcitória e inibitória. As medidas judiciais cabíveis podem ser de natureza individual, conforme já exposto, ou coletiva.

As medidas destinadas à tutela coletiva encontram amparo na Lei nº 7.347/85 (BRASIL, 1985), que disciplina a ação civil pública, instrumento judicial cabível para a reparação de danos causados à coletividade, de ordem moral e/ou material (tutela ressarcitória), ou visando à adequação da conduta da empresa demandada mediante condenação ao cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer (tutela inibitória). Logo, a via da ação coletiva trabalhista no ordenamento jurídico brasileiro funciona como um instrumento de efetivação de alguns direitos, tal como o de se desconectar, cujas formas de garantia não estão positivadas na legislação vigente. Nesse sentido, poderá ser demandada em ação civil pública, por exemplo, que o empregador se abstenha de utilizar meios de comunicação à distância para entrar em contato com os empregados nos momentos destinados ao descanso.

Ademais, o Ministério Público do Trabalho poderá firmar compromisso de ajustamento de conduta com o empregador para fins de adequação da conduta às exigências legais, nos termos do art. 5º, § 6º, da Lei da Ação Civil Pública, caso em que a demanda não precisará ser judicializada. No âmbito do compromisso, o MPT pode propor à empresa que se comprometa ao cumprimento de determinadas medidas compreendidas como adequadas à garantia do pleno exercício do direito à desconexão no caso concreto. Há, assim, uma margem de liberdade e criatividade do órgão ministerial para a definição dessas medidas, que podem ou não ser aceitas.

A tutela coletiva tem o potencial de impor ao empregador o cumprimento de determinadas medidas destinadas à implementação de formas de exercício do direito à desconexão pelos empregados, tendo em vista a ausência de legislação nesse sentido.

O meio processual adequado dependerá da situação fática em que o direito foi violado, sendo que a ausência de garantia do direito à desconexão pelo empregador pode resultar em consequências jurídicas diversas, a depender da intensidade e da frequência em que tal direito não foi assegurado.

5 Possibilidade de positivação do direito à desconexão no ordenamento jurídico brasileiro

A tutela de um direito à desconexão do trabalho no Brasil é possível pela existência de meios processuais adequados, a depender da extensão da violação perpetrada. Entretanto, constituem medidas que não permitem que o conteúdo do direito seja estabelecido de forma geral, tal como ocorre mediante disposição legal, e que haja previsibilidade em relação a condutas que devem ser adotadas pelos empregadores para não incidirem em violações ao referido direito.

Para identificar, ainda que parcialmente, como o direito vem sendo tutelado em juízo, expõe-se pesquisa jurisprudencial realizada na esfera do Tribunal Superior do Trabalho. O termo utilizado para a pesquisa foi “direito à desconexão”, com restrição quanto à peça processual (recurso de revista) e sem restrição quanto à ementa ou texto do julgado. A busca se restringiu aos julgados existentes até julho de 2020. A análise foi restrita aos acórdãos, por melhor representativos do entendimento de cada Corte, eis que reflete os julgamentos colegiados.

Foram encontrados 61 acórdãos que trazem o termo “direito à desconexão” em algum ponto da fundamentação (dados dos processos no Anexo I), sendo possível agrupar os acórdãos nas seguintes categorias, conforme o sentido atribuído ao termo buscado:

  1. a

    Acórdãos em que o direito à desconexão adquiriu o sentido de direito a se desligar do trabalho ou direito ao descanso, sem vínculo com uso de dispositivos tecnológicos: 34 acórdãos.

  2. b

    Acórdãos em que o direito à desconexão adquiriu o sentido de direito ao descanso com vínculo com uso de dispositivos tecnológicos, mas sem concessão de nenhum direito: 4 acórdãos.

  3. c

    Acórdãos em que o direito à desconexão dos profissionais do segmento jurídico foi utilizado para embasar a não deflagração do prazo processual em sábados, domingos e feriados, ou seja, em uma questão eminentemente processual: 2 acórdãos.

  4. d

    Acórdãos em que a jornada exaustiva pela violação do direito à desconexão deu direito a indenização por danos morais: 3 acórdãos.

  5. e

    Acórdãos em que a violação do direito à desconexão deu direito a horas extras: 10 acórdãos.

  6. f

    Acórdãos em que foi concedido adicional de sobreaviso: 8 acórdãos.

A partir desses resultados é possível notar que o conceito de direito à desconexão não encontra sentido unívoco na jurisprudência das Cortes trabalhistas, além do que o termo vem sendo utilizado com o simples sentido de direito ao descanso ou de não ser incomodado em períodos de descanso, sem ligação com o uso de dispositivos tecnológicos, ou, ainda, para embasar fundamentação decisória sobre questão eminentemente processual. Portanto, infere-se que o direito em questão ainda não possui tutela específica clara quando a sua observância ou a reparação pela sua violação são demandados em juízo.

Em relação aos casos em que a violação do direito à desconexão deu direito a horas extras, a maioria deles não fazia referência ao uso de dispositivos tecnológicos, de que se infere que o sentido atribuído ao termo é o de simplesmente direito ao descanso.

Nota-se, portanto, que, por vezes, o termo “direito à desconexão” é referido nos julgados como simplesmente direito ao não trabalho, não se referindo ao sentido pretendido pela legislação francesa, ligado à preservação da vida pessoal do trabalhador, a partir da não utilização de dispositivos eletrônicos para laborar no período fora da jornada de trabalho fixado, mediante o acesso a e-mails, plataformas online e outros meios de se relacionar com o trabalho eletronicamente.

A referência ao conceito sem a necessária definição do seu sentido e do bem jurídico tutelado pode resultar na ausência de tratamento jurídico claro do direito, tratando-o como simples sinônimo de direito ao descanso ou ao não trabalho, sem relacioná-lo ao enfrentamento da problemática da relação entre tecnologia como instrumento de trabalho e à conciliação entre vida profissional e pessoal na Era Digital e, essencialmente, à tutela da vida pessoal do trabalhador, enquanto elemento de concretização da dignidade da pessoa humana.

Malgrado a diversidade de entendimentos existentes no Tribunal Superior do Trabalho, a garantia do direito em estudo no Brasil ainda ocorre na esfera do Poder Judiciário, quando as demandas são judicializadas, com fundamento nas normas de proteção da duração do trabalho, consagradas na Constituição Federal. Disso decorre que as consequências jurídicas pela violação do direito à desconexão são diversas e dependem das circunstâncias aferíveis concretamente, como a possibilidade ou não de controle de jornada.

Nesse sentido, a positivação do direito de se desconectar revela-se como medida destinada à sua observância de forma isonômica, embora existam limitações para a regulamentação e aplicação plena. A principal finalidade do implemento desse direito é a limitação da jornada de trabalho na Era Digital, tendo em vista a utilização de equipamentos de comunicação instantânea como ferramenta laboral. Isso porque, se por um lado os meios informatizados proporcionam domínio e um sentimento de liberdade, de outro, tem-se a perda de controle e alienação decorrente dele (CHAULET; DATCHARY, 2014CHAULET, Johann; DATCHARY, Caroline. Moduler sa connexion: les enseignantes-chercheurs aux prises avec leur courriel. Réseaux, nº 186, pp. 105-140, 04/2014.).

Uma das dificuldades de implementação do direito à desconexão no Brasil, nos moldes da lei francesa, refere-se à ausência de negociação coletiva obrigatória anual para o tratamento de alguns temas no ordenamento jurídico nacional. Não há, no país, obrigatoriedade de que o ente empresarial e os sindicatos se empenhem na negociação de determinados assuntos, tal como a previsão dos mecanismos necessários para o exercício do direito de se desconectar pelos empregados.

Isso em razão do Direito Coletivo do Trabalho no Brasil ter como alguns dos seus princípios regentes o da liberdade e da autonomia sindical, de modo que a intervenção do Estado na negociação coletiva é vedada pela Constituição Federal, com exceção às limitações decorrentes de outros princípios igualmente merecedores de proteção, como aquelas instituídas pelo art. 611-B da Consolidação das Leis do Trabalho, que dispõem acerca dos direitos não passíveis de supressão ou redução por acordo ou convenção coletivos.

Outra limitação à implementação expressa do direito à desconexão se refere ao controle da jornada dos momentos de conexão, eis que a conexão ao trabalho pode consistir em momentos que podem ser de curta duração e, em geral, trata-se de um período fragmentado.

A anotação da jornada é dificultada também pela própria conduta dos trabalhadores, que não conseguem separar a vida profissional da pessoal a partir de uma interiorização de ideias. Segundo Teresa Coelho Moreira (2012)MOREIRA, Teresa Coelho. Novas tecnologias: um admirável mundo novo do trabalho. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais. Vitória, nº 11, jan./jun. 2012, pp. 15-52., “há uma interiorização desta ideia pelos trabalhadores e uma gestão realizada por objetivos de tal forma que, após algum tempo, são os próprios trabalhadores a não conseguirem separar a vida profissional da vida privada”.

Os conceitos bourdieusianos podem ser utilizados para explicar esse fenômeno: no mundo do trabalho, a integração com o habitus se dá em relação ao campo jurídico, especificamente, e social como um todo. O detentor do capital financeiro e social na sociedade capitalista determina os símbolos que legitimam a cultura de valorização do excesso de trabalho como representativo de esforço pessoal.

O ambiente laboral é influenciado pelos detentores do capital simbólico, que reproduzem a ideia da longa jornada de trabalho como única forma de ascensão social, conduzindo uma gestão vinculada à imposição de carga de trabalho excessiva, que não é passível de cumprimento na jornada pré-fixada, sendo inevitável, portanto, a realização do serviço em períodos de descanso.

Concomitantemente, o habitus gerado no campo jurídico - como os entendimentos dos aplicadores do direito acerca do direito à desconexão - resulta em “interiorização do conjunto de ideias e valores hegemônicos e sua exteriorização em condutas socialmente aceitas e legitimadas simbolicamente” (PONZILACQUA, 2018PONZILACQUA, M. H. P. A Sociologia do Campo Jurídico de Bourdieu e Dezalay, Revista Direito e Práxis, v. 9, n. 1, 2018, p. 226-249.).

A questão da implementação de um direito de se desconectar do trabalho, insere-se no âmbito de controle do acesso ao campo jurídico. Conforme desenvolvido por Pierre Bourdieu (1989), o acesso ao campo jurídico é controlado pelos que detém a competência jurídica, os quais determinam “os conflitos que merecem entrar nele e a forma específica de que se devem revestir para se constituírem em debates propriamente jurídicos”. A partir da entrada no campo jurídico, as realidades sociais subjacentes são reduzidas a uma definição jurídica com pretensão de universalidade. No Brasil, a discussão sobre o tema tem ganhado espaço, inclusive com reconhecimento do direito pelo Judiciário, mas ainda não há uma legislação expressa sobre o tema.

Embora o direito à desconexão possa ser reconhecido por via de construção jurisprudencial, a edição de uma lei que disponha especificamente sobre ele tem o potencial de ampliar seu campo de incidência e lhe conferir tratamento uniforme, visto que, conforme teoria bourdieusiana,

a eficácia do direito tem a particularidade de se exercer para além do círculo daqueles que estão antecipadamente convertidos, em consequência da afinidade prática que os liga aos interesses e aos valores inscritos nos textos jurídicos.

Com efeito, segundo Bourdieu (1989) “a pretensão da doutrina jurídica e do procedimento judicial à universalidade, que se realiza no trabalho de formalização, contribui para fundamentar sua universalidade prática”3 3 Nesse sentido, cf. também: ELLUL, Jacques. Le problème de l’émergence du droit. Annales de Bordeaux, I, 1, 1976, pp. 6-15. .

Nesse cenário, segundo Dezalay (2013), o direito e os juristas devem considerar as transformações da realidade social para manter as estruturas constitutivas da ordem jurídica, permitindo a remodelação das forças internas sem fragilizar as representações que sustentam o fundamento da autonomia e, portanto, da legitimidade do campo jurídico.

Por isso, o reconhecimento expresso de um direito à desconexão do trabalho tem o potencial de alterar a atual dinâmica de organização laboral, especificamente no que se refere ao trabalho intelectual, para coibir situações de disponibilidade constante pelo uso de meios telemáticos de informação e comunicação, sendo que o conteúdo desse direito deve objetivar o alcance da imposição de condutas que sejam suficientes à concessão e preservação do tempo livre do trabalhador (BRAGA, 2015BRAGA, E. S. Direito à desconexão do trabalho como instrumento de proteção à saúde do trabalhador. Dissertação (Mestrado em Direito). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2015.).

Visando inserir o direito citado no sistema de direito positivo brasileiro, destaca-se a existência do Projeto de Lei nº 4.044, de 2020 (BRASIL, 2020), de autoria do Senador Fabiano Contarato, apresentado ao Senado Federal, que estabelece regras para a garantia do direito à desconexão do trabalho no Brasil4 4 Antes do PL 4.044/2020 já havia sido apresentado outro projeto de lei cujo objeto era o direito à desconexão – PL 6.038/2016 da de autoria da deputada Angela Albino -, mas com um menor grau de detalhamento, pois previa apenas a inserção do art. 72-A na CLT com o seguinte texto: “É vedado ao empregador exigir ou incentivar que, fora do período de cumprimento de sua jornada de trabalho, o empregado permaneça conectado a quaisquer instrumentos telemáticos ou informatizados com a finalidade de verificar ou responder a solicitações relacionadas ao trabalho”. . Ao contrário da lei francesa referida acima, o projeto objetiva fixar padrões mínimos para preservar o direito em apreço, que não dependem de negociação coletiva para serem observados de forma obrigatória pelos entes empresariais.

O projeto prevê a inclusão dos artigos 65-A, 72-A, 133-A na Consolidação das Leis do Trabalho e a alteração do § 2º, art. 244. A redação do art. 65-A dispõe sobre a aplicação das regras de duração do trabalho ao teletrabalho, cuja incidência foi afastada pela Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017).

Os artigos 72-A e 133-A contém previsão sobre o direito à desconexão em si, mas enquanto aquele trata da proibição do empregador em acionar o empregado por ferramentas telemáticas durante o período de descanso, este garante o gozo de férias sem qualquer comunicação do empregador durante esse período mediante exclusão do empregado de eventuais grupos de trabalho em aplicativos de mensagens. O dispositivo referente ao período de descanso ainda estabelece que o empregado poderá ser contatado em caso de “força maior ou caso fortuito”, para “atender à realização de serviços inadiáveis ou cuja inexecução possa acarretar prejuízo manifesto, hipótese em que serão aplicadas as disposições relativas à hora extraordinária” (BRASIL, 2020).

O referido projeto de lei também prevê que as exceções do art. 72-A para o acionamento do empregado devem ser previstas em acordo coletivo ou convenção coletiva, de forma que não se permite a mera justificativa de necessidade imperiosa.

O conteúdo previsto para o art. 244, § 2º, da CLT regula o sobreaviso, consistente nas hipóteses em que o empregado permanece aguardado o chamado por via de meios telemáticos para o serviço durante o período de descanso, incorporando na legislação trabalhista o teor da súmula 428 do TST.

Apesar de o projeto visar à regulamentação do direito à desconexão e das formas de garanti-lo, ele trata do regramento jurídico em caso de descumprimento apenas nas situações em que o empregado seja acionado para o trabalho (art. 72-A) ou em que o trabalhador permaneça aguardando o chamado para o serviço (art. 244, § 2º). Constata-se, nesse aspecto, que o projeto não prevê quais serão as regras jurídicas aplicáveis nas hipóteses de violação ao direito à desconexão no formato cada vez mais presente na Era Digital, como delineado no presente artigo: fragmentado e dinâmico de tal forma que torna difícil ou mesmo impossível a contagem do tempo despedido nos momentos de conexão laboral.

Entretanto, a proibição da conduta de contatar o empregado por via de meios telemáticos e informatizados de comunicação em períodos de descanso já constitui forma de consagrar a existência do direito no ordenamento jurídico positivo, com a consequência de que a sua violação poderá resultar na responsabilização do empregador, inclusive com a possibilidade de pagamento a título de horas extraordinárias dos momentos de conexão.

O reconhecimento da existência de um direito à desconexão pelo sistema legal brasileiro e a previsão das medidas que devem ser adotadas pelo empregador para efetivar o seu cumprimento é essencial para conferir a universalidade necessária para a efetividade e isonomia na garantia do direito. Nesse contexto, o tratamento jurídico para as situações em que ocorrer violação do direito é a medida adequada para assegurar a real observância do respeito aos períodos de descanso dos empregados.

6 Considerações finais

O direito à desconexão do trabalho foi positivado no ordenamento jurídico francês como forma de garantir o direito ao descanso na Era da Informação, tendo em vista as peculiaridades das relações de trabalho contemporâneas, em que há a utilização de meios telemáticos e informatizados de comunicação por períodos de tempo fragmentados e de forma dinâmica, que dificulta ou torna impossível o controle de jornada nos moldes tradicionais.

No Brasil, a implementação do direito de se desconectar no ordenamento jurídico encontra óbices no contexto social, sendo que a garantia do direito atualmente se dá nos Tribunais, quando as demandas são judicializadas, com fundamento nas normas de proteção da duração do trabalho, consagradas na Constituição Federal. Disso decorre que as consequências jurídicas pela violação do direito à desconexão são diversas e dependem das circunstâncias aferíveis concretamente, como a possibilidade ou não de controle de jornada.

A inserção de um direito à desconexão do trabalho no ordenamento jurídico positivo tem o potencial de proporcionar segurança jurídica, uma vez que as consequências do seu descumprimento estarão expressamente previstas em Lei, além de possibilitar a sua adequada tutela, mediante prescrição das condutas que devem ser adotadas pelas empresas. Contudo, no Brasil, tal direito deve ser adaptado de acordo com a realidade sociojurídica do país para assegurar que as fronteiras entre vida profissional e vida pessoal sejam preservadas e que o período de descanso seja adequadamente respeitado.

  • 1
    Art. L3121-1, Code du Travail: “La durée du travail effectif est le temps pendant lequel le salarié est à la disposition de l'employeur et se conforme à ses directives sans pouvoir vaquer librement à des occupations personnelles”.
  • 2
    No mesmo sentido, ver: HARFF, Rafael Neves. Direito à desconexão: estudo comparado do direito brasileiro com o direito francês. Revista Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, pp. 53-74, nº 205, jul./2017; CASSAR, Vólia Bomfim. Reflexos do avanço da tecnologia e da globalização nas relações de trabalho: novas profissões e métodos de execução de trabalho. Parte II. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, Rio de Janeiro, jul.-dez./2010, p. 161-169.
  • 3
    Nesse sentido, cf. também: ELLUL, Jacques. Le problème de l’émergence du droit. Annales de Bordeaux, I, 1, 1976, pp. 6-15.
  • 4
    Antes do PL 4.044/2020 já havia sido apresentado outro projeto de lei cujo objeto era o direito à desconexão – PL 6.038/2016 da de autoria da deputada Angela Albino -, mas com um menor grau de detalhamento, pois previa apenas a inserção do art. 72-A na CLT com o seguinte texto: “É vedado ao empregador exigir ou incentivar que, fora do período de cumprimento de sua jornada de trabalho, o empregado permaneça conectado a quaisquer instrumentos telemáticos ou informatizados com a finalidade de verificar ou responder a solicitações relacionadas ao trabalho”.

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  • _____. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 15 jan. 2020.
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  • ______. Senado Federal. Projeto de Lei nº 4.044, de 2020. Altera o § 2º do art. 244 e acrescenta o § 7º ao art. 59 e os arts. 65-A, 72-A e 133-A ao Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, para dispor sobre o direito à desconexão do trabalho. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8871666&ts=1598305429608&disposition=inline>. Acesso em: 15 nov. 2020.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2020
  • Aceito
    03 Dez 2020
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