Acessibilidade / Reportar erro

Entre o privado, o público e o comum: repensando os direitos de propriedade da terra

Between the private, the public and the common: rethinking land property rights

Resumo

No senso comum, o termo propriedade remete diretamente à noção de propriedade privada individual, exclusiva e absoluta. No máximo, admite-se a existência da propriedade pública, invariavelmente confundida com a propriedade estatal. Este entendimento extremamente simplificado contribui para reduzir a complexidade encerrada na ideia de propriedade, assim como para obscurecer suas dimensões sociais e políticas. Neste trabalho, argumenta-se que o conceito de comum é oportuno para aprofundar a crítica da propriedade privada e da ideologia do individualismo possessivo, assim como para reconhecimento de amplo espectro de formas coletivas de uso e posse da terra. Navegando entre as histórias, instituições, direitos e ideologias relacionadas à propriedade da terra, busca-se oferecer elementos para uma reconsideração crítica da noção de propriedade. Para tanto, discute-se o antagonismo entre o comum e a propriedade privada, abordando a instituição do direito de propriedade, a ideologia do individualismo possessivo, e a existência de formas mais coletivas e menos exclusivas de direitos de propriedade que não se enquadram no binarismo público-privado.

Palavras-chave:
Direito de propriedade; Propriedade da terra; Comum

Abstract

In common sense, the term property refers directly to the notion of individual, exclusive and absolute private property. At most, the existence of public property is admitted, which is invariably confused with state property. This extremely simplified understanding contributes to reduce the complexity contained in the idea of ​​property, as well as to obscure its social and political dimensions. In this work, it is argued that the concept of the commons is appropriate to deepen the critique of private property and the ideology of possessive individualism, as well as to the recognition of a wide spectrum of collective forms of use and tenure of the land. Navigating between the histories, institutions, rights and ideologies related to land ownership, we seek to offer elements for critically reconsidering the notion of property. To this end, the antagonism between the common and private property is discussed, addressing the institution of property rights, the ideology of possessive individualism, and the existence of more collective and less exclusive forms of property rights that do not fit in with the public-private binarism.

Keywords:
Property rights; Landed property; Commons

Um dia, que de fato virá, a propriedade privada da terra, da natureza e dos seus recursos parecerá tão absurda, tão odiosa, tão ridícula quanto a possessão de um humano por outro. Henri Lefebvre (2009_____________. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009., p. 194-195, tradução nossa).

1. Introdução1 1 Parte deste texto tem origem na tese de doutorado do autor, “Comum urbano: a cidade além do público e do privado”, defendida em 2017 no Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais. O autor agradece à orientação da profa. Heloisa Costa e ao CNPq e à CAPES pelo auxílio financeiro.

A eclosão da crise financeira global de 2007-2008 tornou patente os nexos entre mercados imobiliários, urbanização e financeirização, chamando atenção para a centralidade da propriedade da terra na economia política do capitalismo contemporâneo. A despeito do silêncio sobre este tema, reconhece-se cada vez mais a terra como principal fonte de rendas em economias avançadas (RYAN-COLLINS ET AL., 2017RYAN-COLLINS, Josh; LLOYD, Toby; MACFARLANE, Laurie. Rethinking the Economics of Land and Housing. Zed Books Ltd., 2017.), o que se expressa no aumento substantivo do estoque de riqueza representada por habitação desde os anos 1980, vis a vis a perda de peso da riqueza em capital (PIKETTY, 2014PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Editora Intrínseca, 2014.), e no fato dos empréstimos hipotecários constituírem hoje a principal fonte de crédito nas economias centrais.

A terra, e particularmente a moradia, mostram-se objetos preferenciais de financeirização por suas propriedades específicas - imobilidade, durabilidade, irreprodutibilidade etc. - que a tornam um excelente colateral e investimento. As últimas décadas foram marcadas pelo estabelecimento de uma nova relação do capital com o espaço sob a hegemonia do rentismo e do capital fictício, no qual a terra deixa de ser apenas valor de uso ou meio de produção para se tornar ativo financeiro, governada pela lógica especulativa de maximização de rendas fundiárias (AALBERS, 2008AALBERS, Manuel B.. The financialization of home and the mortgage market crisis. In: Competition & Change, v. 12, n. 2, p. 148-166, 2008.; HARVEY, 2006____________. The limits to capital (new and fully updated edition). London and New York: Verso, 2006.).

Sob o signo da financeirização, a imposição da hegemonia da propriedade privada da terra (absoluta, exclusiva, alienável e escriturada) se dá em detrimento de outras formas de posse e de propriedade, e tem como corolário uma crise global de insegurança de posse (ROLNIK, 2015ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2015.) marcada por expulsões das populações de seus territórios de toda ordem: land grabs, despejos motivados por execuções hipotecárias e remoções forçadas (muitas vezes violentas) para dar espaço a grandes projetos (SASSEN, 2014SASSEN, Saskia. Expulsions: brutality and complexity in the global economy. Harvard University Press, 2014.).

A emergência de novas disputas e conflitos em torno da terra reacendeu o debate sobre a questão fundiária no âmbito ao menos do pensamento crítico (BLOMLEY, 2004BLOMLEY, Nicholas K.. Unsettling the city: urban land and the politics of property. New York, London: Routledge, 2004.), tendo como pressuposto o questionamento do individualismo possessivo (MACPHERSON, 1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.), ideologia liberal que procura construir a imagem da propriedade privada como universal, natural e eficiente, em oposição à realidade concreta da sua instituição enquanto bundle of rights que precisam ser garantidos pela sociedade e pelo Estado.

Tanto K. Marx (2013____________. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867).) quando K. Polanyi (2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 (1944).) haviam chamado atenção para as raízes históricas da transformação da terra em mercadoria através dos processos de cercamento de terras e recursos comuns, interpretados por estes autores, respectivamente, como “acumulação primitiva de capital” ou como formação da “sociedade de mercado”. Linklater (2013LINKLATER, Andro. Owning the earth: the transforming history of land ownership. Bloomsbury Publishing USA, 2013.) fala de uma história complexa da propriedade da terra e da coexistência de múltiplas formas de uso da terra, direitos de propriedade e posse, inclusive de natureza coletiva. Ostrom (1991) também reconheceu a existência e o valor de recursos coletivos de uso comum alternativos à propriedade pública (estatal) e privada. Mais recentemente, até a UN-Habitat reconheceu essa pluralidade fundiária por meio do conceito de continuum of land rights, que inclui formas variadas de posse e propriedade (posse costumeira, usucapião, posse coletiva, concessões, arrendamentos, propriedade registrada etc.) que variam da informalidade à formalidade, apontando para existência de formas não-mercantis de acesso à terra garantidoras de segurança de posse (ROLNIK, 2015ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2015.).

No senso comum, entretanto, o termo propriedade continua remetendo diretamente à noção de propriedade privada individual, exclusiva e absoluta. No máximo, admite-se a existência da propriedade pública, invariavelmente confundida com a propriedade estatal. Este entendimento extremamente simplificado contribui para reduzir a complexidade (teórica e empírica) encerrada na ideia de propriedade, assim como para obscurecer suas dimensões sociais e políticas, além de invisibilizar uma diversidade de relações de propriedade não facilmente enquadradas no binarismo público/privado. No âmbito das ciências sociais, com raras e notáveis exceções, a propriedade fundiária é uma “caixa-preta” pouquíssimo explorada: assume-se a priori a plena vigência dos direitos de propriedade, dos mecanismos de mercado da terra e a universalidade e naturalidade da propriedade privada.

Neste artigo, procura-se discutir alguns aspectos teóricos e históricos da categoria propriedade a partir da ideia do comum. Em termos conceituais, os comuns (ou recursos comuns) podem ser definidos como bens que são coletivamente usados e geridos por uma comunidade por meio do fazer-comum (commoning), um conjunto de práticas e relações de compartilhamento e reciprocidade (LINEBAUGH, 2014LINEBAUGH, Peter. Stop, thief! The commons, enclosures and resistance. Oakland, CA: PM Press, 2014.), para além do âmbito do Estado e do mercado e das suas respectivas formas de propriedade, pública e privada. As abordagens teóricas e os estudos sobre o comum, sejam em sua vertente liberal institucionalista, sejam nas suas formulações mais críticas2 2 Para uma revisão das abordagens críticas contemporâneas sobre o comum, ver Tonucci Filho (2019). , procuram investigar e compreender os recursos naturais e terras comunais, as infraestruturas, serviços e espaços coletivos nas cidades, além dos vastos comuns imateriais, de base afetiva, cultural ou informacional.

Nas últimas décadas, a noção do comum passou também a ocupar um espaço de destaque na gramática e no imaginário político de movimentos anticapitalistas e democráticos que se opõem à subordinação de todas as esferas da vida social e natural à lógica da mercadoria, da competição e da propriedade; nos termos de Dardot e Laval (2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.), trata-se de um princípio político antagônico à racionalidade neoliberal. Ao evocar um porvir não capitalista para além da antinomia Estado versus mercado, propriedade pública versus privada, o comum aproxima-se de um campo de práticas mais autônomas e coletivas de produção e reprodução social (DE ANGELIS, 2007DE ANGELIS, Massimo. The beginning of history: value struggles and global capital. London; Ann Arbor, MI: Pluto, 2007.; HARDT; NEGRI, 2009HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusets: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.).

Seguindo Dardot e Laval - para quem “não se trata mais de opor simplesmente a propriedade privada e a propriedade pública, mas de questionar prática e teoricamente os fundamentos e os efeitos do direito de propriedade” (2015, p. 261) -, argumenta-se neste trabalho que o conceito de comum contribui para aprofundar a crítica da propriedade privada e da ideologia do individualismo possessivo. Ademais, a referência ao comum abre um espaço para reconhecimento de um amplo espectro de formas coletivas de uso e posse da terra e dos recursos e arranjos não exclusivos de direitos de propriedade. Navegando entre as histórias, instituições, direitos e ideologias relacionadas à propriedade da terra, busca-se aqui oferecer elementos para uma reconsideração crítica da noção de propriedade, visando apreenda-la não como objeto ou relação universal e natural, mas enquanto conjunto heterogêneo de relações jurídicas que expressam configurações sociais histórica e geograficamente determinadas.

Afora esta introdução, o texto está estruturado da seguinte forma: na segunda seção, são abordados os processos históricos de formação da propriedade privada capitalista a partir dos cercamentos do comum; na terceira, discutem-se definições teóricas sobre a propriedade e os múltiplos direitos que constituem o direito de propriedade privada; na quarta seção, expõe-se uma breve história das ideias subjacentes à ideologia do individualismo possessivo; na quinta seção, apresentam-se exemplos de “formações híbridas e incertas da propriedade”, sustentadas por costumes em comum e irredutíveis à apropriação privada; finalmente, a sexta seção discute a relação entre formas de propriedade comum, as definições de propriedade pública e o direito formal. Ao final, e à título de conclusão, aportam-se breves reflexões acerca da relevância da crítica da propriedade sob o capitalismo contemporâneo, assim como sobre o horizonte contraditório de transformação da ordem proprietária no Brasil.

2. Cercamentos do comum: raízes da propriedade privada

Dardot e Laval (2015____________. Propriedade, apropriação social e instituição do comum. In: Tempo social, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 261-273, 2015., 2017) observam que o capitalismo tem sua base filosófica, jurídica e econômica na instituição da propriedade privada, que concede o domínio e o gozo exclusivo das coisas ao proprietário, retirando-lhes do uso comum e minando a cooperação. A instituição proprietária opera “autonomizando” a economia, liberando os sujeitos - tornadas indivíduos - dos seus múltiplos laços comunitários, usos consuetudinários e normas e valores sociais coletivos. Doravante, irão se relacionar apenas na esfera do mercado enquanto produtores e consumidores, átomos sociais desgarrados de filiações outras. O corolário desse processo de desenraizamento da economia é a própria abstração econômica do valor em processo permanente de autovalorização:

A abstração do valor em relação aos valores de uso, da quantidade em relação à qualidade, da pessoa em relação ao grupo, do gozo absoluto diante das necessidades sociais, é parte de um único processo histórico. Polanyi e Marx perceberam o essencial ao considerarem a destruição do comum pelos cercamentos o mais eficaz dos mecanismos (DARDOT, LAVAL, 2015____________. Propriedade, apropriação social e instituição do comum. In: Tempo social, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 261-273, 2015., p. 264).

Linebaugh (2008____________. The Magna Carta Manifesto: liberties and commons for all. Berkeley and Los Angeles; London: University of California Press, 2008.) argumenta que o processo de cercamento é o antônimo histórico do comum, na medida em que a imposição da hegemonia da propriedade privada mina as possibilidades de reprodução social fora do âmbito compulsório do mercado. Historicamente, a propriedade privada constituiu-se a partir de processos variados de expropriação do comum. A transformação da terra e do trabalho em mercadorias a partir do cercamento das terras comunais foi explorada por Karl Marx (2013____________. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867).) no capítulo 24 do Livro 1 d’O capital, intitulado A assim chamada acumulação primitiva, no qual ele investiga, histórica e estruturalmente, as origens do modo de produção capitalista na Inglaterra. Na Inglaterra medieval, as terras comunais (pastos, bosques e florestas comuns) eram desfrutadas predominantemente por uma classe significativa de camponeses semi-livres ou autônomos, que delas se serviam para pastagem de animais, assim como para extração de alimentos, lenha, turfa, etc. O uso de tais recursos e espaços comuns era regido por um direito consuetudinário, fundado nos costumes e cultura local (THOMPSON, 1998THOMPSON, Edward P.. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.), até certo ponto reconhecido pelo Estado.

Para Marx, o “processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização do seu trabalho” (2013, p. 786). Na Inglaterra, a expulsão violenta de camponeses a partir do século XVI por senhores de terra constituiu, portanto, a base de um proletariado desprovido de meios de subsistência e produção, assim como do seu modo de vida associado às terras comunais e à aldeia. Paralelamente, deu-se o roubo da propriedade do Estado e da Igreja por grandes proprietários, e, a partir do século XVIII os processos de cercamentos ganharam caráter legal por meio de decretos do Parlamento (Inclosure Acts). Nessa longa operação de expropriação das terras comunais e usurpação das terras estatais, o solo foi transformado em mercadoria, ampliou-se a superfície de produção agrícola organizada sob a forma de grandes arrendamentos capitalistas e garantiu-se a oferta de proletários livres para a nascente indústria nos centros urbanos. Assim, na visão de Marx, a pré-história do capital (2013, p. 831), consiste na “terrível e dificultosa expropriação das massas populares”, que transforma a “propriedade nanica de muitos em propriedade gigantesca de poucos”.

Na leitura de Karl Polanyi (2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 (1944).), a tentativa de estabelecimento de uma economia de mercado autorregulável após a Revolução Industrial do século XVIII correspondeu à passagem de sociedades em que a economia estava embutida e incrustrada nas relações sociais (políticas, religiosas, culturais, costumeiras, etc.) a uma sociedade completamente subordinada e acessória à lógica do mercado. Para que uma sociedade de mercado plenamente autorregulável e desenraizada se organizasse sem restrições externas, o mundo da mercadoria deveria abarcar todos os componentes da produção, tais como o trabalho, o dinheiro e, principalmente, a terra. Como diz o autor, “separar a terra do homem e organizar a sociedade de forma tal a satisfazer as exigências de um mercado imobiliário foi parte vital do conceito utópico de uma economia de mercado” (p. 199).

Mas o cercamento do comum não foi um fenômeno histórico restrito à Europa: a colonização do mundo pelas metrópoles europeias deu-se também como violento processo de despossessão e apropriação colonial de terras e recursos que eram usados comunalmente por outros povos, e que constituíam o fundamento territorial da sua sobrevivência, material e simbólica. Meios tão distintos quanto o emprego de violência organizada, o recurso a negociações ardilosas, a imposição da lei moderna e a difusão de novos valores culturais foram empregados sistematicamente contra povos não ocidentais nesse longo projeto de conquista de novas terras. Ideologicamente, a colonização inglesa recorria tanto à ideia de que as novas terras conquistadas eram terra nullius (“terras de ninguém”), quanto à filosofia de John Locke, segundo o qual, uma vez que os índios não exploravam produtivamente a terra, era justificável transformá-la em propriedade privada (LOOMBA, 2015LOOMBA, Ania. Colonialism/Postcolonialism. Oxon, New York: Routledge, 2015.; WOOD, 2001WOOD, Ellen M. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.).

Já no Brasil, a implantação do projeto colonial português deu-se pela sistemática apropriação, exploração e destruição das terras, meios de vida e saberes comuns dos inúmeros povos que aqui viviam. O regime fundiário ocidental aqui introduzido (inicialmente através do o sistema português de concessão de sesmarias e, após a Lei de Terras de 1850, com a imposição da propriedade privada) não reconheceu as posses originárias e as variadas formas de relacionamento dos povos nativos com o território (HOLSTON, 2013HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.).

Tampouco pode-se tratar o processo de cercamento do comum como registro histórico: em decorrência da expansão do capitalismo neoliberal, desde as últimas décadas do século XX pode-se mesmo falar de um novo ciclo de cercamentos massivos em escala global (LINEBAUGH, 2014LINEBAUGH, Peter. Stop, thief! The commons, enclosures and resistance. Oakland, CA: PM Press, 2014.). Inspirado pela tese de Rosa Luxemburgo de que o capitalismo só pode se expandir subordinando e pilhando regiões e grupos sociais que lhe são exteriores, David Harvey (2003HARVEY, David. Accumulation by dispossession. In: HARVEY, D. The new imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2003.) propõe que se entenda a acumulação por despossessão não como acumulação primitiva superada historicamente, mas como forma permanente de acumulação (paralela à acumulação por exploração) que tende a se tornar dominante sob o capitalismo financeiro e neoliberal. Esta forma de acumulação consiste na privatização, por parte das classes dominantes, da propriedade pública, do patrimônio cultural e social, e da propriedade coletiva de comunidades, mediante manipulações e especulações exercidas pelo poder financeiro e pelo poder estatal (DARDOT, LAVAL, 2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.). Daí também a renovada centralidade da questão fundiária e os questionamentos à propriedade privada, nas últimas décadas.

3. A liberdade de excluir: os direitos de propriedade privada

Segundo Nicholas Blomley (2004BLOMLEY, Nicholas K.. Unsettling the city: urban land and the politics of property. New York, London: Routledge, 2004.), são ambíguas e movediças as definições teóricas sobre propriedade, que tanto pode ser entendida como “relação social entre o proprietário e um bem de valor, contra todos os outros” (BROMLEY, 1991, p. 23 3 BROMLEY, Daniel W. Environment and economy: property rights and public policy. Oxford: Blackwell, 1991. ), quanto como “rede de relações que governa a conduta das pessoas no que diz respeito ao uso e disposição das coisas” (HOEBEL, 1966, p. 4244 4 HOEBEL, E. A. Anthropology: the study of man. New York: Mc-Graw-Hill, 1966. ), ou, ainda, como “relação entre indivíduos no que concerne à matéria, ao instrumento e ao produto do trabalho” (MARX, ENGELS, 1975, p. 325 5 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected works. Vol. 5. New York: International Publishers, 1975. ).

Na interpretação de Crawford B. Macpherson (1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.), a propriedade não deve ser confundida com uma coisa, ou com a mera possessão ou ocupação física de algo. Trata-se, essencialmente, de um direito: ter uma propriedade é ter um direito no sentido de uma reivindicação mandatória ao uso ou benefício de algo, seja o direito de compartilhar e de fruir de recurso comum ou o direito individual sobre coisas particulares. Segundo o autor (p. 3), o que distingue a propriedade da mera posse é que a propriedade é uma reivindicação que será garantida pela sociedade ou pelo Estado, por costume, convenção ou lei.

Uma decorrência do entendimento da propriedade como feixe de direitos (bundle of rights) é que a propriedade é sempre uma relação política entre as pessoas, na medida em que alguém precisa ser o garantidor do cumprimento desses direitos - seja a sociedade ou o Estado. Assim, um conjunto de direitos de propriedade é sempre um conjunto de direitos de cada pessoa em relação às demais na sociedade (MACPHERSON, 1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.).

Em 1840, Proudhon estabeleceu uma distinção fundamental entre posse e propriedade: “Para transformar a posse em propriedade, é preciso mais do que o trabalho, sem o que o homem deixaria de ser proprietário se deixasse de trabalhar”6 6 PROUDHON, Pierre-Joseph. Qu'est-ce que la propriété. Paris: Garnier-Flammarion, 1966. (1996, p. 148 apud BENSAID, 2017BENSAID, Daniel. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. Em: MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017., p. 41). Portanto, para os juristas, a posse é um fato, enquanto a propriedade é um direito instituído; desse modo, o argumento que fundamenta no trabalho o direito à propriedade é uma forma de privatizar a posse, na opinião de Bensaid.

A instituição do direito de propriedade privada, por exemplo, confere ao proprietário os direitos de uso absoluto, exclusividade e alienação sobre o bem possuído. Segundo Singer (2000, p. 2-37 7 SINGER, Joseph. Entitlement: the paradoxes of property. New Haven, Conn.: Yale University Press, 2000. apud BLOMLEY, 2004BLOMLEY, Nicholas K.. Unsettling the city: urban land and the politics of property. New York, London: Routledge, 2004., p. 2), a propriedade privada garante ao seu proprietário o direito de usá-la como desejar; o direito de excluir ou de conceder acesso; o direito de transferir o título, passando a propriedade para outrem; o direito à proteção contra o uso ou apropriação por outros sem devido consentimento; o direito à compensação caso a propriedade seja requisitado pela Estado para fins de interesse público.

Dardot e Laval (2015____________. Propriedade, apropriação social e instituição do comum. In: Tempo social, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 261-273, 2015.) também consideram que a propriedade, longe de ser uma essência ou natureza das coisas, consiste num determinado arranjo jurídico de relações sociais que evolui com o tempo, tendo sido o direito de propriedade, tal qual o conhecemos hoje, concebido pelos filósofos e juristas do Iluminismo como direito natural e liberdade essencial do homem. Não obstante, é preciso ter em mente que a “exclusão do gozo dos outros está no princípio dessa liberdade” (p. 262). Ou, nos termos de W. Blackstone (19178 8 BLACKSTONE, William. Commentaries on the laws of England, Livro ii. Nova York: Banks Law Publishing, 1917. apud DARDOT, LAVAL, 2015____________. Propriedade, apropriação social e instituição do comum. In: Tempo social, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 261-273, 2015., p. 263), o direito de propriedade privada refere-se “àquele domínio exclusivo e despótico que um homem reivindica e exerce sobre as coisas exteriores do mundo, em total exclusão do direito de qualquer outro indivíduo no universo”.

Mas, e quanto à propriedade pública, seria o oposto da propriedade privada? A propriedade pública do Estado não seria, conforme Dardot e Laval (2015____________. Propriedade, apropriação social e instituição do comum. In: Tempo social, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 261-273, 2015.), exatamente o contrário da propriedade privada, mas mais bem seu complemento e transposição, espécie de forma “coletiva” da propriedade privada. Hipoteticamente uma pessoa moral destacada da sociedade, o Estado moderno apresenta-se ao mesmo tempo como sustentador da ordem proprietária privada, como limite (ainda que relativo) ao absolutismo da propriedade, e também como proprietário de tipo particular. Macpherson (1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.) também argumenta que a propriedade estatal é um direito criado pelo próprio Estado, que age como um indivíduo artificial, e mantido para ele mesmo ou subtraído de indivíduos ou corporações. Assim, a propriedade pública baseia-se também no direito do Estado de excluir.

Portanto, a liberdade do proprietário privado se exerce sempre contra a liberdade dos outros, jamais com eles, na medida em que a propriedade privada se baseia fundamentalmente no direito de expulsar, sancionado pelo Estado. Ou seja, o gozo da propriedade privada por qualquer indivíduo, na escala hoje conhecida, só é possível devido aos processos históricos de cercamento do comum, e continua dependendo da despossessão e interdição da maioria de acesso à de propriedade. Blomley (2004BLOMLEY, Nicholas K.. Unsettling the city: urban land and the politics of property. New York, London: Routledge, 2004.) chama atenção para como a operação e imposição desse regime de propriedade privada assenta-se claramente em práticas estatais que vão de mapeamentos cadastrais ao policiamento, revelando a natureza essencialmente política, e muitas vezes violenta, da propriedade.

A hegemonia da propriedade privada é, prática e metaforicamente, sustentada por um persuasivo modelo espacial, que, na opinião de Blomley (2004BLOMLEY, Nicholas K.. Unsettling the city: urban land and the politics of property. New York, London: Routledge, 2004.), apresenta-a como fixa, natural e objetiva, purificando-a das suas determinações e contingências sociais e históricas e abstraindo-a de relações sociais e de poder. O autor chama ainda atenção para o fato de que a suposta objetividade de categorias legais e espaciais, associadas no âmbito da propriedade, torna-as especialmente opacas ao pensamento crítico: a propriedade é representada como coisa, e nunca como conjunto de relações de poder. Ou, no máximo, como relação entre pessoas e coisas, jamais como relação entre pessoas. A naturalização e despolitização da propriedade é facilitada pela tendência de tratar o espaço e a lei como categorias objetivas. Tal clareza na definição dos direitos de propriedade opera para estabilizar as relações entre as pessoas no que se refere ao uso e à disposição das coisas, apresentando-as como seguras e incontestáveis. Seu poder persuasivo reside na promessa de oferecer o usufruto seguro do bem privado ao seu proprietário, ao minimizar a discórdia e o conflito. Neste modelo, propriedade trás segurança. Por conseguinte, paz e prosperidade.

Para Macpherson (1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.), os dois usos mais equívocos do sentido da propriedade - a redução da propriedade a uma coisa ou exclusivamente à sua forma privada - podem ser historicamente relacionados à emergência da sociedade capitalista no século XVI. Anteriormente, quando a maioria das formas de propriedade consistia em direitos de uso à terra, ou em direitos a rendas específicas (oriundas de monopólios estatais, privilégios corporativos etc.), fazia-se mais evidente que a propriedade, antes de ser coisa, consistia numa relação. Com a difusão do capitalismo de mercado, deu-se a substituição de direitos limitados e nem sempre comercializáveis sobre a terra e outros bens por direitos virtualmente ilimitados, e pela transformação da terra em “mercadoria fictícia”. Tal qual Marx (2013____________. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867).) e Polanyi (2012POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 (1944).), o autor considera que somente com o sentido moderno de propriedade privada - direito exclusivo, alienável e absoluto de indivíduos ou corporações sobre as coisas - poderia o mercado plenamente capitalista operar livremente.

Além disso, Macpherson (1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.) introduz uma importante distinção entre a propriedade dos meios de consumo indispensáveis à vida humana e a propriedade dos meios de produção. Enquanto a primeira forma de propriedade privada seria a mais básica para manutenção da vida, a segunda - especialmente a propriedade da terra e do capital, mas também do trabalho - seria mais importante na medida em que, quando acumulada, permite ao proprietário o exercício de poder sobre a vida dos outros. Essa distinção havia sido estabelecida anteriormente por Marx entre a propriedade privada fundada no próprio trabalho, de camponeses e artesãos, e a propriedade privada capitalista.

Segundo Bensaid (2017BENSAID, Daniel. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. Em: MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017.), é a partir da Miséria da Filosofia, de 1847, que Marx levou a fundo sua crítica à propriedade a partir da economia política, para descobrir que, no capitalismo, a questão da propriedade é indissociável da exploração, ou da apropriação privada do sobretrabalho de uma classe pela outra. O que o leva à rejeição da noção da propriedade como “furto” de Proudhon: ao invés de considerar a propriedade como categoria jurídica ilegítima, Marx e Engels a analisam como “uma forma de intercâmbio que corresponde a um determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas”9 9 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Boitempo editorial, 2015. (2015, p. 68 apud BENSAID, 2017BENSAID, Daniel. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. Em: MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017., p. 48). Ainda na leitura de Bensaid, o que Marx faz é secularizar e relativizar a noção de justiça dos socialistas utópicos, não mais denunciando a propriedade como roubo, ou a exploração enquanto injustiça, mas sim opondo duas concepções de direito: o direito dos possuidores contra o direito dos proprietários.

Já no Manifesto Comunista (MARX, ENGELS, 2010____________. Manifesto Comunista. Organização e introdução Oswaldo Coggiola. 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2010 (1848)., p. 53-54), está claro que não é objetivo do comunismo abolir a propriedade fundada na posse e na apropriação pessoal dos frutos do trabalho, indispensável à manutenção e reprodução da vida humana, mas sim suprimir “o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação”, alicerçado sobre o “poder social” do capital, propriedade que explora o trabalho alheio, ainda que formalmente livre. Marx e Engels atacam assim a propriedade burguesa por ela ter como pressuposto que imensa maioria da sociedade não tenha propriedade alguma. Na elaboração posterior de Marx (2013), portanto, é a propriedade privada capitalista dos meios de produção que aparece como antítese da propriedade social, ou comum.

4. A ideologia do individualismo possessivo

Seguindo Macpherson (1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.), a propriedade é tanto uma instituição quanto um conceito que se transformam e se influenciam reciprocamente ao longo do tempo. Esta instituição, e o modo como as pessoas a veem e o sentido que lhe atribuem, altera-se conforme mudam os propósitos que a sociedade, ou a classe dominante, esperam que ela cumpra. Nesse sentido, a instituição legal da propriedade sempre necessita de alguma justificação moral, já que a propriedade é um direito garantido pela sociedade e pelo Estado. O direito legal deve ser baseado na crença pública do que é moralmente correto.

Coube ao individualismo possessivo (MACPHERSON, 1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.), ideologia que representa a sociedade como uma associação de proprietários privados (DARDOT, LAVAL, 2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.), justificar moral e teoricamente a moderna propriedade privada, suplantando a própria ideia de propriedade comum - desaparecimento ideológico associado ao violento e conflituoso processo de cercamento dos comuns. Na opinião de Macpherson, a ideia de “propriedade comum” passa a ser vista, doravante, como uma contradição de termos. Mas ainda que a redução da propriedade à sua forma de propriedade privada (absoluta e exclusiva) venha a se afirmar apenas a partir do século XVII, a preocupação com a propriedade privada é de longa data. Pelo menos desde a Grécia Antiga, é a própria existência da propriedade privada, frente à propriedade comum, que torna a propriedade um problema moralmente conflituoso para a teoria política. Assim, segundo o autor (1978), é quanto à propriedade dos meios de produção (propriedade burguesa, ou capitalista) que têm se ocupado os teóricos envolvidos em lhe prover uma justificação (ou crítica), pelo menos desde o século XVII.

Segundo Dardot e Laval (2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.), o advento moderno do individualismo possessivo deu-se de acordo com três tradições, que se seguiram cronologicamente: a escolástica, a jurídica e a utilitarista. A primeira deriva da reinterpretação da tradição teológica que, desde o Livro dos Salmos, fazia da terra um dom comum de Deus concedido aos homens. Tal inflexão, levada a cabo por Tomás de Aquino ainda no século XIII e sustentada depois por Calvino e outros protestantes, atingirá seu ápice na encíclica Rerum Novarum de 1891, dirigida pela Igreja Católica contra a doutrina socialista da propriedade coletiva. Basicamente, a tradição escolástica fundada por Aquino defendia o direito de propriedade privada contra a “comunidade dos bens” do cristianismo primitivo, sob o argumento de que Deus havia concedida aos homens não apenas a terra como dom comum, mas também a faculdade racional e o gosto pelo trabalho. Caberia assim ao homem - como seu direito e dever - dominar a natureza, dividindo as posses conforme a necessidade prática.

Ao argumento escolástico, somaram-se, no século XVII, as ideias do filósofo inglês John Locke, principal ideólogo do liberalismo e da Revolução Inglesa. Em Locke, a propriedade aparece como corporificação e externalização da livre vontade e do trabalho dos indivíduos. Nessa perspectiva, a propriedade privada é consagrada como direito natural de cada um sobre si próprio, sobre seu trabalho e sobre os frutos desse trabalho. A justificativa vai além do argumento da conveniência racional aventada pela escolástica: Locke considera os bens privados (propriedade externa) como prolongamentos do corpo (propriedade interna), como frutos do trabalho individual, única fonte genuína de riqueza. Tal associação entre o direito de propriedade privada e o direito natural constitui o alicerce da ideologia proprietária burguesa, e cimenta a crença de que cabe ao Estado resguardar os direitos de propriedade.

Conforme apontado por Holston (2013HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.), há no pensamento de Locke uma forte conexão entre a propriedade e as ditas qualificações fundamentais para o exercício da cidadania moderna: liberdade (independência econômica e intelectual), capacidade (agência, controle, responsabilidade), dignidade, respeito e auto-possessão. Nesse sentido, aqueles que são desprovidos de propriedade - além da sua própria força de trabalho - são considerados cidadãos de segunda classe, ou mesmo não-cidadãos. Também Blomley (2004BLOMLEY, Nicholas K.. Unsettling the city: urban land and the politics of property. New York, London: Routledge, 2004.) argumenta que, em termos morais, a propriedade privada é defendida com base na crença de que seria uma instituição fomentadora de comportamentos estimados, tais quais responsabilidade cidadã, participação política e empreendedorismo econômico.

A esta interpretação jurídica sucedeu-se no século XVIII o utilitarismo do também inglês Jeremy Bentham, que, em rompimento com os argumentos teológicos e naturalistas de Locke, justificava a propriedade não por sua inviolabilidade sagrada, mas antes por sua utilidade, ou seja, por sua eficácia econômica fundada no estímulo ao benefício pessoal. Dardot e Laval (2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.) consideram que o enfoque utilitarista de Bentham finalmente prevaleceu sobre os demais, sobretudo por razões econômicas, apresentando a propriedade privada como instituição inseparável do livre mercado.

No século XVIII, Rousseau foi dos primeiros pensadores a problematizar, historicizando, a propriedade privada: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer ‘isto é meu’, e encontrou pessoas simples o bastante para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”10 10 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (1999, p. 203 apud BENSAID, 2017BENSAID, Daniel. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. Em: MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017., p. 38). Contestando a justificativa de Locke para propriedade privada com base no direito natural dos indivíduos, o filósofo francês argumentava que a propriedade ilimitada implicava na exclusão da maior parte dos indivíduos do acesso a qualquer propriedade, contradizendo assim o direito natural àquela propriedade minimamente necessária às necessidades básicas da vida. Para Rousseau, portanto, o direito de propriedade, “convenção e instituição humana”, contrapunha-se claramente ao direito à vida e à existência, este sim direitos naturais, universais. Já Hegel, noutra direção, apontava que o “direito de miséria” teria primazia sobre o direito de propriedade, em situações de urgência social, revelando, assim, a finitude e contingência do próprio direito (BENSAID, 2017; MACPHERSON, 1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.).

Essa foi uma discussão central da Revolução Francesa, consagrada na Constituição do Ano II (1793) sob a fórmula da subordinação do direito de propriedade ao direito de existência. A Revolução sacralizou constitucionalmente a propriedade, e a dessacralizou em seguida, opondo a ela o direito à existência. Finalmente, o Código Civil napoleônico de 1804, modelo para o direito civil de muitas nações nas décadas seguintes, estabeleceu a noção de que propriedade é o “direito de gozar e dispor das coisas de forma mais absoluta”, liberando assim o direito de propriedade das exigências e dos limites comunitárias ou familiares. Em 1848, o político burguês Adolphe Thiers, então primeiro-ministro da França, foi além, definindo propriedade privada como o fundamento de um direito ilimitado, exclusivo e absoluto, pertencente ao proprietário, “com a exclusão de todos os outros”.

Não se entenda tal desenvolvimento ideológico e de formas jurídicas como independentes de transformações materiais no âmbito das relações sociais e das forças produtivas. Sem qualquer determinismo ou recorrência ao esquematismo da infra e superestrutura, é importante atentar para o fato de que o desenvolvimento do conjunto de ideias, valores, simbolismos e justificativas morais articulados em torno da ideologia do individualismo possessivo não corresponde a um movimento autônomo no plano das representações mentais. A doutrina escolástica de Aquino foi formulada no contexto de reanimação das trocas mercantis e das cidades durante a Idade Média; o pensamento de Locke teve como pano de fundo o longo processo de transformação capitalista da agricultura inglesa e a própria Revolução Inglesa, primeira das revoluções burguesas; e as ideias de Bentham acompanharam a Revolução Industrial e o consequente salto da produção capitalista pela introdução da maquinofatura. O que apenas confirma que ideologias não são verdades eternas, mas representações ajustadas aos interesses das classes dominantes, à reprodução da ordem e às necessidades econômicas de cada momento histórico.

O individualismo possessivo nos fornece, conforme Blomley (2004BLOMLEY, Nicholas K.. Unsettling the city: urban land and the politics of property. New York, London: Routledge, 2004.), um modelo claro e estável sobre nossas compreensões e práticas relativas à propriedade, reduzida exclusivamente à propriedade privada, quiçá à pública: esse binarismo liberal exclui e deslegitima quaisquer reivindicações coletivas à terra como propriedade. Nesse modelo, os direitos individuais são considerados sempre anteriores e superiores aos interesses coletivos, o que coloca uma série de obstáculos à limitação dos direitos de propriedade. Mesmo reconhecendo-se a propriedade pública, ela é entendida mais como propriedade do Estado enquanto indivíduo artificial do que propriedade coletiva. E ainda que os direitos de propriedade sejam imaginados como criados em um momento específico, e como imutáveis depois disso, o direito de propriedade depende de um processo contínuo de práticas persuasivas destinadas a legislar o que a propriedade é e pode ser.

Assim, a reprodução da propriedade enquanto categoria social exige um esforço permanente de investimentos materiais e ideológicos, e de uma miríade de práticas corporais, institucionais e policiais. Essas sanções servem não apenas para assegurar a reprodução dos arranjos prevalecentes, mas também para policiar o próprio significado do que é propriedade, e, portanto, ignorar e negar a possibilidade de arranjos alternativos. Contra a ideologia de que não existem formas alternativas à propriedade privada (e pública), o debate em torno do comum revela um amplo espectro de arranjos e direitos de propriedade de natureza mais coletiva e não exclusivos, e tampouco redutíveis ao Estado e ao mercado.

5. “Formações híbridas e incertas da propriedade”

Não é acidental que o primeiro encontro entre Marx (2017____________. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017.) e a economia (nos seus termos, “os interesses materiais”), tenha se dado ainda em 1842, nos “debates sobre a lei referente ao furto de madeira”, quando o jovem filósofo escreveu alguns artigos para a Gazeta Renana abordando os conflitos referentes à imposição de novos direitos de propriedade privada contra o direito costumeiro dos pobres camponeses de acesso à madeira para suas necessidades de subsistência na Renânia. Para Bensaid (2017BENSAID, Daniel. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. Em: MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017.), trata-se de um debate atinente à propriedade fundiária cada vez mais atual, em que dois direitos, duas economias se contrapõem: direito dos possuidores versus direito de propriedade, economia da necessidade e da subsistência versus a economia da troca e da acumulação.

O que está em jogo no debate sobre o furto da madeira é a delimitação, pelo Estado prussiano, de um legítimo direito de propriedade, e a própria legitimidade da moderna propriedade burguesa como tal, atestada pela crescente criminalização, pela nascente sociedade capitalista, das práticas consuetudinárias de direito de uso pelos camponeses (BENSAID, 2017BENSAID, Daniel. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. Em: MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017.). O novo código de propriedade privada que se impunha definia um sistema jurídico baseado no individualismo, condição sine qua non para a troca mercantil numa sociedade civil fundada na generalização de relações contratuais.

Segundo o historiador E.P. Thompson (1987____________. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.), nos processos de cercamento o direito tornou-se um instrumento privilegiado para impor “novas definições de propriedade” em benefício dos proprietários privados. O autor investigou as lutas entre commoners e proprietários de terra no século XVIII, na Inglaterra, que resultaram na promulgação do Black Act (Lei Negra) em 1723. Essa drástica legislação instituiu a pena capital para caçadores “clandestinos” que, para fins de coleta de turfa e madeira e de caça (particularmente de cervos), desrespeitasse os limites de propriedades privadas e das florestas reais, às quais até então detinham direitos consuetudinários de passagem e usufruto.

Ainda sobre a lei referente ao furto da madeira, de 1842, Marx (2017____________. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017.) escreveu acerca da supressão de “formações híbridas e incertas da propriedade”, nem claramente privadas tampouco coletivas, que garantiam direitos de uso dos comuns aos mais pobres. Tais formações e formas feudais de socialização da terra garantiam o direito imprescritível dos pobres ao bem comum da natureza, sustentando uma economia moral da multidão “submetida ao direito natural à existência” (THOMPSON, 1998THOMPSON, Edward P.. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.).

Ao final de sua vida, particularmente após a experiência da Comuna de Paris de 1871, Marx pesquisou exaustivamente regimes de propriedade comunais de sociedades antigas, ou de sociedades indígenas e camponesas ainda existentes à sua época (MUSTO, 2018MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). São Paulo: Boitempo, 2018.), retomando uma linha de pesquisa já presente nos Grundrisse (2011). Luta de classes na Rússia (2013), por exemplo, reúne textos de Marx e Engels escritos entre 1875 e 1894 acerca do papel das comunas rurais no desenvolvimento russo ao final do XIX, dentre eles a famosa troca de correspondências entre Marx e a revolucionária russa Vera Zasulich.

Ross (2015ROSS, Kristin. Communal luxury: the political imaginary of the Paris Commune. London, New York: Verso Books, 2015.) considera que o efeito mais direto e significativo da Comuna sobre Marx foi ter-lhe chamado a devida atenção à alternativa de sociedades não-capitalistas fora da Europa Ocidental, tema ao qual ele se dedicou na última década de vida. Marx debruçou-se sobre experiências de “comunismo primitivo”, em particular sob o impacto do movimento populista russo, que à época colocava a aldeia rural - obschina - e a propriedade comum como base para a constituição de uma economia comunal moderna. Questionado por Zasulich, em 1881, sobre o futuro da comuna aldeã na Rússia - ou, noutros termos, sobre seu suposto caráter arcaico e inevitável desaparecimento frente ao desenvolvimento de todas as fases do capitalismo -, Marx lhe respondeu que as sociedades pré-capitalistas poderiam, conforme suas circunstâncias e desenvolvimentos históricos particulares, alcançar o comunismo com base em formas de propriedade comunal, sem necessariamente passar pelo capitalismo e pela hegemonia da propriedade privada (MARX, 2013____________. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867)., p. 849-850).

Segundo Wall (2014WALL, Derek. The commons in history: culture, conflict, and ecology. Cambridge, MA; London: MIT Press, 2014.), juristas críticos e historiadores estão também reconhecendo que, previamente ao colonialismo europeu, formas comuns de propriedade eram a regra e não a exceção ao redor do planeta: o conceito de propriedade privada era mesmo desconhecido a muitas sociedades indígenas, nas Américas, em África, Índia e Oceania. O arqueólogo Alain Testart11 11 TESTART, Alain. Avant l’histoire. L’évolution des sociétés, de Lascaux à Carnac. NRF, Gallimard, Paris, 2012. (2012 apud DARDOT, LAVAL, 2015____________. Propriedade, apropriação social e instituição do comum. In: Tempo social, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 261-273, 2015.), ao estudar as sociedades neolíticas, distinguiu entre a propriedade usofundada (usufundée), baseada no uso contínuo da terra ao longo do tempo, e a propriedade fundiária, que leva em conta apenas os “fundos”, independentemente do trabalho ou do uso que o proprietário dela faz. Entretanto, a propriedade usofundada, ainda que antagônica à fundiária, era ainda diferente da propriedade dita “coletiva” ou “social”, na medida em que somente por seu uso efetivo e publicamente comprovado ela poderia ser definida como propriedade.

Isso explica, em parte, por que reivindicações indígenas ao território não se enquadram espacialmente no modelo de propriedade privada individual, fundamentada nas marcas geográficas do típico assentamento colonial nas Américas: a cerca, o muro, a casa, o campo cultivado. Ainda que os arranjos de propriedade comunal indígenas possam variar enormemente em todo o mundo, Blomley (2004BLOMLEY, Nicholas K.. Unsettling the city: urban land and the politics of property. New York, London: Routledge, 2004.) destaca um princípio quase universal: a interdição à transformação da terra e dos recursos naturais em mercadorias alienáveis. Entre os Maoris, por exemplo, os direitos de propriedade se referem à distribuição de direitos de uso de determinadas recursos, e não à possessão exclusiva de zonas geográficas delimitadas. Para muitos povos indígenas, a ideia ocidental de que a terra lhes pertença chega a ser um disparate: antes, são os povos (e os outros seres) que pertencem à terra.

Almeida (2004ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 6, n. 1, 2004.) registra uma diversidade de modalidades de usos comuns da terra e dos recursos entre comunidades tradicionais no Brasil (povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, pescadores, afetados por barragens, castanheiros, quebradeiras de coco, comunidades de fundo de pasto etc.), usualmente mantidas às margens dos registros oficiais e dos direitos de propriedade hegemônicos, como: terras de preto, terras do santo, terras do índio, terras do caboclo, terras soltas, terras abertas, terras de herdeiros etc. Essa pluralidade de regimes comunais de acesso e uso da terra e dos recursos têm funcionado por gerações, garantindo a subsistência e a base da identidade coletiva para milhares de comunidades definidas em bases étnicas, relações de parentesco e redes de vizinhança, dificultando sobremaneira a apropriação mercantil da terra.

Thompson (1998THOMPSON, Edward P.. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.) enfatizou como normas e costumes tácitos do direito costumeiro, transmitidos oralmente de geração a geração, foram fundamentais para a sobrevivência histórica do comum. Para Bollier (2014BOLLIER, David. Think like a commoner: a short introduction to the life of the commons. Gabriola Island (CA): New Society Publishers, 2014.), ainda que o direito consuetudinário encarnado no cotidiano de comunidades indígenas e camponesas possa parecer estático, em geral os costumes tendem a se adaptar a mudanças, muitas vezes de modo incremental e situacional, sendo bastante sensíveis a condições históricas e especificidades locais. Em oposição ao caráter formal, escrito e institucional da lei moderna, esse direito é geralmente vernacular, informal e oral, conformada pelas experiências, hábitos e práticas cotidianas das comunidades locais, conforme observado por Linebaugh (2014LINEBAUGH, Peter. Stop, thief! The commons, enclosures and resistance. Oakland, CA: PM Press, 2014.). Do mesmo modo, este autor considera que é o costume - local e guardado na memória -, mais do que a lei, que define o comum. Entretanto, alerta que é preciso não o romantizar: o costume pode estar também associado ao patriarcado, a privilégios, dentre outras formas de opressão.

Ao criticar a imposição de regras cada vez mais severas a respeito da propriedade privada contra os direitos consuetudinários populares, Marx (2017____________. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017.) não estava defendendo uma volta aos costumes, às tradições. Ele reivindicava, ao contrário, um direito consuetudinário da pobreza não local, não baseado nos costumes, mas em todos os países: em suma um direito universal para a classe dos despossuídos. Pode-se traçar um fio que conecta esse direito consuetudinário “universal” à “economia moral” dos pobres, aos direitos à vida e à existência, em oposição à democracia burguesa e à propriedade privada.

Para Bollier (2014BOLLIER, David. Think like a commoner: a short introduction to the life of the commons. Gabriola Island (CA): New Society Publishers, 2014.), os cercamentos do comum - que hoje incluem a privatização e estabelecimento de controles excludentes sobre a natureza, a terra, os espaços públicos e infraestruturas, o conhecimento, a cultura - erradicam não apenas as práticas sociais, normas éticas e tradições culturais que garantiram a reprodução de comunidades por meio de instituições e costumes ancorados na cooperação, mas eclipsam ainda a memória e as histórias do comum, apresentando-as como invisíveis ante a narrativa de progresso do capitalismo. A própria formação do direito moderno, assentado sobre o direito romano, deu-se enquanto negação do direito consuetudinário (ou costumeiro)12 12 Linebaugh (2008) distingue entre a common law, base do direito britânico e norte-americano, que consiste no conjunto formal de leis não criadas por um Parlamento, mas derivadas dos costumes e do acúmulo de decisões judiciais passadas; o direito derivado de estatutos legislativos criados pelo Parlamento (como o direito ocidental moderno baseado no direito romano, à exemplo do Brasil); e o direito costumeiro (ou consuetudinário) enraizado na cultura e nos costumes (THOMPSON, 1998), geralmente não codificado. Holston (2013) alerta que o direito costumeiro - ou consuetudinário - português não deve ser confundido com regimes de costumes tribais ou comunitários, indígenas ou africanos, já que era reconhecido pelo próprio Estado moderno português, como se depreende da edição da Lei da Boa Razão, sob o Marquês de Pombal, em 1769. .

6. Propriedade no plural: direitos do comum

Os princípios legais que se desenvolveram em torno do comum ao longo dos séculos foram ofuscados pelo desenvolvimento da legislação moderna orientada ao mercado, organizada como um sistema escrito e formal de regras e sanções administradas por instituições ligadas ao Estado. Todavia, algumas formas de propriedade comum chegaram a ser reconhecidas por estruturas centralizadas de poder e direito (BOLLIER, 2014BOLLIER, David. Think like a commoner: a short introduction to the life of the commons. Gabriola Island (CA): New Society Publishers, 2014.).

Na Inglaterra normanda, após anos de inúmeros conflitos com barões e camponeses por conta da apropriação indiscriminada de terras pela Coroa, o Rei João foi obrigado a assinar, em 1215, a famosa Magna Carta13 13 A Magna Carta colocava limitações ao poder monárquico e reconhecia que outros membros da sociedade eram também detentores de direitos básicos de justiça. Alguns desses princípios básicos - consagrados no capítulo 39 da Carta, como habeas corpus, julgamento por júri, proibição de tortura e devido processo legal - constituem ainda hoje a base da maior parte das constituições democráticas ocidentais. . Entretanto, a Carta da Floresta, um documento quase esquecido, foi assinada dois anos depois (e posteriormente incorporada à Magna Carta). Ela reconhecia os direitos tradicionais dos camponeses de usarem as terras reais e as florestas para garantirem a subsistência. Ela assegurava os direitos de pastagem para os porcos (pannage), de coleta de lenha (estover), de pastagem (agistment) e de coleta de turfa como combustível (turbary), e protegia os camponeses de apropriações arbitrárias por parte do Rei ou senhores. Enquanto a Magna Carta estabelecia direitos jurídicos e políticos, a Carta da Floresta garantia direitos de subsistência aos camponeses: Linebaugh (2008____________. The Magna Carta Manifesto: liberties and commons for all. Berkeley and Los Angeles; London: University of California Press, 2008.) se vale desse fato histórico para defender que direitos políticos democráticos precisam ser acompanhados de direitos que promovam a igualdade econômica. Ainda assim, o autor reconhece que nem mesmo a Magna Carta e da Floresta foram suficientes para coibir os violentos cercamentos que acompanharam a acumulação primitiva nos séculos seguintes.

Também o direito romano, codificado durante o Império Bizantino e redescoberto no Ocidente no século XII14 14 Entre os anos de 529 e 534 DC, sob ordens do imperador Justiniano I do Império Romano do Oriente (Império Bizantino), procedeu-se à compilação do Corpus Juris Civilis (Corpo de Direito Civil), coleção de obras fundamentais em jurisprudência latina que sistematizou todo o direito romano precedente, incluso a definição de categorias de propriedade. Desconhecido durante séculos na Europa ocidental, o Corpus foi redescoberto por juristas da Universidade de Bolonha no séc. XII, tendo se tornado desde então referência para constituição do direito civil ocidental e definição dos direitos de propriedade (BOLLIER, 2014; DARDOT, LAVAL, 2017). , reconhecia um amplo espectro de formas de propriedade, tais quais: res communis, que incluía as coisas comuns à humanidade que não podiam ser apropriados por grupos particulares ou indivíduos e eram usufruídos por todos, como o ar, a água corrente, o mar e a orla marítima; res publicae, referente às coisas públicas possuídas pelo Estado mas abertas ao uso da comunidade, como um parque ou um canal navegável; res nullius, para designar as coisas sem dono, selvagens ou desabitadas, apropriáveis por quem delas primeiro se apossasse, incluindo cães vadios e terras vazias (ou terra nullius, empregada para justificar a colonização); res privatae, designando as coisas possuídas privadamente por indivíduos, como imóveis e escravos; e res divinis juris para abarcar possessões não apropriáveis por pertencerem apenas aos deuses, como templos e lugares sacros.

Dardot e Laval (2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.) consideram que o histórico ofuscamento do comum, e seu confinamento à categoria de res communis para designar as “coisas naturalmente comuns” (elementos naturais: a água, o ar, o fogo...), está vinculado à polarização, na doutrina jurídica e nas relações políticas, entre o público e o privado, desdobrada na oposição entre o Estado e o mercado no âmbito da economia política Os autores assinalam como essa summa divisio (divisão suprema) entre o direito público e privado é relativamente recente no Ocidente, exatamente por ter como pressuposto o individualismo possessivo.

A ideia do público como negativo da propriedade privada decorre de uma interpretação reducionista do direito romano, incorporado pelo direito moderno apenas no que tange à figura do indivíduo proprietário (dominus) que exerce um poder absoluto sobre a coisa (res), particularmente seu poder de aliená-la no intercâmbio mercantil. Não é de se espantar a longevidade e o poder antecipatório do direito romano, visto que tenha sido o primeiro a supor a liberdade como pressuposto da troca mercantil, tal qual apontado por Marx ainda nos manuscritos dos Grundrisse (2011MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011 (1857-1858).). Por via da plasticidade de suas categorias altamente abstratas, o direito romano foi então reinterpretado séculos depois para regular as relações sociais em torno da mercadoria capitalista (DARDOT, LAVAL, 2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.).

Não obstante, a divisão entre o público e o privado, tal qual conhecida hoje, não pode ser creditada aos romanos: segundo Dardot e Laval (2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.), trata-se antes de uma deformação moderna, iniciada entre os juristas protestantes alemães do século XVI, que reduziram o direito civil romano (ius civile) ao direito privado (o direito dos bens, contratos e relações entre particulares). O que o direito romano estabelecia de fato era uma distinção entre as coisas apropriáveis e não apropriáveis, por vias de uma decisão institucional, e não por características intrinsecamente naturais dos bens. O direito instituía uma esfera de coisas não apropriáveis (denominada à época de res nullius in bonis), “afetadas aos deuses e à cidade”, o que liberava, por exclusão, todo o resto à apropriação, ou seja, à sua alienação e comercialização. Mas não se deve confundir res nullius in bonis com res nullius, esta última referente aos bens sem donos, mas ainda assim passíveis de apropriação, enquanto aquelas designam, em oposição, os bens dos quais ninguém se pode apropriar.

Abre-se uma importante bifurcação dentro da definição romana do público, que admite dois sentidos: de um lado, a propriedade pública tout court, correspondente ao domínio público (ager publicus), ao patrimônio do Estado ou da Cidade, que dele podem se dispor livremente para distribuir ou mesmo vender; de outro, os espaços de uso público, inapropriáveis pelo Estado ou pela Cidade, de acesso livre a todos os cidadãos, tais quais as praças, teatros, pórticos, ruas, rios, aquedutos, templos, lugares sagrados etc.

Esta segunda definição, do “público não estatal” em oposição à “propriedade pública”, corresponde à definição de comum de Dardot e Laval (2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.) como aquilo que é inapropriável, estando destinado ao uso coletivo. Também Macpherson (1978MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.) identifica a propriedade comum com a garantia de que nenhum indivíduo seja excluído do uso ou proveito de algo15 15 Segundo Bollier (2014), esse princípio legal originalmente romano do comum - segundo o qual nem o Estado, empresas ou cidadãos particulares podem se apropriar de recursos que pertencem a todos - sobreviveu naquilo que é conhecido na legislação norte-americana como public trust doctrine, que formaliza a ideia que o Estado tem o dever afirmativo de proteger recursos naturais para as gerações presentes e futuras, não podendo vender ou doar terra, água ou vida selvagem para interesses privados. Esse princípio aplica-se principalmente à proteção do direito de os cidadãos usarem rios, oceanos e costas para pesca, navegação e recreação. , em oposição à propriedade privada capitalista e à propriedade pública estatal.

A noção de usufruto, também derivada do direito romano, e largamente discutida nesse cânone legal, é essencial para a regulação de bens comuns: ela denota o direito de alguém usar e gozar (usus et fructus) da propriedade de outrem, desde que a propriedade não seja danificada, tal qual na prática histórica do usufrutuário adentrar uma propriedade privada e fazer uso de árvores frutíferas, sem destruí-las. Joel Kovel (200716 16 KOVEL, Joel. The enemy of nature: the end of capitalism or the end of the world? London: Zed Books, 2007. apud WALL, 2014WALL, Derek. The commons in history: culture, conflict, and ecology. Cambridge, MA; London: MIT Press, 2014.) nota que o sentido de usufruto precede mesmo o direito romano, podendo ser encontrado no Código de Hammurabi de 1750 a.C. na Babilônia, assim como no direito Islâmico e Asteca.

Entretanto, ainda que o direito ocidental moderno se baseie no direito romano, tal abordagem mais plural e flexível se perdeu em favor da hegemonia da propriedade privada (BOLLIER, 2014BOLLIER, David. Think like a commoner: a short introduction to the life of the commons. Gabriola Island (CA): New Society Publishers, 2014.). A perspectiva contemporânea do pluralismo jurídico (advogada, dentre outros, por Boaventura de Souza Santos) entende que sistemas legais alternativos podem se sobrepor e que a lei formal não deve ignorar a existência de outros modelos, como o direito consuetudinário baseado em costumes e tradições não escritos (WALL, 2014WALL, Derek. The commons in history: culture, conflict, and ecology. Cambridge, MA; London: MIT Press, 2014.). As constituições bolivarianas, particularmente da Bolívia e do Equador, são expressões importantes de tal perspectiva, pois, além de reconhecerem formas comunais de propriedade da terra, incorporam sistemas jurídicos e costumes indígenas ao texto constitucional.

Já no Brasil, na ausência de uma efetiva reforma fundiária, ainda vigoram no Brasil as mesmas condições de desigualdade, ilegalidade e violência herdadas da Lei de Terras de 1850, que instituiu a propriedade privada em substituição ao regime colonial de sesmarias, e cujo corolário é a continuidade da usurpação e concentração de terras pela elite, negando o direito de acesso à terra para a maior parte da população (HOLSTON, 2013HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.). Entretanto, a importância histórica do estatuto da posse nas práticas e políticas de apropriação territorial desde a colônia - tanto por fazendeiros quanto por camponeses - teve como contrapartida a possibilidade de que, nas brechas e confins do latifúndio, a terra fosse ocupada e cultivada pelo pequeno posseiro, ainda que de maneira instável e secundária (SILVA, 2008SILVA, Lígia O.. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008.).

Além da sobrevivência e reiterada reprodução da posse como única condição de acesso da família camponesa individualmente à terra no país, outros regimes mais coletivos de ocupação e uso do território vem sendo reconhecidos, principalmente a partir da Constituição de 1988, e em grande medida devido à enorme resistência e organização política dos chamados povos tradicionais. Almeida (2004ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 6, n. 1, 2004.) denomina de “terras tradicionalmente ocupadas” os territórios habitados e usados por grupos tradicionais no Brasil, organizados como movimentos sociais em torno de identidades coletivas e que têm com o território relações de pertencimento e de manejo dos recursos naturais para sua subsistência.

7. Considerações finais

Procurou-se, neste trabalho, esboçar uma crítica da propriedade que contribua para compreendê-la enquanto conjunto heterogêneo de configurações sociais e relações jurídicas, com variação histórica e geográfica. Discutiu-se o antagonismo entre o comum e a propriedade privada, abordando a instituição do direito de propriedade, a ideologia do individualismo possessivo, e a existência de formas mais coletivas e menos exclusivas de direitos de propriedade que não se enquadram no binarismo público-privado.

Por que falar de propriedade? É evidente que a propriedade privada constitua um dos fundamentos da moderna sociedade burguesa produtora de mercadorias: como bem assinalou Marx (2013____________. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867).), é a existência da propriedade privada da terra e dos meios de produção que permite a subordinação do trabalho à força social do capital; noutros termos, é o fato de que alguns poucos possuam os meios e recursos necessários à produção e reprodução da vida que obriga a grande maioria a vender apenas sua força de trabalho no mercado, sustentando a lógica de valorização do valor e a acumulação incessante de capital.

Entretanto, como visto, a propriedade privada não é natural, universal ou eterna: trata-se de uma instituição histórica socialmente determinada, e, portanto, passível de ser superada. Além disso, a propriedade não é apenas privada: existem hoje e existiram na história várias outras formas (mais ou menos coletivas, mais ou menos igualitárias) de relações sociais entre as comunidades, a terra e seus recursos. A propriedade tampouco é uma coisa: trata-se, principalmente, de uma relação entre as pessoas e as coisas, ou melhor, uma relação social entre as pessoas no que tange ao uso das coisas. Antes de tudo, a propriedade é um direito, e como direito precisa ser garantida pela sociedade ou pelo Estado, sendo assim, evidentemente, uma relação de poder. Portanto, em desacordo com o individualismo possessivo, a propriedade está longe de se reduzir a um direito natural, de ser confundida unicamente com a propriedade privada, ou de ser neutra e apolítica.

No centro do debate filosófico e político sobre o comum, encontra-se a questão da abolição da propriedade privada burguesa (MARX, ENGELS, 2010____________. Manifesto Comunista. Organização e introdução Oswaldo Coggiola. 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2010 (1848).), do desvanecimento do Estado e, de um modo mais amplo, o cerne da ideia e do projeto comunista (HARDT, 2010HARDT, Michael. The common in communism. In: Douzinas, C.; Zizek, S. (eds.). The idea of communism. London, New York: Verso Books, 2010.). Nessa perspectiva crítica, o comum é assumido como nova fronteira de luta política radicalmente democrática para além da antinomia moderna Estado versus mercado, colocando-se em oposição à propriedade privada e ao estatismo, na direção de um campo de práticas mais autônomas e coletivas de produção e reprodução social.

Destarte, as formulações críticas do comum são decisivas para uma reconsideração crítica da propriedade privada e para a desconstrução da ideologia do individualismo possessivo - sustentáculos filosóficos, jurídicos e econômicos do capitalismo. Ademais, evidenciam um amplo espectro de arranjos e direitos de propriedade da terra, coletivos e não exclusivos, e que, por não se enquadrarem no binarismo público-privado, costumam ser institucionalmente invisibilizados ou violentamente expropriados. Este olhar voltado ao reconhecimento de diferentes regimes de posse e de relação entre as comunidades e seus territórios, baseados principalmente no uso e apropriação para fins de reprodução em oposição ao direito exclusivo de propriedade privada e à ideologia do individualismo possessivo, revela-se crucial para reconsiderar a questão fundiária no capitalismo periférico brasileiro.

Na epígrafe que abre este texto, Henri Lefebvre sugere um poderoso paralelo entre a abolição do trabalho cativo e a possível dissolução da propriedade privada. É inconteste a conexão entre a propriedade da terra e o escravismo negro na conformação dos traços desigualitários, autoritários e dependentes da sociedade brasileira (PAULA, 2002PAULA, João A. de. O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história. História Econômica & História de Empresas, v. 5, n. 1, 2002.). Os ataques cada vez mais frequentes de proprietários e corporações - legalizadas, incitadas ou patrocinadas por variados níveis do Estado e do seu aparato militar - contra posseiros, assentamentos da reforma agrária, comunidades tradicionais, reservas indígenas e ocupações urbanas evidenciam um enorme retrocesso nos direitos relativos ao acesso à terra e à moradia. Por trás da renitente imposição da propriedade privada, absoluta e excludente, movem-se poderosas forças materiais e ideológicas, ignorando a “função social da propriedade” estabelecida na Constituição e negando a possibilidade de existência de regimes mais plurais e coletivos de uso e apropriação da terra, e desarmando quaisquer propostas que levem à democratização fundiária, no campo e nas cidades.

Em junho de 1848, Tocqueville escrevia: “Em breve, a luta política se estabelecerá entre os que possuem e os que não possuem; o grande campo de batalha será a propriedade”17 17 TOCQUEVILLE, Alexis de. Souvenirs. Paris: Gallimard, 1978. (1978, p. 48 apud BENSAID, 2017BENSAID, Daniel. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. Em: MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017., p. 20). No mundo contemporâneo, sob um capitalismo cuja dinâmica desloca-se da produção de mais-valor via exploração da força de trabalho para a extração de rendas assentadas sobre direitos de propriedade (PAULANI, 2016PAULANI, Leda M.. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contemporâneo. Brazilian Journal of Political Economy, v. 36, n. 3, 2016.), que por sua vez são constituídos a partir de processos variados de expropriação contra sujeitos subalternos e racializados (FRASER, JAEGGI, 2020FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. Boitempo Editorial, 2020.), o campo de batalha da propriedade parece mais minado do que nunca. Marx (2013____________. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867).) nos alertou que, entre direitos iguais, quem decide é a força. Quem decidirá entre o absolutismo da propriedade privada capitalista e o comum, direito de uso coletivo da terra, da natureza e de toda produção social?

Referências bibliográficas

  • AALBERS, Manuel B.. The financialization of home and the mortgage market crisis. In: Competition & Change, v. 12, n. 2, p. 148-166, 2008.
  • ALMEIDA, Alfredo W. B. de. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 6, n. 1, 2004.
  • BENSAID, Daniel. Os despossuídos: Karl Marx, os ladrões de madeira e o direito dos pobres. Em: MARX, Karl. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017.
  • BLOMLEY, Nicholas K.. Unsettling the city: urban land and the politics of property. New York, London: Routledge, 2004.
  • BOLLIER, David. Think like a commoner: a short introduction to the life of the commons. Gabriola Island (CA): New Society Publishers, 2014.
  • DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.
  • ____________. Propriedade, apropriação social e instituição do comum. In: Tempo social, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 261-273, 2015.
  • DE ANGELIS, Massimo. The beginning of history: value struggles and global capital. London; Ann Arbor, MI: Pluto, 2007.
  • FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. Boitempo Editorial, 2020.
  • HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge, Massachusets: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009.
  • HARDT, Michael. The common in communism. In: Douzinas, C.; Zizek, S. (eds.). The idea of communism. London, New York: Verso Books, 2010.
  • HARVEY, David. Accumulation by dispossession. In: HARVEY, D. The new imperialism. Oxford: Oxford University Press, 2003.
  • ____________. The limits to capital (new and fully updated edition). London and New York: Verso, 2006.
  • HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
  • LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999 (1970).
  • _____________. Critique of everyday life - the one volume edition. Londres: Verso, 2014 (1947; 1961; 1981).
  • _____________. State, space, world: selected essays. BRENNER, Neil.; ELDEN, Stuart. (ed.). Minneapolis, London: University of Minnesota Press, 2009.
  • LINEBAUGH, Peter. Stop, thief! The commons, enclosures and resistance. Oakland, CA: PM Press, 2014.
  • ____________. The Magna Carta Manifesto: liberties and commons for all. Berkeley and Los Angeles; London: University of California Press, 2008.
  • LINKLATER, Andro. Owning the earth: the transforming history of land ownership. Bloomsbury Publishing USA, 2013.
  • LOOMBA, Ania. Colonialism/Postcolonialism. Oxon, New York: Routledge, 2015.
  • MACPHERSON, Crawford B.. Property: mainstream and critical positions. Toronto, Buffalo, London: University of Toronto Press, 1978.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Luta de classes na Rússia. Organização Michael Löwy. São Paulo: Boitempo, 2013 (1875-1894).
  • ____________. Manifesto Comunista. Organização e introdução Oswaldo Coggiola. 1. ed. revista. São Paulo: Boitempo, 2010 (1848).
  • MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011 (1857-1858).
  • ____________. O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013 (1867).
  • ____________. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. Boitempo Editorial, 2017.
  • MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). São Paulo: Boitempo, 2018.
  • OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. New York: Cambridge University Press, 1990.
  • PAULA, João A. de. O mercado e o mercado interno no Brasil: conceito e história. História Econômica & História de Empresas, v. 5, n. 1, 2002.
  • PAULANI, Leda M.. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contemporâneo. Brazilian Journal of Political Economy, v. 36, n. 3, 2016.
  • PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Editora Intrínseca, 2014.
  • POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012 (1944).
  • ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2015.
  • ROSS, Kristin. Communal luxury: the political imaginary of the Paris Commune. London, New York: Verso Books, 2015.
  • RYAN-COLLINS, Josh; LLOYD, Toby; MACFARLANE, Laurie. Rethinking the Economics of Land and Housing. Zed Books Ltd., 2017.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma cartografia simbólica das representações sociais. Em: Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 24, mar. 1988.
  • SASSEN, Saskia. Expulsions: brutality and complexity in the global economy. Harvard University Press, 2014.
  • SILVA, Lígia O.. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008.
  • THOMPSON, Edward P.. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • ____________. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  • TONUCCI FILHO; João B. M.. Além do Estado e do Capital: notas sobre três abordagens críticas do Comum. Crítica Marxista, v. 49, 2019.
  • WALL, Derek. The commons in history: culture, conflict, and ecology. Cambridge, MA; London: MIT Press, 2014.
  • WOOD, Ellen M. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
  • 1
    Parte deste texto tem origem na tese de doutorado do autor, “Comum urbano: a cidade além do público e do privado”, defendida em 2017 no Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais. O autor agradece à orientação da profa. Heloisa Costa e ao CNPq e à CAPES pelo auxílio financeiro.
  • 2
    Para uma revisão das abordagens críticas contemporâneas sobre o comum, ver Tonucci Filho (2019).
  • 3
    BROMLEY, Daniel W. Environment and economy: property rights and public policy. Oxford: Blackwell, 1991.
  • 4
    HOEBEL, E. A. Anthropology: the study of man. New York: Mc-Graw-Hill, 1966.
  • 5
    MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected works. Vol. 5. New York: International Publishers, 1975.
  • 6
    PROUDHON, Pierre-Joseph. Qu'est-ce que la propriété. Paris: Garnier-Flammarion, 1966.
  • 7
    SINGER, Joseph. Entitlement: the paradoxes of property. New Haven, Conn.: Yale University Press, 2000.
  • 8
    BLACKSTONE, William. Commentaries on the laws of England, Livro ii. Nova York: Banks Law Publishing, 1917.
  • 9
    MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Boitempo editorial, 2015.
  • 10
    ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • 11
    TESTART, Alain. Avant l’histoire. L’évolution des sociétés, de Lascaux à Carnac. NRF, Gallimard, Paris, 2012.
  • 12
    Linebaugh (2008____________. The Magna Carta Manifesto: liberties and commons for all. Berkeley and Los Angeles; London: University of California Press, 2008.) distingue entre a common law, base do direito britânico e norte-americano, que consiste no conjunto formal de leis não criadas por um Parlamento, mas derivadas dos costumes e do acúmulo de decisões judiciais passadas; o direito derivado de estatutos legislativos criados pelo Parlamento (como o direito ocidental moderno baseado no direito romano, à exemplo do Brasil); e o direito costumeiro (ou consuetudinário) enraizado na cultura e nos costumes (THOMPSON, 1998THOMPSON, Edward P.. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.), geralmente não codificado. Holston (2013HOLSTON, James. Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.) alerta que o direito costumeiro - ou consuetudinário - português não deve ser confundido com regimes de costumes tribais ou comunitários, indígenas ou africanos, já que era reconhecido pelo próprio Estado moderno português, como se depreende da edição da Lei da Boa Razão, sob o Marquês de Pombal, em 1769.
  • 13
    A Magna Carta colocava limitações ao poder monárquico e reconhecia que outros membros da sociedade eram também detentores de direitos básicos de justiça. Alguns desses princípios básicos - consagrados no capítulo 39 da Carta, como habeas corpus, julgamento por júri, proibição de tortura e devido processo legal - constituem ainda hoje a base da maior parte das constituições democráticas ocidentais.
  • 14
    Entre os anos de 529 e 534 DC, sob ordens do imperador Justiniano I do Império Romano do Oriente (Império Bizantino), procedeu-se à compilação do Corpus Juris Civilis (Corpo de Direito Civil), coleção de obras fundamentais em jurisprudência latina que sistematizou todo o direito romano precedente, incluso a definição de categorias de propriedade. Desconhecido durante séculos na Europa ocidental, o Corpus foi redescoberto por juristas da Universidade de Bolonha no séc. XII, tendo se tornado desde então referência para constituição do direito civil ocidental e definição dos direitos de propriedade (BOLLIER, 2014BOLLIER, David. Think like a commoner: a short introduction to the life of the commons. Gabriola Island (CA): New Society Publishers, 2014.; DARDOT, LAVAL, 2017DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, 2017.).
  • 15
    Segundo Bollier (2014BOLLIER, David. Think like a commoner: a short introduction to the life of the commons. Gabriola Island (CA): New Society Publishers, 2014.), esse princípio legal originalmente romano do comum - segundo o qual nem o Estado, empresas ou cidadãos particulares podem se apropriar de recursos que pertencem a todos - sobreviveu naquilo que é conhecido na legislação norte-americana como public trust doctrine, que formaliza a ideia que o Estado tem o dever afirmativo de proteger recursos naturais para as gerações presentes e futuras, não podendo vender ou doar terra, água ou vida selvagem para interesses privados. Esse princípio aplica-se principalmente à proteção do direito de os cidadãos usarem rios, oceanos e costas para pesca, navegação e recreação.
  • 16
    KOVEL, Joel. The enemy of nature: the end of capitalism or the end of the world? London: Zed Books, 2007.
  • 17
    TOCQUEVILLE, Alexis de. Souvenirs. Paris: Gallimard, 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2021
  • Aceito
    12 Abr 2021
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com