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A potência em travessia: ODANR e novas leituras da realidade

SOUSA, José Geraldo de. JUNIOR. O Direito Achado na Rua: questões emergentes, revisitações e travessias. Coleção Direito Vivo, v. 5. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021

Publicado recentemente pela editora Lumen Juris, o quinto livro da série “Direito Vivo”, “O Direito Achado na Rua: questões emergentes, revisitações e travessias”, traz uma proposta inovadora à já consolidada teoria do Direito Achado na Rua (ODANR): atualizá-la, por meio de revisitações e reconfigurações, pautando temas que pulsam na atualidade. Busca, portanto, demonstrar que ODANR, teoria construída no final da década de 1990, tem importância que extrapola o contexto em que foi formulado e continua atual.

Escrito em meio a um contexto atípico, o livro representou, em si, um desafio. Ele foi construído por cinquenta e duas pessoas1 1 Os textos foram escritos por Amanda Machado de Liz, André Luiz Lacerda Medeiros, Andrea Brasil, Andrielly Larissa Pereira Silva, Anelisa Lacerda de Medeiros, Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito, Antonio Carlos de Mello Rosa, Bárbara R. R. C. de Oliveira, Betuel Virgílio Mvumbi, Carla Ramos, Carlos Henrique Naegeli Gondim, Caroline Vargas, Célia Bernardes, Edson Junior Dias de Sousa, Eduardo Xavier Lemos, Gustavo de Assis Souza, Ilka Teodoro, Inês Ulhôa, Jean Patrício da Silva, Joanderson Gomes de Almeida, João Paulo Hakuwi Kuady Karaja, João Paulo Santos Araujo, Jonas Tavares, José Geraldo de Sousa Junior, José de Ribamar de Araújo e Silva, Larissa Carvalho Furtado Braga Silva, Letícia Miguel Teixeira, Luana Bispo de Assis, Luís de Camões Lima Boaventura, Maíra de Oliveira Carneiro, Mamadu Seidi, Manuela de Santana Passos, Mara Lina Silva do Carmo, Marcelo Pires Torreão, Marconi Moura de Lima Burum, Mariane Carolina Gomes da Silva Rocha, Mauro Almeida Noleto, Natália Albuquerque Dino de Castro e Costa, Natália Soares Batista, Paulo Alves Santo, Pedro Henrique Fernandes das Chagas, Priscila Kavamura Guimarães de Moura, Renan Sales de Meira, Rose Dayanne Santana Nogueira, Sabrina Durigon Marques, Samuel Barbosa dos Santo, Solange Ferreira Alves, Thaisa Xavier Chaves, Tiago Benício Trentini, Vercilene Francisco Dias, Vinícius de Souza Assumpção e Willy da Cruz Moura. , durante a disciplina “Democracia e Violência - ODANR”, no âmbito dos Programas de Pós-Graduação em Direito (PPGD) e em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH) da Universidade de Brasília/DF, durante a pandemia do Coronavírus (COVID-19). Assim, aos esforços de realizar uma escrita coletiva e plural se somou a necessidade de redesenhar metodologias frente a um contexto completamente novo.

Por isso, um dos motivos de relevância da obra é, para além do conteúdo, a própria metodologia que o conduz, que demonstra a preocupação da academia em produzir conhecimento relacionado com a realidade em que está inserida (o que se demonstra pela centralidade da temática do COVID-19 nos textos). Além disso, a pluralidade de vozes garante a variedade dos temas tratados no texto e a interseccionalidade na abordagem, derivadas de uma epistemologia que se assume não neutra, visto que atravessada pelas experiências prévias dos autores. Assim, individual e coletivo se articulam na produção de textos engajados e contextualizados e que já eram fruto de preocupação, em maior ou menor grau, de quem os escreve. É uma metodologia que subverte a forma tradicional de produzir ciência nas academias brasileiras que, ao assumir seus limites, ganha ainda mais potência de reverberar na sociedade.

Os temas trabalhados percorrem problemáticas como a ocupação territorial dos sujeitos de direito, a exemplo de comunidades tradicionais indígenas e quilombolas e de mulheres negras na cidade, a vulnerabilização da população LGBTQIA+, as questões emergentes sobre o mundo do trabalho e o avanço neoliberal sobre instituições democráticas, como a universidade e o sistema de justiça. Os artigos abordam, também, questões importantes para a superação dessas violências: a reconfiguração da formação de juristas e, mais especificamente, de magistrados; a defesa da universidade frente aos avanços neoliberais de mercantilização da educação; a importância instrumental da Constituição Federal de 1988 e das normas internacionais; e o protagonismo dos movimentos sociais na mobilização de lutas por dignidade.

Apesar da diversidade de temas, conteúdos transversais perpassam todo o livro. A utilização do aporte teórico do ODANR, que defende a rua como espaço legítimo de produção do Direito, é apenas um deles. Igualmente transversal é a interseccionalidade na abordagem dos temas, que reconhece a particularidade do entrecruzamento de diversas violações (CRENSHAW, 2004CRENSHAW, Kimberlé. A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.). A interdisciplinaridade, também. A abordagem em profundidade dos temas exige a articulação de diversos saberes, o que não seria possível se a atomização das disciplinas fosse adotada como limite para a argumentação. E, do mesmo modo, em todos os textos os movimentos sociais aparecem como sujeitos centrais, como protagonistas de suas próprias histórias, em evidente compasso com a Teoria Crítica dos Direitos Humanos construída por Joaquín Herrera Flores. Para esse autor, as normas são apenas instrumentos que surgem da luta, protagonizada pelos sujeitos coletivos, em busca de uma vida digna de ser vivida (HERRERA FLORES, 2009HERRERA FLORES, Joaquín. A (re) invenção dos direitos humanos. Trad. Carlos Roberto Diogo Garcia; Antônio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.).

Como não poderia deixar de ser, os autores contextualizam suas abordagens das lutas por dignidade no cenário atual de pandemia. Nesse sentido, a metáfora da “rua” enquanto espaço público assume novas leituras, de modo que, em tempos de ruas esvaziadas pelas medidas de precaução de contágio da doença, novas “ruas” aparecem nas redes, nos aplicativos e no celular. A atualidade da obra, que não se furta à autocrítica e à reformulação de uma teoria já consolidada, é o que demonstra a sua relevância e potência.

Essa perspectiva é assumida desde a apresentação do livro, escrita por uma aluna quilombola e três alunos indígenas, a que se seguem três artigos2 2 No livro, os artigos são apresentados na seguinte ordem: 1. Direitos dos povos indígenas, educação judicial e ODANR; 2. O território achado na aldeia e no quilombo: a antítese da mercantilização neoliberal; 3. Manifesto por um Direito Achado nas Aldeias; 4. Os direitos humanos e o papel histórico da universidade necessária e emancipatória; 5. A democracia constitucional e a proposta para um constitucionalismo inclusivo no Brasil; 6. O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso da APIB na ADPF nº 709; 7. Emergências LGBTQIA+ para um 2030 possível!(?); 8. O Direito Achado na Rua e Arte: ensino jurídico e questões emergentes no contexto de pandemia; 9. Mulheres negras nas entrelinhas do DF: raça, gênero e classe no direito à cidade achado na rua; 10. Movimentos sociais, acesso à justiça e emergência do autoritarismo na América Latina; e 11. Olha o breque! O direito achado na rede e a greve dos entregadores de aplicativos. Escolhi não abordar os artigos nesta ordem, mas sim relacionar temáticas comuns e que se complementam. sobre o território dessas comunidades tradicionais, na busca por um “Direito Achado nas Aldeias”. Os autores exploram o sentido de território que, para esses povos, não consiste em mera propriedade, mas sim em elemento condensador de uma série de outros direitos, constituído por afeto, sentimento, espiritualidade e ancestralidade. É, assim, um direito existencial, constantemente ameaçado pela mercantilização neoliberal que permeia as decisões judiciais, questão abordada no segundo trabalho do livro. Nesse sentido, a pluralidade de vozes em universidades e espaços de decisão, reflexão presente no terceiro artigo, é essencial à superação dessa problemática, pois é por meio disso que histórias únicas vão sendo desconstruídas e abre-se o espaço necessário para pautas antes tidas como marginais, que assumem centralidade no enfrentamento dos problemas sociais.

A ocupação dos espaços pelos sujeitos também é tema do nono artigo, em que os autores abordam o direito à cidade das mulheres negras, com recorte espacial do Distrito Federal. Eles defendem que a rua não é ocupada igualmente por todos os corpos, uma vez que é desenhada para um “sujeito universal” que, não coincidentemente, é masculino, branco, heterossexual e proprietário. A desigualdade no acesso à cidade, por sua vez, reverbera na precariedade de uma série de outros direitos, como saúde e educação de qualidade, saneamento básico, transporte e segurança.

Os autores apontam que o mundo do trabalho é uma importante chave de análise para perceber a dinâmica urbana dessas mulheres. Assim, eles voltam ao tempo das “ganhadeiras”, mulheres negras, escravizadas ou libertas, que movimentavam o comércio de rua das cidades do Brasil colônia. Não é à toa que, hoje, elas são muitas das ambulantes que ocupam os postos de trabalho informal, conforme apontam os dados do IBGE para 2020. Ainda na análise do mundo do trabalho, é possível perceber que, após o fim da escravização legal, as mulheres negras voltaram à casa dos grandes proprietários sob o signo de trabalhadoras domésticas, onde foram mantidas por muito tempo nos quartos de empregada. Conforme é destacado no texto, essa profissão ficou à margem da lei por várias décadas e só foi regulamentada em 2015, o que contribuiu para as precárias condições de trabalho e para os salários irrisórios. Assim, mesmo após a saída dessas trabalhadoras do domínio do patrão, elas eram levadas a residir nas periferias, longe do local de trabalho, onde o custo de vida é menos elevado.

Desse modo, os autores argumentam que a arquitetura da cidade interfere na vulnerabilização das mulheres negras que por ela transitam. São exemplos disso a ausência de boa iluminação pública, a grande extensão das quadras, as intervenções viárias que cortam as grandes vias (como viadutos e metrôs), as passarelas extensas, a precariedade no serviço de transporte público e as quadras de uso único (comercial ou residencial), que condicionam a movimentação das ruas a um único espaço de tempo. Todos esses elementos repercutem não apenas na violência contra essas mulheres, mas também nas condições de dignidade de suas vidas. No Distrito Federal, os autores demonstram, por meio de dados, a interseção entre localização geográfica, renda per capita, uso ou não de transporte público e o gênero e a raça dos sujeitos mais afetados nessa dinâmica, o que resulta na maior precariedade da experiência urbana para as mulheres negras.

Outro grupo vulnerabilizado é o da população LGBTQIA+, estudado no sétimo artigo. Esse texto tem como pergunta norteadora a possibilidade ou não de realização do objetivo nº 16 da Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que propõe o acesso à justiça, a consolidação de instituições eficientes e a promoção da paz. Os autores afirmam que, em 2020, cinco anos após a publicação da Agenda, pouca coisa mudou: o Brasil continua sendo o que mais mata a população LGBTQIA+ no mundo.

Além da morte física, os pesquisadores destacam que esse grupo é submetido a diversas formas de morte em vida, na violência psicológica, na dificuldade de acessar postos de trabalho dignos, na invisibilização dos dados, dentre outros. No caso do mundo do trabalho, essa parcela da população é conduzida pela heteronormatividade a condições precárias de trabalho, como os postos de telemarketing e a prostituição. E, mesmo quando estão em empregos formais, são violentados na medida em que não podem assumir suas identidades, não acessam o banheiro de forma igualitária e são restringidos do direito ao uso do nome social. Durante a pandemia, essas violências apenas se amplificaram: de acordo com o VoteLGBT, os maiores impactos sentidos foram na piora na saúde mental, no afastamento da rede de apoio e na falta de fonte de renda.

As problemáticas do mundo do trabalho não se restringem às mulheres negras e à população LGBTQIA+. Com o Coronavírus, os questionamentos sobre as dinâmicas trabalhistas nas redes se ampliaram, com especial atenção aos entregadores de aplicativo, levando ao assunto do décimo primeiro artigo do livro. Esse trabalho parte da tensão entre a essencialidade dessa função e da precarização do trabalho a que esses sujeitos estão submetidos: se, por um lado, o isolamento social aumentou a demanda por entregadores, por outro os submeteu a maior risco de contaminação.

Os autores também argumentam que a “uberização” do trabalho, termo atribuído a esse fenômeno, traz consigo uma série de peculiaridades na atualização das formas de explorar os trabalhadores. Sob o mito de serem “empreendedores de si mesmos”, precisam arcar com os custos dos equipamentos de trabalho, com os riscos do empreendimento e com a responsabilidade de conseguir um salário mínimo, não garantido pelo empregador. Aliás, empregador este que nem é conhecido pelos entregadores e acaba se diluindo nos clientes do serviço. Além disso, por ser um “trabalho informal”, dificulta a articulação dos trabalhadores para a busca por melhores condições de trabalho - mas, como demonstrado pelo artigo, não a elimina.

É interessante notar que, em várias das questões abordadas até aqui, a ausência ou a incompletude dos dados aparece como uma violência em si mesma. Sem dados, não é possível diagnosticar um problema; sem diagnóstico, não há enfrentamento possível por meio de elaboração de políticas públicas sérias e efetivas. É o caso, por exemplo, do trabalho doméstico e informal, em que a insuficiência dos dados mascara a desigualdade social, e da mobilidade urbana, tema que ainda não é majoritariamente visto sob a ótica interseccional.

Além disso, a ausência de marcadores específicos nos censos oficiais, que contribuiu para a invisibilização da população negra entre 1890 e 1940, é a mesma razão que hoje impede o conhecimento da população LGBTQIA+ brasileira. Como resposta a esse cenário, surgiram grupos específicos para a produção de dados de forma autônoma, a exemplo do Grupo Gay da Bahia (GGB) e da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA).

O livro conta, ainda, com a problematização do avanço neoliberal na sociedade brasileira. Neste sentido, o décimo artigo estuda as estratégias utilizadas pelos movimentos sociais de se reinventar na luta contra o avanço do denominado “neoautoritarismo”, em que se insere a agenda reformista e de desmonte das leis trabalhistas. O recorte dado é o dos movimentos sindicais, que foram fortemente abalados pela Reforma Trabalhista de 2017 (Lei Federal nº 13.467).

Essas reformas conservadoras estão inseridas em um contexto de “sul” global, metáfora que reúne os países em que se vive o capitalismo periférico, independentemente de sua localização geográfica. Esses países, fortemente marcados pelo colonialismo, são palco da precarização das condições de trabalho e das iniciativas de desmobilização da luta articulada dos sujeitos vulnerabilizados. Os autores tratam, neste sentido, dos diversos retrocessos, possibilitados pela Reforma Trabalhista, que enfraquecem ainda mais os sindicatos: flexibilização das formas de contratação, ampliação irrestrita da terceirização, facilidades no acordo direto entre empregador e empregado e a retirada da contribuição sindical compulsória.

Os autores destacam que o financiamento dessas entidades foi atacado novamente, em 2019, pelo Presidente da República3 3 Em 2019, o presidente da República do Brasil era Jair Bolsonaro. , que editou a Medida Provisória nº 873 para mudar, de desconto em folha para boleto bancário, a forma de pagamento da contribuição sindical. A articulação de diversos movimentos exerceu pressão política sobre o Congresso Nacional, que acabou, em um primeiro momento, não ratificando a Medida. Como resultado dessas iniciativas neoliberais, tem-se trabalhadores que já não conseguem se articular, por não terem uma identidade (ou terem uma identidade pulverizada), a exemplo do “uberismo”, e que, mesmo quando conseguem, encontram instituições completamente fragilizadas. Sem financiamento, as entidades não conseguem ter condições materiais para manter suas atividades.

São esses os diversos cenários que levam os autores a refletir, a partir de ODANR, sobre quais estão sendo as estratégias de enfrentamento utilizadas e quais ferramentas podem ser movimentadas para lidar com tantas violações. Uma delas é a educação em e para direitos humanos, que tem como característica o engajamento crítico na realidade. Diante disso, o quarto artigo fala sobre a importância das universidades, em especial da pública e gratuita, para a promoção e efetivação dos direitos humanos. Nesse trabalho, os autores afirmam que o papel das universidades vai além da formação técnica, pois essas instituições têm o dever de formar sujeitos críticos, que colaborem para uma sociedade igualitária e justa. Assim, os pesquisadores levantam questões essenciais para que essa instituição cumpra sua função, a exemplo de se debater a Lei de Diretrizes Básicas e as cotas, bem como de se problematizar iniciativas neoliberais, como o movimento “Escola Sem Partido”.

É interessante perceber como se dá a articulação entre os diversos textos que compõem a obra, ainda que escritos por pessoas diferentes, o que garante coerência e continuidade aos debates. No quarto artigo, por exemplo, algumas discussões trazidas no início do livro são retomadas ao tratarem da imprescindibilidade da agência dos movimentos sociais para a instituição da obrigatoriedade do ensino de cultura afro e indígena nas escolas. Nesse sentido, a educação é vista como pilar essencial na promoção de mudanças estruturais na sociedade. Além disso, ao tratar das cotas, o quarto trabalho remete à argumentação de que os grupos subalternizados precisam ocupar cada vez mais espaços de poder, algo também destacado no caso das mulheres negras, da população LGBTQIA+, indígena e quilombola.

Outra estratégia presente em diversos textos é a da utilização das normas positivadas como ferramenta de efetivação de direitos. Ilustra a questão a utilização da litigância estratégica por indígenas, quilombolas, população LGBTQIA+, mulheres e trabalhadores: todos eles, de alguma forma, movimentam o aparelho judicial para disputar narrativas e para construir interpretações favoráveis aos seus direitos. Diante disso, o quinto artigo aborda a importância de um constitucionalismo que inclua os diversos atores da sociedade, pois só assim a democracia se torna possível.

No sexto artigo, por sua vez, trata-se da agência da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) na ADPF nº 709, que resultou na compreensão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a entidade estava legitimada a propor ação em controle concentrado de constitucionalidade, muito embora não fosse entidade de classe e nem tivesse personalidade jurídica. Essa compreensão vai de encontro à jurisprudência defensiva que prevalecia desde a promulgação da Constituição, em 1988. Os autores demonstram, portanto, a participação dos movimentos sociais na construção de sentidos da Constituição Federal, caracterizando um verdadeiro constitucionalismo achado na rua.

A perspectiva adotada pelo livro é o de que as normas não são um fim em si mesmo: elas têm importância meramente instrumental em uma história que é protagonizada pelos sujeitos sociais. É com essa compreensão que, no tocante à população LGBTQIA+, as autoras advertem para a insuficiência da decisão favorável do STF sobre a homotransfobia, na ADO nº 26 e no MI nº 4733, já que, na prática, pouca coisa mudou.

Por isso, para que mudanças estruturais ocorram, é preciso que outros fatores sejam igualmente objeto de reflexão. É o caso da formação dos magistrados, tema do primeiro artigo do livro. Nele, os autores ressaltam a importância da interculturalidade dos currículos das escolas judiciais de formação dos magistrados, para que haja um “encantamento” dos direitos humanos e que a colonialidade do ser, do saber e do poder seja superada. Assim, são relevantes as iniciativas da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Magistrados (ENFAM), que resultaram na inclusão, pela primeira vez, da disciplina de direito indígena na formação dos novos magistrados da Primeira Região e na promoção de vivências junto a comunidades indígenas em meio a cursos de aperfeiçoamento.

Essas ações são importantes para oferecer um contraponto à racionalidade branca, masculina e elitizada que predomina no sistema judicial brasileiro. Conforme pesquisa realizada em 2018 pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), de um total de 3.805 magistrados4 4 Esse número inclui magistrados de primeiro e segundo grau, inativos e, ainda, magistrados de tribunais superiores. , apenas quatro se autodeclararam indígenas (AMB, 2018). Essa é uma realidade que não se restringe aos juízes: de acordo com pesquisa feita pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), entre 2015 e 2016, o Ministério Público é formado por uma elite masculina, branca e rica5 5 Disponível em: <https://cesecseguranca.com.br/reportagens/ministerio-publico-e-formado-por-elite-masculina-branca-e-rica-revela-pesquisa/>. Acesso em: 25 fev. 21. . Esse cenário, somado à omissão das instituições na adoção de medidas de enfrentamento, possibilita a perpetuação de uma cultura jurídica de poder e opressão, que se pretende, erroneamente, homogênea e universal.

Importante, também, localizar a formação universitária nessa problemática. No Rio de Janeiro, 79% dos juízes não estão informados sobre como funciona o sistema de proteção internacional dos direitos humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Organização das Nações Unidas (ONU) (CUNHA, 2015). Dados como esse levantam questões sobre o ensino jurídico nas graduações, condição essencial ao ingresso nas principais carreiras do sistema de justiça. O livro objeto desta resenha, interessado em revisitar temas atuais, também apresenta um trabalho sobre esse tema.

É no artigo oitavo que se encontram essas preocupações. Os autores, por meio da relação entre Direito e arte, abordam elementos como a festividade, a praça pública e o riso, tematizando alegria e celebração como condições essencialmente humanas e que atribuem sentido ao viver. Inserir essa reflexão no campo do Direito significa refletir sobre a formalidade e o caráter elitizado dos cursos. Significa, ainda, pensar sobre a reprodução do Direito enquanto espaço de poder por meio de um universo simbólico de vestes, linguagens e restrições de acesso.

Guiados pelas reflexões de Roberto Aguiar (2004AGUIAR, Roberto A. R. Habilidades: ensino jurídico e contemporaneidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.), os autores problematizam quais as competências e as habilidades necessárias à formação do jurista, para que ele possa atuar como agente transformador no mundo. Além disso, argumentam que a arte tem o papel de escancarar a realidade quando o Direito se fecha a ela. Por meio da manifestação artística, as portas do Direito se abrem para as ruas. Por sua vez, é a partir do contato com o diverso e com o plural que o jurista se sensibiliza aos clamores humanos, e, assim, constrói sua formação profissional com base na interculturalidade e no humanismo dialético, questões tão caras ao ODANR. Vale a pena destacar que a obra assume essa postura, ao fazer uso de imagens e de poesias intercaladas com os textos acadêmicos. Isso significa apostar nas mais variadas linguagens do ser humano, que tem na comunicação uma característica de sua própria natureza (FREIRE, 2015FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 59. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.).

Assim, guiados pela teoria de ODANR e movidos pelos temas pulsantes na sociedade atual, os autores atualizam as construções teóricas surgidas décadas atrás: “dessa forma, o coletivo de pesquisa O Direito Achado na Rua mantém-se ativo por 30 anos, revisando seu passado, projetando-o para o futuro, sem perder suas raízes mas sem que suas bases teóricas impossibilitem refletir e enfrentar novos desafios, práticos e teóricos” (p. 355). Os autores, ao revisitarem construções teóricas anteriores, assumem o movimento dialético da história; reconhecem a inevitável incompletude da teoria, mas, ao reconhecê-la, assumem a responsabilidade de atualizá-la.

Do desafio de construir coletivamente um texto sobre as mais variadas temáticas advém a potência deste livro. Ele, além de prenunciar diversas questões pulsantes e que exigem ainda mais atenção, é expressão autêntica de interculturalidade. É prova viva do que prega, da criticidade dentro da universidade. Assim, fornece pontes para a travessia até outros futuros possíveis.

Referências bibliográficas

  • AGUIAR, Roberto A. R. Habilidades: ensino jurídico e contemporaneidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
  • Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Quem somos: a magistratura que queremos. Rio de Janeiro: AMB, 2018.
  • CRENSHAW, Kimberlé. A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.
  • CUNHA, José Ricardo. Direitos humanos e justiciabilidade: pesquisa no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Sur, Rev. int. direitos humanos, v. 2, nº 3, São Paulo, Dez. 2005.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 59. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
  • HERRERA FLORES, Joaquín. A (re) invenção dos direitos humanos. Trad. Carlos Roberto Diogo Garcia; Antônio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
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    Os textos foram escritos por Amanda Machado de Liz, André Luiz Lacerda Medeiros, Andrea Brasil, Andrielly Larissa Pereira Silva, Anelisa Lacerda de Medeiros, Anne Carolline Rodrigues da Silva Brito, Antonio Carlos de Mello Rosa, Bárbara R. R. C. de Oliveira, Betuel Virgílio Mvumbi, Carla Ramos, Carlos Henrique Naegeli Gondim, Caroline Vargas, Célia Bernardes, Edson Junior Dias de Sousa, Eduardo Xavier Lemos, Gustavo de Assis Souza, Ilka Teodoro, Inês Ulhôa, Jean Patrício da Silva, Joanderson Gomes de Almeida, João Paulo Hakuwi Kuady Karaja, João Paulo Santos Araujo, Jonas Tavares, José Geraldo de Sousa Junior, José de Ribamar de Araújo e Silva, Larissa Carvalho Furtado Braga Silva, Letícia Miguel Teixeira, Luana Bispo de Assis, Luís de Camões Lima Boaventura, Maíra de Oliveira Carneiro, Mamadu Seidi, Manuela de Santana Passos, Mara Lina Silva do Carmo, Marcelo Pires Torreão, Marconi Moura de Lima Burum, Mariane Carolina Gomes da Silva Rocha, Mauro Almeida Noleto, Natália Albuquerque Dino de Castro e Costa, Natália Soares Batista, Paulo Alves Santo, Pedro Henrique Fernandes das Chagas, Priscila Kavamura Guimarães de Moura, Renan Sales de Meira, Rose Dayanne Santana Nogueira, Sabrina Durigon Marques, Samuel Barbosa dos Santo, Solange Ferreira Alves, Thaisa Xavier Chaves, Tiago Benício Trentini, Vercilene Francisco Dias, Vinícius de Souza Assumpção e Willy da Cruz Moura.
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    No livro, os artigos são apresentados na seguinte ordem: 1. Direitos dos povos indígenas, educação judicial e ODANR; 2. O território achado na aldeia e no quilombo: a antítese da mercantilização neoliberal; 3. Manifesto por um Direito Achado nas Aldeias; 4. Os direitos humanos e o papel histórico da universidade necessária e emancipatória; 5. A democracia constitucional e a proposta para um constitucionalismo inclusivo no Brasil; 6. O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso da APIB na ADPF nº 709; 7. Emergências LGBTQIA+ para um 2030 possível!(?); 8. O Direito Achado na Rua e Arte: ensino jurídico e questões emergentes no contexto de pandemia; 9. Mulheres negras nas entrelinhas do DF: raça, gênero e classe no direito à cidade achado na rua; 10. Movimentos sociais, acesso à justiça e emergência do autoritarismo na América Latina; e 11. Olha o breque! O direito achado na rede e a greve dos entregadores de aplicativos. Escolhi não abordar os artigos nesta ordem, mas sim relacionar temáticas comuns e que se complementam.
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    Em 2019, o presidente da República do Brasil era Jair Bolsonaro.
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    Esse número inclui magistrados de primeiro e segundo grau, inativos e, ainda, magistrados de tribunais superiores.
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    Disponível em: <https://cesecseguranca.com.br/reportagens/ministerio-publico-e-formado-por-elite-masculina-branca-e-rica-revela-pesquisa/>. Acesso em: 25 fev. 21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2021
  • Aceito
    15 Out 2021
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