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Sobre o Direito, a especificidade da esfera estatal e a determinação em última instância em Friedrich Engels

On Law, the specificity of state sphere and economic determination on Friedrich Engels

Resumo

A partir da análise imanente da obra de Friedrich Engels, buscaremos explicitar as determinações do Estado no autor. Ao analisar a chamada determinação em última instância, mostraremos que, longe de ela implicar na desconsideração das diferentes instâncias da sociedade, tal determinação implica no reconhecimento da diferença específica entre as funções distintas de cada uma delas em momentos outros da história. Mostraremos que, neste percurso, é essencial passar pela correlação entre Estado, Direito, religião, autonomização da esfera estatal para que, então, seja possível entender a especificidade da esfera estatal na obra de Engels.

Palavras-chave:
Engels; determinação econômica; Direito; Estado; Especificidade do Estado

Abstract

Having as a departing point the immanent analysis of the work of Friedrich Engels, we will try to make explicit the determinations of the State on the author. When analyzing the so-called economic determination, we will show that, far from implying the disregard of the different instances of society, such determination implies the recognition of the specific difference between the different functions of each one of them at different moments in history. We will show that, in this path, it is essential to go through the correlation between State, Law, religion, autonomy of the State sphere so that, then, it is possible to understand the specificity of the state sphere in Engels' work.

Keywords:
Engels; Economic determination; Law; State; Specificity of State

Introdução

No século XX, não raro, a centralidade das teorizações marxistas esteve nos estudos sobre o Estado. Isto, talvez, tenha se dado devido às dificuldades concretas pelas quais passou a URSS no que toca ao tema. (Cf. GOLDMANN, 2014GOLDMANN, Wendy. Mulher, Estado e revolução. Trad. Natália Agalossy Alfonso. São Paulo: Boitempo, 2014.; MÉSZÁROS, 2002MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Trad. Paulo Cezar Castanheda e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.) Neste contexto, em que a burocratização do Estado soviético esteve no âmago dos debates marxistas, autores importantes como Löwy não tardaram a remeter a aspetos da teoria weberiana sobre a burocracia buscando explicitar um diálogo - proveitoso, segundo ele - que teria ficado somente implícito. (Cf. LÖWY, 1978LÖWY, Michael. Método dialético e teoria política. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978.) Para que se diga a verdade, o marxista húngaro György Lukács (2003LUKÁCS, György. História e consciência de classe. Trad. Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), um dos maiores filósofos do século XX, havia procurado realizar algo similar em 1923, em História e consciência de classe. (Cf. SARTORI, 2018________. O Direito à luz de História e consciência de classe de György Lukács. In: Direito e práxis, V. 9, N. 4. Rio de Janeiro: UERJ, 2018.) E, assim, pode-se dizer que grandes autores viram a necessidade de complementar o tratamento dos fundadores da “concepção materialista da história” neste assunto, e em outros. (Cf. ANDERSON, 2004ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Trad. Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2004.) De certo modo, o cenário do século XXI parecia ser aquele em que haveria certa tendência, no limite, a se ultrapassar o marxismo com teorias de distintas vertentes críticas, como as de Habermas, Bourdieu e outros.

Aqui, não nos colocaremos sobre esta posição diretamente. Porém, abordaremos algo que aparece como o pressuposto dela: a suposta insuficiência originária das abordagens iniciais do marxismo sobre o Estado e o Direito.

Caso isto realmente se coloque com a força que se supõe, trata-se, efetivamente, de questionar o “paradigma” que tem referência em Marx e Engels. Para se entender isto, porém, há de se analisar como que a questão se coloca nestes autores.

Aqui, a partir da análise imanente1 1 Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto - a formação ideal - em sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009, p. 26) dos textos engelsianos, trataremos de elementos essenciais deste tema naquele que sempre foi visto como o mais problemático da dupla. Escolhemos o pensamento de Friedrich Engels, portanto, porque é aquele que mais facilmente se prestou a críticas (inclusive dentro dos defensores do marxismo) e, portanto, pode explicitar o tema de modo mais claro.

É preciso analisar até que ponto há uma preocupação em Engels sobre as especificidades dos diferentes Estados, sobre a autonomia relativa destes, bem como sobre a correlação entre Estado, Direito, religião e ideologia. Depois disso, é necessário que a questão da determinação econômica da esfera estatal seja vista. Caso nosso autor tenha um tratamento unilateral sobre quaisquer destes temas, as críticas de autores pós-marxistas são mais do que acertadas. E, desta maneira, seria urgente superar o “paradigma” marxista sobre o Estado, já que, tal qual o marxismo ossificado do stalinismo, teria um interesse essencialmente historiográfico. Caso contrário, talvez seja necessário rever o suposto acerto de uma série de autores - como os mencionados Bourdieu e Habermas - que desenvolvem suas teorias, em parte considerável, em oposição às limitações do ideário marxista.

A colocação da questão do Estado em Engels

As teorizações engelsianas sobre o Estado geralmente são polêmicas; mesmo que em Origens da família, da propriedade privada e do Estado (2002) o autor trate o tema de uma maneira histórica mais geral, e destacando as determinações mais essenciais ao Estado, geralmente, o tema aparece na medida em que Engels se contrapõe a algum posicionamento, como aqueles de Hegel, Düring, Proudhon, dentre outros. Há também momentos em que nosso autor aborda Estados específicos, como o francês ou o alemão.

Ou seja, o primeiro ponto a se destacar é que, em Friedrich Engels, não há algo como uma teoria geral do Estado; expliquemos: o autor aborda o assunto em diferentes circunstâncias e em distintos graus de abstração. 2 2 Sobre a importância da compreensão destes diferentes graus de abstração, Cf. LUKÁCS, 2012, 2010, 2013. Vale ver também a obra de Rosdolsky. (2001) E, com isto, é preciso que se note:o centro organizador de sua teorização, em verdade, não está no Estado. Antes, este é analisado na medida em que outros temas são decisivos aos textos engelsianos.

Neste sentido específico, pode-se mesmo dizer que tratar do Estado sem passar por estas questões seria absolutamente oposto ao percurso engelsiano que, tal como o de Marx, não deixa nem pode deixar de remeter às relações materiais de produção.

Este ponto pode parecer bastante óbvio, até mesmo porque se baseia em um posicionamento que não deixou de levar a certas interpretações unilaterais: aquele segundo o qual “cada estrutura econômica da sociedade constitui a base real, a partir da qual deve ser explicada, em última instância, toda a superestrutura das instituições jurídicas e políticas” no que continua Engels, “bem como o modo de representação religiosa, filosófica e de qualquer natureza de cada período histórico.” (ENGELS, 2015_________. Anti-Düring. Trad. Nélio Schneideman. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 55) Nesta passagem, o autor enfoca - recorrendo à imagem da última instância, bem como à base e à superestrutura - que não se pode autonomizar, seja na exposição, seja na pesquisa, as esferas, por assim dizer, superestruturais. Ou seja, caso se critique Engels por trazer uma leitura unilateral por destacar a dependência das esferas mencionadas, em última instância, às relações econômicas, há de se admitir, ao mesmo tempo, que não há em no autor do Anti-Düring uma espécie de teoria geral “do Estado”.

O Estado, no mínimo, precisaria ser analisado ao se ter em conta o movimento econômico de cada estrutura específica das distintas formações sociais capitalistas. E, claro, seria preciso igualmente analisar a própria efetividade das relações econômicas, em suas ligações mais íntimas e mais distantes.

Note-se: a imagem da última instância, assim, serve ao autor muito mais para explicitar que há relações mais ou menos diretas com “cada estrutura econômica” que para reduzir os diferentes modos de representação3 3 Sobre a categoria modo de representação e sua relação com a estrutura econômica, mais precisamente com as formas e com as figuras econômicas, vale conferir a excelente obra de Jorge Grespan, Marx e a crítica ao modo de representação capitalista (2019). à esfera econômica.

Ao tratar da emergência do Estado, Engels (2002________. Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Ruth M. Klaus. São Paulo: Centauro, 2002) também aborda o surgimento das classes sociais, dos interesses antagônicos irreconciliáveis no seio da comunidade, de uma nova forma de divisão do trabalho; e, assim, no nível de abstração mais alto da análise de nosso autor, o surgimento de certas categorias econômicas e sociais é concomitante ao surgimento do Estado. A exposição engelsiana mostra como se trata de um movimento unitário, e não de uma história econômica, social, jurídica ou estatal separadas.

E, também neste sentido, destaca-se que, em Engels, tal qual em Marx, não há uma teoria do Estado autonomizada.4 4 Tal aspecto, bem como a ausência de uma teoria do Estado e da transição foi bastante criticado por Bobbio (1983). No entanto, como veremos aqui, a falta de algo como uma teoria geral do Estado não implica em um tratamento descuidado da temática, como parece supor o jurista e politólogo italiano. A teorização sobre o Estado relaciona-se necessariamente à apreensão do movimento unitário da própria história; neste sentido, vale lembrar a colocação feita por nosso autor, juntamente com Marx, em Ideologia alemã: “conhecemos apenas uma ciência, a ciência da história”. (MARX; ENGELS, 2002MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Ideologia alemã. Trad. Luís Claudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 107) A gênese, o desenvolvimento e o eventual fenecimento do Estado precisariam ser analisados ao se ter isto em mente.5 5 As tematizações de Engels sobre o fenecimento do Estado não são destituídas de tensões, que não poderemos tratar aqui. Para uma análise do tema, Cf. MUSSETI, 2020 e SARTORI, 2016. Veja-se como que o autor se coloca sobre o tema ao dialogar com as descobertas de Lewis Morgan6 6 Não debateremos sobre o modo como a obra do antropólogo estadunidense encontra-se ultrapassada. Destacamos somente que, mesmo ao trazer um posicionamento geral sobre o Estado, Engels está debatendo com outros autores. No caso, isto se dá, em grande parte, com concordância diante de Morgan e com base nas anotações de Marx, hoje publicadas nos chamados Cadernos etnológicos (1972). Para um debate sobre o tema, bem como para uma diferenciação entre Marx e Engels sobre o assunto, Cf. PARREIRA, 2019. :

Gradativamente, as forças produtivas se intensificam; a população mais densa produz ora interesses comuns, ora interesses conflitantes entre os sistemas comunitários individuais, cujo agrupamento em totalidades maiores leva a uma nova divisão do trabalho: a criação de órgãos para salvaguarda dos interesses comuns e rejeição dos interesses conflitantes. Esses órgãos que, como representantes dos interesses comuns de todo o grupo, já assumem uma posição especial (dependendo das circunstâncias, até antagônica) em cada comunidade, logo ganham ainda mais autonomia, em parte pela hereditariedade da condução do cargo, que surge quase ao natural num mundo em que tudo sucede conforme a natureza, em parte por sua indispensabilidade, que cresce com a multiplicação dos conflitos com outros grupos. Não é preciso abordar aqui como, com o tempo, essa autonomização da função social em relação à sociedade pôde atingir o grau de dominação sobre a sociedade; como o servidor original, favorecido pelas circunstâncias, transformou-se gradativamente em senhor; como, dependendo das circunstâncias, esse senhor assumiu a forma de déspota oriental ou sátrapa, de príncipe tribal grego, de chefe de clã celta etc.; quanto ele, nessa metamorfose, acabou por servir-se do poder; por fim, como os indivíduos dominantes se congregaram numa só classe dominante. (ENGELS, 2015_________. Anti-Düring. Trad. Nélio Schneideman. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 208)

A divisão do trabalho, o incremento das forças produtivas, bem como o surgimento de interesses conflitantes irreconciliáveis são abordados por Engels como determinações de reflexão, como categorias cujo rumo só pode ser analisado em conjunto.

O órgão social surgido para que se autonomize os interesses comuns diante dos conflitantes - o Estado -, assim, liga-se a grupos específicos, bem como aos conflitos existentes entre estes grupos, entre si, e diante doutros. E, deste modo, deve-se notar que o Estado surge para salvaguardar a sociedade de sua dissolução (trata-se, aqui, da preservação do interesse comum) diante dos conflitos. Sem o Estado, segundo Friedrich Engels, estes conflitos colocam-se como oposições irreconciliáveis entre diversos grupos.

E, deste modo, pode-se dizer que o Estado nasce como uma espécie de servidor da sociedade. Sua autonomização original é aquela que permite certo arbitramento dos conflitos para que a sociedade não se dissolva. Porém, com isto, desenvolve-se gradativa e concomitantemente a divisão do trabalho entre a atividade intelectual e a material, as classes sociais, a propriedade privada, a família patriarcal. Ou seja, o nascimento do Estado, de certo modo, é o atestado de que a sociedade começa a trazer em si, e em seus órgãos, o reconhecimento do caráter irreconciliável dos conflitos que lhes dão base.

O órgão que originalmente se coloca como um servidor da sociedade, assim, não poderia deixar de se tornar uma espécie de senhor diante desta: ele representa todos os grupos sociais somente idealmente já que o desenvolvimento da organização estatal significa que certos grupos adquirem uma posição concreta de mando e poder. A “posição especial” que destaca Engels, dependendo da situação, coloca-se, desde o começo, como antagônica. E, seja de modo mais aproximado com a dependência da natureza, seja já em um grau maior de afastamento das barreiras naturais (Cf. LUKÁCS, 2013_______. Ontologia do ser social II. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013), aumentam os conflitos entre os grupos. Assim, a autonomização do Estado diante da sociedade passa progressivamente a significar a dominação classista institucionalizada, no limite, em uma só classe dominante. Para Engels, a conformação do Estado como um órgão de domínio de classe decorre do processo originário de sua autonomização diante da sociedade, bem como da configuração dos distintos grupos em função de suas posições específicas nas relações sociais de produção. Isto, por sua vez, está relacionado com a divisão do trabalho, tanto no sentido sexual, quanto na oposição entre trabalho material e intelectual e no sentido da formação da posição especial mencionada por Engels.

Trata-se, assim, de indivíduos dominantes no Estado; mas estes indivíduos representam grupos, classes sociais e interesses materiais específicos de cada estrutura econômica. No que vale destacar o termo característico: “cada” estrutura econômica.

Isto se dá porque as circunstâncias em que esta formulação geral de Engels é efetiva são as mais variadas, e o próprio autor sabe disto. Mesmo que a questão seja destacada pelo autor de modo, não raro, apressado, e com demasiadas aproximações com as pesquisas de Morgan (Cf. PARREIRA, 2019PARREIRA, Lucas. Entre flexas e martelos: Marx como leitor de Henry Morgan (dissertação de mestrado). Belo Horizonte: UFMG, 2019.), nosso autor está ciente da impossibilidade de se trazer uma espécie de teoria geral sobre o surgimento do Estado.

Ele traz aquilo que acredita ser as determinações mais características sobre a gênese do Estado; mas isto se dá ao passo que destaca a especificidade advinda de cada correlação existente entre família, propriedade, classes, grupos, formas de comunidade etc. Vemos, portanto, que a própria exposição engelsiana - aqui trazida em um grau de abstração elevado e em debate com Morgan - pode dar margem a algumas compreensões descuidadas. (Cf. SARTORI, 2015________. Apontamentos sobre dialética e história em Friedrich Engels. In: Revista On Line de Filosofia e Ciências Humanas, n° 20. Belo Horizonte: 2015., 2020 a) Mas, com um olhar mais cuidadoso, percebe-se que grande parte destes entendimentos são visivelmente insuficientes.

No final de sua vida, as formulações mais gerais de Engels sobre a gênese do Estado trazem um debate, principalmente, com Morgan. Porém, ainda em um nível de abstração bastante alto, Engels traz um embate com autores do idealismo alemão, que tendiam a enxergar no Estado a possibilidade de reconciliação das oposições da sociedade civil-burguesa. Neste campo, o autor do Anti-Düring critica principalmente Hegel e seus continuadores (mesmo que críticos, como Feuerbach). E, aí, também o tema da autonomização do Estado está presente. Porém, de outro modo, que explicita algumas questões importantes ao nosso autor: ao tratar da gênese do Estado, Engels destaca em diferentes situações que “um dos traços característicos do Estado é a existência de uma força pública separada da massa do povo.” (ENGELS, 2002________. Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Ruth M. Klaus. São Paulo: Centauro, 2002, p. 139) Vejamos:

Isto faz com que, no limite, o órgão estatal se coloque, não como um servidor, mas como um senhor da sociedade. Depois, há certa mudança de tônica: Engels vem a destacar que, mesmo que o Estado se coloque como uma espécie de potência, de força estranhada, diante da sociedade, tem-se que, em verdade, isto decorre da estrutura da própria sociedade. Trata-se de algo determinado pelas diferentes correlações entre Estado, divisão do trabalho, propriedade privada, classes, família, daquilo que ele, em debate com Hegel, chamou de eticidade. (Cf. ENGELS, 1982________. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Trad. José Barata-Moura. In: Obras escolhidas. Moscovo, 1982. (disponível em www.marxists.org)
www.marxists.org...
, 2020 a)7 7 Sobre a importância desta categoria para a compreensão da obra de Engels, Cf. SARTORI, 2020 b. Antes de enxergarmos como que a relação entre Estado e sociedade não tem como sujeito o primeiro, mas a segunda, vale destacarmos este aspecto, que aparece quando Engels vem a tratar da superioridade de Hegel diante de Feuerbach sobre isto. Diz nosso autor algo importante sobre o tema:

O mesmo Feuerbach que a cada página prega a sensibilidade, o mergulho no concreto, na realidade, torna-se de uma ponta à outra abstracto assim que começa a falar de um comércio entre os homens mais amplo do que o mero comércio sexual.

Este comércio só lhe oferece um lado: a moral. E aqui choca-nos de novo a espantosa pobreza de Feuerbach comparado com Hegel. Hegel cuja ética ou doutrina da eticidade [Sittlichkeit] é a filosofia do direito e abrange: 1. o direito abstracto, 2. a moralidade [Moralität], 3. a eticidade [Sittlichkeit], sob a qual, por sua vez, estão reunidos: a família, a sociedade civil-burguesa [bürgerliche Gesellschaft], o Estado. Tão idealista é aqui a forma, quanto realista é o conteúdo. Todo o domínio do direito, da economia, da política, está aqui compreendido junto com a moral. Em Feuerbach, precisamente o inverso. (ENGELS, 1982________. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Trad. José Barata-Moura. In: Obras escolhidas. Moscovo, 1982. (disponível em www.marxists.org)
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, p. 401)

Engels não adere simplesmente à crítica de Feuerbach a Hegel; por mais que reconheça os méritos de uma posição explicitamente materialista, diz que o autor da Essência do cristianismo é incapaz de abordar a doutrina da eticidade hegeliana.8 8 Este posicionamento foi tomado como ponto de partida para o desenvolvimento de apontamentos críticos sobre a concepção de ética por parte do marxista György Lukács. (Cf. LUKÁCS, 2015)

E, com isto, segundo nosso autor, não se consegue trazer ao centro da conformação da efetividade a correlação entre sociedade civil-burguesa, família e Estado. Por isto, Lukács, com razão, destaca a “riqueza das relações sociais que caracteriza a ética em Hegel” (LUKÁCS, 2020, p. 244) em oposição aos críticos do autor e, em especial a autores como Kierkgaard, Schopenhauer e Schelling; estes autores, de maneiras distintas, acabam por empobrecer a análise hegeliana na medida em que não dão um salto qualitativo do campo da moralidade à eticidade. Em Feuerbach - em um sentido oposto, materialista, é verdade - o mesmo ocorre, segundo Engels: ao invés dos posicionamentos morais serem vistos em correlação com a ética e, em especial, com a eticidade, tem-se uma filosofia que se atém ao campo da moralidade, e que deixa de analisar a esfera da política, da economia, bem como a realidade efetiva das oposições daí resultantes.

A teorização hegeliana teria uma forma idealista e um conteúdo realista ao passo que a feuerbachiana se assentaria e uma forma realista e em um conteúdo idealista.

Segundo Engels, mesmo que a forma de colocação do conteúdo fosse correta até certo ponto no autor da Essência do cristianismo, ele estaria aquém de Hegel, portanto.

Isto é muito importante para o tema que aqui tratamos. Engels reivindica um mergulho no concreto e na realidade; nesta última, está colocado o Estado. E ele aparece de modo realista em Hegel no que diz respeito à colocação geral da questão: está correlacionado com a família e com a sociedade civil-burguesa. O domínio do Direito, da política e da economia política, mesmo que de forma essencialmente idealista, está destacado no autor da Filosofia do Direito. E, por isto, seria importante um embate com Hegel ao se trazer a temática do Estado a um ponto de partida aceitável. Em um nível alto de abstração, e em embate direto com o autor da Fenomenologia do espírito, diz nosso autor que, mesmo ao se considerar os méritos hegelianos, deve-se criticar sua posição:

O Estado, a ordem política, é o subordinado; a sociedade civil-burguesa [bürgerliche Gesellschaft], o reino das ligações económicas, é o elemento decisivo. A visão tradicional - que Hegel também partilha - via no Estado o elemento determinante, na sociedade civil-burguesa o elemento por ele determinado. A aparência corresponde a isso. Assim como, no homem individual, todas as forças impulsionadoras das suas acções têm de passar pela cabeça dele, têm de se transformar em móbiles da sua vontade, para o levar a agir, também todas as necessidades da sociedade civil-burguesa - qualquer que seja, precisamente, a classe que domina - têm de passar pela vontade do Estado para obter validade universal na forma de leis. (ENGELS, 1982________. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Trad. José Barata-Moura. In: Obras escolhidas. Moscovo, 1982. (disponível em www.marxists.org)
www.marxists.org...
, p. 415)

Engels procura inverter o posicionamento de Hegel. Ao mesmo tempo em que elogia o ponto de partida realista do autor da Filosofia do Direito, critica-o profundamente. A forma idealista pela qual a questão do Estado é colocada tem influência bastante grande na apreensão da correlação entre sociedade civil-burguesa e Estado: tal qual nos indivíduos as ações precisam da consciência, na efetividade, a atividade social precisa passar pelo Estado. Disto, Hegel retira a subordinação dos indivíduos às diversas figuras da consciência (e do espírito) e da atividade social ao Estado. Ou seja, tem-se um sistema filosófico em que a preponderância da consciência sobre o ser está correlacionada à subordinação da sociedade ao Estado. A aparência corresponderia a isto e, neste ponto, haveria uma inversão brutal, pois, em verdade, seria o ser a condicionar a consciência e a sociedade, em que estão as relações sociais de produção e troca, a determinar o Estado.

Ou seja, não é porque há uma “riqueza de relações sociais” na teoria hegeliana que o autor da Filosofia do Direito compreende bem a correlação entre sociedade civil-burguesa, família e Estado. Isto se dá até mesmo porque, para isto, aponta Engels, tanto no começo de sua careira, no Esboço para uma crítica da economia política (2020________. O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia. In: Verinotio: revista on line de filosofia e ciências humanas, v. 26, n. 2. Rio das Ostras: UFF, 2020 b. a), quanto no final de sua vida, no Anti-Düring (2015) (e em outros momentos), seria necessário compreender as relações econômicas com uma crítica da economia política.

Não bastaria remeter à riqueza das relações sociais que caracteriza a ética e o tratamento da eticidade. Seria preciso apreender a configuração concreta destas mesmas relações. E, para isto, seria preciso uma concepção materialista da história, a qual, por sua vez, só teria se tornado possível quando as oposições da sociedade civil-burguesa estão explicitadas em suas determinações essenciais. (Cf. ENGELS, 1962_________. Do socialismo utópico ao socialismo científico; Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Trad. José Severo de C. Pereira. São Paulo: Fulgor, 1962.)

O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é a 'realidade da ideia moral', nem 'a imagem e a realidade da razão', como afirma Hegel. É, antes, um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas, para que estes antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade em uma luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e mantê-lo dentro dos limites da 'ordem'. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. (ENGELS, 2002________. Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Ruth M. Klaus. São Paulo: Centauro, 2002, p. 203)

O Estado certamente se impõe; passa de servidor a senhor da sociedade. Mas isto depende da própria estrutura da sociedade; aliás, tem uma correlação com cada estrutura econômica da sociedade. Trata-se da base real, que, no limite, ao menos na sociedade capitalista, remete à correlação entre a conformação global da economia e à especificidade de cada formação social. O órgão que vem a se impor como uma potência estranhada, portanto, é um produto da própria sociedade.

Ele chega com determinado desenvolvimento da divisão do trabalho, das classes e dos conflitos entre os interesses entre os diferentes grupos. O Estado foi, assim, o resultado irremediável da contradição que se coloca quando a sociedade está marcada por oposições e antagonismos irreconciliáveis, que são o resultado dos interesses econômicos decorrentes das distintas posições ocupadas pelas classes sociais na cadeia produtiva e na divisão do trabalho.

O Estado figura como uma espécie de senhor devido à conformação da sociedade; ele não se impõe de cima para baixo; é um produto da organização social.

Ao debater sobre o Estado com Morgan e Hegel - e certamente poderíamos citar outros autores aqui, tanto no campo neohegeliano quanto naqueles que se colocavam mais próximos do socialismo e do anarquismo, como Menger, Düring e Proudhon - alguns aspectos da colocação da questão do Estado em Engels são esclarecidos. O primeiro deles diz respeito à necessidade de compreender como que este órgão político se relaciona com a família patriarcal, com a divisão do trabalho, com o surgimento da propriedade privada e das classes sociais. Sobre este aspecto, Engels dialoga, embora não só, sobretudo, com Morgan. Parte de Ancien Society, bem como dos apontamentos de Marx sobre o autor estadunidense. (Cf. MARX, 1988MARX, Karl. Los apuntes etnológicos de Karl Marx. (KRADER, Lawrance Org.). Madrid: Pablo Iglesias Editorial, 1988.) E vem a destacar como que, na correlação entre Estado e sociedade, o primeiro surge como um servidor da segunda e a relação acaba por se inverter, levando, no limite à dominação de uma classe sobre as outras.

Com isso, Engels destaca que o centro da colocação da questão do Estado está na correlação entre sociedade civil-burguesa e Estado, relação esta destacada já por Hegel em sua ética e, particularmente, ao tratar da eticidade na Filosofia do Direito. Aí, nosso autor destaca como que o Estado nasce da sociedade mas se autonomiza diante dela; é um produto das contradições presentes na sociedade civil-burguesa, é determinado - em última instância - pelo modo pelo qual cada base econômica assenta diferentes relações materiais de produção. Ou seja, o modo mais geral pelo qual Engels coloca a questão do Estado diz respeito à sua gênese e correlação com as determinações sociais.

Tem-se que o ponto de partida para compreender como que cada estrutura econômica determina a esfera estatal está na subordinação do Estado diante da anatomia da sociedade civil-burguesa.

A exposição engelsiana coloca-se aqui em um elevado grau de abstração, de modo que alguns poderiam tentar uma generalização descabida de suas conclusões mais gerais. (Cf. SARTORI, 2015________. Apontamentos sobre dialética e história em Friedrich Engels. In: Revista On Line de Filosofia e Ciências Humanas, n° 20. Belo Horizonte: 2015., 2020 a) Por isso, é preciso que se passe, mesmo que rapidamente, para algumas ressalvas e tratamentos específicos do autor sobre o tema.

Neste ponto, vai-se de um grau de abstração em que Engels critica os princípios gerais de autores como Feuerbach, Hegel e Morgan (poderíamos citar aqui tantos outros) e se vai em direção ao posicionamento engelsiano diante da especificidade de cada formação social, como a francesa, a inglesa e a alemã. Também se passa a um ponto em que, mesmo que se considere que o Estado é um produto da sociedade, destaca-se a configuração própria ao Estado e aos Estados em particular. A exposição vai do abstrato ao concreto e precisa ter em conta a correlação histórica entre diferentes esferas, como aquelas do Direito e da religião diante da mencionada oposição entre sociedade civil-burguesa e Estado.

Especificidade da ideologia estatal no capitalismo, Direito e formações sociais específicas

Neste nível de abstração, Engels começa a tratar especificamente do Estado capitalista, em que a mencionada autonomização do Estado adquire proporções gigantescas, principalmente, depois de Luís Bonaparte na França e de Bismark na Alemanha. (Cf. ENGELS, 2012ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. Trad. Márcio Naves e Lívia Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2012.) Até o momento em que analisamos a questão do Estado, tinha-se tratado deste órgão em sua formação e em suas determinações mais gerais. E, segundo nosso autor, isto é necessário, mas insuficiente de modo que é preciso ir além.

Isto ocorre, por exemplo, na medida em que na Idade Média, grande parte das funções que o Direito exerce modernamente está nas mãos da igreja e dos sacerdotes. (Cf. ENGELS; KAUYSKY, 2012ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. Trad. Márcio Naves e Lívia Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2012.) Remete também às diferentes maneiras pela qual a religião, e em especial o cristianismo, coloca-se na esfera pública. Em seu surgimento, com o cristianismo primitivo, tinha-se a universalidade da categoria pessoa concatenada com a oposição ao império romano, escravista e despótico. (Cf. ENGELS, 1969) Depois, ela coloca-se na igreja medieval e passa a trazer consigo a oposição entre a religião oficial e as seitas (algumas desejosas de um “cristianismo mais simples”), como ocorreu nas guerras camponesas na Alemanha. (Cf. ENGELS, 2008) A ligação desta oposição com a reforma, importante para a conformação da moderna sociedade civil-burguesa, por sua vez, é essencial para a compreensão engelsiana do Estado e do Direito modernos.

A racionalização que se relaciona com a reforma protestante deixa marcas essenciais em diversas esferas do ser social, mas ganha destaque porque Engels diz que o processo de secularização é uma das características do moderno Direito burguês, em que se tem o seguinte:

Tratava-se da secularização da visão teológica. O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado. Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social - isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos - engendra complicadas relações contratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela comunidade - normas jurídicas estabelecidas pelo Estado -, imaginou-se que tais normas não proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos formais do Estado. Além disso, uma vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia. (ENGELS; KAUTSKY, 2012ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. Trad. Márcio Naves e Lívia Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 17-18)

O modo de representação das relações sociais deixa de ser essencialmente religioso na sociedade capitalista. Assim, se antes a atividade econômica era representada como uma criação celeste e da igreja, agora, com a secularização da visão religiosa, e com o Direito burguês, isto se dá mediante os direitos dos indivíduos e o Estado.

As guerras camponesas da Idade Média alemã tiveram por central - embora o essencial estivesse em outro terreno - o debate teológico. Depois disso, houve guerras religiosas na Europa; neste momento, o terreno religioso era aquele em que as lutas de classe decisivas eram travadas. Porém, com a concorrência, com o dinheiro e com o poder nivelador deles, a igualdade começa a se colocar a partir da igualdade jurídica dos contratantes, de modo que o terreno no qual começa a transitar os principais agentes da sociedade civil-burguesa emergente deixa de ser aquele da religião e passa a ser aquele do Direito.

O pleno intercâmbio de mercadorias em escala social - vale lembrar que, em Roma, por exemplo, a escala era muito mais localizada - começa a contrapor-se ao Direito divino e passa a requerer como mediação, não mais a igreja, mas o Estado. A visão teológica de mundo, assim, é secularizada e, com ela chega um novo dogma, aquele do Direito humano. Por meio dele, a igualdade jurídica - essencial à concorrência e ao intercâmbio mercantil subsumido ao capital - passa a fazer parte do dia a dia dos homens.

Com a secularização mencionada, o elemento normativo da sociedade remete, não mais a potências transcendentes e de origem teológica, mas à imanência das regras criadas pelos próprios indivíduos no órgão estatal. Trata-se de regras universalmente válidas e estabelecidas pela própria comunidade; as normas jurídicas estabelecidas pelo Estado, porém, trazem consigo esta comunidade em sua existência marcada pelas oposições entre as classes sociais e entre os interesses daqueles que se colocam em diferentes posições na divisão do trabalho, nas relações de propriedade e na família.

E, com isto, a universalidade da pessoa que se colocava no cristianismo e que estava reconciliada com as diferenças concretas entre os indivíduos passa às regras universalmente válidas do Direito na igualdade jurídica das relações entre livres produtores de mercadorias.9 9 Pachukanis (2017) diz que esta noção de pessoa se coloca como aquela do sujeito de direito. Ela decorreria diretamente da forma mercantil, relacionada à forma jurídica. Pelo que vemos aqui, segundo Engels, a correlação entre religião e Direito, ligada à passagem do feudalismo ao capitalismo, tem um papel central sob este aspecto de modo que, no mínimo, seria preciso complementar a concepção pahukaniana. As relações contratuais daí decorrentes, seja mediante a circulação mercantil, ou por meio do crédito, das empresas por ações, expressam-se no Direito e na universalidade de sua regulamentação na medida mesma em que trazem como fundamento as oposições entre as classes sociais, as formas econômicas da mercadoria, do dinheiro e do capital, bem com diversas figuras econômicas, como aquelas dos juros, da renda, do lucro, dentre outras. Ou seja, o Estado e o Direito da sociedade capitalista estão assentados de modo mais direto sobre a imanência das relações sociais de produção.

A secularização da visão de mundo teológica na visão de mundo jurídica traz consigo este processo, que é essencial àqueles que pretendem compreender a teorização engelsiana sobre o Estado.A análise engelsiana do Estado, em sua vertente capitalista, implica tanto na apreensão deste movimento econômico quanto no cuidado no entendimento das distintas funções que as esferas da religião e do Direito exercem em diferentes momentos.

Um primeiro aspecto que precisa ser destacado aqui, portanto, é que a determinação em última instância que menciona o autor do Anti-Düring, antes de deixar de lado o entendimento do papel de esferas como aquela da religião e do Direito, supõe-no. Sem que se tenha em mente a correlação entre Direito moderno e religião não se tem a ideia exata do modo pelo qual o Estado moderno se conforma em relação à sociedade civil-burguesa. A questão tem tamanho destaque que Engels diz que a conceção jurídica de mundo seria, em verdade, aquela a se conformar como clássica concepção burguesa:

A concepção católica de mundo, característica do feudalismo, já não podia satisfazer à nova classe e às respectivas condições de produção e troca. Não obstante, ela ainda permaneceu por muito tempo enredada no laço da onipotente teologia. Do século XIII ao século XVII, todas as reformas efetuadas e lutas travadas sob bandeiras religiosas nada mais são, no aspecto teórico, do que repetidas tentativas da burguesia, da plebe urbana e em seguida dos camponeses rebelados de adaptar a antiga concepção teológica de mundo às condições econômicas modificadas e à situação de vida da nova classe. Mas tal adaptação era impossível. A bandeira religiosa tremulou pela última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de cinquenta anos mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de mundo, fadada a se tornar clássica para a burguesia, a concepção jurídica de mundo. (ENGELS; KAUTSKY, 2012ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. Trad. Márcio Naves e Lívia Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2012., p. 17)

As primeiras lutas da classe burguesa foram travadas no terreno religioso. Para Engels, em uma sociedade em que a visão de mundo teológica era dominante e em que o poder temporal da igreja era proeminente, as coisas não poderiam se dar de outro modo.

A compreensão da burguesia, bem como do Estado moderno, portanto, pressupõe certa clareza sobre a especificidade da religião e do Direito em diferentes momentos da história. E, assim, longe de se poder derivar o Estado diretamente da “última instância”, colocada nas relações econômicas, tem-se um emaranhado de relações sociais, trazidas em diversas esferas, e que precisam ser vistas com cuidado caso se pretenda analisar algo como o Estado, que se coloca de diferentes maneiras nas formações sociais da sociedade capitalista. Se é verdade que há uma correlação entre Direito e religião que é bastante importante na compressão da passagem das sociedades feudais às burguesas, igualmente importante é enxergar que o modo pelo qual isto se dá varia substancialmente de país a país. Para que se mencione só países europeus, Engels tinha clareza sobre diferenças nada negligenciáveis entre as sociedades (e os Estados) inglês, francês e alemão.

O papel da religião e do Direito na revolução gloriosa, na revolução francesa e na conformação do Reich alemão são substanciais. E, assim, tinha-se uma correlação muito distinta entre a burguesia, a plebe urbana, os camponeses, os nobres e outras classes sociais. A bandeira religiosa é central a Crownwel, é profundamente criticada pelo iluminismo francês e possui um status dúbio na Alemanha; na França, surge sem disfarces a concepção jurídica de mundo como uma concepção de mundo oposta à teológica e ligada à ascensão da burguesia. Na Inglaterra, bem como na Alemanha, a questão se delineia de outro modo, de tal feita que a superação da visão de mundo teológica, bem como das instituições ainda marcadas pelo domínio da igreja é bem menos pronunciada.

Uma teorização sobre o Direito capitalista, assim, pode até colocar-se sobre um grau de abstração mais alto, em que a relação entre forma mercantil e as formas jurídicas joga um papel importante, embora não único. Porém, pelo que vemos, um aspecto essencial para a teorização mencionada passa pela especificidade dos terrenos do Direito e da religião, bem como pelo entendimento de diferentes maneiras pelas quais isto se dá.

Para que se possa passar por este tema, o essencial, segundo nosso autor, está nas diversas conformações da divisão do trabalho, da família, das relações de propriedade e das classes sociais; elas remetem ao modo pelo qual diferentes esferas do ser social articulam-se. As diferenças específicas entre as conformações concretas do Estado remetem também à correlação entre Direito e religião. Engels diz sobre o tema:

Tanto reis quanto cidadãos encontraram apoio poderoso no emergente estamento dos juristas [Stande der Juristen]. Com a redescoberta do direito romano, o trabalho foi dividido entre os sacerdotes, consultores jurídicos do período feudal, e os leigos estudiosos do direito [Rechtsgelehrten]. Desde o início, esses novos juristas pertenciam essencialmente ao estamento burguês; mas a lei que eles estudavam, ensinavam e praticavam era, por natureza, essencialmente antifeudal e, em certos aspectos, burguesa. O direito romano é a expressão jurídica clássica das condições de vida e das colisões de uma sociedade em que domina a propriedade privada pura a tal ponto que todas as legislações posteriores foram incapazes de melhorar qualquer coisa essencial. Mas a propriedade burguesa da Idade Média ainda estava fortemente ligada às restrições feudais, consistia, por exemplo, em grande medida de privilégios; a esse respeito, o direito romano estava muito à frente das condições civis [bürgerlichen Verhältnissen] da época. (ENGELS, 2020________. O declínio do feudalismo e a ascensão da burguesia. In: Verinotio: revista on line de filosofia e ciências humanas, v. 26, n. 2. Rio das Ostras: UFF, 2020 b. b, pp. 293-204)

De início, a apropriação do Direito romano na sociedade civil-burguesa moderna é compartilhada por indivíduos que estão entre os terrenos do Direito e da religião. E, se no campo das lutas de classes este trânsito de um terreno ao outro se colocou na sociedade, algo similar ocorre nas relações estatais. O próprio Estado moderno origina-se tanto destas oposições entre as classes sociais quanto de elementos internos, ligados à emergência da centralidade do estamento dos juristas, o qual se coloca em imbricadas relações com sacerdotes, doutrinadores religiosos e ligados ao Direito. Ou seja, Engels compreende como que o Estado precisa ser analisado ao se ter em mente a composição e a conformação da sociedade; mas explicita aspectos característicos de cada Estado.

Os juristas estariam ligados essencialmente ao estamento burguês e serviam de apoio aos cidadãos que procuravam se opor aos privilégios de nascimento e relacionados à propriedade fundiária. Também estiveram ligados ao apoio aos reis, que buscavam consolidar seu poder temporal, mitigando o poder da igreja. Ou seja, o papel dos juristas na consolidação do Estado moderno é enorme. E é Engels - supostamente reducionista, economicista etc. - que destaca este aspecto, enfocando a importância da compreensão da ligação concreta entre Direito e religião no entendimento do capitalismo.10 10 Segundo Engels (2002) o Estado absolutista é a expressão de certo equilíbrio entre classes. Pelo que vemos aqui, a correlação entre estas classes também pode ser decisiva para que se analise a conformação específica de Estados específicos, em que sacerdotes e líderes da igreja - mais ligados à nobreza - acabam por trabalhar lado a lado com os juristas, representantes da burguesia.

O modo pelo qual se configura uma visão de mundo antifeudal passa pelos juristas, bem como pela apropriação sui generis que se faz do Direito romano. Neste último, segundo nosso autor, domina a propriedade privada pura, bem como a circulação de mercadorias mesmo que a base da sociedade romana seja o escravismo.

E, assim, o estudo deste Direito - lido de maneira seletiva e adequados às condições modernas nascentes - bem como o papel ativo dos consultores jurídicos e dos sacerdotes do período feudal, fora essencial. Preparou o terreno para que um estamento mais tipicamente ligado à burguesia pudesse ter um papel proeminente, aquele dos juristas, próximos aos leigos estudiosos do Direito, os doutrinadores jurídicos.

Portanto, é por meio de uma ligação sui generis com o estudo do Direito romano e com a adequação deste às novas condições, que a visão de mundo jurídica, aquela a se tornar típica da burguesia, e que se contrapõe às funções antes exercidas pela visão de mundo religiosa, ganha proeminência. Ela também aparece na conformação de diferentes figuras do Estado em formações sociais específicas.

Os graus em que isto ocorre variariam, tendo-se distintas combinações em cada sociedade. Mas, segundo Engels, as especificidades do aparato estatal de cada país precisam ser vistas ao se compreender esta ligação e oposição que estamos destacando aqui e que remetem à relação moderna entre Estado e sociedade civil-burguesa.

Na sociedade romana havia troca de mercadorias, mas o modo de produção tinha por essencial a escravidão, e não, como na sociedade capitalista, a transformação das capacidades produtivas em força de trabalho. Os escravos romanos, por sua vez, não eram considerados pessoas ao passo que, em uma sociedade baseada na compra e venda da mercadoria força de trabalho, a igualdade jurídica é trazida ao se transpor para o campo do Direito o conceito de pessoa que se colocava na sociedade romana (e nas posteriores) no terreno da religião, mais especificamente, no cristianismo. (Cf. ENGELS, 1969________. O cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969.)

O Direito romano, assim, é lido a partir de uma concepção de pessoa que é muito mais universal do que aquela que lhe era própria; esta concepção, em verdade, colocava-se no terreno da religião.11 11 Este desenvolvimento desigual das esferas do ser social e que passa por formas de apropriação sui generis de certas formações ideais, como aquelas do Direito romano, são essenciais para nosso tema. Desta conjuntura de fatores, tem-se certa interpretação jurídica que começa a advogar a universalização da propriedade privada pura; e deste ponto, tem-se uma força muito grande da posição dos juristas em meio à emergência da sociedade civil-burguesa. Eles ligam-se à burguesia tanto por suas origens quanto devido à visão de mundo que advogam, e que conflui com a busca pela supressão das restrições feudais.

Tem-se o Direito - por meio dos juristas, e do brado de igualdade entoado pela burguesia (Cf. ENGELS; KAUTSKY, 2012ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. Trad. Márcio Naves e Lívia Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2012.) - como uma potência ativa contra o privilégio, o poder da propriedade fundiária, a força do nome da família etc. E tudo isto, segundo Engels, dá-se em meio a um desenvolvimento bastante desigual entre as esferas do ser social: as determinações do campo econômico certamente dão ensejo à emergência do Direito burguês; porém, as condições civis na transição do feudalismo ao domínio da burguesia estavam muito mais adiantadas na doutrina dos estudiosos do Direito romano - doutrina esta ligada à defesa da propriedade privada pura e da supressão dos privilégios - que na efetividade da conformação das esferas privadas e públicas da época.

Há de se notar: longe de derivar mecanicamente o Direito da esfera econômica, Engels procura mostrar como que os juristas e a concepção de mundo jurídica são decisivos à emergência e consolidação da sociedade capitalista. Vê-se, em ato, a concepção engelsina de determinação em última instância. E ela não é nada simplória.

Portanto, ao se ter em conta a conformação do Estado moderno, tanto é preciso se passar pela correlação entre Direito e religião, entre visão de mundo jurídica e religiosa (inclusive teológica), quanto é necessário averiguar o modo pelo qual - através da concatenação de diferentes relações entre propriedade, divisão do trabalho e família - o Estado vem a constituir-se a partir de cada base econômica de sociedades específicas.

Isto teria reflexos importantes na maneira pela qual se coloca o Direito moderno em diferentes formações sociais, como a inglesa, a francesa e a alemã. Diz Engels sobre o Direito em suas diferentes entificações, comparando-as em sociedades transicionais, ainda ligadas ao feudalismo e a uma forma pequeno-burguesa de organização:

Pelo que, para proveito de uma sociedade ainda pequeno-burguesa e semifeudal, ou se pode reduzi-lo simplesmente ao nível desta sociedade pela prática judicial (direito comum), ou então, com a ajuda de juristas pretensamente esclarecidos, moralistas, pode-se elaborá-lo num código à parte, correspondente a esse estado da sociedade, [código] esse que, nessas circunstâncias, será também mau juridicamente (Landrecht prussiano); pelo que, porém, se pode também, após uma grande revolução burguesa, elaborar, na base, precisamente, desse direito romano, um código da sociedade burguesa tão clássico como oCode civil francês. Se, portanto, as normas jurídicas burguesas apenas expressam as condições económicas de vida da sociedade em forma jurídica, isso pode, portanto, acontecer bem ou mal, segundo as circunstâncias. (ENGELS,1982________. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Trad. José Barata-Moura. In: Obras escolhidas. Moscovo, 1982. (disponível em www.marxists.org)
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, p. 416)

A via inglesa para o capitalismo realizou a transição mencionada com uma forma de Direito ainda ligada a uma sociedade pequeno-burguesa e semifeudal, tendo-se a entificação do Estado inglês ligada ao Direito comum. Neste caso, as influências da doutrina romanística foram menores do que na França, por exemplo, em que o Direito burguês busca expressar-se de forma a ligar-se à propriedade privada pura de modo muito mais proeminente nas regras presentes no código civil francês.

Este último seria típico de um Estado em que o Direito se opõe ao Direito comum e que se coloca tendo por essencial as leis (e não as práticas jurídicas reiteradas e consagradas no terreno do Direito) naquilo que hoje conhecemos como Direito de origens romano-germânicas. O modo pelo qual o Estado relaciona-se com a família, a divisão do trabalho e a propriedade - colocadas na sociedade civil-burguesa - leva-o a determinada configuração do Direito. No caso inglês do Direito comum, no caso francês, com certa centralidade das codificações. Em ambos os casos, tem-se influência de leituras e doutrinas sobre o Direito romano e o modo pelo qual este deveria ser apropriado em condições modernas; porém, aquilo que decide a conformação estatal - e jurídica, portanto - é a tessitura da sociedade civil-burguesa.

Ou seja, aqui, tal qual ao se tratar das determinações mais gerais do Estado, também se tem que a relação de predicação se coloca com a sociedade como sujeito e o Estado como predicado; porém, de modo mais concreto, Engels traz isto para a compreensão de diferentes modos pelos quais se entificam os Estados específicos.

Tanto Inglaterra como França possuem uma via clássica para a entificação do capitalismo. (Cf. LUKÁCS, 2020) Mesmo que sempre se tenha um desnível entre a expressão jurídica das relações sociais e estas relações mesmas12 12 Para uma análise cuidadosa da questão, Cf. LUKÁCS, 2013. Caso se queira uma visão mais relacionada à conformação do Direito a partir deste autor, Cf. SARTORI, 2010. , em ambos os casos, a atuação dos juristas é proeminente e vai no sentido de refletir da melhor maneira possível as condições econômicas de cada sociedade. Em um caso, os juristas ligam-se às práticas judiciais já existentes e as adequam às novas condições; noutro, com um apelo moral, ligado ao Direito natural, bem como à defesa dos Direitos do homem, e com forte base no Direito romano, os juristas, imbuídos da visão de mundo iluminista (e antirreligiosa), buscam uma codificação racional. Na França, tem-se o código da sociedade burguesa.

No caso alemão, porém, há um desenrolar bastante diferente das coisas. A entificação do capitalismo se dá em meio ao atraso das condições sociais do país, com ausência de unificação nacional e em meio a uma burguesia antidemocrática.

Com apoio em Bismark - e em meio a uma forma de bonapartismo (Cf. ENGELS, 2012ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. Trad. Márcio Naves e Lívia Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2012.) - a autonomização do Estado diante da sociedade se dá tanto devido a condições inerentes ao modo de produção capitalista, e ligadas à emergência do novo, quanto à especificidade da burocracia militar e estatal alemãs, ligadas à nobreza e à igreja. Com isto, a burocracia estatal, bem como o papel dos juristas, são fortes. Mas a organização da divisão do trabalho, das famílias e da propriedade ainda é semifeudal e pequeno-burguesa. Neste cenário, de forte autonomização do Estado, os juristas, pretensamente esclarecidos, enxergam-se ainda mais como demiurgos da sociedade. Se na França e na Inglaterra esta ilusão já se colocava, na Alemanha ela é ainda mais forte. Os juristas pretensamente esclarecidos e com um moralismo considerável elaboram um código baseado em seus estudos e no caráter estranhado que seu estamento - juntamente com o Estado - possui.

Tem-se como resultado uma doutrina jurídica aparentemente robusta, com uma tonalidade moral, prima facie, elevada. Porém, ligada justamente às condições do atraso alemão e às condições em que a nobreza, os militares e o proprietários fundiários caminham lado a lado com o desenvolvimento da classe burguesa.13 13 Aqui não podemos tratar de um tema importante: aquele ligado à questão de até que ponto uma doutrina jurídica robusta, segundo Engels, não tem como condição a autonomização do estamento de juristas, bem como as pretensões elevadas dos estudiosos e doutrinadores do Direito. Cf. SARTORI, 2018. Os representantes estatais desta última colocam-se em meio a um Estado burocratizado em que a nobreza ocupa funções essenciais. O estamento militar também se liga à nobreza semifeudal no caso alemão. E, deste modo, a atuação dos juristas passa por sua posição em um Estado moderno que não se coloca em sua forma tipicamente burguesa. Com o equilíbrio entre diferentes classes sociais, e contrário à participação do moderno proletariado na esfera pública, o Estado tem uma forma bonapartista com Bismark.14 14 Vale destacar que Engels traz um uso mais amplo da concepção de bonapartismo se comparado a Marx. Ao se ter em conta a comparação entre Engels e Marx quanto ao bonapartismo, Cf. ASSUNÇÃO, 2015. O Direito, por sua vez, ao mesmo tempo em que, de modo moralista e pretensamente esclarecido, acredita ter capacidades gigantescas, é juridicamente frágil na medida mesma de suas pretensões.

A expressão da sociedade em forma jurídica15 15 Há de se notar que o uso da noção de forma jurídica é bastante mais prosaico em Engels que em um importante autor da crítica ao Direito como Pachukanis. Para uma comparação entre a análise jurídica de Engels e de do autor de Teoria geral do Direito e o marxismo, Cf. SARTORI, 2020 a. , portanto, dá-se de diversas formas, segundo Engels. A especificidade de cada sociedade aparece também no modo pelo qual o Estado entifica-se. Só para que mencionemos os exemplos que trouxemos aqui, percebe-se que o Estado francês se diferencia do inglês. E isto se dá tanto devido ao modo distinto pelo qual as revoluções burguesas destes países passaram pela questão da religião, quanto devido à maneira segundo a qual os juristas tiveram um papel ativo na conformação do Estado moderno. Em ambos os casos, isto remete à correlação entre sociedade civil-burguesa e Estado, ou seja, ao modo pelo qual o Estado coloca-se diante da família, das organizações da esfera pública, da divisão do trabalho e da propriedade privada. Ainda vimos que o caso alemão traz peculiaridades a este respeito, tendo-se, inclusive, pretensões enormes por parte dos juristas e dos doutrinadores do Direito em razão da entificação específica do Estado na Alemanha. O atraso alemão em relação aos países de via clássica de entificação do capitalismo trouxe consequências que potencializaram a possibilidade de uma organização específica do Estado moderno. Ela é ligada ao bonapartismo em determinado momento e está correlacionada a um grau de autonomização do Estado bastante maior que aquele inicial da Inglaterra e da França.

Apontamentos finais: fetichismo jurídico, autonomização da ideologia do Estado e necessidade de supressão do Estado

A composição social, bem como a especificidade do capitalismo de cada formação social, portanto, são importantes para que se apreenda a diferença específica entre Estados. A correlação histórica entre Direito e religião também joga um papel proeminente. Há, segundo Engels, inclusive, uma ideologia típica do próprio Estado:

O Estado, [...], uma vez tornado poder autónomo face à sociedade, produz logo uma ulterior ideologia. Nos políticos de profissão, nos teóricos do direito público e nos juristas do direito privado, nomeadamente, por maioria de razão, perde-se a conexão com os factos económicos. (ENGELS, 1982________. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Trad. José Barata-Moura. In: Obras escolhidas. Moscovo, 1982. (disponível em www.marxists.org)
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, p. 418)

Haveria, portanto, uma ideologia correlacionada à conformação autonomizada do Estado. Ela se tornaria mais proeminente diante do bonapartismo, em que o equilíbrio entre as classes sociais levaria a uma expressividade maior do fenômeno. Mas estaria presente já desde o momento em que os juristas começam a ocupar uma posição de destaque no Estado moderno. A perda da conexão com os fatos econômicos caracterizaria esta forma ideológica, que teria como representantes tanto os políticos de profissão quanto juristas ligados ao Direito público e privado. Pelo que vemos, portanto, Engels destaca inclusive um aspecto mais ideológico e ligado aos teóricos do Direito público, se comparados com os juristas do Direito privado. E, assim, percebe-se que a ideologia estatal - aquela ligada à conformação do corpo de especialistas alocados no Estado - traz consigo tanto um ímpeto ligado atividade político-estatal quanto aos aspectos teóricos e práticos do Direito. A autonomização da ideologia estatal, portanto, passa, não só pela oposição moderna entre Estado e sociedade civil-burguesa; ela também tem correlação com a conformação objetiva do próprio aparato estatal, agora, envolto de políticos profissionais, de teóricos do Direito público e de juristas do Direito privado.

E, deste modo, também devido àquilo que analisamos antes, deve-se dizer que esta conformação objetiva pode variar bastante e possui uma ligação indissociável com o processo de secularização da visão de mundo religiosa, bem como com a superação mais ou menos pronunciada da influência do poder secular da igreja e dos religiosos.

A ideologia estatal, portanto, passa pela centralidade dos políticos profissionais, dos teóricos do Direito público e dos juristas do Direito privado. Mas pode trazer diversas expressões e graus de autonomização do Estado diante da sociedade. A diferença específica entre os diferentes Estados também depende disto, portanto.

Há, assim, grande relevância no estudo do que podemos chamar de fetichismo jurídico em uma figura do Estado (a moderna) em que são centrais a atividade legislativa dos políticos, bem como a teorização sobre o Direito público e a ação dos juristas do Direito privado. Para que retomemos algo que é bastante importante a Engels: sempre há, portanto, uma determinação em última instância por parte da esfera econômica. Porém, isto ocorre na medida mesma em que, mediante a ideologia estatal, parece sequer existir tal determinação. E, segundo Engels, a forma jurídica16 16 Vale novamente destacar que a concepção engelsiana de forma jurídica é mais ampla que a de Pachukanis. tem grande importância nisto:

Porque em cada caso individual os factos económicos têm de tomar a forma de motivos jurídicos, para serem sancionados sob a forma de lei, e porque, ao fazê-lo, há também evidentemente que ter em consideração todo o sistema jurídico já em vigor, por [tudo] isto, a forma jurídica deve, então, ser tudo e o conteúdo económico nada. Direito público e direito privado são tratados como domínios autónomos, que têm o seu desenvolvimento histórico independente, que são capazes em si mesmos de uma exposição sistemática e a requerem através de consequente extirpação de todas as suas contradições internas. (ENGELS, 1982________. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Trad. José Barata-Moura. In: Obras escolhidas. Moscovo, 1982. (disponível em www.marxists.org)
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, p. 418)

Para a ideologia estatal, a forma jurídica deve ser tudo diante do conteúdo econômico. Ou seja, na medida mesma em que há determinação da forma jurídica pelo conteúdo socioeconômico - e, segundo György Lukács isto faz com que seja preciso sempre “afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relação à forma jurídica” (LUKÁCS, 2007_______. O jovem Marx e outros escritos filosóficos. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007., p. 57) - o oposto parece ser verdadeiro.

Se antes os fatos econômicos pareciam ter seus móbiles na religião, na sociedade capitalista, isto passa pelo papel do Direito público, bem como do Direito privado.

O dogma e o Direito divino, assim, são substituídos pelo Direito humano, não na medida em que se supera os apelos transcendentes e irracionais como um todo, mas ao passo que se desenvolve uma nova forma de dogmatismo, que, inclusive, fica à cargo dos teóricos do Direito público, aquela que se desenvolve na ideologia típica da esfera estatal.

Os sacerdotes de outrora perdem espaço na esfera pública - de modo distinto a depender de cada sociedade e formação social - e, com isto, a exposição sistemática e sem contradições das normas estatais ganha espaço. A autonomização do Estado, assim, traz consigo a colocação de cada caso individual, bem como dos fatos econômicos na forma de motivos jurídicos: a forma jurídica parece, assim, ter supremacia e proeminência diante do conteúdo econômico. E, se na realidade as coisas se dão de maneira distinta, a partir da ideologia estatal, parece aos juristas a aos políticos profissionais que a solução está na aproximação dos fatos econômicos do sistema jurídico. E, deste modo, há uma espécie de fetichismo jurídico: o Direito passa ser tomado como critério depois de autonomizado. Isto se dá na medida mesma em que, real e efetivamente, o Direito, com o aparato estatal, nunca pode ser o sujeito nesta relação com a sociedade.

A ideologia estatal, com importante gradiente jurídico, perde a conexão com os fatos econômicos ao mesmo tempo em que opera diante deles. Na medida mesma em que ela acredita ser independente, ela procura controlar as relações econômicas e busca ser parâmetro para estas últimas. E, assim, um dos elementos importantes para o entendimento da especificidade da esfera estatal em Engels diz respeito à maneira pela qual, a depender da configuração de cada base econômica, a ideologia estatal se expressa.

Para que mencionemos os exemplos acima: na França, na Inglaterra e na Alemanha têm-se diferenças grandes no modo de representação da ideologia estatal e, de acordo com Engels, é preciso sempre ter isto em mente ao se passar pelo tema que aqui abordamos. Isto que aqui chamamos de fetichismo jurídico não é, segundo nosso autor, algo acidental à constituição do Estado moderno. É uma característica deste último.

Engels, portanto, não busca uma nova forma jurídica ou uma nova maneira de organizar o Direito e os políticos profissionais; ele é bastante claro no sentido de ser preciso uma nova forma de produção que não necessite da máquina estatal ou da ideologia estatal, tornando tanto o modo de produção capitalista quanto este órgão da sociedade que se autonomiza diante dela parte de um amargo passado. Assim como a religião deixou de ser o essencial na organização da esfera pública, o Direito também deixaria de ser. Segundo nosso autor, com sociedades não mais baseadas na oposição entre classes sociais, ter-se-ia o fenecimento da propriedade privada, da família patriarcal, da oposição entre trabalho intelectual e material17 17 Poderíamos mencionar a necessidade de supressão da oposição entre cidade e campo também. Engels destaca bastante este aspecto tanto no Anti-Dühring quanto em Sobre a questão da moradia. , por fim, do próprio Estado.

Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade, reorganizando de uma forma nova a produção, na base de uma associação livre de produtores iguais, mandará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe há de corresponder: o museu de antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze. (ENGELS, 2002________. Origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Ruth M. Klaus. São Paulo: Centauro, 2002, p. 207)

A ideologia estatal, bem como a transposição dos fatos econômicos ao domínio do Direito teriam suas funções exauridas uma vez que se tivesse a produção baseada na associação livre de produtores iguais, e não mais na extração do mais-valor na relação de assalariamento. Tratar-se-ia de suprimir as classes, a família patriarcal, a propriedade privada dos meios de produção e a divisão do trabalho entre trabalho intelectual e material, bem como entre cidade e campo para que o Estado pudesse desaparecer.

O tratamento engelsiano do Estado, portanto, passa pela apreensão da especificidade do Estado de cada formação social, da relação única existente entre elementos diversos em cada expressão específica do Estado; porém, tem-se também a necessidade, que, segundo nosso autor, foi, ao fim, universal, do aparecimento do Estado em determinado grau de desenvolvimento da sociedade. Há também, pelo que vemos, a universalidade da necessidade de supressão do Estado. Ela, por sua vez, traz à tona a ligação íntima existente entre a sociedade civil-burguesa e o aparato estatal. Se é verdade que esta ligação se expressa de diferentes maneiras, igualmente verdadeiro seria que, diante do modo peculiar de determinação em última instância em cada estrutura econômica, seria preciso buscar a supressão do Estado e da sociedade civil-burguesa mesmos. Vemos, portanto, que, não obstante haja interpretações unilaterais do posicionamento engelsiano sobre a determinação econômica em última instância, o modo pelo qual tal determinação se expressa em sua obra destaca muito mais o papel proeminente de diferentes esferas do ser social (como o Estado, a igreja, por exemplo) que qualquer dedução mecânica e carente de apreensão da efetividade da história.

Pelo que vemos, portanto, mesmo ao analisar a determinação em última instância da esfera econômica e o modo pelo qual ela se coloca diante do Estado, não se vê uma abordagem unilateral por parte de Friedrich Engels. Assim, mesmo que sejam abundantes as críticas ao autor sobre o tema, talvez ainda seja necessário voltar-se aos meandros do texto dele. Os temas que abordamos aqui localizam-se na própria obra engelsiana e, caso se queira criticar os textos engelsianos, é preciso confrontar-se com a riqueza de sua análise, e não com uma espécie de caricatura reducionista que transpõe o econômico ao estatal sem passar pelas especificidades de cada esfera do ser social, ou pelas diversas formações sociais dos diferentes países que se colocam no mercado mundial capitalista.

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  • 1
    Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto - a formação ideal - em sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009, p. 26)
  • 2
    Sobre a importância da compreensão destes diferentes graus de abstração, Cf. LUKÁCS, 2012, 2010, 2013. Vale ver também a obra de Rosdolsky. (2001)
  • 3
    Sobre a categoria modo de representação e sua relação com a estrutura econômica, mais precisamente com as formas e com as figuras econômicas, vale conferir a excelente obra de Jorge Grespan, Marx e a crítica ao modo de representação capitalista (2019).
  • 4
    Tal aspecto, bem como a ausência de uma teoria do Estado e da transição foi bastante criticado por Bobbio (1983). No entanto, como veremos aqui, a falta de algo como uma teoria geral do Estado não implica em um tratamento descuidado da temática, como parece supor o jurista e politólogo italiano.
  • 5
    As tematizações de Engels sobre o fenecimento do Estado não são destituídas de tensões, que não poderemos tratar aqui. Para uma análise do tema, Cf. MUSSETI, 2020 e SARTORI, 2016.
  • 6
    Não debateremos sobre o modo como a obra do antropólogo estadunidense encontra-se ultrapassada. Destacamos somente que, mesmo ao trazer um posicionamento geral sobre o Estado, Engels está debatendo com outros autores. No caso, isto se dá, em grande parte, com concordância diante de Morgan e com base nas anotações de Marx, hoje publicadas nos chamados Cadernos etnológicos (1972). Para um debate sobre o tema, bem como para uma diferenciação entre Marx e Engels sobre o assunto, Cf. PARREIRA, 2019.
  • 7
    Sobre a importância desta categoria para a compreensão da obra de Engels, Cf. SARTORI, 2020 b.
  • 8
    Este posicionamento foi tomado como ponto de partida para o desenvolvimento de apontamentos críticos sobre a concepção de ética por parte do marxista György Lukács. (Cf. LUKÁCS, 2015)
  • 9
    Pachukanis (2017) diz que esta noção de pessoa se coloca como aquela do sujeito de direito. Ela decorreria diretamente da forma mercantil, relacionada à forma jurídica. Pelo que vemos aqui, segundo Engels, a correlação entre religião e Direito, ligada à passagem do feudalismo ao capitalismo, tem um papel central sob este aspecto de modo que, no mínimo, seria preciso complementar a concepção pahukaniana.
  • 10
    Segundo Engels (2002) o Estado absolutista é a expressão de certo equilíbrio entre classes. Pelo que vemos aqui, a correlação entre estas classes também pode ser decisiva para que se analise a conformação específica de Estados específicos, em que sacerdotes e líderes da igreja - mais ligados à nobreza - acabam por trabalhar lado a lado com os juristas, representantes da burguesia.
  • 11
    Este desenvolvimento desigual das esferas do ser social e que passa por formas de apropriação sui generis de certas formações ideais, como aquelas do Direito romano, são essenciais para nosso tema.
  • 12
    Para uma análise cuidadosa da questão, Cf. LUKÁCS, 2013. Caso se queira uma visão mais relacionada à conformação do Direito a partir deste autor, Cf. SARTORI, 2010.
  • 13
    Aqui não podemos tratar de um tema importante: aquele ligado à questão de até que ponto uma doutrina jurídica robusta, segundo Engels, não tem como condição a autonomização do estamento de juristas, bem como as pretensões elevadas dos estudiosos e doutrinadores do Direito. Cf. SARTORI, 2018.
  • 14
    Vale destacar que Engels traz um uso mais amplo da concepção de bonapartismo se comparado a Marx. Ao se ter em conta a comparação entre Engels e Marx quanto ao bonapartismo, Cf. ASSUNÇÃO, 2015.
  • 15
    Há de se notar que o uso da noção de forma jurídica é bastante mais prosaico em Engels que em um importante autor da crítica ao Direito como Pachukanis. Para uma comparação entre a análise jurídica de Engels e de do autor de Teoria geral do Direito e o marxismo, Cf. SARTORI, 2020 a.
  • 16
    Vale novamente destacar que a concepção engelsiana de forma jurídica é mais ampla que a de Pachukanis.
  • 17
    Poderíamos mencionar a necessidade de supressão da oposição entre cidade e campo também. Engels destaca bastante este aspecto tanto no Anti-Dühring quanto em Sobre a questão da moradia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2021
  • Aceito
    16 Out 2021
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