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Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil: a captura pelas empresas do dever estatal de consultar os povos e comunidades tradicionais diante dos procedimentos de licenciamento ambiental

Unconstitutional State of Affairs in Brazil: the capture by companies of State’s duty to consult to traditional peoples for environmental licensing process

Resumo

É a proposta deste estudo apresentar elementos argumentativos de teor jurídico que venha a contribuir para um aprofundamento do debate sobre a crescente tentativa das empresas privadas realizarem os processos de Consulta Prévia, Livre e Informada no Brasil no curso de procedimentos de licenciamento ambiental. Partindo do acompanhamento de casos de violação do direito à consulta judicializados a nível nacional, identifica-se a recorrente transferência da competência do Estado brasileiro na realização da consulta aos povos e comunidades tradicionais afetados por grandes obras de infraestrutura. Perpassa-se os fundamentos normativos sobre sua impossibilidade e expõe a jurisprudência internacional fixada a respeito da matéria. A tese evidenciada se propõe a reforçar o estado de coisas inconstitucional (ECI) em matéria socioambiental, sobretudo na garantia de direitos coletivos de povos e comunidades tradicionais, ao se identificar a recorrente captura do dever estatal e os entraves à implementação do direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado (CPLI) em território nacional.

Palavras-chave:
Direito à consulta prévia, livre e informada (DCPLI); Convenção OIT n.º 169/89; Licenciamento ambiental; Empresas privadas; Povos e comunidades tradicionais

Abstract

The purpose of this article is to present argumentative elements of legal content that will contribute to a deepening of the debate on the growing attempt of private companies to carry out the Prior, Free and Informed Consultation processes in Brazil during environmental licensing process. Starting from the monitoring of consultation rights violation’s case judicialized at the national level, identifying the recurrent transfer of Brazilian State’s competence in consultation’s fulfillment with traditional peoples and communities affected by major infrastructure works, it goes through the normative foundations about its impossibility and exposes the international jurisprudence established on the subject. The thesis evidenced proposes to reinforce the unconstitutional state of affairs in socio-environmental matters - especially in guaranteeing the collective rights of peoples and traditional communities in Brazil - wich is capturing the State's duty and bringing negative impacts to the implementation and effectiveness of the right to Prior, Free and Informed Consultant and Consent in national territory.

Keywords:
Right to free, prior and informed consultation; ILO Convention No. 169/89; Environmental licensing; Private companies; Traditional peoples and communities

1. Introdução

O Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada (DCPLI) aos povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais é pressuposto para a efetivação do direito à livre determinação, que reflete na manutenção de suas organizações sociais, instituições, tradições e crenças, nas formas de decisão sobre os rumos da vida coletiva e sobre o território que pertencem. Em uma concepção ampla, contempla a integridade física, cultural e espiritual de cada povo, guardando estrita relação com sua sobrevivência e reprodução.

Consagrado em diversos tratados e normativas de direitos humanos internacionalmente reconhecidas e transcorridas duas décadas desde o início de sua internalização no ordenamento jurídico nacional, permanecem diversas confusões de teor conceitual, evidenciando inúmeras dificuldades em sua aplicação. E, na medida em que conflitos hermenêuticos são resolvidos no âmbito judicial, as estratégias que buscam impedir o cumprimento do DCLPI se reinventam, transformando constantemente os entraves à sua efetiva implementação.1 1 Em István Mészáros (2011, p.38) encontramos a crítica de que qualquer “harmonização” no sistema do capital, só poderá assumir a forma de um equilíbrio estritamente temporário e não a esperada resolução do conflito. "Portanto, não é acidental que na teoria social e política burguesa encontremos a glorificação do conceito de ‘equilíbrio de forças’ como ideal insuperável, quando, de fato, a qualquer momento isto só poderá resultar na imposição/ aceitação da relação vigente de forças, ao mesmo tempo em que busca a sua derrubada, assim que as circunstâncias o permitirem”.

É nesse contexto que a proposta deste estudo se delineia, objetivando apresentar elementos argumentativos de teor jurídico que venha a contribuir para um aprofundamento do debate sobre o papel do Estado e a transferência da competência do Estado, para o que denominamos de tentativa de captura por parte das empresas privadas dos procedimentos de realização da Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) no Brasil.

Em sua estrutura, o texto localiza o debate do Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada (DCPLI) em matéria ambiental e explicita determinadas, e reiteradas, medidas adotadas no âmbito do poder judicial. Medidas essas que vêm transferindo a responsabilidade do Estado brasileiro para as empresas privadas interessadas na realização da CPLI aos povos e comunidades tradicionais afetados por grandes obras de infraestrutura e desenvolvimento, o que demonstra a força do capital na imposição do modelo extrativo sobre os territórios. Perpassa, também, os fundamentos jurídico-normativos sobre sua impossibilidade e analisa os parâmetros internacionais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assim como a jurisprudência internacional fixada a respeito da matéria pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), com destaque ao caráter vinculante dos Protocolos Autônomos de Consulta. Para tanto, utiliza-se como suporte metodológico a revisão bibliográfica, o estudo de casos e a análise documental e jurisprudencial.

A tese aqui evidenciada se propõe a reforçar o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) que vem se caracterizando em matéria socioambiental. Para pensarmos o ECI em matéria de DCPLI no Brasil, na escolha do marco teórico contextualiza-se o cenário de violações sistemáticas acarretadas pelo racismo estrutural, institucional (ALMEIDA, 2020ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.) e racismo ambiental, termo cunhado pelo afroamericano Benjamin Franklin Chavis Junior, na década de 1980 e aprofundado nas reflexões sobre (in)justiça ambiental e as especificidades da realidade brasileira, com base nas lições de Henri Ascerald (2002) e Tânia Pacheco (2008).2 2 “Chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis. O Racismo Ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto “racial”, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. [...]” (PACHECO, 2008).

As violações dos direitos coletivos fundamentais dos povos refletem a colonialidade do ser, saber e poder (QUIJANO, 2000QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (ed). La Colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000.; MIGNOLO, 2009MIGNOLO, W. La idea de América Latina. Crítica y Emancipación, Ano I, No. 2. Primer semestre, 2009.), considerando o colonialismo interno e as fronteiras do neoextrativisto (SVAMPA, 2019SVAMPA, M. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. Tradução: Ligia Azevedo. São Paulo: Elefante editora, 2019.) nos territórios de Abya Ayla.3 3 “Abya Yala na língua do povo Kuna significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em florescimento” e é sinônimo de América. O povo Kuna é originário da Serra Nevada no norte da Colômbia tendo habitado a região do Golfo de Urabá e das montanhas de Darien e vive atualmente na costa caribenha do Panamá na Comarca de Kuna Yala (San Blas). Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América expressão que, embora usada pela primeira vez em 1507 pelo cosmólogo Martin Wakdseemüller, só se consagra a partir de finais do século XVIII e inícios do século XIX por meio das elites crioulas para se afirmarem em contraponto aos conquistadores europeus no bojo do processo de independência. Muito embora os diferentes povos originários que habitam o continente atribuíssem nomes próprios às regiões que ocupavam - Tawantinsuyu, Anauhuac, Pindorama - a expressão Abya Yala vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do continente objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento” (PORTO-GONÇALVES, s/d.). Na contramão das reparações históricas e do fortalecimento dos direitos coletivos de povos e comunidades tradicionais, o que se vêm observando nesses últimos anos é a expropriação dos territórios e expulsão dos povos com a não implementação e ausência de efetividade do direito à Consulta Prévia, Livre e Informada no Brasil. É esse o horizonte teórico dessa pesquisa.

2. Breves considerações sobre a Consulta Prévia, Livre e Informada diante de processos de licenciamento ambiental

Sabe-se que entre os “ditames jurídicos objetivados pelo legislador” (SILVA, 2007SILVA, J. A. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007., p.66) e a plena concretude social de uma norma jurídica há um longo caminho a ser percorrido. Se por um lado, a Convenção n.º 169/1989, da Organização Internacional do Trabalho (OIT),4 4 A referida convenção foi ratificada pelo Estado brasileiro em 2002, Decreto Legislativo nº 143, em vigência desde 2003, e internalizado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 5.051, de 19 de Abril de 2004, posteriormente substituído pelo Decreto 10.088 de 05 de novembro de 2019. corroborada com a Declaração das Nações Unidas e Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas,5 5 A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em 13 de setembro de 2007 e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas foi aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 14 de junho de 2016. consolidou internacionalmente o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada (DCPLI) como uma norma jurídica que fixa obrigações aos Estados; 6 6 Convenção n.º 169 da OIT, art. 6º: “1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a ) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; (...) 2. As consultas realizadas em conformidade com o previsto na presente Convenção deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequadas às circunstâncias, o sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado”. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, art. 19: “Os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem”. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, art. XXIII: “participação dos povos indígenas e contribuições dos sistemas legais e de organização indígenas (...) 3. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados por meio de suas instituições representativas antes de adotar e aplicar medidas legislativas ou administrativas que os afetem, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado”. por outro, uma máxima efetividade dessa norma exige um trabalho contínuo de adequação estrutural tanto dos sistemas jurídicos ao qual é internalizada, quanto de seus operadores.

No contexto do estado brasileiro, onde a Convenção n.º 169 se encontra vigente há duas décadas, diversos atores da sociedade civil, de organizações e movimentos sociais vêm acompanhando a implementação do DCLPI em território nacional, publicizando nesse percurso diversos desafios encontrados à sua efetividade. São incongruências em atos administrativos, legislativos ou mesmo judiciais que apontam corriqueiramente a uma limitação no próprio entendimento interno do DCPLI. A confusão terminológica ou a ausência de interesse mais aprofundado na matéria, a exemplo, tem sido causa de uma situação de imprecisão e insegurança jurídica que reflete na sua inaplicabilidade.

De fato, a CPLI é um dos mecanismos participativos existentes, mas nem por isso deve ser confundido com os instrumentos próprios da democracia participativa aplicáveis a todos indiscriminadamente (SILVA, 2017SILVA, L. A. L. Consulta prévia e livre determinação dos povos indígenas e tribais na América Latina: re-existir para co-existir. 2017. Tese (doutorado) - Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2017., p.115). É nesse cenário que se vem identificando aspectos corriqueiros de equívocos conceituais e práticos que perpassam desde os sujeitos envolvidos, os objetos da consulta, a oportunidade para a consulta, o modo de realizar consultas e os efeitos de uma consulta para o resguardo de direitos fundamentais (Garzón et al., 2016). Nesse último estudo, por exemplo, os autores comparam três instrumentos participativos a serem observados em projetos de exploração minerária ou hidrelétrica em Terras Indígenas (TIs) comumente mal compreendidos - Audiência Pública Ambiental, a Oitiva Constitucional e a Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) - e clarificam, de forma precisa, algumas dessas imprecisões e obscuridades verificadas.

É interessante sempre destacar que o processo que envolve a realização da CPLI a todos os povos e comunidades afetados por medidas administrativas em nenhuma hipótese se restringe a projetos de exploração minerária ou hidrelétrica em Terras Indígenas (TIs). Esse deve ser observado para todo e qualquer ato legislativo, administrativo ou judicial que venha afetar os povos e comunidades tradicionais.7 7 A Convenção n.º 169/89, prevê em seu art. 6, “a”, o dever dos governos em “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. Quanto aos atos judiciais, a Resolução n.º 287/2019, do Conselho Nacional de Justiça, em seu art. 7, dispõe que “a responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada, mediante consulta prévia”. Ainda vincula a consulta prévia no cumprimento da prestação de serviços à comunidade (art. 9, inciso III), à aplicação de regime especial de semiliberdade para condenação a penas de reclusão e de detenção (art. 10, caput) ou mesmo de determinação de prisão domiciliar, quando domicílio localize-se em território ou circunscrição geográfica de comunidade indígena (art. 11). Em outras palavras, devem ser considerados tanto no curso de processos legislativos, como na construção e implementação de projetos e políticas públicas nas diversas áreas que afetem suas vidas e suas terras, sendo recomendado inclusive sua realização em casos de responsabilização penal de indígenas no âmbito judicial.

No entanto, é no curso desses megaprojetos de infraestruturas que o debate técnico-jurídico em torno do DCPLI tem sedimentado como um dos principais eixos de análises e discussões. Cabendo, aqui, uma ênfase sobre o descumprimento reiterado do DCPLI nessas situações, consequência da incessante má-fé dos Estados e dos agentes particulares interessados em executar projetos a qualquer custo sobre territórios tradicionais, desprezando os impactos socioambientais reais.

Uma das questões também comumente tratadas nessas situações refere-se ao momento da realização da consulta. Nos termos das normativas internacionais, a consulta deve ocorrer, conforme o texto da lei, previamente à adoção de qualquer medida administrativa. É dizer, antes da tomada de decisão, de quaisquer autorizações que viabilizem licenças ou concessões a terceiros responsáveis pela execução dos projetos, seguindo minimamente algumas etapas, tais como etapa da chamada pré-consulta, com a elaboração do plano de consulta, etapas informativas, etapas de internalização ou socialização, etapas deliberativas e de seguimento (SILVA, 2017SILVA, L. A. L. Consulta prévia e livre determinação dos povos indígenas e tribais na América Latina: re-existir para co-existir. 2017. Tese (doutorado) - Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2017., p. 203).

Não obstante as mobilizações sociais, inúmeras normativas e recomendações, e a própria jurisprudência consolidada, o dever estatal de realizar a consulta de forma prévia às decisões e atos administrativos segue sendo ignorado. Uma vez consumados e iniciado o procedimento do licenciamento ambiental, resta às entidades e instituições atuantes na defesa dos direitos coletivos de povos e comunidades tradicionais demandarem em juízo a suspensão dos atos e a declaração que fixa a obrigação de cumprimento do direito.

Quando instadas a manifestarem-se, não é raro encontrar as próprias agências reguladoras ainda se apropriando dessa aparente confusão conceitual, tratando a consulta como audiências públicas.8 8 É o caso da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que “esclareceu que a consulta aos povos indígenas, prevista na Convenção 169 da OIT, seria uma das fases do licenciamento ambiental da Ferrogrão”. Para mais, ver: https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/mpf-reafirma-direito-a-consulta-previa-livre-e-informada-de-povos-indigenas-e-comunidades-tradicionais-atingidos-pela-ferrograo Em outros, como veremos adiante, desrespeitam o exercício de autodeterminação e dissimulam perante o judiciário. Ou ainda, como se verificou no projeto de mineração imposto sobre a volta grande do Rio Xingu, no estado do Pará, falseiam os estudos de impactos socioambientais - Estudo de Componente Indígena (ECI) 9 9 O estudo do componente indígena integra o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), disciplinado pela Portaria Interministerial n.º 60, de 24 de março de 2015, que estabelece procedimentos administrativos que disciplinam a atuação dos órgãos e entidades da administração pública federal em processos de licenciamento ambiental de competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis-IBAMA. - realizando-o a partir de dados secundários e fazendo-se crer que seu processo de elaboração seria o mesmo da realização da CPLI.10 10 Transcreve parte da decisão judicial sobre o caso: “[...] XI - A elaboração do ECI não afasta a necessidade de consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas, na forma da Convenção n. 169 da OIT, já que são institutos que não se confundem entre si, conforme precedente de Relatoria do eminente Desembargador Souza Prudente, que afastou a alegação de litispendência entre ações que possuíam as mesmas partes, porém causas de pedir distintas (AC 000589181.2012.4.01.3600/MT, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.1111 de 29/10/2013). [...] XII - Reforma parcial da sentença, apenas para afastar a anulação da licença prévia do empreendimento Projeto Volta Grande de Mineração, restando a emissão da licença de instalação condicionada à elaboração do ECI a partir de dados primários, na forma exigida pela FUNAI, bem como à consulta livre e informada dos indígenas afetados, em conformidade com o protocolo de consulta respectivo, se houver, em atenção ao que dispõe a Convenção n. 169 da OIT. Ressalte-se que a manutenção da validade da licença prévia já emitida não impede sua posterior alteração, a depender das conclusões do ECI e da consulta prévia ora exigidos. (ACORDÃO 00025057020134013903, DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAM MEGUERIAN, TRF1 SEXTA TURMA, e-DJF1 DATA:19/12/2017).”

Como se pode constatar, mesmo transcorridos vinte anos da ratificação da Convenção n.º 169, da OIT, pelo Estado brasileiro, o recurso de se utilizar das confusões conceituais permanecem, muitas vezes sem quaisquer ônus para àqueles que violam o DCPLI. Essa impunidade, que atua como um incentivo à violação, evidencia também como as estratégias que buscam impedir a implementação do DCPLI se reinventam, transvertendo constantemente os entraves à sua efetiva implementação, como se verá a seguir.

2. Transferência da competência do Estado às empresas privadas: entre graves equívocos e violações

2.1. Caso de um empreendimento minerário na volta grande do Xingu, PA

O Projeto Volta Grande é um empreendimento sob a responsabilidade da Belo Sun Mineração Ltda., subsidiária brasileira da Belo Sun Mining Corporation pertencente ao banco de capital privado Forbes & Manhattan Inc. Tal megaprojeto de extração mineral de ouro está a afetar a mesma região e territórios de povos já impactados pela construção da hidrelétrica UHE Belo Monte - a Volta Grande do Rio Xingu- e ocasionará impactos cumulativos e sinérgicos, caso venha a ser consumada.11 11 Sobre o tema: “[...]. Belo Sun irá impactar os povos indígenas Juruna (Yudjá), Arara e Xikrin das Terras Indígenas Paquiçamba, Arara da Volta Grande e Trincheira Bacajá, além de centenas de famílias ribeirinhas e indígenas não aldeados. Diante da ausência de CCPLI e de avaliação de impactos sobre os indígenas, o Ministério Público Federal ajuizou ação judicial. O povo Juruna elaborou seu protocolo de consulta, que foi apresentado nesta ação. Em dezembro de 2017, o Tribunal Regional Federal - 1ª Região determinou, em decisão inédita, que a consulta dos indígenas afetados deve ocorrer em conformidade com os protocolos de consulta dos indígenas. A decisão representa um marco ao reconhecer que devem ser observadas as formas de decidir de cada povo afetado pelo empreendimento, explicitadas no protocolo, referenciando-o como instrumento balizador da efetivação do DCCPLI. (Observatório de Protocolos et al, 2022, páragrafo 42).

Trata-se de um caso emblemático e que se torna precedente na jurisprudência brasileira, pois no âmbito deste caso se deu a inédita decisão judicial em que se reconheceu a validade jurídica e caráter vinculante dos protocolos comunitários de consulta no país. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em dezembro de 2017, reconheceu o dever do estado do Pará de consultar o povo Juruna Yudjá da Volta Grande do Xingu, ao suspender o processo de licenciamento ambiental da mineradora Belo Sun, indicando que a consulta prévia deverá ocorrer em conformidade com as regras de consulta estabelecidas no Protocolo Juruna e deverá ser realizada previamente à licença de instalação de qualquer empreendimento.12 12 BRASIL. Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da 1a Região. Apelação Cível n. 0002505-70.2013.4.01.3903/ PA. Relator Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian. Decisão de 06 dez. 2017.

Em que pese os avanços obtidos com a decisão judicial, em seu cumprimento, houve equívocos que configuram violações e nulidades no processo administrativo de consulta. Para discorrer sobre o complexo caso, nos baseamos no parecer jurídico desenvolvido acerca do processo de consulta prévia, livre e informada do Projeto Volta Grande, de interesse da empresa Belo Sun Mineração Ltda., elaborado por pesquisadores do Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio Livre e Informado e do Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS).13 13 Em atendimento ao Ofício no. 1824/2020/PRM/ATM/GAB1, expedido no Inquérito Civil no. 1.23.003.000197/2012-49, da Procuradoria da República do Município de Altamira. Em tal parecer, os registros do processo de consulta foram confrontados com os parâmetros fixados no acórdão proferido na Ação Civil Pública no. 0002505-70.2013.4.01.3903 - em trâmite no Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1) -, no Protocolo de Consulta Juruna (Yudjá) da Terra Indígena Paquiçamba da Volta Grande do Rio Xingu, bem como na Convenção no. 169 da Organização Internacional do Trabalho (Convenção no. 169), na jurisprudência do TRF1 e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).

No caso sob análise, em síntese, fica comprovada a transferência direta da obrigação e competência do Estado em consultar para o empreendedor, o que é um grave equívoco da Administração Pública e pode restar configurada a má-fé no processo de consulta que deve ser considerado nulo. Como destacou: “após a publicação do acórdão do TRF1 na Ação Civil Pública n.º 0002505-70.2013.4.01.3903, o empreendedor comunicou à FUNAI a contratação das equipes que ‘serão responsáveis tanto pelas atividades de consulta prévia’” (OLIVEIRA et al, 2022OLIVEIRA, R. M. et al. Violações ao direito à consulta e ao consentimento prévio de indígenas e ribeirinhos: o caso de um empreendimento minerário na Volta Grande do Xingu. Parecer solicitado pelo Ministério Público Federal de Altamira e apresentado nos autos da Ação Civil Pública nº. 0002505-70.2013.4.01.3903. Coleção Jusdiversidade e Autodeterminação: pareceres jurídicos e relatórios técnicos. Vol. II. Observatório de Protocolos Comunitários. Curitiba: Letra da Lei, 2022.).

Conforme é citado no parecer (OLIVEIRA et al, 2022OLIVEIRA, R. M. et al. Violações ao direito à consulta e ao consentimento prévio de indígenas e ribeirinhos: o caso de um empreendimento minerário na Volta Grande do Xingu. Parecer solicitado pelo Ministério Público Federal de Altamira e apresentado nos autos da Ação Civil Pública nº. 0002505-70.2013.4.01.3903. Coleção Jusdiversidade e Autodeterminação: pareceres jurídicos e relatórios técnicos. Vol. II. Observatório de Protocolos Comunitários. Curitiba: Letra da Lei, 2022.), a empresa propôs um plano de trabalho que foi aprovado pela FUNAI para realização da consulta prévia e elaboração do estudo do componente indígena (ECI). Diante do imbróglio jurídico envolvendo a condução do processo de consulta, a FUNAI tomou para si a atribuição. Contudo, sendo um processo deliberativo que deverá integrar a decisão estatal, sob pena de nulidade, a consulta prévia deve ser conduzida pelo ente estatal responsável pela adoção da medida administrativa:

Inclusive, este é o entendimento consolidado da própria fundação indigenista, no sentido de que a condução do processo de consulta é de responsabilidade do “tomador de decisão”, cabendo à FUNAI o papel de “mediação” e de “auxílio” e “assessoramento” dos indígenas. Sublinha-se que este foi o entendimento administrativo e técnico da FUNAI encaminhado ao Ministério da Justiça, no contexto da tentativa de regulamentação do processo de consulta prévia, nos anos de 2013 e 2014. [...]. O objeto da consulta não é o Estudo do Componente Indígena, mas as medidas administrativas que autorizam o empreendimento em si, no caso, o Projeto Volta Grande. A FUNAI atua meramente como órgão interveniente, não como licenciador, não lhe cabendo deliberar, por exemplo, sobre a viabilidade socioambiental ou sobre mudanças nos aspectos técnicos do empreendimento, limitando-se à emissão de manifestações e pareceres. Prova disso é o fato de que a Licença Prévia no. 1.312/2014 e a Licença de Instalação no. 2712/2017 foram emitidas pela SEMAS sem nem mesmo constar qualquer manifestação do ente indigenista. (OLIVEIRA et al, 2022OLIVEIRA, R. M. et al. Violações ao direito à consulta e ao consentimento prévio de indígenas e ribeirinhos: o caso de um empreendimento minerário na Volta Grande do Xingu. Parecer solicitado pelo Ministério Público Federal de Altamira e apresentado nos autos da Ação Civil Pública nº. 0002505-70.2013.4.01.3903. Coleção Jusdiversidade e Autodeterminação: pareceres jurídicos e relatórios técnicos. Vol. II. Observatório de Protocolos Comunitários. Curitiba: Letra da Lei, 2022.)

Em outras palavras, não significa que a FUNAI não deva consultar os povos indígenas sobre as medidas administrativas que lhes compete; contudo, em se tratando de licenciamento ambiental, o processo de consulta somente poderá ser conduzido, e concluído, pelo órgão licenciador ambiental competente para o empreendimento. Justifica-se tal posicionamento pois o órgão ambiental possui atribuições legais para discutir com os povos indígenas e comunidades tradicionais a viabilidade e as condições técnicas e socioambientais do empreendimento.

Salienta-se ainda que se fosse restrita à competência da FUNAI, se excluiria do(s) processo(s) de consulta as demais comunidades tradicionais (não indígenas) afetadas pelo megaprojeto. No exemplo trazido, além de povos indígenas, como os Juruna Yudjá, Arara e Xicrin, há comunidades ribeirinhas diretamente impactadas e indígenas não aldeados, que também são sujeitos coletivos de direito da Convenção 169 da OIT e possuem o mesmo respaldo da aplicação do DCPLI.14 14 Sobre os sujeitos da consulta prévia: povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, recomenda-se leitura de SILVA, 2017; SILVA, 2019 (in SOUZA FILHO et al, 2019); ROJAS GARZÓN et al, 2016; OLIVEIRA et al, 2022.

A definição do órgão ambiental competente pelo licenciamento ambiental para a condução do processo de consulta, obviamente, não exclui a participação do órgão indigenista ou outros órgãos nas etapas de consulta, a depender do caso. Da mesma forma, é necessário o acompanhamento por parte do Ministério Público por sua atribuição como fiscal da lei, em especial, dos interesses e direitos dos povos indígenas e tradicionais (art. 232 da Constituição Federal).

2.2. Casos de Pequenas Centrais Hidrelétricas na bacia do rio Juruena, MT

Organizações da sociedade civil e de povos e comunidades tradicionais do Estado do Mato Grosso,15 15 Destaca-se aqui duas delas: a Rede Juruena Vivo e a Operação Amazônia Nativa (OPAN). Para mais informações ver https://www.redejuruenavivo.com/ e https://amazonianativa.org.br/ na região Centro-Oeste brasileira, vêm denunciando sucessivas tentativas de transferência da responsabilidade e competência do Estado brasileiro pela realização do processo de consulta livre, prévia e informada às empresas privadas. Esse é o caso da construção de duas Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). A primeira, trata-se da PCH Mantovilis, localizada no Rio Mutum, município de Santo Antônio de Leverger; e a segunda, a PCH Sacre 14, no Rio Sacre, município de Brasnorte; ambas localizadas na Bacia do Rio Juruena.

A princípio, é importante salientar que a construção de ambas as PCH, em comum, não apenas desrespeitam o DCPLI das comunidades afetadas, como acumula um histórico de violações de direitos ambientais e coletivos dos povos e comunidades locais. O caso da PCH Mantovillis, já construída e implantada pela empresa Pan Partners Administração Patrimonial LTDA, a exemplo, mesmo inexistindo à época a concessão de licença ambiental pelos órgãos competentes, “o empreendedor deu início à captação subterrânea em poço tubular irregular e ao desmatamento de vegetação nativa [...], o que levou à paralisação das obras pela Secretaria do Meio Ambiente (SEMA) de Mato Grosso”.16 16 Termo de Embargo/Interdição n.º 111133, de 25 de abril de 2018, SEMA/MT.

Somam-se a isso um subdimensionamento dos potenciais impactos ambientais (cumulativos e sinérgicos) e irregularidades inequívocas do processo de licenciamento ambiental. Esse último fato, levou o Ministério Público Federal (MPF) a solicitar, por meio de uma Ação Civil Pública (ACP),17 17 Trata-se da Ação Civil Pública autos n.º 1006195-53.2018.4.01.3600, em trâmite na 2ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária de Mato Grosso, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região a suspensão do empreendimento. Entre os motivos está a ausência de estudos dos impactos que recairão sobre a Terra Indígena (TI) Tereza Cristina, do Povo Bororo (Boe), localizada à 10 km;18 18 “A TI Tereza Cristina tem uma área territorial de 35 mil hectares, dos quais quase 10 mil estão sob discussão em processo demarcatório paralisado desde o final da década de 1990. Na área encontram-se sítios arqueológicos desses povos, e isso também torna imprescindível a participação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no processo de licenciamento ambiental, o que não estava ocorrendo, em desrespeito à Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015” (VIEIRA et al., 2022, p.17). assim como a violação ao Direito à Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado do Povo Indígena diretamente afetado pelo empreendimento.

Foi no decorrer dessa ação judicial, ainda na fase de audiência de conciliação, que o empreendedor se comprometeu em acordo homologado pelo juízo a “realizar a consulta prévia, livre e informada à comunidade indígena Bororo da TI Tereza Cristina, como assegurado na Convenção nº 169 da OIT, conforme o Protocolo de Consulta que será apresentado à empresa ré pela comunidade, [...]”. Quanto ao MPF, coube “intermediar o processo de consulta às comunidades tradicionais, em sendo necessário, bem como cobrar delas a apresentação de protocolo de consulta, caso não fosse feito”.19 19 Conforme decisão proferida pelo Juiz Federal Substituto no exercício da titularidade da 2ª Vara/SJMT, Hiram Armênio Xavier Pereira, assinada em 25 de novembro de 2020, nos autos n.º 1006195-53.2018.4.01.3600, em trâmite na 2ª Vara Federal Cível da SJ/MT. Disponível em: https://pje1g.trf1.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?ca=6e6202f99a565fa258af39fc74f6ab362351ed83736f1ca7b17b3fd452b2ae4dc7c33ceedc5813a8f86c64e37ce24b962c3fd83e1fc2fafd&idProcessoDoc=307036370

Mesmo com a denúncia posterior pelo MPF de que a empresa teria juntado aos autos um protocolo de consulta não reconhecido pelos representantes da Aldeia Córrego Grande - a mais próxima da PCH - e mais outras quatro dentro da TI Tereza Cristina, o juízo entendeu que a exigência restou cumprida. Ao passo que representantes das comunidades indígenas afirmaram que o documento se tratava de um projeto ainda a ser discutido e votado internamente, o empreendedor juntou atas de reuniões caracterizando um processo de consulta e o protocolo como um resultado manipulado. Infelizmente, em setembro de 2022, a PCH Mantovilis obteve a licença de operação ao ser liberada, pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), na modalidade em teste, duas unidades geradoras (UG1 e UG2), totalizando 5,2 MW.20 20 Fonte: Diário Oficial da União, Seção 1, nº 169, de 05.09.2022.

Se por um lado a homologação do acordo reafirmou o caráter vinculante dos protocolos autônomos (MARÉS, 2019); por outro, verifica-se uma equivocada transferência da responsabilidade do Estado brasileiro de realizar o processo de consulta ao povo indígena atingido, às entidades privadas. E esse não é o único caso no estado do Mato Grosso.21 21 No mesmo cenário insere-se o caso de uma outra PCH, a PCH Sacre 14, que além de muitas similitudes, tem algumas características peculiares. A PCH Sacre 14 compartilha o mesmo empreendedor da PCH Mantovilis, a empresa Pan Partners Administração Patrimonial LTDA e, também, encontra-se judicializada pelo MPF decorrente da constatação de não realização CLPI a povos indígenas e, como sempre, de irregularidades constatadas no licenciamento ambiental. São diversos os territórios e os povos indígenas que serão afetados e tiveram o DCLPI violado, cita-se: TI Menkü (povo Myky), TI Irantxe (povo Irantxe-Manoki), TI Tirecatinga (território multiétnico, dos povos Rikbaktsa, Nambikwara, Manoki, Paresi e Terena) e TI Utiariti (povo Paresi).

Em decisão liminar, antes mesmo da obtenção da licença prévia, logrou-se suspender o processo de licenciamento ambiental da PCH Sacre 14 até a efetiva realização da CLPI aos povos que estão em áreas de influência direta do empreendimento. Mesmo condicionando “a continuidade do licenciamento ao cumprimento dos respectivos protocolos de consulta prévia, livre e informada às etnias indígenas envolvidas”,22 22 “Em 2019, o povo Irantxe-Manoki finalizou seu protocolo, considerando esse empreendimento como uma das ameaças a seu território e a seus direitos” (VIEIRA, 2022, p.12). Para acesso ao Protocolo de Consulta do Povo Manoki, ver: https://amazonianativa.org.br/wp-content/uploads/2020/02/OPAN_Protocolo-consulta-Manoki_web-2.pdf. recaiu sobre o empreendedor a obrigação de realizar a consulta.

Assim, tão logo realizou-se uma reunião, dando início ao processo de consulta, o empreendedor solicitou a revogação da suspensão; pedido que teve manifestação favorável do MPF.23 23 Consta na manifestação do MPF: “[...] tendo sido iniciado o processo de consulta, não há como ele prosseguir enquanto o procedimento de licenciamento estiver paralisado. Com efeito, o procedimento deve prosseguir e, junto dele, o processo de consulta. Com isso, é forçoso concluir que a decisão antecipatória alcançou seu fim com o início do processo de consulta, de modo que, agora, poderia ser autorizado o prosseguimento do licenciamento, compelindo-se a requerida a prosseguir, também, com o processo de consulta”. Em decisão judicial ficou deliberado o prosseguimento do procedimento de licenciamento ambiental, com a explícita determinação de que “o empreendedor deverá manter os respectivos protocolos de consulta prévia, livre e informada junto a todos as etnias envolvidas [....] ao longo de todo o procedimento administrativo de licenciamento ambiental, renovando a consulta em cada fase do licenciamento”.24 24 Decisão proferida em 02 de julho de 2020, pelo titular da subseção judiciária de Juína, Juiz Federal Frederico Pereira Martins. A referida ação civil pública encontra-se em fase recursal no Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região.

Verifica-se novamente, como no caso da PCH Mantovilis, uma interpretação equivocada das normas relativas ao DCPLI ao se determinar judicialmente ao empreendedor manter os respectivos protocolos autônomos, “renovando a consulta em cada fase do licenciamento”. Como já apontado em estudo anterior, uma das consequências dessa

[...] transferência equivocada na legitimidade de condução dos processos de consulta aos povos afetados é a possível dissimulação no cumprimento das garantias do direito [...] pelo empreendedor diretamente interessado na aprovação por parte do Estado, pela via do licenciamento ambiental, e que neste caso outrora já havia violado o direito à consulta, resultando numa limitação e riscos à efetiva participação e o controle social por parte das comunidades afetadas. (VIEIRA et al., 2022VIEIRA, F. do A.; LUNELLI, I. C. O Direito à Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado no estado de Mato Grosso. Cuiabá: Operação Amazônia Nativa, Observatório de Protocolos, 2022., p.12).

Aliás, como restou denunciado, esse equívoco na transferência equivocada do dever de consulta vem sendo praticado não apenas pelo judiciário e acatado pelo MPF, como tem se caracterizado uma orientação da própria Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA/MT).25 25 Em referência, cita-se “no caso da PCH Sacre 14, com sentença do Judiciário mato-grossense, como também em documento do Governo de Mato Grosso, através da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, o Estado delega aos empreendedores seu dever de realizar a consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas”. O documento mencionado emitido pela SEMA/MT é “a Ordem de Serviço n.º 07/2019, da Secretária Adjunta de Licenciamento Ambiental e Recursos Hídricos, da Secretaria de Estado de Meio Ambiente, do Governo do Estado de Mato Grosso, datado de 08 de julho de 2019” (VIEIRA et al., 2022, p.12, 21).

3. Parâmetros internacionais sobre CPLI: Sistema Interamericano de Direitos Humanos

O direito de consulta e consentimento prévio, livre e informado (CPLI), como já mencionado, está previsto em Convenções e Declarações internacionais, tendo consolidado largo entendimento na jurisprudência da Corte Interamericana de Direito Humanos (Corte IDH).

A Convenção n. 169 da OIT é muito clara em seu artigo 6º sobre o dever dos governos em consultar os povos mediante procedimentos apropriados, e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. Em conformidade com essa determinação, os Estados deverão definir a entidade administrativa ou órgão competente, pessoal disponível e capacitado na matéria, com atribuições específicas para implementar e conduzir processos de consulta prévia e garantir que haja recurso orçamentário disponível para tal finalidade.26 26 Como explicado anteriormente: “viabilizar e conduzir os processos de consulta não impõe ao governo uma hierarquia superior aos povos indígenas, já historicamente invisibilizados e inferiorizados. Na perspectiva do diálogo intercultural, deve ser garantido que os povos sejam protagonistas e conduzam internamente o processo, conforme suas organizações próprias, direito próprio e tradições. Ressalta-se que trata-se de dever do Estado, pois é o Estado que adota medidas legislativas ou atos administrativos (como concessões) e não as empresas. Portanto, esse dever não pode ser substituído por supostas consultas realizadas pelas empresas interessadas, assim como não se reduz a meras assinaturas de termos de anuência por lideranças individualizadas, sem que haja um processo de consulta prévia, que seja público, amplo e coletivo, respeitando as fases ou etapas necessárias do processo consultivo, como a pré-consulta - na qual se estabelece e se constrói o plano de consulta e a metodologia que será empregada juntamente com as comunidades-, etapa informativa, etapa de socialização, etapa consultiva e etapa deliberativa. É recorrente o fato de que empresas tentem atropelar o dever do Estado e diretamente tentem negociar ou cooptar lideranças. São inúmeros casos denunciados por povos e comunidades, requerendo a anulação de atas de consulta prévia ou termos de anuência assinados individualmente, sem que representem a legitimidade de um processo consultivo de boa-fé” (SILVA, 2012, p.202).

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), órgão judicial do Sistema Interamericano de Direitos Humanos das Organizações dos Estados Americanos (SIDH/ OEA), acumula até o momento quatro sentenças nos quais se manifestou a respeito da consulta prévia: Comunidade Saramaka vs. Suriname (2007); Povo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador (2012); Comunidade Garífuna de Ponta Pedra e seus membros vs. Honduras (2015); Povos Kaliña e Lokono vs. Suriname (2015).27 27 NOTA TÉCNICA Nº 1/2021/6ªCCR/MPF, Referente ao “Direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas e comunidades tradicionais atingidos pelo projeto de Estrada de Ferro 170 - Ferrogrão”, maio de 2021. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/6CCR_NotaTecnica_Ferrograo.pdf Ressalta-se que o direito à consulta prévia das comunidades quilombolas e tradicionais, reconhecido na Convenção n.º 169, da OIT, como povos tribais, está também amparado nos julgados da Corte IDH (e.g., caso Saramaka Vs. Suriname, 2007), e outros documentos internacionais de direitos humanos como comunidades locais e afrodescendentes.

Sobre o tema, a Corte IDH, ao interpretar a Convenção 169 da OIT, oportunamente se pronunciou afirmando que processos de “socialização” e “informação” realizados por empresas interessadas ou terceiros com povos indígenas em projetos específicos não devem ser confundidos com os processos de consulta que devem ser realizados pelo Estado.28 28 Corte IDH. Caso del Pueblo Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador. Fondo y Reparaciones. Sentencia de 27 de junio de 2012, párr. 187. Recomenda-se também: Corte IDH. Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones, y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2007, párrs. 102, 129 y 131; e Informe del ex Relator Especial sobre la situación de los derechos humanos y las libertades fundamentales de los indígenas, James Anaya, A/HRC/12/34, de 15 de julio de 2009, párrs. 53 a 55. Diante disso, tem-se que os casos de omissão da responsabilidade estatal em matéria socioambiental - em especial, no cumprimento do dever de consultar- e a consequente delegação ou transferência da obrigação estatal para as empresas privadas, violam os parâmetros internacionais, como podemos observar nos precedentes da Corte IDH.

No caso Kichwa de Sarayaku vs. Equador (sentença de 2012), a Corte IDH evidencia a violação da transferência (delegação) da responsabilidade e competência estatal de consultar para as empresas privadas:

187. Cumpre salientar que a obrigação de consultar é responsabilidade do Estado, razão pela qual o planejamento e realização do processo de consulta não é um dever que se possa evitar, delegando-o a uma empresa privada ou a terceiros, muito menos à mesma empresa interessada na extração dos recursos no território da comunidade objeto da consulta.29 29 CORTE IDH, Kichwa de Sarayaku vs. Equador, 2012. par. 186-187.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou recentemente a Recomendação n.º. 123/2022, na qual “recomenda aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”.30 30 Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/files/original1519352022011161dda007f35ef.pdf> . Fica evidente, portanto, que os equívocos de decisões judiciais ou posicionamentos de representantes do Estado que acabam por “legitimar” a delegação para empresas privadas ou terceiros não devem prosperar pois ferem os parâmetros nacionais e internacionais de direitos humanos sobre a matéria.

3.1. O papel do Estado nos procedimentos de CPLI e os protocolos comunitários autônomos como instrumentos jurídicos orientadores e vinculantes

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu informe sobre Derecho a libre determinación dedicou o capítulo 7 para os “Protocolos autônomos de consulta e outros instrumentos de consulta e consentimento”, baseando-se nos dados levantados pelo Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado no Brasil e demais países. Em seu parágrafo 297 e 298 faz referência expressa aos aportes e contribuições feitas nas reuniões regionais sobre o tema:

Los pueblos indígenas y tribales han empleado sus propios mecanismos para la implementación de la consulta y consentimiento, principalmente a través de protocolos de consulta, o protocolos comunitarios autónomos de consulta. La CIDH recibió información sobre diversas iniciativas por parte de los pueblos indígenas y tribales al respecto. Uno de los países donde se ha desarrollado esta práctica es Brasil, donde según lo informado, desde 2014, se ha registrado la construcción de diversos protocolos de consulta y consentimiento de forma documental, escrita, oral, o registro documento audiovisual por parte de los pueblos indígenas, quilombolas y comunidades tradicionales. Estos pueblos han elaborado sus protocolos para exteriorizar al Estado, las respectivas reglas, normas y procedimientos para la realización de consultas, así como las formas de organización y toma de decisión de cada pueblo. (CIDH, 2021, p.134, pár.297)

De 2014 a 2022, conforme levantamento realizado pelo Observatório de Protocolos Comunitários, registra-se no Brasil a experiência de 81 protocolos comunitários autônomos, sendo 39 protocolos indígenas, 17 protocolos quilombolas, 21 protocolos dos demais povos e comunidades tradicionais e 04 protocolos da sociobiodiversidade (protocolos bioculturais). Esse número, é claro, tende a aumentar, considerando diversas experiências que estão em desenvolvimento e ainda não foram publicizadas pelos próprios povos.

A importância do reconhecimento internacional dos protocolos comunitários como exercício da livre determinação dos povos, nos apontam para seu caráter vinculante nos processos de consulta no Brasil. Nesse sentido, reconhecer a validade jurídica dos Protocolos Autônomos de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado e seu caráter vinculante para os processos de consulta prévia é disposição de boa-fé no diálogo dos Estados com os povos (JOCA et al, 2021JOCA, P.; et al. Protocolos autônomos de consulta e consentimento: um olhar sobre o Brasil, Belize, Canadá e Colômbia. 1ª ed. -- São Paulo : Iepé - Instituto de Pesquisa e Formação Indígena : Rede de Cooperação Amazônica - RCA, 2021.).

Entre os casos de violação do DCPLI no Brasil em que houve decisões ou acordos judiciais em que se reconhece a validade jurídica dos protocolos, temos o caso do povo Juruna (Yudjá)/Pará, já referenciado neste trabalho; temos ainda o caso do povo Mura, Amazonas. Assim como o caso do povo Irantxe-Manoki na bacia do rio Juruena, no estado do Mato Grosso. Tais casos foram descritos e submetidos no relatório em coalizão ao quarto ciclo do Mecanismo de Revisão Periódica Universal (RPU/ONU).31 31 Consta no relatório (RPU/ONU): O Povo Mura, que habita os rios Madeira, Amazonas e Purus, foi ameaçado pelo empreendimento de exploração de silvinita no município de Autazes, no Amazonas. Desde o ano de 2009, a empresa Potássio do Brasil Ltda realizava estudos na região e, no ano de 2015, recebeu Licença Prévia do Estado do Amazonas (IPAAM) sem ter realizado a CCPLI, obtendo licença pela FUNAI sem consentimento do povo Mura, que não foi consultado e informado. Em 2016, o MPF ajuizou ação civil pública para anulação da licença prévia e a paralisação de qualquer atividade sem prévia consulta ao Povo Mura, que construiu seu Protocolo de Consulta e será consultado, embora as pressões e ameaças exercidas por diversos atores sobre esses indígenas comprometam gravemente o caráter livre e informado do processo de consulta e desrespeitem as determinações do grupo que constam em seu Protocolo de Consulta. [...]. O governo do Estado de Mato Grosso, por sua Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA-MT), vem transferindo aos empreendedores o dever do Estado de realizar os processos de consulta prévia, por meio de um precário instrumento administrativo (“Ordem de Serviço n.º 07/2019”). Esse posicionamento vem sendo respaldado pelo Judiciário mato-grossense, que já em duas decisões em ações civis públicas (ACP) reforça essa mesma violação ao que rege a Convenção 169 da OIT, na qual o juízo reconheceu o direito de consulta durante todas as fases do licenciamento, porém condenou, equivocadamente, o empreendedor na obrigação de efetivar a realização da consulta livre, prévia e informada às populações indígenas. (Observatório de Protocolos et al, 2022, pár. 43-44).

Avançamos com o reconhecimento dos protocolos comunitários. Contudo, o respeito à autodeterminação dos povos não se confunde com a ideia de autonomia liberal que legitima a omissão estatal nos processos de consulta. A superação do paradigma tutelar integracionista do passado não pode ser confundida com o abandono e omissão do Estado no que concerne suas responsabilidades de assegurar as salvaguardas e garantias de concretização das políticas públicas e direitos dos povos. Os casos de sistemáticas violações ao DCPLI e a delegação da responsabilidade do Estado configura uma afronta e incorre em violações e nulidades procedimentais no modus operandi de se executar e buscar a efetivação dos direitos fundamentais dos povos.

4. Reflexões sobre o estado de coisas inconstitucional em matéria socioambiental

A transferência da responsabilidade do Estado brasileiro para realização da consulta aos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais afetados por grandes obras de infraestrutura é, como se veio demonstrando no decorrer desse estudo, uma realidade de sistemáticas e estruturais violações de direitos humanos, que ao invés de sanar vícios anteriores como se busca acreditar, acaba por reforçar um Estado de Coisas Inconstitucional (ECI).

A respeito do conceito de ECI, esse se relaciona com um contexto de violação generalizada de direitos e garantias fundamentais, seja decorrente de comportamentos comissivos (ações) ou omissivos (ausência de atos) por distintos órgãos ou instituições públicas, que deveriam zelar por suas garantias e implementação. Sua projeção como argumento jurídico deve-se ao alcance de decisões judiciais, que passaram a fixá-la como tese diante de determinados pressupostos fáticos.

Originalmente, tem-se que a construção jurisprudencial do estado de coisas inconstitucional parte do Tribunal Constitucional Colombiano (Garavito et al., 2010GARAVITO, C. R; FRANCO, D. R. Cortes y cambio social: cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad Dejusticia, 2010.). A Corte Constitucional da Colômbia adotou, pela primeira vez a declaração do Estado de Coisa Inconstitucional em 1997, tendo em vista a complexidade na decisão judicial decorrente de inúmeras violações e falhas estruturais envolvidas no caso paradigmático que reconheceu a omissão dos municípios em filiar docentes ao Fundo Nacional de Prestações do Magistério, na Colômbia (SU-559, 1997). Já a sentença ST-025/2004 da Corte Constitucional da Colômbia, que versou sobre os direitos fundamentais das vítimas de deslocamento forçado (derechos fundamentales de los desplazados), marcou a evolução jurisprudencial sobre o estado de coisas inconstitucional e os fatores que o determinam. Como característica está, sobretudo, o reconhecimento de omissão inconstitucional reiterada, relacionando-se com a presença de falhas estruturais que irão importar em ofensa grave e contínua a direitos fundamentais, dentre outros fatores.32 32 “i) a vulneração massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afeta um número significativo de pessoas; ii) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações par garantir os direitos; iii) a adoção de práticas inconstitucionais, como a incorporação da ação de tutela como parte do procedimento exigido para a garantia do direito violado; iv) a não expedição de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a violação dos direitos; v) a existência de um problema social cuja solução requer a intervenção de várias entidades e a adoção de um conjunto completo e coordenado de ações, além de acréscimo de recursos que demandam um esforço orçamentário importante; vi) caso todas as pessoas afetadas pelo mesmo problema buscassem a ação de tutela para obter a proteção de seus direitos, se produziria um maior congestionamento judicial. COLOMBIA, Corte Constitucional. ST-025/2004. Disponível em: < https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm> Acesso em 10 nov 2022. (Tradução nossa)

Tem-se, assim, que a declaração do estado de coisas inconstitucional é o instituto e a técnica decisória a partir de circunstâncias fáticas inconstitucionais, para a coordenação do processo de correção de falhas estruturais de diversos órgãos públicos que geram a violação massiva de direitos fundamentais. (DANTAS, 2019DANTAS, E. S. Ações Estruturais e o Estado Inconstitucional: a Tutela dos Direitos Fundamentais em Casos de Graves Violações pelo Poder Público. Porto Algre: Juruá, 2019., p. 69). Segundo Dantas (2019DANTAS, E. S. Ações Estruturais e o Estado Inconstitucional: a Tutela dos Direitos Fundamentais em Casos de Graves Violações pelo Poder Público. Porto Algre: Juruá, 2019., p. 95-103), os requisitos para a tutela estrutural são: i) violação real e atual de direitos fundamentais; ii) omissão estatal, caracterizada pela inércia ou omissão dos poderes públicos, que deverão estar cientes desse descumprimento; iii) urgência e necessidade de intervenção judicial; iv) complexidade envolvendo falhas estruturais do poder público que exigem soluções complexas, a partir da ótica da macrojustiça ou da análise global dos pedidos.

Quanto aos pressupostos básicos que caracterizam o ECI, reporta-se a uma síntese das decisões da Corte Constitucional Colombiana apresentada pela Min. Cármen Lúcia,33 33 A citação é extraída da íntegra do voto da ministra Cármen Lúcia na ADPF 760. STF, ADPF 760/ DF, Voto Relatora Min. Cármen Lúcia. p.142. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/VOTOADPF760.pdf . Acesso em: 10/11/2022. ao mencionar:

  • a) a ofensa massiva e generalizada de direitos fundamentais que afetam número significativo de pessoas;

  • b) a prolongada omissão das autoridades quanto ao cumprimento de suas obrigações para garantir os direitos fundamentais ou a adoção reiterada de práticas inconstitucionais;

  • c) a ausência de medidas legislativas e/ou administrativas necessárias para evitar afrontas aos direitos fundamentais;

  • d) a existência de problema social cuja solução demande a intervenção de várias entidades, requerendo a adoção de conjunto completo e coordenado de ações;

  • e) se todas as pessoas afetadas pelo mesmo problema ajuizassem ações individuais para tutela dos seus direitos, produzir-se-ia grande congestionamento judicial (Tribunal Constitucional da Colômbia, Sentencia n. SU-559, de 6.11.1997; Sentencia T-068, de 5.3.1998; Sentencia SU-250, de 26.5.1998; Sentencia T-590, de 20.10.1998; Sentencia T-525, de 23.7.1999; Sentencia T-153, de 28.4.1998; Sentencia T- 25, de 22.1.2004). (STF, ADPF 760/ DF, Voto Relatora Min. Cármen Lúcia. p.142.)

No contexto nacional, a tese da ECI tem sua incorporação recente pelo Supremo Tribunal Federal,34 34 Para alguns autores, o ECI trataria de uma “nova modalidade de inconstitucionalidade, desenvolvida através da técnica jurisdicional e de aplicação decisória, destinada a enfrentar quadros sociais sistemáticos de violações de direitos humanos, resultando da omissão orgânica dos poderes políticos, exigindo-se, para tanto, a atuação direta das Cortes Constitucionais quanto ao destacamento deste panorama e a fiscalização das ações necessárias à sua erradicação, num verdadeiro ativismo judicial, fazendo prevalecer a exegese do conteúdo objeto da norma constitucional” (GUELFI, 2021, p.24). especificamente em decisão a uma Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 347. Na ocasião, ao se declarar a existência de falhas estruturais e a falência de políticas públicas de encarceramento, portanto, ofensivas a preceitos constitucionais e comprobatórios do ECI, a Corte Suprema impôs uma intervenção judicial sobre o sistema penitenciário brasileiro. Note-se que a chamada intervenção judicial aqui refere-se, em realidade, ao exercício de um papel garantidor dos direitos por meio do qual o poder judiciário seria um facilitador na promoção de mudanças estruturais, sem afastar a participação dos Poderes dos processos de formulação e implementação das soluções necessárias - que permeiam medidas de natureza normativa, administrativa e orçamentária.

Desde então, acumulam-se pedidos análogos em diversas matérias, alguns, inclusive, com entendimentos já manifestados nesse sentido. Entre eles, está a decisão proferida pelo Ministro Roberto Barroso na ADPF n.º 708,35 35 A ADPF n.º 708 foi ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e pela Rede Sustentabilidade. Sobre a referência ao ECI, a mesma foi realizada em uma decisão em Embargos de Declaração na ADPF n.º 708 - DJE nº 231, divulgado em 17/09/2020. que mesmo negando a instauração de tutela estrutural de estado de coisas inconstitucional - o que comportaria a necessidade de debater as condições de sua ocorrência e a ampliação dos pedidos iniciais - reconheceu que o Brasil enfrenta um “estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental”. Dentre os atos comissivos destacados pelo Ministro está “o licenciamento de obras de infraestrutura, sem adequada avaliação de impacto”, assim como a “orientação pública para a cessação da demarcação de Terras Indígenas”, entre outros.

Ainda em seu voto,36 36 Voto do Min. Luís Roberto Barroso (relator), proferida em 04 de julho de 2022 no âmbito da ADPF n.º 708. Data da Publicação do Acórdão DJE 28/09/2022, Ata n.º 169/2022, DJE nº 194, divulgado em 27/09/2022. referido relator manifestou o “dever constitucional, supralegal e legal da União e seus representantes eleitos de proteger o meio ambiente e de combater as mudanças climáticas”, aduzindo que “a questão, portanto, tem natureza jurídica vinculante, não se tratando de livre escolha política”. Ou seja, “a tutela ambiental não se insere em juízo político, de conveniência e oportunidade, do Chefe do Executivo. Trata-se de obrigação a cujo cumprimento está vinculado”. Afirma, ainda, que o princípio da vedação do retrocesso da proteção ambiental “é violado quando se diminui o nível de proteção do meio ambiente por meio da inação ou se suprimem políticas públicas relevantes sem a devida substituição por outras igualmente adequadas”. É nesse quadro litigioso que os debates sobre o ECI em matéria ambiental se avolumam, desdobrando-se em novos julgamentos.

Nesse contexto, merece destaque também, a respeito do reconhecimento do ECI, o voto da Ministra Cármen Lúcia no âmbito da ADPF n.º 760.37 37 A ADPF n.º 760 foi proposta pelos partidos políticos Partido Socialista Brasileiro (PSB), Rede Sustentabilidade (REDE), Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido Verde, Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB), impugnando práticas na atual gestão ambiental pela União. Indicando um progressivo ECI em matéria ambiental no Brasil, a relatora reconhece-o quanto ao desmatamento ilegal da Floresta Amazônica. Para tanto, toma em consideração o abandono do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), assim como a constatação de omissão na adoção de medidas outras protetivas do meio ambiente ecologicamente equilibrado na região.

Em sua fundamentação, o voto traz a referência expressa ao caso Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina. Trata-se de uma questão envolvendo o desflorestamento autorizado pelo governo federal para realização de obras públicas e sobre as concessões para exploração de hidrocarbonetos, sem a consulta às comunidades indígenas habitantes da área. Em fevereiro de 2020, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) concluiu pela violação dos direitos dos povos indígenas, entre eles, a propriedade comunitária, à identidade cultural, ao meio ambiente saudável, ao alimento e à água, responsabilizando internacionalmente o Estado argentino.

Mais do que seu conteúdo, ressalta-se na decisão proferida pela Min. Carmen Lúcia uma mudança hermenêutica operada com esse precedente sobre a Corte IDH, que passa a dar uma interpretação extensiva dos direitos humanos. No caso dos direitos de comunidades indígenas e tribais, além dos direitos à propriedade, ao patrimônio cultural, à circulação e residência, vida e à proteção judicial, “a Corte tem fundamentado decisões que, por via oblíqua, protegem os bens ambientais, corroborando a tese da indivisibilidade, inter-relação e interdependência entre todos os direitos humanos” (D’AVILA, 2022). Com isso,

Pela alta relevância constitucional e internacional da defesa dos biomas e das respectivas populações indígenas e observada, com maior relevo, a atual quadra em que indicadores oficiais apontam aumento recorde de incêndios na vegetação amazônica, de guinada negativa do clima, de aumento de desmatamento e de grilagem de terras, de violência contra os indígenas e tentativa de afastá-los de sua terra e despojá-lo de sua cultura, a ausência de fiscalização eficaz, impõe-se ao Judiciário o dever de prestar a jurisdição constitucional ambiental, assegurando a efetividade das normas constitucionais de proteção ao meio ambiente (em especial os arts. 225 e inc. VI do art. 170 da Constituição da República). (STF, ADPF 760/ DF, Voto Relatora Min. Cármen Lúcia, p.152-153)

Assim, considerando a necessidade de ter uma execução eficiente das políticas públicas para cumprimento de compromissos aos princípios e regras constitucionais e internacionais, bem como “a insuficiência das justificativas apresentadas pelos órgãos responsáveis [...] e aos crescentes níveis de desmatamento da Amazônia”, reconheceu-se o estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental.

Quanto à reflexão sobre um ECI em matéria socioambiental - para além da relação de interdependência entre os povos e comunidades tradicionais e a natureza - resta salientar alguns fatores que vêm contribuindo para sua caracterização em território brasileiro, sobretudo quando analisada a implementação do DCPLI.

5. A sistemática violação do Estado brasileiro em matéria de CPLI: configuração do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI)

Em 2010, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), juntamente com organizações indígenas e quilombolas, denunciaram o Estado brasileiro à OIT por “descumprimento sistemático da obrigação de consultar” (GARZÓN et al., 2016, p. 14). Não obstante, acompanha-se desde então inúmeros projetos de lei que tramitam sem nenhum processo de consulta efetivo aos povos e comunidades afetados, além de diversas medidas administrativas que são adotadas sem quaisquer processos de participação social.38 38 Como destacou Garzón et al. (2016, p.7, 16), “Percebe-se que, frequentemente, o direito à consulta é encarado pelo governo como mera formalidade. Raras são as decisões administrativas reconsideradas em consequência de processos de consulta ou de objeção por parte dos povos afetados. Quanto às medidas legislativas, o quadro é ainda mais grave, pois o Congresso Nacional hesita em admitir a existência e a obrigatoriedade da CCPLI”. E menciona: “até dezembro de 2015, dos mais de 3 mil empreendimentos com processos de licenciamento ambiental que incluíam a participação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Fundação Palmares, nenhum havia realizado, junto aos povos tradicionais afetados, consultas adequadas aos padrões internacionais de direitos humanos”.

O caso das comunidades quilombolas de Alcântara é um caso emblemático e que inaugurou o reconhecimento das comunidades negras rurais quilombolas como sujeitos da Convenção 169 da OIT, reconhecido no alcance da definição de povos tribais na Convenção, incluindo menção à inobservância do DCPLI nos informes do Comitê de Especialistas/ Expertos sobre a aplicação da Convenção n. 169 da OIT no Brasil.39 39 A luta das comunidades quilombolas de Alcântara pelo seu território tradicional se estende desde a década de 1980. Como se não bastasse o longo e permanente histórico de desamparo institucional, em março de 2019, o governo federal firmou Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) com os Estados Unidos da América para o uso comercial da Base Espacial de Alcântara. Cientes dos impactos desse Acordo, as comunidades quilombolas de Alcântara adotaram uma série de diligências para que o seu território fosse titulado e instalado procedimento de CCPLI. As comunidades elaboraram o Texto Base do Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado das Comunidades Quilombolas de Alcântara. Ocorre que, em 26 de março de 2020, em plena pandemia da Covid-19, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, publicou a Resolução nº 11, de 26 de março de 2020, que prevê a remoção de aproximadamente 800 famílias e 30 comunidades em Alcântara. A referida resolução viola o DCPLI, uma vez que alija por completo as comunidades do processo decisório, além de ferir seus direitos territoriais. (Observatório de Protocolos Comunitários, Relatório em Coalizão para RPU/ ONU, 2022)

Em relação aos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais, casos emblemáticos como o caso da UHE Belo Monte que atingiu os povos da Volta Grande do rio Xingu, em Altamira-Pará, como fato consumado causando deslocamento forçado (expulsão) e desterritorialização com a construção da barragem, além do alagamento da área é um caso entre centenas de casos de violações do direito de consulta e consentimento prévio, livre e informado diante de processos de licenciamento ambiental de megaprojetos de infraestrutura e desenvolvimento.

Diversas nulidades nos processos de licenciamento ambiental poderiam ser apontadas, pois CPLI não é substituída por estudos de componente indígena e quilombola. Também não se confunde com audiências públicas no âmbito do licenciamento ambiental, tampouco reuniões individualizadas com determinadas lideranças na tentativa de negociações (cooptação) para suposta compensação ambiental ou reparação, sem considerar um processo amplo consultivo, que respeite os princípios CPLI - seja de boa-fé, culturalmente adequada, respeitando as organizações sociais representativas dos povos e objetive chegar a um acordo ou consentimento das comunidades e povos afetados. A CPLI é procedimento administrativo autônomo e deve ocorrer de modo independente e prévio às etapas do licenciamento ambiental.

Com o objetivo de demonstrar os sistemáticos casos de violações em virtude da omissão do Estado brasileiro, em outubro de 2020, foi realizada audiência temática regional sobre Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado no 177º Período de Sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA). A audiência envolveu representantes de 04 países: Brasil, Colômbia, México e Perú. O pedido da audiência foi fruto de esforços coletivos a nível regional para sistematização dos casos de violação sobre DCPLI na América Latina.40 40 Na mesma semana da audiência, foi lançado pelo Observatório de Protocolos Comunitários o Mapa dos Protocolos Autônomos Comunitários - plataforma virtual onde se disponibiliza o levantamento dos protocolos elaborados e publicizados por povos indígenas, comunidades negras quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais no Brasil e outros países. Para mais, ver: https://observatorio.direitosocioambiental.org/ Em dezembro de 2021, como resultado das reuniões regionais e audiência temática, a CIDH publicou o informe oficial Derecho a la libre determinación de los Pueblos Indígenas y Tribales, destacando a importância dos protocolos de autoconsulta ou protocolos comunitários autônomos de consulta e consentimento (par. 179-180) como práticas e experiências dos povos indígenas e tribais no exercício da livre determinação (pár. 256).

Em março de 2022, baseado no relatório encaminhado para CIDH em 2020, o Observatório de Protocolos Comunitários41 41 Entre as organizações em coalizão com o Observatório de Protocolos Comunitários, destaca-se: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Rede de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (REDE PCTS), Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Rede Cerrado, entre outras, ao todo, 58 organizações da sociedade civil. articulou o trabalho de alcance nacional em termos de monitoramento e sistematização reunindo 82 casos de violações do DCPLI que foram encaminhados em submissão conjunta para o quarto ciclo de monitoramento do Mecanismo de Revisão Periódica Universal (RPU) do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU). Intitulado “Relatório de Coalizão entre Povos Indígenas, Quilombolas, Comunidades Tradicionais e Organizações da Sociedade Civil: Direito à Consulta e ao Consentimento Livre, Prévio e Informado e os Protocolos Autônomos no Brasil”,42 42 Entre os casos que foram descritos no relatório submetido em coalizão para RPU/ ONU (Observatório de Protocolos Comunitários, 2022), estão: caso de Comunidades Quilombolas afetadas pelas obras de duplicação da BR 135; Povos Indígenas e tradicionais do Amazonas: BR-319; Casos de Comunidades Quilombolas afetadas por Linhas de Transmissão; Casos de violações aos territórios tradicionais de povos e comunidades tradicionais em Unidades de Conservação; Casos de Povos e Comunidades Tradicionais atingidos pela Mineração; Casos de Povos e Comunidades Tradicionais atingidos por Monocultivos e Contaminação por Agrotóxicos; Caso dos Povos Kayabi, Munduruku, Apiaká e Comunidades Tradicionais e Ribeirinhas da Região do Rio Teles Pires; “Consultas virtuais” no contexto da pandemia. Em desrespeito às recomendações 229, 231 e 232; casos de expansão agrícola e violação DCPLI na região do Matopiba (MA, TO, PI, BA); entre outras graves violações, como a negação sistemática do Governo federal ao atendimento e assistência à saúde aos indígenas que estão em terras não homologadas, isto é, não reconhecidas formalmente pelo Estado, a exemplo da grave situação vivenciada pelos povos Guarani e Kaiowá, no sul do Mato Grosso do Sul, inclusive sem acesso à água potável. do documento corrobora a sistemática violação do DCPLI, a peremptória omissão (e por vezes comissão) estatal diante cenário, a ineficácia das normas jurídicas ante a realidade fática, assim como o acúmulo de ações judiciais que vêm demandando respeito a elas.

Para além dos megaprojetos, inúmeras violações do DCPLI em medidas legislativas estão sendo acompanhadas. O Projeto de Decreto-Lei 177/2021, cujo objetivo era conferir autorização ao Presidente da República para denunciar a Convenção n. 169 da OIT - o que resultaria no primeiro país a se retirar da ratificação da Convenção 169 - é um claro exemplo de uma ação eivada de inconstitucionalidade e que viola o princípio do não retrocesso em direitos humanos.43 43 O Projeto de Lei (PL) nº 490/2007 aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados estabelece: a) necessidade de os indígenas comprovarem que estavam em suas terras 5 de outubro de 1988 para que elas possam ser demarcadas; b) novas etapas no processo de demarcação, com a finalidade única de torná-lo infindável; c) possibilidade de contatos forçados com indígenas em isolamento, para "intermediar ação estatal de utilidade pública", o que poderia ser realizado inclusive por organizações privadas; d) possibilidade de mitigação do usufruto exclusivo dos indígenas, para que terceiros realizem atividades de garimpagem e agropecuária; e) retomada das terras indígenas reservadas em favor da União, caso ocorra a “alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo, seja verificado não ser a área indígena reservada essencial para o cumprimento da finalidade garantir sua subsistência digna e preservação de sua cultura”. E outro exemplo que viola o DCPLI é o Projeto de Lei n. 191/2020 sobre Mineração em Terras Indígenas, que tem por objetivo estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica e instituir a indenização pela restrição do usufruto de Terras Indígenas.

Diante dos casos de violações ao DCPLI de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, representantes das organizações da sociedade civil formularam recomendações para o monitoramento da aplicação do DCPLI no Brasil. Dentre as recomendações, destaca-se a competência do Estado em implementar de modos significativo, efetivo e adequado, o DCPLI como política de Estado, através dos poderes executivo e legislativo e os três níveis de governo (federal, estadual e municipal), desde o período de planejamento dessas medidas até as fases de execução, monitoramento e encerramento de atos administrativos e legislativos, programas e projetos de infraestrutura e desenvolvimento. E ainda, reconhecer a competência concorrente da União e demais Estados da Federação em relação ao dever de consultar os povos. Esta obrigação em hipótese alguma deverá ser transferida para empresas interessadas no licenciamento de projetos de infraestrutura, extrativismo e de desenvolvimento, sob pena de nulidade do processo de consulta prévia, livre e informada.

É nesse sentido, que se propõe pensar sobre um Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) que vem se caracterizando em matéria socioambiental, destacando-se, sobretudo, uma necessária e eficaz garantia aos direitos coletivos de povos e comunidades tradicionais diante da identificação da recorrente captura do dever estatal e os entraves à implementação do direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado (CPLI) em território nacional.

Conclusões

O Estado brasileiro vem sistematicamente violando o dever e obrigação de realizar os procedimentos de consulta e consentimento livre, prévio e informado. Essa situação é verificada seja na ação ou omissão, seja diante de atos legislativos ou administrativos que possam afetar a vida e os territórios dos povos e comunidades tradicionais, como projetos e empreendimentos que impactam diretamente os modos de fazer, viver e criar desses grupos e suas condições de reprodução física, social, cultural e espiritual.

O presente artigo buscou demonstrar a configuração do estado de coisas inconstitucional (ECI) e inconvencional por se tratar de violações estruturais e sistemáticas de direitos fundamentais dos povos em todo território nacional. Assim fica demonstrado, entre outros elementos, com a análise do relatório de coalizão da sociedade civil submetido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2020 e ao Mecanismo de Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (RPU/ONU), em 2022.

A omissão do Estado em cumprir a obrigação de conduzir os processos de consulta não pode ser justificada para se legitimar a transferência da obrigação de consultar para as empresas. Há um grave equívoco e confusão entre a compreensão do que seja a observância e respeito ao direito de consulta e consentimento prévio, livre e informado pelas empresas e sociedade em geral, incluindo o próprio Estado, com a responsabilidade de consultar e conduzir o processo de consulta prévia. Trata-se esse último de um procedimento administrativo exclusivo que compete ao Estado quando o objeto da consulta resulta em atos administrativos ou legislativos. No caso em comento, concessão e outorga de licencias ambientais.

Considera-se, portanto, que o objeto da consulta diante de processos de licenciamento ambiental é o ato administrativo de concessão da licença ambiental (seja licença prévia, de instalação ou operação), sendo que somente os órgãos encarregados e que possuem atribuição para a tomada de decisão, possuem legitimidade em consultar os povos. O equívoco da transferência direta ou indireta para empresas, representantes da sociedade civil ou até mesmo universidades, como consultorias contratadas independentes para realizar o processo de consulta prévia oculta a má-fé e acarreta a nulidade de todo processo de consulta por desrespeitar o pressuposto básico que se trata de um dever e obrigação estatal.

Tais situações, ainda que com uma roupagem ou discurso de suposta autonomia dos povos no sentido liberal ao proclamar a independência em relação à tutela estatal, pelo contrário, aumenta a vulnerabilidade dos grupos étnicos com o desequilíbrio inerente da relação bilateral contratual. Não obstante, geram consequentes manipulações dos possíveis acordos das partes interessadas no processo de consulta, como também de medidas mitigatórias de impactos e de compensação socioambiental.

Processos de consulta em que há iniciativa direta de empresas ou onde se identifica a transferência da competência do Estado para as empresas privadas com o aval dos próprios agentes públicos, configuram atos ilegais, de improbidade na Administração Pública. E mais, geram violações do direito de consulta por ferir o princípio da boa-fé e a regra basilar do processo de consulta que deve ser conduzido e é dever do Estado. O processo de consulta, nesse caso, deverá ser anulado, seja em âmbito de processo administrativo ou judicial, declarado nulo e as empresas e agentes estatais responsabilizadas(os) pelas violações de direitos étnicos em curso, incluindo a má fé na condução do processo de consulta.

Concluímos que o estado de coisas inconstitucional em matéria socioambiental no qual o Brasil se encontra é retrato do racismo institucional e estrutural em relação ao (não) reconhecimento e respeito aos direitos coletivos dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Povos esses que resistem à opressão histórica colonial e à colonialidade do poder, do ser e do saber na contemporaneidade. Mesmo diante do reconhecimento dos direitos fundamentais e coletivos dos povos na Carta Constitucional de 1988, passados vinte anos da ratificação da Convenção 169 da OIT pelo Brasil e demais compromissos internacionais assumidos, ainda impera o cenário de etnocídio e genocídio em relação aos grupos étnicos.

O DCPLI é um direito fundamental que reafirma e garante os demais direitos territoriais e culturais dos povos. Os diversos protocolos autônomos comunitários de consulta e consentimento dos povos indígenas e tradicionais no Brasil é a manifestação expressa da jusdiversidade com o exercício da livre determinação dos povos e, demonstram, de forma didática, os caminhos para a observância de um processo de consulta legítimo.

A Convenção 169 da OIT é autoaplicável. A omissão do Estado brasileiro, em destaque os poderes executivo e legislativo, em fazer a sua parte e chamar para si a sua responsabilidade é um dever constitucional e internacional. Responsabilidade esta que deve prezar pelo estabelecimento de uma relação igualitária no diálogo intercultural, isto é, não hierarquizada e subalternizada, a fim de respeitar o direito de (não) consentimento e de tomada de decisão dos povos e comunidades tradicionais nos processos de consulta.

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  • 1
    Em István Mészáros (2011, p.38) encontramos a crítica de que qualquer “harmonização” no sistema do capital, só poderá assumir a forma de um equilíbrio estritamente temporário e não a esperada resolução do conflito. "Portanto, não é acidental que na teoria social e política burguesa encontremos a glorificação do conceito de ‘equilíbrio de forças’ como ideal insuperável, quando, de fato, a qualquer momento isto só poderá resultar na imposição/ aceitação da relação vigente de forças, ao mesmo tempo em que busca a sua derrubada, assim que as circunstâncias o permitirem”.
  • 2
    “Chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis. O Racismo Ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto “racial”, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. [...]” (PACHECO, 2008).
  • 3
    “Abya Yala na língua do povo Kuna significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em florescimento” e é sinônimo de América. O povo Kuna é originário da Serra Nevada no norte da Colômbia tendo habitado a região do Golfo de Urabá e das montanhas de Darien e vive atualmente na costa caribenha do Panamá na Comarca de Kuna Yala (San Blas). Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América expressão que, embora usada pela primeira vez em 1507 pelo cosmólogo Martin Wakdseemüller, só se consagra a partir de finais do século XVIII e inícios do século XIX por meio das elites crioulas para se afirmarem em contraponto aos conquistadores europeus no bojo do processo de independência. Muito embora os diferentes povos originários que habitam o continente atribuíssem nomes próprios às regiões que ocupavam - Tawantinsuyu, Anauhuac, Pindorama - a expressão Abya Yala vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do continente objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento” (PORTO-GONÇALVES, s/d.).
  • 4
    A referida convenção foi ratificada pelo Estado brasileiro em 2002, Decreto Legislativo nº 143, em vigência desde 2003, e internalizado no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 5.051, de 19 de Abril de 2004, posteriormente substituído pelo Decreto 10.088 de 05 de novembro de 2019.
  • 5
    A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em 13 de setembro de 2007 e a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas foi aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 14 de junho de 2016.
  • 6
    Convenção n.º 169 da OIT, art. 6º: “1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a ) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; (...) 2. As consultas realizadas em conformidade com o previsto na presente Convenção deverão ser conduzidas de boa-fé e de uma maneira adequadas às circunstâncias, o sentido de que um acordo ou consentimento em torno das medidas propostas possa ser alcançado”. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, art. 19: “Os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem”. Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, art. XXIII: “participação dos povos indígenas e contribuições dos sistemas legais e de organização indígenas (...) 3. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados por meio de suas instituições representativas antes de adotar e aplicar medidas legislativas ou administrativas que os afetem, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado”.
  • 7
    A Convenção n.º 169/89, prevê em seu art. 6, “a”, o dever dos governos em “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente”. Quanto aos atos judiciais, a Resolução n.º 287/2019, do Conselho Nacional de Justiça, em seu art. 7, dispõe que “a responsabilização de pessoas indígenas deverá considerar os mecanismos próprios da comunidade indígena a que pertença a pessoa acusada, mediante consulta prévia”. Ainda vincula a consulta prévia no cumprimento da prestação de serviços à comunidade (art. 9, inciso III), à aplicação de regime especial de semiliberdade para condenação a penas de reclusão e de detenção (art. 10, caput) ou mesmo de determinação de prisão domiciliar, quando domicílio localize-se em território ou circunscrição geográfica de comunidade indígena (art. 11).
  • 8
    É o caso da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que “esclareceu que a consulta aos povos indígenas, prevista na Convenção 169 da OIT, seria uma das fases do licenciamento ambiental da Ferrogrão”. Para mais, ver: https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/mpf-reafirma-direito-a-consulta-previa-livre-e-informada-de-povos-indigenas-e-comunidades-tradicionais-atingidos-pela-ferrograo
  • 9
    O estudo do componente indígena integra o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), disciplinado pela Portaria Interministerial n.º 60, de 24 de março de 2015, que estabelece procedimentos administrativos que disciplinam a atuação dos órgãos e entidades da administração pública federal em processos de licenciamento ambiental de competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis-IBAMA.
  • 10
    Transcreve parte da decisão judicial sobre o caso: “[...] XI - A elaboração do ECI não afasta a necessidade de consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas, na forma da Convenção n. 169 da OIT, já que são institutos que não se confundem entre si, conforme precedente de Relatoria do eminente Desembargador Souza Prudente, que afastou a alegação de litispendência entre ações que possuíam as mesmas partes, porém causas de pedir distintas (AC 000589181.2012.4.01.3600/MT, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDENTE, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.1111 de 29/10/2013). [...] XII - Reforma parcial da sentença, apenas para afastar a anulação da licença prévia do empreendimento Projeto Volta Grande de Mineração, restando a emissão da licença de instalação condicionada à elaboração do ECI a partir de dados primários, na forma exigida pela FUNAI, bem como à consulta livre e informada dos indígenas afetados, em conformidade com o protocolo de consulta respectivo, se houver, em atenção ao que dispõe a Convenção n. 169 da OIT. Ressalte-se que a manutenção da validade da licença prévia já emitida não impede sua posterior alteração, a depender das conclusões do ECI e da consulta prévia ora exigidos. (ACORDÃO 00025057020134013903, DESEMBARGADOR FEDERAL JIRAIR ARAM MEGUERIAN, TRF1 SEXTA TURMA, e-DJF1 DATA:19/12/2017).”
  • 11
    Sobre o tema: “[...]. Belo Sun irá impactar os povos indígenas Juruna (Yudjá), Arara e Xikrin das Terras Indígenas Paquiçamba, Arara da Volta Grande e Trincheira Bacajá, além de centenas de famílias ribeirinhas e indígenas não aldeados. Diante da ausência de CCPLI e de avaliação de impactos sobre os indígenas, o Ministério Público Federal ajuizou ação judicial. O povo Juruna elaborou seu protocolo de consulta, que foi apresentado nesta ação. Em dezembro de 2017, o Tribunal Regional Federal - 1ª Região determinou, em decisão inédita, que a consulta dos indígenas afetados deve ocorrer em conformidade com os protocolos de consulta dos indígenas. A decisão representa um marco ao reconhecer que devem ser observadas as formas de decidir de cada povo afetado pelo empreendimento, explicitadas no protocolo, referenciando-o como instrumento balizador da efetivação do DCCPLI. (Observatório de Protocolos et al, 2022, páragrafo 42).
  • 12
    BRASIL. Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da 1a Região. Apelação Cível n. 0002505-70.2013.4.01.3903/ PA. Relator Desembargador Federal Jirair Aram Meguerian. Decisão de 06 dez. 2017.
  • 13
    Em atendimento ao Ofício no. 1824/2020/PRM/ATM/GAB1, expedido no Inquérito Civil no. 1.23.003.000197/2012-49, da Procuradoria da República do Município de Altamira. Em tal parecer, os registros do processo de consulta foram confrontados com os parâmetros fixados no acórdão proferido na Ação Civil Pública no. 0002505-70.2013.4.01.3903 - em trâmite no Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1) -, no Protocolo de Consulta Juruna (Yudjá) da Terra Indígena Paquiçamba da Volta Grande do Rio Xingu, bem como na Convenção no. 169 da Organização Internacional do Trabalho (Convenção no. 169), na jurisprudência do TRF1 e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
  • 14
    Sobre os sujeitos da consulta prévia: povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, recomenda-se leitura de SILVA, 2017; SILVA, 2019 (in SOUZA FILHO et al, 2019); ROJAS GARZÓN et al, 2016; OLIVEIRA et al, 2022.
  • 15
    Destaca-se aqui duas delas: a Rede Juruena Vivo e a Operação Amazônia Nativa (OPAN). Para mais informações ver https://www.redejuruenavivo.com/ e https://amazonianativa.org.br/
  • 16
    Termo de Embargo/Interdição n.º 111133, de 25 de abril de 2018, SEMA/MT.
  • 17
    Trata-se da Ação Civil Pública autos n.º 1006195-53.2018.4.01.3600, em trâmite na 2ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária de Mato Grosso, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
  • 18
    “A TI Tereza Cristina tem uma área territorial de 35 mil hectares, dos quais quase 10 mil estão sob discussão em processo demarcatório paralisado desde o final da década de 1990. Na área encontram-se sítios arqueológicos desses povos, e isso também torna imprescindível a participação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no processo de licenciamento ambiental, o que não estava ocorrendo, em desrespeito à Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015” (VIEIRA et al., 2022, p.17).
  • 19
    Conforme decisão proferida pelo Juiz Federal Substituto no exercício da titularidade da 2ª Vara/SJMT, Hiram Armênio Xavier Pereira, assinada em 25 de novembro de 2020, nos autos n.º 1006195-53.2018.4.01.3600, em trâmite na 2ª Vara Federal Cível da SJ/MT. Disponível em: https://pje1g.trf1.jus.br/consultapublica/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.seam?ca=6e6202f99a565fa258af39fc74f6ab362351ed83736f1ca7b17b3fd452b2ae4dc7c33ceedc5813a8f86c64e37ce24b962c3fd83e1fc2fafd&idProcessoDoc=307036370
  • 20
    Fonte: Diário Oficial da União, Seção 1, nº 169, de 05.09.2022.
  • 21
    No mesmo cenário insere-se o caso de uma outra PCH, a PCH Sacre 14, que além de muitas similitudes, tem algumas características peculiares. A PCH Sacre 14 compartilha o mesmo empreendedor da PCH Mantovilis, a empresa Pan Partners Administração Patrimonial LTDA e, também, encontra-se judicializada pelo MPF decorrente da constatação de não realização CLPI a povos indígenas e, como sempre, de irregularidades constatadas no licenciamento ambiental. São diversos os territórios e os povos indígenas que serão afetados e tiveram o DCLPI violado, cita-se: TI Menkü (povo Myky), TI Irantxe (povo Irantxe-Manoki), TI Tirecatinga (território multiétnico, dos povos Rikbaktsa, Nambikwara, Manoki, Paresi e Terena) e TI Utiariti (povo Paresi).
  • 22
    “Em 2019, o povo Irantxe-Manoki finalizou seu protocolo, considerando esse empreendimento como uma das ameaças a seu território e a seus direitos” (VIEIRA, 2022, p.12). Para acesso ao Protocolo de Consulta do Povo Manoki, ver: https://amazonianativa.org.br/wp-content/uploads/2020/02/OPAN_Protocolo-consulta-Manoki_web-2.pdf.
  • 23
    Consta na manifestação do MPF: “[...] tendo sido iniciado o processo de consulta, não há como ele prosseguir enquanto o procedimento de licenciamento estiver paralisado. Com efeito, o procedimento deve prosseguir e, junto dele, o processo de consulta. Com isso, é forçoso concluir que a decisão antecipatória alcançou seu fim com o início do processo de consulta, de modo que, agora, poderia ser autorizado o prosseguimento do licenciamento, compelindo-se a requerida a prosseguir, também, com o processo de consulta”.
  • 24
    Decisão proferida em 02 de julho de 2020, pelo titular da subseção judiciária de Juína, Juiz Federal Frederico Pereira Martins.
  • 25
    Em referência, cita-se “no caso da PCH Sacre 14, com sentença do Judiciário mato-grossense, como também em documento do Governo de Mato Grosso, através da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, o Estado delega aos empreendedores seu dever de realizar a consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas”. O documento mencionado emitido pela SEMA/MT é “a Ordem de Serviço n.º 07/2019, da Secretária Adjunta de Licenciamento Ambiental e Recursos Hídricos, da Secretaria de Estado de Meio Ambiente, do Governo do Estado de Mato Grosso, datado de 08 de julho de 2019” (VIEIRA et al., 2022, p.12, 21).
  • 26
    Como explicado anteriormente: “viabilizar e conduzir os processos de consulta não impõe ao governo uma hierarquia superior aos povos indígenas, já historicamente invisibilizados e inferiorizados. Na perspectiva do diálogo intercultural, deve ser garantido que os povos sejam protagonistas e conduzam internamente o processo, conforme suas organizações próprias, direito próprio e tradições. Ressalta-se que trata-se de dever do Estado, pois é o Estado que adota medidas legislativas ou atos administrativos (como concessões) e não as empresas. Portanto, esse dever não pode ser substituído por supostas consultas realizadas pelas empresas interessadas, assim como não se reduz a meras assinaturas de termos de anuência por lideranças individualizadas, sem que haja um processo de consulta prévia, que seja público, amplo e coletivo, respeitando as fases ou etapas necessárias do processo consultivo, como a pré-consulta - na qual se estabelece e se constrói o plano de consulta e a metodologia que será empregada juntamente com as comunidades-, etapa informativa, etapa de socialização, etapa consultiva e etapa deliberativa. É recorrente o fato de que empresas tentem atropelar o dever do Estado e diretamente tentem negociar ou cooptar lideranças. São inúmeros casos denunciados por povos e comunidades, requerendo a anulação de atas de consulta prévia ou termos de anuência assinados individualmente, sem que representem a legitimidade de um processo consultivo de boa-fé” (SILVA, 2012, p.202).
  • 27
    NOTA TÉCNICA Nº 1/2021/6ªCCR/MPF, Referente ao “Direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas e comunidades tradicionais atingidos pelo projeto de Estrada de Ferro 170 - Ferrogrão”, maio de 2021. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/6CCR_NotaTecnica_Ferrograo.pdf
  • 28
    Corte IDH. Caso del Pueblo Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador. Fondo y Reparaciones. Sentencia de 27 de junio de 2012, párr. 187. Recomenda-se também: Corte IDH. Caso del Pueblo Saramaka vs. Surinam. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones, y Costas. Sentencia de 28 de noviembre de 2007, párrs. 102, 129 y 131; e Informe del ex Relator Especial sobre la situación de los derechos humanos y las libertades fundamentales de los indígenas, James Anaya, A/HRC/12/34, de 15 de julio de 2009, párrs. 53 a 55.
  • 29
    CORTE IDH, Kichwa de Sarayaku vs. Equador, 2012. par. 186-187.
  • 30
    Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/files/original1519352022011161dda007f35ef.pdf> .
  • 31
    Consta no relatório (RPU/ONU): O Povo Mura, que habita os rios Madeira, Amazonas e Purus, foi ameaçado pelo empreendimento de exploração de silvinita no município de Autazes, no Amazonas. Desde o ano de 2009, a empresa Potássio do Brasil Ltda realizava estudos na região e, no ano de 2015, recebeu Licença Prévia do Estado do Amazonas (IPAAM) sem ter realizado a CCPLI, obtendo licença pela FUNAI sem consentimento do povo Mura, que não foi consultado e informado. Em 2016, o MPF ajuizou ação civil pública para anulação da licença prévia e a paralisação de qualquer atividade sem prévia consulta ao Povo Mura, que construiu seu Protocolo de Consulta e será consultado, embora as pressões e ameaças exercidas por diversos atores sobre esses indígenas comprometam gravemente o caráter livre e informado do processo de consulta e desrespeitem as determinações do grupo que constam em seu Protocolo de Consulta. [...]. O governo do Estado de Mato Grosso, por sua Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA-MT), vem transferindo aos empreendedores o dever do Estado de realizar os processos de consulta prévia, por meio de um precário instrumento administrativo (“Ordem de Serviço n.º 07/2019”). Esse posicionamento vem sendo respaldado pelo Judiciário mato-grossense, que já em duas decisões em ações civis públicas (ACP) reforça essa mesma violação ao que rege a Convenção 169 da OIT, na qual o juízo reconheceu o direito de consulta durante todas as fases do licenciamento, porém condenou, equivocadamente, o empreendedor na obrigação de efetivar a realização da consulta livre, prévia e informada às populações indígenas. (Observatório de Protocolos et al, 2022, pár. 43-44).
  • 32
    “i) a vulneração massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afeta um número significativo de pessoas; ii) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações par garantir os direitos; iii) a adoção de práticas inconstitucionais, como a incorporação da ação de tutela como parte do procedimento exigido para a garantia do direito violado; iv) a não expedição de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a violação dos direitos; v) a existência de um problema social cuja solução requer a intervenção de várias entidades e a adoção de um conjunto completo e coordenado de ações, além de acréscimo de recursos que demandam um esforço orçamentário importante; vi) caso todas as pessoas afetadas pelo mesmo problema buscassem a ação de tutela para obter a proteção de seus direitos, se produziria um maior congestionamento judicial. COLOMBIA, Corte Constitucional. ST-025/2004. Disponível em: < https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2004/t-025-04.htm> Acesso em 10 nov 2022. (Tradução nossa)
  • 33
    A citação é extraída da íntegra do voto da ministra Cármen Lúcia na ADPF 760. STF, ADPF 760/ DF, Voto Relatora Min. Cármen Lúcia. p.142. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/VOTOADPF760.pdf . Acesso em: 10/11/2022.
  • 34
    Para alguns autores, o ECI trataria de uma “nova modalidade de inconstitucionalidade, desenvolvida através da técnica jurisdicional e de aplicação decisória, destinada a enfrentar quadros sociais sistemáticos de violações de direitos humanos, resultando da omissão orgânica dos poderes políticos, exigindo-se, para tanto, a atuação direta das Cortes Constitucionais quanto ao destacamento deste panorama e a fiscalização das ações necessárias à sua erradicação, num verdadeiro ativismo judicial, fazendo prevalecer a exegese do conteúdo objeto da norma constitucional” (GUELFI, 2021, p.24).
  • 35
    A ADPF n.º 708 foi ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e pela Rede Sustentabilidade. Sobre a referência ao ECI, a mesma foi realizada em uma decisão em Embargos de Declaração na ADPF n.º 708 - DJE nº 231, divulgado em 17/09/2020.
  • 36
    Voto do Min. Luís Roberto Barroso (relator), proferida em 04 de julho de 2022 no âmbito da ADPF n.º 708. Data da Publicação do Acórdão DJE 28/09/2022, Ata n.º 169/2022, DJE nº 194, divulgado em 27/09/2022.
  • 37
    A ADPF n.º 760 foi proposta pelos partidos políticos Partido Socialista Brasileiro (PSB), Rede Sustentabilidade (REDE), Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido Verde, Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Partido Comunista do Brasil (PCdoB), impugnando práticas na atual gestão ambiental pela União.
  • 38
    Como destacou Garzón et al. (2016, p.7, 16), “Percebe-se que, frequentemente, o direito à consulta é encarado pelo governo como mera formalidade. Raras são as decisões administrativas reconsideradas em consequência de processos de consulta ou de objeção por parte dos povos afetados. Quanto às medidas legislativas, o quadro é ainda mais grave, pois o Congresso Nacional hesita em admitir a existência e a obrigatoriedade da CCPLI”. E menciona: “até dezembro de 2015, dos mais de 3 mil empreendimentos com processos de licenciamento ambiental que incluíam a participação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e da Fundação Palmares, nenhum havia realizado, junto aos povos tradicionais afetados, consultas adequadas aos padrões internacionais de direitos humanos”.
  • 39
    A luta das comunidades quilombolas de Alcântara pelo seu território tradicional se estende desde a década de 1980. Como se não bastasse o longo e permanente histórico de desamparo institucional, em março de 2019, o governo federal firmou Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) com os Estados Unidos da América para o uso comercial da Base Espacial de Alcântara. Cientes dos impactos desse Acordo, as comunidades quilombolas de Alcântara adotaram uma série de diligências para que o seu território fosse titulado e instalado procedimento de CCPLI. As comunidades elaboraram o Texto Base do Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado das Comunidades Quilombolas de Alcântara. Ocorre que, em 26 de março de 2020, em plena pandemia da Covid-19, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, publicou a Resolução nº 11, de 26 de março de 2020, que prevê a remoção de aproximadamente 800 famílias e 30 comunidades em Alcântara. A referida resolução viola o DCPLI, uma vez que alija por completo as comunidades do processo decisório, além de ferir seus direitos territoriais. (Observatório de Protocolos Comunitários, Relatório em Coalizão para RPU/ ONU, 2022)
  • 40
    Na mesma semana da audiência, foi lançado pelo Observatório de Protocolos Comunitários o Mapa dos Protocolos Autônomos Comunitários - plataforma virtual onde se disponibiliza o levantamento dos protocolos elaborados e publicizados por povos indígenas, comunidades negras quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais no Brasil e outros países. Para mais, ver: https://observatorio.direitosocioambiental.org/
  • 41
    Entre as organizações em coalizão com o Observatório de Protocolos Comunitários, destaca-se: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Rede de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil (REDE PCTS), Rede de Cooperação Amazônica (RCA), Rede Cerrado, entre outras, ao todo, 58 organizações da sociedade civil.
  • 42
    Entre os casos que foram descritos no relatório submetido em coalizão para RPU/ ONU (Observatório de Protocolos Comunitários, 2022), estão: caso de Comunidades Quilombolas afetadas pelas obras de duplicação da BR 135; Povos Indígenas e tradicionais do Amazonas: BR-319; Casos de Comunidades Quilombolas afetadas por Linhas de Transmissão; Casos de violações aos territórios tradicionais de povos e comunidades tradicionais em Unidades de Conservação; Casos de Povos e Comunidades Tradicionais atingidos pela Mineração; Casos de Povos e Comunidades Tradicionais atingidos por Monocultivos e Contaminação por Agrotóxicos; Caso dos Povos Kayabi, Munduruku, Apiaká e Comunidades Tradicionais e Ribeirinhas da Região do Rio Teles Pires; “Consultas virtuais” no contexto da pandemia. Em desrespeito às recomendações 229, 231 e 232; casos de expansão agrícola e violação DCPLI na região do Matopiba (MA, TO, PI, BA); entre outras graves violações, como a negação sistemática do Governo federal ao atendimento e assistência à saúde aos indígenas que estão em terras não homologadas, isto é, não reconhecidas formalmente pelo Estado, a exemplo da grave situação vivenciada pelos povos Guarani e Kaiowá, no sul do Mato Grosso do Sul, inclusive sem acesso à água potável.
  • 43
    O Projeto de Lei (PL) nº 490/2007 aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados estabelece: a) necessidade de os indígenas comprovarem que estavam em suas terras 5 de outubro de 1988 para que elas possam ser demarcadas; b) novas etapas no processo de demarcação, com a finalidade única de torná-lo infindável; c) possibilidade de contatos forçados com indígenas em isolamento, para "intermediar ação estatal de utilidade pública", o que poderia ser realizado inclusive por organizações privadas; d) possibilidade de mitigação do usufruto exclusivo dos indígenas, para que terceiros realizem atividades de garimpagem e agropecuária; e) retomada das terras indígenas reservadas em favor da União, caso ocorra a “alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo, seja verificado não ser a área indígena reservada essencial para o cumprimento da finalidade garantir sua subsistência digna e preservação de sua cultura”. E outro exemplo que viola o DCPLI é o Projeto de Lei n. 191/2020 sobre Mineração em Terras Indígenas, que tem por objetivo estabelecer as condições específicas para a realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica e instituir a indenização pela restrição do usufruto de Terras Indígenas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    02 Fev 2023
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