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Cidades conquistadas: a dogmática ascendente da desapropriação indireta em ocupações urbanas

Resumo

Partindo das preocupações disciplinares sobre a obsolescência e a perda de autonomia normativa do Direito Civil, este artigo tem como objetivo estabelecer, a partir de um caso concreto sobre a desapropriação indireta de um terreno urbano ocupado, o conceito de “dogmática ascendente” como alternativa aos procedimentos teóricos que buscam apenas na constitucionalização ou na publicização do Direito Privado os mecanismos de sua atualização. Demonstra-se então a potência que estaria implicada numa retomada, para o Direito Civil, de uma de suas tarefas mais tradicionais: a codificação e a recodificação das relações cotidianas.

Palavras-chave:
Direito Civil; Ocupações Urbanas; Desapropriação Indireta; Codificação; Dogmática jurídica

Abstract

Starting from the disciplinary concerns about the obsolescence and loss of normative autonomy of Civil Law, this article aims to establish, from a concrete case about the indirect expropriation of an occupied urban land, the concept of "ascending dogmatics" as an alternative to theoretical procedures that seek only in the constitutionalization or publicization of Private Law the mechanisms of its updating. It then demonstrates the power that would be implied in a recovery, for Civil Law, of one of its most traditional tasks: the encoding and recoding of everyday relationships.

Keywords:
Civil Law; Urban occupations; Indirect expropriation; Codification; legal dogmatics

1. O Direito Civil na cidade, ou da obsolescência à ascendência

Quer se veja pelo prisma do tempo ou do espaço sociais, a “cidade”, enquanto tal, é um desafio posto à dogmática do Direito Civil.

Mas não por isso a “cidade” deixa de crescer. E o mesmo processo de urbanização que a nutre desterritorializa os modos de vida antes consolidados (DELEUZE; GUATARRI, 2004DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004., p. 143 e ss.)1 1 De acordo com Guatarri e Rolnik (1996, p. 323): “O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios ‘originais’ se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar cada vez mais rapidamente as estratificações materiais e mentais”. O conceito pode ser entendido como a relação de pertinência entre os sujeitos e uma região social à qual corresponde um código que lhe é próprio (DELEUZE; PARNET, Claire, 1998, p. 104 e ss.). , referidos indiscriminada e acriticamente por “tradicionais” - fala-se genericamente da “propriedade tradicional”, do “comércio tradicional”, da “família tradicional” e de tantos outros, como se a distribuição e o sentido destes conceitos tivesse sido sempre uniforme -, para reterritorializar os sujeitos, suas relações, suas práticas e seus sentidos em estratos diversos, consoante uma complexificação, a toda evidência sempre crescente, da divisão social do trabalho, a qual faz se confrontarem no espaço urbano - palco dos encontros imprevisíveis - uma miríade de desigualdades e diferenças.

Que haja fogo onde há fumaça parece aceitável, e que surjam preocupações quanto à compatibilidade por assim dizer superestrutural, em face de indícios de mudanças infraestruturais, parece prudente. Já não o são, entretanto, os fetiches da terra arrasada - reações analíticas e institucionais que, apressadas pelo tempo da moeda e pelo ritmo do tráfico, e talvez incentivadas por sinceros desejos de renovação, veem em tudo (ou, pior, em qualquer coisa) as disrupções obsolescentes e as revoluções copernicanas a converter, num átimo, esquemas duráveis em meras curiosidades de museu.

Não interessa tanto a verossimilhança dos diagnósticos, tão macroscópicos e abrangentes como são - mas sim saber da adequação das terapias. Porque estas têm partido de descrições apenas parciais sobre as relações que figuram nas ruas e nos mercados. Da “socialidade abstrata” travada pelo indivíduo blasé - aquele que, num estoicismo forçado, isola a si mesmo para preservar o próprio espírito, fundando “não-lugares” urbanos (AUGÉ, 2005AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Lisboa: Editora 90 Graus, 2005., p. 65 e ss.) -, até a “consumeirização da vida” (BAUMAN, 2008BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008., p. 8 e ss.) enfrentada pelo homo oeconomicus - submetido como ele se encontra à fragilidade e à fugacidade de todas as coisas -, deixa-se de ver qualquer continuidade, adaptação, re(produção) ou resistência (melhor: re-existência) nas mudanças, assim como as “socialidades alargadas” do “fazer a cidade” (AGIER, 2015AGIER, Michel. Encontros etnográficos: interação, contexto, comparação. São Paulo: Editora UNESP, 2015., p. 19 e ss.). E, o que é mais grave, ignora-se, em nome da suposta massificação e uniformização do todo abstrato, a diversidade concreta das partes que está no fundamento da experiência urbana. Daí, a tentativa institucional de responder à imprevisibilidade, à incerteza e, quiçá, à insegurança, para além do risco (BAUMAN, 2005), destes (toda vida) novos fluxos e eventos fazer com que o Direito, enquanto instrumento social, reduza a si mesmo, no deslocar-se teleológico da ética (que lhe é própria2 2 Neste sentido, avalia Gustav Radbruch (1997, p. 124-125) que ao lado da “justiça”, também o direito perseguiria o “bem”, valor ético último. Nas suas palavras: “Note-se que, quando formulamos o problema do fim do direito, não nos referimos aos fins empíricos que aqui ou além podem ter provocado o aparecimento deste ou daquele direito positivo, mas sim à meta-empírica de fim, à luz da qual (sub specie ӕterni) o direito terá de ser apreciado. A resposta a esta pergunta, porém, só poderá ser dada depois de sabermos qual dos valores, ao lado do da justiça - daqueles a que deve atribuir-se, assim como a esta, uma validade absoluta - o direito é chamado a servir. Podemos limitar-nos a apontar aqui, mais uma vez, para o tradicional tríptico de todos os valores últimos que já conhecemos - o dos valores éticos, lógicos e estéticos, do bem, da verdade e do belo - pois que imediatamente se reconhecerá que o direito só pode ser chamado a servir um destes valores e, nomeadamente, o valor ético do Bem”. ) rumo às meras disciplina e administração de conflitos3 3 Esta é uma das principais teses de Foucault sobre o Direito moderno, em “Vigiar e Punir” (2014). , a um dos mecanismos do Poder Administrativo e dos sistemas que “colonizam o mundo da vida” (HABERMAS, 1997HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997., p. 57-119).

Num pano de fundo como este, e como resposta a esta problemática, não espanta que se tenham evidenciado e normalizado tentativas, muitas vezes honestas, conquanto salvacionistas, de capturar a realidade (DELEUZE; GUATARRI, 1997DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v. 5. São Paulo: Editora 34, 1997., p. 97 e ss.) com a técnica do Direito Civil e com categorias suas já há muito consagradas (como as de “pessoa”, “domínio”, “negócio jurídico”, “contrato”, “família”, “responsabilidade” etc.), num movimento descendente, isto é, “de cima para baixo”, homólogo ao da intentona do Poder Administrativo, subsumindo o mundo social a modelos que tantas vezes não dão mais conta do seu atual grau de diversidade, e muito menos dos tipos de conflito gerados por essa diversidade - suscitando-se, desde então, justos questionamentos a respeito da legitimidade dessa regulação: a que tipo de “pessoa” o Direito Civil se refere?; qual é a forma de vida que ele pressupõe?; quais são as relações econômicas e sociais que ele escolhe tutelar, e por quê?; quem, afinal, está excluído dele?

O criticismo daí advindo tem sido, de maneira um tanto errática, ora desenvolvido e ora enfrentado por meio da “politização” do Direito Civil. Por “politização”, todavia, não se quer geralmente sugerir que, antes, a disciplina estava acima, aquém ou além da política - porque se tratou, desde sempre, dos direitos dos cidadãos e das fronteiras entre as esferas jurídicas deles em face do poder do Estado. Tampouco se quer insinuar que o Direito Civil até então se prestava à tutela das esferas privadas a partir do interior destas - já que ele, além sempre ter servido de substrato às atividades econômicas e sociais, também parece ter sempre se desenvolvido nas superfícies de contato entre os valores da polis e os valores domésticos (podendo-se dizer que a própria matéria não é senão um efeito de superfície nesta interface). Por fim, e por óbvio, não se pretende indicar, igualmente, qualquer caráter “partidário” para o Direito Civil atual.

Ao invés disso tudo, a referida “politização” significa, em primeiro lugar, simplesmente a elicitação do sentido propriamente político das normas jurídicas e dos efeitos que elas suscitam, através da descrição de seu papel funcional na (re)produção de determinados padrões prescritos para a comunidade política; e, em segundo lugar, o condicionamento do exercício dos direitos (em sentido subjetivo) ao cumprimento dessas funcionalidades. Fala-se exaustiva e repetidamente assim da “ordem pública”, da “função social” ou da “função econômico-social” da propriedade, do contrato e da empresa, da vedação ao “abuso” das posições jurídicas ativas, da ilicitude de comportamentos “antissociais” ou “disfuncionais” no exercício de direitos (FERNANDES JR., 2016, 2018, 2019a, 2019b; FERNANDES JR.; LIMA, 2021) etc. E até aí se avança virtuosamente. Mas essa solução, de novo, tem sido encarada pela literatura hegemônica a partir de uma perspectiva hierárquico-subordinativa, “de cima para baixo” ou “dos sistemas para o mundo da vida”. E, dessa maneira, talvez porque o expediente seja mais simples e econômico, o Direito Civil, como uma seara do Direito que atua sobre a vida cotidiana do cidadão comum, se vê “colonizado” por outras disciplinas, sem que nem mesmo os próprios civilistas (recte: uma boa parte deles) percebam ou se importem com o tamanho da traição que o expediente conflagra. Neste sentido, muito se tem dito sobre a “constitucionalização”4 4 Para a melhor exposição na literatura dos modelos de constitucionalização, veja-se: AFONSO DA SILVA, 2015. ou sobre a “publicização”5 5 Sobre isto e com relação à propriedade, especificamente, veja-se a posição exemplar de Borges (1998): “Com o advento da Constituição de 1988 o direito de propriedade deixa de ter sua regulamentação exclusivamente privatista, baseada no Código Civil, e passa a ser um direito privado de interesse público, sendo as regras para seu exercício determinadas pelo Direito Público e pelo Direito Privado. Este processo de publicização do direito de propriedade é fundamental para a implementação da legislação referente à proteção do meio ambiente, que impõe limites ao exercício daquele direito”. do Direito Privado, ou ainda sobre certo “Direito Civil-Constitucional”6 6 Citem-se como exemplos: LOTUFO, 2002; MORAES TEPEDINO, 1993; PERLINGIERI, 2002; TEPEDINO, 1999. Para uma crítica à dogmática da propriedade proposta através dos pressupostos do “Direito Civil-Constitucional”, veja-se, por todos: RODRIGUEZ JÚNIOR, 2012. , cujo inocente significado superficial - o de que o Direito Civil, como qualquer outro conjunto regulatório que se pretenda “jurídico” dentro de uma comunidade política, deve buscar fundamento de validade na Constituição dessa comunidade, enquanto norma cuja posição é a mais alta na pirâmide normativa - não raro esconde o apanágio oportunista de uma “dogmática da ausência”, consoante a qual o Direito Civil, para fazer sentido na contemporaneidade - ou melhor, na papagaiada “pós-modernidade” -, precisaria ser “completado” ou “presentificado” por outras disciplinas, capazes de “sobremodernizá-lo”.

Não é, evidentemente, o caso de censurar essas análises, desmerecer o brilhantismo de seus autores, uniformizar seus argumentos, ignorar a sua utilidade hermenêutica, ou de questionar sua aptidão para convencer outros aplicadores e estudiosos do Direito. E, se os problemas com a exclusividade desta posição fossem apenas o do orgulho autonomista da disciplina, o do apreço pela sua ortodoxia (FERNANDES JR., 2022aFERNANDES JR., João Gilberto Belvel. Configurações e transformações do ensino jurídico em cursos de elite no Estado de São Paulo, de 2007 a 2018. Plural: Revista de Ciências Sociais, v. 29, pp. 121-141, 2022a.), ou mesmo o das colocações profissionais daqueles que se especializam nela, poderíamos julgá-los inócuos ou transitórios. Mas o caso é de perguntar: e o cidadão? Qual é o espaço relegado a ele neste esquema? Pois, se o Direito Privado, em geral, e o Direito Civil, em especial, são aqueles cuja função, na divisão social do trabalho jurígeno, é a de prover para pessoa comum mecanismos para expressão de sua autonomia, então galgar toda vez a pirâmide normativa, deixar sempre o olhar preso no seu cume, e nunca espiar, e muito menos levar a sério, o que se produz na sua base, não seria negar-lhe a agência jurídica, a jurisgenia, e mesmo a tão proclamada dignidade?

O paradoxo a que se chega partindo de pressupostos tão abrangentes parece ser este: o mecanismo “pós-moderno” de presentificação do Direito Civil, ao menos virtual e tendencialmente, torna ultrapassada, mera “sobrevivência”, a própria autonomia privada sobre a qual disciplina se erigiu, e da qual depende.

Mas será que esta sentença não poderia se inverter, e esta profecia não poderia se revelar autorrealizável apenas pela ação dos seus crédulos, se virássemos o problema de ponta-cabeça e levássemos a sério o que se faz na base da pirâmide - i.e., nas ruas e nas praças -, onde o Direito é efetivamente vivido como relação cotidiana? Será que no “mundo da vida” encontraríamos a autonomia, ou melhor, a jurisgenia da socialidade, como mera peça de museu - ou, pelo contrário, acharíamos motivos para reexaminar o Direito Civil sob outro prisma, buscando de novo nele o seu potencial transformador?

A hipótese geral que se pretende delinear aqui é a de que é à inamovibilidade da ideia de Código, a um só tempo estática e estatizante, e tão entrelaçada ao projeto (jurídico) da modernidade7 7 Cf. BOURDIEU, 1986; SIEBENEICHLER ANDRADE, 1997; SAVIGNY, 1946. e ao desenvolvimento do Direito Civil nos últimos séculos, que a “cidade” resiste: os habitus (BOURDIEU, 2007BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007-b., p. 337 e ss.), os modos de ser, de sentir, de perceber, de agir e de interagir no ambiente urbano não encontram, e não podem encontrar, representatividade em fórmulas estanques, pré-definidas, pressupostas e definitivizadas - e, é claro, muito menos naquelas que são acusadas, a ouvidos mais ou menos moucos, de serem datadas, parciais e/ou excludentes. Dito de outra maneira, não é contra o próprio Direito Civil que se insurge a “cidade” - ela, pelo contrário, parece requisitá-lo, como autonomia ou jurisgenia da socialidade -, mas à forma contingente que lhe emprestou um determinado projeto dogmático, filosófico, e, sobretudo, político, que, agora, parece carecer de revisão, ou mesmo de reversão.

Valendo tanto, ex ante, quanto sua aptidão para ser confirmada ou infirmada, qualquer hipótese deve se dirigir ao mundo em busca do que lhe falta por ocasião de sua elaboração. E, frente à diversidade do mundo - eu ia dizendo “mundos”, no plural -, é de se imaginar que uma hipótese interpretativa para relações (entre pessoas humanas e entre estas e outros seres), se não merecer o descarte por inadequação, encontrará, em cada caso no qual se tentar prová-la, um lastro distinto de realidade, uma manifestação individual e concreta daquilo que ela só é em geral e abstrato.

Em outro lugar (FERNANDES JR., 2021FERNANDES JR., João Gilberto Belvel; LIMA, Bárbara Ferreira. Da presunção de paternidade à multiparentalidade biológica: o parentesco como sanção processual. Revista de Direito Privado, v. 107, pp. 225-238, 2021.) confrontei essa mesma hipótese com relações estabelecidas pelo regulamento socioespacial de determinados bairros, via de regra habitados por camadas sociais médias-altas e altas, entre os seus habitantes, estes habitantes e o espaço físico que habitavam, e entre este lugar e a “cidade” como um todo. O objeto daquela investigação, mais precisamente, eram os conflitos eficaciais entre, de um lado, as restrições urbanísticas convencionais de loteamentos privados, as quais, no passado, haviam sido declaradas em negócio jurídico unilateral e receptício de plano de loteamento, por um loteador, com consentimento dos poderes municipais; e, de outro lado, leis urbanísticas supervenientes que, expressa ou tacitamente, tinham o condão de derrogar as restrições convencionais para prestar tutela a outros interesses - às vezes gerais, às vezes do mercado imobiliário (FERNANDES JR., 2022b). Os “bairros-jardim” da cidade de São Paulo foram escolhidos, então, como exemplo privilegiado da pesquisa e, a par dos casos concretos em que se manifestaram conflitos urbanísticos nos quais eles e loteamentos de outras tipologias urbanísticas por todo o Estado figuraram, foram analisados também o histórico daqueles bairros e as forças políticas que atuavam, de um ou outro lado, antes, durante e depois das lides que os tiveram por objeto.

Algumas coisas ficaram evidentes ali. Primeiro, a de que lides desse tipo normalmente eram suscitadas pelos moradores desses bairros, os quais, organizados na forma de associações locais, exsurgiam, enquanto coletividade, como uma força conservativa (e muitas vezes conservadora). Depois, a de que esses coletivos se viam capazes de, para além de simbolizar as relações socioespaciais que travavam, também traduzir as reivindicações pela continuação de seu modo de vida para a linguagem do Direito, pela via manifesta do Direito Civil - seus conceitos, sua técnica -, a fim de reclamar um lugar no debate que, então, se travava sobre o destino da cidade em geral, e da sua vizinhança em especial, inaugurando, no interior dessa disputa político-urbanística, um conflito propriamente jurídico, i.e. numa gramática que contrapunha o Direito Privado e o Direito Público. E, por fim - e isto é o mais interessante neste momento -, que este conflito jurídico se configurava pelo confronto entre dois tipos de argumentos, ambos juridicamente possíveis e judicialmente admissíveis, cujas naturezas, ou formas de confecção, eram absolutamente distintas, a saber: (1) de um lado, os discursos da municipalidade ou de elementos do mercado imobiliário, que eram compostos por argumentos que partiam de conceitos jurídicos gerais e abstratos, e das teorias sobre seus significados para, via cominação, propor a normatização do tecido urbano; e (2), de outro, os discursos das associações de bairro, que eram integrados majoritariamente por argumentos que partiam da simbolização da vida vivida para, nela, buscar os sentidos das normas jurídicas gerais e abstratas que regrariam a cidade. A esses dois tipos de argumento, porque toda vez eram propriamente jurídicos (com tudo o que isso significa), de o nome, respectivamente, de dogmáticas descendentes e dogmáticas ascendentes .

As dogmáticas descendentes se manifestavam pela dedução de soluções concretas a partir de conceitos, noções, normas ou princípios abstratos e genéricos já positivados no passado, procedendo por um movimento lógico que era propriamente descrito como sendo “de cima para baixo”. Assim, ao mesmo tempo em que seguiam a lógica do Poder Administrativo e dos sistemas, representavam a maneira que se tornara mais comum de “fazer o Direito” desde a Modernidade e da Era das Codificações (WIEACKER, 1980WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980., p. 365 e ss.) - cujos desdobramentos hodiernos são corporificados na derrocada do Direito Civil enquanto tal, dado o estabelecimento de pressupostos epistemológicos, normativos e políticos como os do “Direito Civil-Constitucional”.

Já as dogmáticas ascendentes partiam do cotidiano - do qual os usos e os costumes locais são apenas os exemplos mais escolares - para determinar o sentido prático, quero dizer, individual e concreto, daqueles mesmos conceitos, noções, normas ou princípios de Direito, a fim requisitar tutela para os modos de vida que os produzem por e para si mesmos num dado território. Por meio destas dogmáticas, as pessoas comuns tentavam tomar de volta a agência jurígena que os procedimentos descendentes lhes roubavam, deixando de ser simples destinatárias ou consumidoras das normas preteritamente positivadas no Direito: elas inventavam, reinventavam, interpretavam e reinterpretavam o regulamento, atribuindo-lhes sentidos que pareciam, a nós, teóricos do Direito, criativos, mas que não eram mais do que aquilo que lhes era consentâneo com seus interesses e experiências mais próximas (CERTEAU, 1998CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998., p. 38 e ss.) - puro “bom senso”. A “boa-fé”, a “função social”, os “bons costumes” etc. deixavam de ser, aqui, corolários morais, estabelecidos a partir de modelos ideais jamais vividos, para retomarem seu caráter propriamente ético no interior das situações sociais do dia-a-dia: como é que as pessoas, naquela praça, negociavam?; qual desinformação consideravam inaceitável numa barganha?; que tipo de transação, para elas, era reprovável?; como as pessoas dali lidavam com as interferências recíprocas próprias da vizinhança, e o que era, afinal, uma interferência prejudicial no contexto do bairro?; o que, entre essas pessoas, configurava uma falta entre vizinhos? A pretensão pela atualização dos sentidos do Código não se realizava pela hermenêutica que busca no patamar hierárquico superior esta novidade - ela retornava para a vida, donde o Direito surgiu e onde é efetivamente praticado; onde ele não é teoria, mas socialidade, ou seja, relação. E é por isso que era possível dizer que as dogmáticas ascendentes atuavam, propriamente, “de baixo para cima”, por indução, e com justiça, se diria mais, que elas sobresumiam os fatos à norma, ao invés de subsumirem a norma aos fatos.

A passagem de um modo para o outro - da descendência à ascendência - parecia exigir ao menos dois deslocamentos da noção de “politização” que se aventou acima.

O primeiro deslocamento era institucional e, nesse sentido, “politizar” significava também “polemizar”, ou promover a confrontação de discursos racionais distintos, e muitas vezes contrários, implementando, de um só golpe, a condição mais básica de um processo democrático radical, e a dignidade, para o Direito, de ser, por excelência, a linguagem deste processo, destituindo-lhe dos excessos colonizatórios para restituí-lo ao seu caráter manifestamente agonístico - donde o reconhecimento de que pretensões contrárias, mas igualmente jurídicas, poderão ser mobilizadas nas arenas de debate competentes, com a finalidade de convencer a plateia dos cidadãos, administradores, legisladores e/ou dos magistrados, prevalecendo (ao menos até o próximo embate) a que tiver as melhores razões de ser, sem que a perdedora seja furtada de sua juridicidade.

Depois, se a “politização” encetada pela “constitucionalização”, pela “publicização”, ou, que seja, pelo “Direito Civil-Constitucional”, busca fazer intervir outras searas normativas no Direito Civil, de maneira hierárquica, a partir de uma perspectiva macropolítica, dos sistemas contra o mundo da vida, era necessário, para a dogmática ascendente, ao revés, que a “politização” fosse ressignificada para atender à perspectiva micropolítica através da qual diferentes modos de vida se reterritorializavam na cidade - i.e. às maneiras como eles existiam e coexistiam, interagiam e conflitavam uns com os outros, sempre se encontrando. A consequência imediata disso era que, ao invés de buscar a legitimação do Direito Civil, em termos político-normativos, apenas pela submissão e coerência de suas normas à Constituição formal, a dogmática ascendente também a devia buscar nas práticas para cuja tutela ele era requerido pelos citadinos. Assim, o enfoque da produção discursiva deixa de ser exclusivamente histórico - da norma que, conquanto positivada no passado, deve se aplicar sempre, anacronicamente, no presente, conservando a si mesma, em detrimento das diferenças que desde então tenham sido elicitadas - para ser também geográfico - no sentido de que a cartografia das relações, na forma que as pessoas dão a ela em seu dia-a-dia, passa a dialogar com as categorias antecedentes, ou se torna capaz de erigir novas categorias, mais próximas ao contexto tratado. E isso significa considerar superado o secular gesto napoleônico da revogação dos costumes em prol dos Códigos totalizantes (EHRLICH, 1986EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986., p. 17-18): o Direito Civil retoma a sua tarefa, esta milenar, de se codificar e recodificar permanentemente 8 8 Sobre o assunto, ver: SACCO, 1983. . Era a forma do verbo, contra a forma do substantivo.

Tudo isto, como demonstrei naquela pesquisa anterior, valia para o que se pode chamar de “cidades situadas” - bairros ou porções urbanas que querem conservar o status ou o regulamento jurídico socioespacial que já tem, mas que se encontra ameaçado por investidas do Poder Administrativo e dos sistemas. Mas será que vale também para as “cidades conquistadas” - bairros ou porções urbanas que almejam um novo status ou regulamento jurídico socioespacial, a despeito do Poder Administrativo e dos sistemas?

O argumento que se pretende desenvolver no restante deste texto responde afirmativamente a essa pergunta - e o faz, de novo, testando empiricamente aquela hipótese geral de que o problema da obsolescência do Direito Civil é, na verdade, o problema da inamovibilidade da ideia substantivizada de Código. O tipo de caso prático, cada vez mais comum nas cidades e nos tribunais do país, que se utilizará para demonstrá-lo gravita em torno daquilo que se convencionou chamar, de maneira talvez pouco técnica, de “desapropriação indireta” - figura que emerge da consideração, por parte do Judiciário, de que é “impossível” dar provimento a uma ação de reintegração de posse para remover, de um imóvel urbano, as famílias que ali estão por força de ocupação originariamente qualificável como ilícita, a despeito do reconhecimento de que o autor da ação titulariza o direito à posse (o ius possessionis) da área.

Trata-se, como se vê, de um exemplo bastante oposto, senão contrário, ao dos “bairros-jardim”, tanto com relação à finalidade jurídica pretendida quanto com relação às condições sociais de produção do conflito. No entanto, como será indicado abaixo, o mesmo procedimento ascendente é realizado, em ambos os casos, para atribuir sentido às mesmas categorias gerais de Direito Civil, e isto com o fito de inaugurar, no bojo de um conflito político-social, um confronto propriamente jurídico em face do Poder Administrativo e/ou dos sistemas9 9 O conceito de “dogmática ascendente” pode ser utilizado para além dessas hipóteses. Em outro lugar (FERNANDES JR., 2022c) mostrei como ela pode ser manejada como ferramenta heurística para codificar a interpretação que migrantes internacionais dão à eficácia dos documentos migratórios em face de suas relações jurídicas e de parentesco, por exemplo. . Num e noutro caso, isto é o que importa: ver como o Direito Civil é agenciado de “baixo para cima”, do mundo da vida aos sistemas, a fim de contrastar com argumentos jurídicos descendentes, servindo, ao mesmo tempo, como instrumento de luta e resistência, e de mecanismo de condução agonística do conflito.

2. Transformações do tempo e do espaço na cidade conquistada

Um caso julgado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça - o Recurso Especial n. 1.302.736/MG (BRASIL, 2016) - reúne todas as características que poderiam ser elencadas como típicas na descrição de casos sobre desapropriação indireta de ocupações urbanas10 10 Recorre-se aqui à ideia de “tipo concreto”, conforme definida em: LARENZ, 2012. p. 655-659. Demonstrei a utilidade desta categoria para fins da pesquisa jurídica empírica em: FERNANDES JR., 2019b; 2018a. .

Compulsionando-se os autos deste processo vê-se que, na origem, se tratava de ação de reintegração de posse, proposta na comarca de Uberaba, tendo como objeto uma gleba, situada às margens da Rodovia Uberaba-Campo Florido, composta da área remanescente de outro imóvel, que havia sido sujeito a operação imobiliária anterior.

Logo na exordial, a autora da ação - pessoa jurídica empresária, organizada sob a forma da sociedade limitada, e afetada à atividade de empreendedora imobiliária - dava conta de comprovar, ao menos prima facie, por via documental que posteriormente seria complementada por provas testemunhais, todos os requisitos do art. 927 do Código de Processo Civil de 1973 para a concessão da ordem de reintegração de posse, a saber: (1) a posse anterior sobre a coisa; (2) o esbulho praticado pelos réus; (3) a data do esbulho; e (4) a perda da posse.

Lê-se então na petição inicial que os réus - todos pessoas naturais, supostamente autoidentificados como ativistas do “Movimento dos Sem-Terra” (MST) - teriam, por volta do dia 5 de outubro de 2000, invadido o imóvel, a despeito de este se encontrar cercado por arame farpado e de ter sido dado em comodato para pecuaristas os quais, segundo a autora, promoviam ali a “exploração rudimentar da pecuária de leite” - e, por consequência, tinham a posse direta sobre a área, mantendo-se, a pessoa jurídica proprietária, na posse indireta da mesma. Boletins de ocorrência, ofícios e relatos carreados nos autos demonstravam, ademais, que a empreendedora tentara resistir à invasão, requisitando a intervenção da Polícia Militar, a qual teria negociado com os ocupantes um prazo para a sua saída pacífica - algo que, até a data da propositura da ação, contudo, não havia ocorrido.

Havendo provas suficientes da verossimilhança das alegações da autora, o juiz de piso, reconhecendo-lhe também o periculum in mora, teria dado, em 29 de novembro de 2000, a ordem liminar para reintegração imediata da posse. No entanto, conforme seria depois relatado pelo Desembargador Carlos Luiz Gomes da Mata, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (2010):

“(...) o que se verifica dos autos, é que não houve o indispensável apoio estatal a possibilitar o cumprimento da ordem judicial expedida, consoante se verifica da certidão do Sr. Oficial de Justiça (...) [e] do próprio ofício da Polícia Militar (...), fatos que levaram o douto Magistrado (...) a exarar despacho (...) onde se determinou fossem oficiados o douto Presidente do Tribunal de Justiça, o douto Corregedor de Justiça de Minas Gerais e a douta Promotoria de Justiça.”

As justificativas para o descumprimento da ordem pela Polícia Militar, todavia, vão se perdendo desde esses documentos: da certeza de que seria necessário o uso da força contra os civis, até o risco de baixas, estas são razões que logo se veem “pasteurizadas” sob a forma da desídia estatal, ou do “Estado conivente”.

Oportunamente citados e mobilizados junto de seus defensores, os ocupantes integraram a relação jurídico-processual e em seu bojo interpuseram recurso de agravo de instrumento contra a liminar. Olvidados os argumentos recursais quanto àquelas famílias não terem para onde ir, e sobre a necessidade que tinham de moradia e trabalho, eles conseguem, ainda assim, suspender a ordem de reintegração, por decisão do TJ-MG, ao fundamento de “inexistência de posse cabal do Autor (...) sobre a área”, dada a alegada aparência de abandono que o imóvel ostentava até a data da ocupação.

Estranhamente a pessoa jurídica autora da ação não recorreu, por seu turno, da solução do agravo de instrumento e, assim, permaneceram os réus na gleba durante toda a fase instrutória do processo - que se arrastaria até 2009.

Neste meio tempo, para além do atravessamento de petições diversas, do tipo que só mantêm vivo o feito processual, os ocupantes “lutaram”, como diriam, in loco. E isto, inicialmente, se vê transposto, nos autos, pela via do laudo pericial, no qual se comparam fotos de várias datas, tiradas em aerolevantamentos da Polícia Militar e armazenadas no seu arquivo. De acordo com o perito:

“A área periciada ‘A’ até a data de 1984 não continha invasões (...). Em 2000 partes dessa área foram invadidas inicialmente por ciganos [sic.] com barracas de lona e, em 2002 (...) foram abertas ruas e foram implantadas edificações físicas. Em 10 de julho de 2007 quando iniciada a perícia comprovamos que partes da área periciada contêm arruamento e melhoramentos públicos: rede de energia elétrica e posteamento, rede de esgoto, rede de água com derivações e ligações com hidrômetro individual (...) e contendo edificações com numerações fornecidas pela Prefeitura Municipal de Uberaba.”

Tratava-se, manifestamente, de um processo de urbanização a pleno vapor: estabelecidos os prédios “invasores” (casas, comércio etc.) por esforços individuais e/ou coletivos dos ocupantes, a sua reivindicação por políticas públicas e melhorias urbanas, e a conquista delas por pressão junto ao Poder Público, havia feito com que o próprio Estado se tornasse, por assim dizer, também, um “invasor”: ruas, praças e aparelhos públicos, sistema de água, esgoto, e energia elétrica - tudo isso agora lhe pertencia, ao menos virtualmente. Ao ponto em que, segundo o perito:

“Na área periciada (...) de 31 hectares e 04 ares, tem áreas ocupadas nesta data pelo Poder Público federal, estadual e municipal, com rodovias, trevos e rua e constata-se um grande número de casas residenciais e comerciais de posseiros localizadas em vias públicas (...). A área de 22 hectares e 10 centiares é ocupada por particulares.”

Consequência disso era que, dos atos processuais praticados pelos réus, restava a notícia de que se teria iniciado o processo de desapropriação do terreno pela Prefeitura Municipal de Uberaba - algo de que, conforme redarguiu a autora, a municipalidade teria posteriormente desistido.

Citada a Prefeitura, ela sequer contestou a ação, alegando não poder ser considerada ré por não possuir interesse no feito. Sobre se tinha ou não desapropriado a área, contudo, sua resposta foi no sentido de que o processo de desapropriação que efetivamente realizara - e do qual não tinha desistido - não se dera sobre a parte invadida da gleba, mas sobre outra porção dela, que estivera desimpedida, e que terminou por ser (igual, mas formalmente), urbanizada.

Os réus não aceitaram esta resposta, que bem deve ter-lhes parecido um desaforo. Chamado a responder a questão, o perito lhes deu a razão, atestando para o Município o papel de “Estado tratante” ao indicar que a área invadida havia sido, sim, objeto de desapropriação pelo o Decreto Municipal n. 4.920 de 2004, que acabara sendo revogado, poucos meses depois, pelo Decreto Municipal n. 368 de maio de 2005.

Nas prováveis explicações passíveis de serem oferecidas pelos réus sobre a conduta da Prefeitura, as causas político-partidárias quiçá sobrelevariam de importância, inobstante fossem algo processualmente inadmissíveis naquelas circunstâncias. Ora, o Decreto n. 4.920/2004 fora promulgado no governo de Odo Adão, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que havia sido eleito vice-prefeito na chapa com Marcos Montes Cordeiro, do Partido da Frente Liberal (PFL), em 2000, e assumira o cargo, ainda em 2004, por ocasião do afastamento de seu titular, convidado pelo então governador Aécio Neves (PSDB) para assumir a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social e Esportes de Minas Gerais. Nas eleições municipais de 2004, todavia, a coligação de situação, composta pelo PSDB e pelo PFL, além do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e do Partido Verde (PV), tinha sofrido uma derrota acachapante, com a eleição dos candidatos da oposição em primeiro turno, somando 67,21% dos votos. O Decreto Municipal n. 368 de 2005, então, fora editado pelo prefeito eleito, Anderson Adauto, do Partido Liberal (PL) - de cuja candidatura se diria que havia interessado, senão à autora propriamente dita, então ao setor local de sua atividade econômica. Antes de razões de Estado, a desistência assim responderia a interesses de governo - ou melhor, aos interesses de aliança deste governo para com o capital imobiliário, donde se casavam, por assim dizer, o Poder Administrativo e o sistema econômico.

Seja como for, satisfeita a fase instrutória do procedimento, os autos foram conclusos para julgamento pelo juiz de primeira instância. Àquela altura, em 2009, todavia, o magistrado já devia se ver em frente a uma encruzilhada. O espaço e o tempo se bifurcavam diante dele, e o que, em um cronótopo (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: HUCITEC, 2014., p. 211), era justo, talvez não lhe parecesse justo no outro. Como devia responder à ação judicial? Com os critérios de 2000, quando a ação fora proposta e o imóvel invadido; ou com os critérios de 2009, quando, transformado o imóvel num bairro, ele era finalmente chamado a decidir?

O dilema transparece das rationes decidendi da sentença, mas é tanto melhor evidenciada no próprio dispositivo, onde o magistrado reconhece o direito à posse por parte da autora - afirmando, por conseguinte, a ilicitude originária da invasão, em 2000 -, mas, de maneira aparentemente contraditória, nega-lhe a reintegração da mesma, sob o fundamento de não haver mais, na prática, nenhuma forma de restituí-la o imóvel - o que, na realidade, implicava dizer que a expulsão dos moradores da área, em 2009, seria igualmente ilícita.

Fenômeno raro e estranho: para a decisão de piso, o direito existia e não existia - e as duas coisas pareciam acontecer simultaneamente, por um efeito de superfície muito próprio da racionalidade jurídica, que julga o passado, no presente, para sancionar no futuro, produzindo a sucessão entre os tempos-espaços através do mesmo instante no qual os fundem11 11 Inobstante sejam raras as análises jurídicas que se debrucem sobre essas “celeumas do tempo”, por assim dizer, elas hão de ser mais comuns do que aparentam. Algo semelhante pode ser encontrado, por ocasião da aplicação do princípio do tempus regit actum aos negócios jurídicos, em: FERNANDES JR, 2019a. . Levada a sentença à apreciação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais pela via de consternado recurso de apelação interposto pela autora da ação, mesmo o relator da Corte se espanta com a decisão - não tanto pela incongruência que ela parecia ventilar quanto pelo fato de não haver como restaurá-la totalmente a uma lógica de não-contradição. Mas não por isso o desembargador deixou de tentar. E o fez, pela aplicação do princípio segundo o qual tempus regit actum, multiplicando as pessoas para singularizá-las, ou melhor, subjetivá-las, em estratos espaciotemporais distintos.

O voto-vencedor do relator se pauta por uma distinção que principia formal para depois se substancializar. Assim, ele começa diferenciando os ocupantes do imóvel entre aqueles que participavam formalmente da ação de reintegração de posse - os “invasores” -, por terem sido seus réus desde o ano 2000, e os outros ocupantes particulares - os “terceiros” -, que não integravam nominalmente a relação jurídico-processual ainda em 2009. Vejam-se seus termos:

“(...) entendo que a sentença a deixar de aplicar na prática o direito reconhecido [i.e., o ius possessionis] (...) não deu a mais correta solução ao litígio, principalmente em face aos réus que continuam na posse clandestina do imóvel, devendo pois, ser reanalisada a questão tanto frente a estes réus mencionados quanto também aos terceiros que não são partes na ação.”

Acerca dos réus nominais do processo, o cometimento da invasão, imputado a eles, teria tido o condão encarcerá-los no cronótopo da gleba invadida em 2000. O tempo transcorrido no processo, e, sobretudo, as mudanças espaciais por que tinha passado o imóvel, restavam abstraídas, ou pelo menos irrelevantes. O ato ilícito, qualificador da sua posse como “clandestina”12 12 Entende-se a posse, na análise, como situação de fato, conforme a interpretação de Pontes de Miranda (1971). Sobre as maneiras através das quais o Direito funcionaliza situações de fato, e, mais especificamente, a posse, ver: FERNANDES JR., 2018b. , paralisara, para eles, tanto o tempo quanto o espaço, e a única maneira, no presente, pela qual poderiam alcançar o futuro, era, atendendo-se ao primado da coerência no estabelecimento de ação-e-consequência, sendo responsabilizados pela ilicitude passada: até a sua expulsão, jamais deixariam de ser “invasores”, não importa o que acontecesse - sendo este mesmo o sentido dogmático da “posse clandestina” em Direito Civil.

Já em relação aos “terceiros”, embora eles também fossem ocupantes de um imóvel cuja posse deveria, por direito, pertencer a outrem, relevava que, ao invés de agentes perpetradores de ilícito (i.e., “invasores”), eles eram, na verdade, “vítimas” do Município de Uberaba - este, sim, outro “invasor”, e, sobretudo, “tratante”. Disse o relator:

“A prova carreada é claríssima em demonstrar que a municipalidade de Uberaba-MG, não só deu todo o apoio logístico e urbanístico à área invadida, posto que promoveu verdadeiro assentamento social, com construção de ruas, avenidas, pavimentação, rede de esgoto, transformando a área invadida em bairro populoso, como bem reconheceu a sentença proferida, como também terminou por praticar um verdadeiro ‘golpe’ contra a boa-fé, já que publicou um decreto de desapropriação para justificar as obras realizadas e, posteriormente, quando já assentadas as centenas de famílias, terminou por revogar aquele decreto, consoante se infere do laudo pericial realizado.”

Aqui, inobstante qualquer apreciação sobre as circunstâncias do ingresso de cada indivíduo na ocupação - ingresso este que, logicamente, pode ter acontecido no dia seguinte ao da propositura da ação, ou mesmo antes disso, desde que tenha passado despercebida ou anônima para a autora -, o cronótopo que encerrava estes sujeitos (os “terceiros”) era o do bairro urbanizado de 2009, e o que promovia o acoplamento entre o passado e o futuro, no presente, era unicamente a condição de terem sido ludibriados, por assim dizer, pela municipalidade. Sequer era necessário, para integrar a condição de “vítima” da Prefeitura Municipal, que os ocupantes tivessem se assentado depois do decreto de 2004, e muito menos antes do decreto de 2005. Bastava que não tivessem sido os primeiros “invasores” da gleba - ou, melhor, que não fossem acusados de sê-lo pela própria autora do processo.

Daí a tentativa, no acórdão, de solucionar a antinomia da sentença através de uma distribuição diferencial da tutela jurisdicional entre os sujeitos-ocupantes - mascarando-se, no decisum, a multiplicação das incongruências que ele buscava resolver:

“Feitas estas distinções, cumpre modificar a parte dispositiva da sentença, para determinar a imediata reintegração de posse do Autor/Apelante nas áreas onde estão assentados cada um dos réus/Apelados e somente do espaço físico da área ocupada por cada um deles, devendo ser expedido o competente mandado de reintegração. No tocante à área, cujo espaço físico esteja ocupado por terceiros que não foram partes na ação, bem como nos espaços físicos comuns e que revelam interesse social e público, praças, vias, ruas, avenidas e passeios, confirma-se a sentença para reconhecer a impossibilidade da reintegração de fato do Autor sobre a posse das referidas áreas.”

Está aí outra inesperada figura retórica, a da “culpa loteadora” - a culpa dos “invasores” identificando os lotes que deviam ser restituídos, de um lado, e a culpa do “Estado tratante”, de outro, identificando os lotes que já não mais poderiam ser restituídos à autora. Mas o mais surpreendente é que a questão sequer é apenas espacial. Paralisados os “invasores” originais em 2000, os poucos espaços que eles ainda ocupavam no interior da área litigiosa não coexistiam mais, nem temporal e nem geograficamente, com os espaços do entorno, ocupados pelas “vítimas”. Um colorido diferente marcava uns e outros, tornando a posse sobre os primeiros “clandestina” e para sempre os encerrando na condição de parcelas de terreno, e tornando os últimos, de posse mais ou menos legítima (se é que se pode dizer isso), autorizados a existir no tempo, onde já se achavam um bairro, e não mais gleba nua.

Das simultâneas existência e inexistência do direito em sentido subjetivo (i.e. do ius possessionis da autora), chega-se, então, na segunda instância, às simultâneas existência e inexistência do objeto deste direito. Subsistia objeto de direito, e, por conseguinte, direito, no que se referia aos “lotes” (sic.) dos “invasores” originais, que continuavam a ser parcelas da “gleba” original; mas não existia mais objeto de direito, e, consequentemente, direito, no que se referia aos “lotes” (sic.) dos “ocupantes” secundários, que passaram a ser partes da “cidade” - devendo-se o interesse da autora, neste tocante, ser convertido em perdas e danos.

A empreendedora imobiliária não teve dificuldade em ver que, na prática, o direito que a sentença havia lhe reconhecido, e que o acórdão não lhe tinha negado, continuava frustrado na decisão da segunda instância: da área onde centenas de famílias tinham se assentado, o Tribunal de Justiça só lhe restituiria as parcelas, relativamente irrisórias e dispersas, ocupadas pelos poucos réus nominais da ação. Tratava-se mais de uma punição para eles do que de um benefício para ela. Não tardou, então, em interpor o recurso especial ao Superior Tribunal de Justiça, com fundamento no art. 105, III, “a” da Constituição da República, sob o argumento de que a decisão a quo contrariava ou negava vigência à lei federal - indicando-se, na ocasião, descumprimento principalmente às normas do Código de Processo Civil de 1973 que diziam respeito às ações possessórias, em geral, e à ação de reintegração de posse, em especial.

À falta de oferecimento das contrarrazões recursais por parte dos ocupantes, competia à instância especial responder às seguintes alegações principais da recorrente: (1) a de que, para a reintegração de posse, não importava o tempo de ocupação dos invasores sobre a área esbulhada, bastando o preenchimento formal dos requisitos do art. 927 do CPC/73; (2) a de que nenhuma menção à existência do direito social de moradia deveria ser suficiente para afastar a proteção possessória, não sendo o procedimento da reintegração, consoante o art. 1.210, §2º do Código Civil, meio hábil para discussão de questões relativas à função social da propriedade; e (3) a de que, dado se tratar de esbulho praticado por número indefinido de pessoas, após a citação por edital, empreendida pelo juízo de piso, a relação jurídico-processual se vira integrada, no polo passivo, por todos os ocupantes - indistinguindo-se os “invasores” originais e os “terceiros”, que deviam, igualmente, se sujeitar ao comando da decisão.

Distribuído o recurso à Quarta Turma da Segunda Seção do STJ, cuja competência é afeita às matérias do Direito Privado, designou-se o Min. Luis Felipe Salomão como seu relator, que assim delimitou a matéria sub judice:

“No que respeita ao mérito, a questão consiste em determinar se, ainda que comprovado o preenchimento dos requisitos para a concessão da reintegração de posse, diante da noticiada impossibilidade prática para o cumprimento da ordem, pode o provimento jurisdicional ser convertido em perdas e danos.”

Parte-se dessa maneira, como devia ser em virtude da Súmula n. 07 do STJ, de matérias de fato já consolidadas pelas instâncias ordinárias, soberanas que são estas no manuseio do conteúdo probatório dos autos. Mas, para além disso, acolhe-se do acórdão e da sentença até a qualificação jurídica destes fatos, cujo efeito, diante de ter havido mesmo o esbulho, é o reconhecimento do direito subjetivo da antiga possuidora do imóvel - ou, mais tecnicamente, da titularidade, por ela, de ação material de reintegração, às vistas de a pretensão à posse que deduzia ser resistida pelos ocupantes.

Toda a polêmica, dessa forma, se restringia a saber como satisfazer o direito da autora. E, neste sentido, assim analisava o relator:

“Destarte, o que está em debate é o litígio entre um particular que teve seu imóvel invadido e inutilizado e um grupo considerável de pessoas, famílias, que naquele bem se instalaram, com o incontestável apoio do poder público municipal, já que, de acordo com os relatos técnicos colhidos, não vivem amontoados, de forma precária, mas, ao revés, é uma comunidade organizada, do ponto de vista da infraestrutura básica.”

Desde aí a forma diferencial que o conflito social e o correspectivo confronto jurídico assumem nesta decisão, em relação às suas antecessoras. Flui o tempo e se transforma, nele, o espaço. O movimento é restaurado na tríplice oposição entre os termos “imóvel” (i.e. a gleba nua, subentendida), “imóvel invadido e inutilizado” e “comunidade organizada” - sendo, o segundo destes termos, o mediador entre os outros dois, já que sintetiza, na eficácia do particípio verbal, o esvaziamento progressivo do sentido jurídico-econômico de “imóvel”, enquanto um bem apreensível como objeto de direito, até o estado de inutilidade, no qual a coisa deixa de ser um bem, tornando-se inapreensível como objeto daquele mesmo direito que antes recaía sobre o “imóvel”.

Este fluxo de tempo, contudo, não deixa de ser também jurídico (i.e. codificado nos termos próprios do Direito). Não se trata, por conseguinte, de mera constatação fática (dias, meses, anos). O particípio passado do verbo “inutilizar” indica, sendo sucedido pelo termo “comunidade organizada”, um juízo de admissibilidade jurídica da forma final do processo objetivo de transformação da área, deixando entrever que é o fato de ser “organizada” espacialmente que torna possível o reconhecimento, no passado, da inutilização do “imóvel”: se assim não fosse, careceria à “comunidade” jurisgenia para substituir a gleba nua, em termos jurídicos.

O enfoque dogmático, portanto, deixa de estar na causa da invasão (donde se verificava a “posse precária” e se distinguia entre o “invasor” e o “terceiro”) para recair sobre a consequência da mesma. Nas palavras do próprio relator:

“Não cabe aqui a análise social da questão da repartição de terras, urbanas ou rurais, tampouco uma análise sociológica da invasão perpetrada, da licitude ou não da forma de ocupação - o que faria precária a posse exercida. A realidade é que, para satisfação do desejo de recomposição da situação anterior, para o deferimento da reintegração, não pode ser desconsiderado o surgimento daquele bairro populoso, onde inúmeras famílias construíram suas vidas...”

Consequencialista - ou, melhor, funcionalista -, o argumento, por liberar o fluxo do tempo das represas que o prendiam nos interstícios das qualificações estanques do Código, desencadeia os curtos-circuitos temporais que as decisões anteriores elidiam (mal). Isso porque os últimos dois trechos citados parecem fazer da “organização infraestrutural” uma condição necessária, mas não suficiente, da substituição do “imóvel” pela “comunidade”, à que uma espécie de “organização social” (indicada pela circunstância de inúmeras famílias terem construído sua vida ali) complementa. Contudo, se a “organização infraestrutural” não depende - como parece - apenas do trabalho dos próprios ocupantes em construírem suas casas e seu comércio, mas também do trabalho do “Estado-invasor” de urbanizar o produto destes esforços privados; e se o Estado só se torna invasor graças à “luta”, ou ao agenciamento político dos ocupantes; então a “organização social” precede e causa, ou, no mínimo, se realiza em conjunto com a “organização infraestrutural” - podendo-se dizer, de forma mais escorreita, que ambas são expressões analíticas do mesmo processo real de reterritorialização, com o futuro de uma alterando o passado da outra.

O próprio voto não deixa notá-lo, quando traduz a “luta” por “herança cultural e histórica” ao mesmo tempo em que funde os sentidos da urbe-localidade e da polis-comunidade política:

“No caso concreto, à saciedade, está demonstrado - e restou incontroverso - que o cumprimento da ordem judicial de reintegração na posse, com a satisfação do interesse da recorrente, empresa de empreendimentos imobiliários, será à custa de graves danos à esfera privada de muitas pessoas, famílias que há anos construíram suas vidas naquela localidade, fazendo dela uma comunidade, indivíduos irmanados por uma mesma herança cultural histórica.”

Eis aí, de um só golpe, os sentidos absolutamente concretos da “função social” daquela propriedade, daquela posse, daquela “cidade conquistada”13 13 A desagregação da “propriedade” em sentido genérico e abstrato como corolário do reconhecimento das diferentes funções exercidas pelos direitos e pelas coisas em si tem sido percebida há tempo suficiente para que não soe novidadeira para ninguém. Colocando a questão em termos claros: TOMASETTI JR., 1996. : a vida vivida e o território se construíam simultaneamente, e em co-dependência mútua, sendo impossível subtrair uma sem extirpar o outro; ou desagregar a comunidade em “invasores” e terceiros” sem romper com os liames (i.e. a “luta” conjunta, ou o trabalho de (re)produção coletivo) que formavam o seu espaço vital. A superveniência da “comunidade organizada” não apenas faz surgir um sujeito de direito e oblitera o bem que tinha sido objeto do direito à posse da autora, mas indica, pela função que a área passara a desempenhar em face daquele sujeito, o surgimento de outro bem, objeto do direito à posse dos ocupantes coletivamente considerados. E isto não é nem de se estranhar, já que aquilo que o “direito” em sentido subjetivo põe no espaço jurídico do mundo, a “função social” põe no tempo - rezando assim a cláusula geral de Direito Intertemporal inscrita no parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil, ao se referir metonimicamente à subsistência dos fatos jurídicos (lato sensu) que ensejam as posições jurídicas (ativas e passivas), e, portanto, também a elas mesmas: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar os preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.

Se parecia haver, ainda, algo como o “imóvel” objeto da ação de reintegração de posse no momento do julgamento do Recurso Especial (ou mesmo da Apelação Cível), era apenas por efeito, como disse certa vez Alcides Tomasetti Junior (1996), comentando o caso da Favela do Pullman (São Paulo/SP), em quase tudo idêntico a este, de uma “pseudo-realidade jurídico-cartorária”. E não é a outra conclusão que chegou o julgador do recurso especial, ao sentenciar que:

“No caso dos autos, o imóvel originalmente reivindicado, na verdade, não existe mais, a realidade é outra. O bairro hoje existente, no lugar do terreno antes objeto de comodato, tem vida própria, dotado de infraestrutura urbana, onde serviços são prestados.”

Não se ajustava, portanto, às normas de Direito, a pretensão específica da autora de se ver reintegrada na posse. Mas e quanto a ela, que via perecer o seu direito à posse, depois de tanto tempo extinto o objeto a que ele se referia? Por conta de sofrer um prejuízo ao qual ela própria não deu causa, e que também não pode ser coerentemente imputado à “natureza das coisas” que se diz perecerem por suas próprias características, não faltariam os que veriam, desacertadamente, uma conclusão antijurídica, ou atécnica, na decisão tomada pela Quarta Turma, quando votou unanimemente com o Ministro-relator. Isso, pelo menos, se ela parasse por aí. Mas este, todavia, não é o caso. Até porque, de tão comum no tráfico jurídico, a hipótese de perecimento de uma coisa objeto da obrigação de dar coisa certa - e é isto que são as coisas objeto de ações de reintegração de posse - já era prevista no Código Civil (art. 234) e, mais especificamente, no Código de Processo Civil de 1973, pelo caput do art. 627, tendo sido, esta regra, com pequenas alterações, transposta para o Código de Processo Civil de 2015 (diploma que reconhece as peculiaridades dos dissídios coletivos pela posse urbana em seus arts. 554 e 565) no art. 499, segundo o qual “a obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção da tutela pelo resultado prático equivalente” (grifado).

Trata-se aqui, por analogia, de uma daquelas situações que a jurisprudência e a doutrina nomearam de “desapropriação indireta” - figura que, originalmente, como bem indica Teori Zavascki, servia aos casos de apossamento de bem particular pelo próprio Poder Público, sem que tivesse sido realizado anteriormente o devido processo de desapropriação (ZAVASCKI, 2002ZAVASCKI, Teori. A tutela da posse na CF e no projeto de Código Civil. In: MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002., p. 854). Mais propriamente ainda, como esclarecem Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves (2013ROSENVALD, Nelson; CHAVES, Cristiano. Curso de Direito Civil: Reais. v. 5. 9ª ed. Salvador: Jus Podium, 2013., p. 85), o que haveria é a criação, para os ocupantes, da alternativa de dar certa quantia, abrangendo tanto a indenização pela perda da posse sobre a coisa (que tem seu próprio valor econômico aferível) quanto a indenização pela perda da coisa em si14 14 Os autores falam em “aquisição compulsória” do bem, mas a isto não lhes assiste, já que aquilo que fundamenta a perda do bem para o titular do ius possidendi é o seu perecimento, e que não cabe falar em aquisição de algo inexistente por já ter já se extinguido. . Mas com uma particularidade, que fez ver o voto-vogal do Ministro Raul Araújo: a interveniência das figuras do “Estado-conivente”, do “Estado-invasor” e do “Estado-tratante” havia de tornar, logicamente, o próprio Estado responsável, junto aos ocupantes, pelas indenizações devidas - cabendo, portanto, à autora, a ação de direito material para recompor os danos ao seu patrimônio líquido.

3. De volta à imanência, ou uma nova velha agenda de pesquisa em Direito Civil

Se a solução do caso descrito realmente foi, como parece ter sido, resultado de manifesta e regular aplicação de uma das mais tradicionais regras do Direito das Obrigações, então por que é útil analisá-lo a partir dos conceitos analíticos de dogmática ascendente e de dogmática descendente?

Não é difícil ver que, entre a aplicação ipsis litteris do art. 927 do Código de Processo Civil de 1973 e a aplicação, juridicamente possível, não obstante, digamos, contraintuitiva, do caput do art. 627 do mesmo diploma, está-se diante do clássico problema da interpretação em Direito, conforme o enuncia o oitavo capítulo da Teoria pura do Direito (KELSEN, 2009KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009., p. 393-394). Contudo, tomado o Direito positivo como matéria-prima através da qual a hermenêutica produz a “moldura” dogmática das soluções juridicamente possíveis para uma controversa, enquanto Kelsen se atinha a dizer que a escolha entre uma ou outra opção aceitável era função, exclusivamente, da posição política do intérprete, o que as categorias analíticas da dogmática ascendente e da dogmática descendente permitem é investigar, a um só tempo, o processo de tradução dessa posição política para o Direito, e os papéis que os argumentos jurídico-políticos de cada um dos sujeitos do conflito desempenham no convencimento motivado do juiz, devolvendo esta suposta desrazão estético-política à razão ético-política. Isto é, produzido o universo dos possíveis jurídicos pela interpretação, o modelo afirma que ainda há tudo por se fazer.

Ascendência e descendência descartam, dessa maneira, tanto o cinismo jurídico daqueles pseudo-positivistas segundo os quais “tanto faz como tanto fez” qual decisão será a escolhida dentro da alegórica “moldura” - como se a busca por “decisões corretas” fosse monopólio dos igualmente alegóricos jusnaturalistas ou pós-positivistas -, quanto a ideia, absolutamente disparatada, mas não raras vezes ventilada por ilustres moradores da “torre de marfim”, de que os sujeitos do conflito não se apossam dos termos próprio Direito positivo para defender suas reivindicações, buscando, eles mesmos, dar forma àquilo que é aceitável e aquilo que é inaceitável na interpretação das normas jurídicas.

Mas, ao fazer isso - e aqui está uma das duas grandes virtudes desse esquema analítico -, essas categorias não negam o que há de propriamente jurídico na experiência jurídica, i.e., os aspectos especificamente normativos e valorativos que ressaem da eticidade e da socialidade enquanto fatos (REALE, 2003REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.), e que o termo “dogmática” sublinha. Torna-se possível, assim, investigar o Direito na prática, e, sobretudo, nas maneiras como ele é vivido, sem que, com isso, se recaia no “empirismo importado” de outras disciplinas: o realismo, que tantos hoje em dia confundem com análises meramente econômicas, estatísticas ou jurimétricas da jurisprudência, se converte de novo em uma maneira - ou melhor, em maneiras múltiplas - de compreender e fazer o Direito enquanto Direito. Se não há, por conseguinte, motivo para excluir outros saberes da apreciação do jurista - podendo-se reputar, pelo contrário, virtuoso o “olhar ampliado” que esses saberes proporcionam -, tampouco há razão para abortar a dogmática que pode nascer de uma pesquisa jurídica15 15 Sobre a maneira como o conhecimento objetivado por outras disciplinas ingressa no Direito foi objeto de discussão, v.g., em: FERNANDES JR., 2022a, 2021. .

Aliás, há comprovados motivos para crer que essa forma de análise se vê ainda mais consentânea como a prática jurídica do que o mero mapeamento de “correntes majoritárias” e “correntes minoritárias” que a manualística nacional prefere empreender sobre as questões e disputas que surgem quando da interpretação das normas jurídicas. Isso porque esta forma de produção literária, que geralmente se refere apenas a aspectos quantitativos - e, o que é mais grave, a pressupostos aspectos quantitativos alheios a quaisquer provas numéricas das frequências com que aparecem as ditas “correntes” -, elidindo as moralidades que a embasam, parece ter como destinatário exclusivo apenas o intérprete-juiz, que vê o conflito “por cima”, de maneira “desinteressada” e “imparcial”, alimentando com pseudo-objetividade o mito de uma “neutralidade” do qual sequer se fala abertamente, por pura vergonha epistemológica. Mas, não há como negar, a experiência jurídica teria de ser em muito pauperizada para se reduzir apenas à experiência do intérprete-juiz, por mais importante que ela seja. Para todo lado onde se olhe, outros intérpretes do Direito, estes mais “profanos” (advogados, promotores, defensores, servidores públicos de maneira geral, cidadãos, movimentos sociais etc.), estão inseridos “dentro” do conflito, de maneira “interessada” e “parcial”. Para eles, o que importa mais não é decidir entre argumentos já qualificados juridicamente, mas a transformação, ou melhor, a tradução/transdução do conflito social a que assistem em um confronto jurídico, pela confecção de argumentos propriamente jurídicos que possam servir de instrumento aos interesses imediatos a que dirigem a sua atividade profissional. Neste sentido, uma analítica jurídica do confronto, tal como a que se postula aqui, por, no mínimo, trazer às claras o que, via de regra, age às sombras, parece ser a mais adequada para a compreensão e para a instrução “majoritária” dos ditos aplicadores e usuários do Direito.

E como ela faz isso? Através de uma genealogia concreta, situada, das razões sub judice em cada lide. O caso analisado acima é exemplar disso. Ele mostra, afinal, passo a passo, como os réus, auxiliados por seus representantes legais, e mediante a interveniência de tantos outros agentes (a autora, a Polícia Militar, a Prefeitura Municipal, os peritos), foram, paulatinamente, peça processual a peça processual, documento a documento, instância a instância, traduzindo os esforços que desenvolviam in loco, enquanto simbolização e agenciamento próprio de seu modo de vida, em categorias propriamente jurídicas, aptas a requerer, junto ao Judiciário e ao Poder Público, tutela para aquele mesmo modo de vida que foi a sua fonte imediata: era a “luta” do movimento social sendo convertida, ao final, no “perecimento da coisa”. Numa analogia possível com este gênero literário próprio e tão familiar a qualquer aplicador do Direito que é o das petições, as quais geralmente se dividem em três partes constitutivas e discretas - “dos fatos”, “do Direito” e “dos pedidos” -, é como se a genealogia da “dogmática ascendente” preenchesse o vazio entre a primeira e a segunda partes, à vista da terceira, pela expressão das reticulações ou das transformações de uma realidade envolvente (input) em uma realidade envolvida (output), sem reduzir as passagens de uma à outra à configuração estrutural estável de entes pré-individuados (os fatos puros, o Direito puro, os argumentos pré-codificados).

Dessa maneira ficam claros outros dois aspectos político-metodológicos deste modelo. O primeiro aspecto (e a segunda grande virtude do próprio modelo) é o de que o seu objetivo principal é descrever como a vida vivida e suas demandas políticas devêm jurídicas a fim de disputar o Direito na arena pública - isto independentemente de se tratarem de demandas relativamente majoritárias, em sentido qualitativo (como a dos bairros-jardim de São Paulo) ou minoritárias (como a das ocupações urbanas, aqui tratadas) -, podendo, dessa maneira, até ser de interesse a outras disciplinas, chamadas zetéticas, que tem por objeto a “luta pelo Direito”, como diria Ihering, ou o Direito como fato político ou social, por exemplo.

E isso independentemente também da circunstância de esses argumentos serem ou não acolhidos em determinada arena num caso concreto. Postular a existência de “dogmáticas ascendentes” não significa dizer que elas irão ou deverão sempre prevalecer sobre as “dogmáticas descendentes” - e uma vez formuladas com base em adaptações sucessivas e iterações16 16 De acordo com a Seyla Benhabib (2004, p. 19-20): “Democratic iterations are complex processes of public argument deliberation and learning through which universalist right claims are contextualized, invoked and revoked, throughout legal and political institutions as well as public sphere of liberal democracies. (…) Through such processes the democratic people shows itself to be not only the subject but also the author of its laws”. dialógicas, é de se esperar que as primeiras percorram um longo caminho antes de se tornarem tão convincentes quanto as segundas, consideradas legítimas ab ovo. Tampouco significa dizer que as “dogmáticas ascendentes” sempre contrastarão com as “dogmáticas descendentes”, seja pelos interesses que visam tutelar, pelos resultados práticos que pretendem alcançar ou mesmo pelas categorias jurídicas que ventilam. No caso descrito neste trabalho não faltou o que poderia ser chamado de retórica civil-constitucional a nenhuma das decisões prolatadas em seu bojo. Esta retórica não foi objeto de análise, porque não era sobre ela a investigação, e porque muito fôlego literário já tem sido dispendido na sua descrição. Contudo, estavam os lá seus argumentos, ora reforçando as mesmas demandas induzidas por dogmáticas ascendentes, ora contraditando com estas, ao servirem de instrumento aos interesses da empreendedora imobiliária que fora autora da ação. A distinção entre ascendência e descendência, ao invés de tudo isso, implica tão-somente dizer sobre formas distintas de dizer o Direito (de juris-dicção) - sendo imputável a ascendência a fluxos minoritários, por assim dizer, pelo simples fato de ela ser, até o presente estado da pesquisa, incompatível com as ganas colonizatórias do Poder Administrativo e dos sistemas sobre o mundo da vida.

Decorre daí o segundo aspecto: o de que o modelo pressupõe, no tipo ascendente, a afluência jus-hermenêutica e jus-criativa da socialidade. Ou seja, a despeito de reconhecer as balizas de validade da lei e da Constituição, para a qual se dirige “de baixo para cima”, ele parte do princípio de que não decorre e não pode decorrer só destes elementos da experiência jurídica a jurisgenia no mundo - até porque, para que seja legítimo o monopólio do uso da força pelo Estado, a ele não pode ser conferido também, de maneira alguma, o monopólio do Direito. O fato de a “luta” ter produzido o “perecimento da coisa” é, de maneira individual e concreta, o que, de forma geral e abstrata, é o reconhecimento de que as relações intersubjetivas e a agência social produzem Direito. Assim, a solução do caso descrito realmente foi pautada pela aplicação de uma das regras mais tradicionais do Direito das Obrigações - mas o que explica a incidência desta regra àquela fattispecie, em substituição da regra cuja subsunção demandava a reintegração de posse em benefício da autora da ação, é a jurisgenia da socialidade produzida in loco, a qual só pode ser reconhecida, enquanto tal, via dogmática ascendente, i.e. através de uma argumentação jurídica que parte da vida para a norma, e não da norma para a vida. Que ilustres hermeneutas percorressem todos os princípios transcendentais da Constituição, dos seus mais expressos e razoáveis até os mais tácitos e mirabolantes: não importa o tamanho da sua genialidade, do seu brilhantismo individual, da sua boa-vontade ou da sinceridade de suas intenções, ainda assim eles não substituiriam o agenciamento transformador e coletivo que foi feito do Direito neste caso concreto. É a vida que contem a Constituição, e não a Constituição que contem a vida.

E aí, por fim, retorna-se àquilo que foi dito no começo, sobre a produção do Direito Civil, e sobre uma “dogmática da presença” que poderia contrastar com os diagnósticos de obsolescência ou inaptidão de uma “dogmática da ausência”. É que a afluência jurígena da socialidade não é mais, e nem menos, do que a autonomia privada sobre a qual o Direito Civil se erigiu enquanto disciplina normativa, ela própria, autônoma - e fazer desta potência o elemento de (re)adequação e de (re)mobilização do Código, enquanto forma substantiva, estatal e estatizante que o Direito Civil assumiu, de maneira contingente, no projeto da modernidade jurídica, não é senão retomar, enquanto método, uma das tarefas mais antigas, mais clássicas, mais ortodoxas e mais consolidadas desta seara: a da permanente codificação e recodificação, em forma verbal, das relações intersubjetivas. Não, note-se bem, para fazer “terra arrasada” do Código - pelo contrário, não é a ele que a ascendência tem recorrido, como demonstrado acima? -, mas para se buscar na prática, nas ruas, nos mercados, nos bairros, os sentidos daqueles termos jurídicos indeterminados, daquelas cláusulas gerais e daqueles princípios gerais de Direito que foram deixados, pelo legislador, como aberturas sistêmicas ou válvulas de escape para o reconhecimento dos regulamentos de nascença costumeira, habitual ou cotidiana17 17 Para uma análise sobre os custos deste procedimento, ver: FERNANDES JR.; BOLOTI, 2021. . Para produzir, no Direito, os híbridos entre o jurídico e o social, o econômico, o político e o urbano que, no fim das contas, são os únicos que podem conferir legitimidade ao Direito.

(Re)fundando essa nova velha agenda de pesquisa sobre a imanência do Direito Civil está nossa hipótese inicial, que, se havia sido elaborada para endereçar os problemas da “cidade sitiada”, agora, confirmada de novo na “cidade conquistada”, se arma de ampliado lastro de realidade: o de que, para além de conservar ou (re)inventar as relações jurídicas sócioespaciais, reterritorializando no presente o espaço antigo, a “dogmática ascendente” também dá conta de descrever a conquista de novos territórios, a produção de novos objetos e sujeitos de direito, e a invenção de novos espaços, fazendo fluir o tempo que antes a racionalidade exclusiva do Código barrava.

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  • 1
    De acordo com Guatarri e Rolnik (1996, p. 323): “O território pode se desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização, no sentido de que seus territórios ‘originais’ se desfazem ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que a levam a atravessar cada vez mais rapidamente as estratificações materiais e mentais”. O conceito pode ser entendido como a relação de pertinência entre os sujeitos e uma região social à qual corresponde um código que lhe é próprio (DELEUZE; PARNET, Claire, 1998, p. 104 e ss.).
  • 2
    Neste sentido, avalia Gustav Radbruch (1997, p. 124-125) que ao lado da “justiça”, também o direito perseguiria o “bem”, valor ético último. Nas suas palavras: “Note-se que, quando formulamos o problema do fim do direito, não nos referimos aos fins empíricos que aqui ou além podem ter provocado o aparecimento deste ou daquele direito positivo, mas sim à meta-empírica de fim, à luz da qual (sub specie ӕterni) o direito terá de ser apreciado. A resposta a esta pergunta, porém, só poderá ser dada depois de sabermos qual dos valores, ao lado do da justiça - daqueles a que deve atribuir-se, assim como a esta, uma validade absoluta - o direito é chamado a servir. Podemos limitar-nos a apontar aqui, mais uma vez, para o tradicional tríptico de todos os valores últimos que já conhecemos - o dos valores éticos, lógicos e estéticos, do bem, da verdade e do belo - pois que imediatamente se reconhecerá que o direito só pode ser chamado a servir um destes valores e, nomeadamente, o valor ético do Bem”.
  • 3
    Esta é uma das principais teses de Foucault sobre o Direito moderno, em “Vigiar e Punir” (2014).
  • 4
    Para a melhor exposição na literatura dos modelos de constitucionalização, veja-se: AFONSO DA SILVA, 2015.
  • 5
    Sobre isto e com relação à propriedade, especificamente, veja-se a posição exemplar de Borges (1998): “Com o advento da Constituição de 1988 o direito de propriedade deixa de ter sua regulamentação exclusivamente privatista, baseada no Código Civil, e passa a ser um direito privado de interesse público, sendo as regras para seu exercício determinadas pelo Direito Público e pelo Direito Privado. Este processo de publicização do direito de propriedade é fundamental para a implementação da legislação referente à proteção do meio ambiente, que impõe limites ao exercício daquele direito”.
  • 6
    Citem-se como exemplos: LOTUFO, 2002; MORAES TEPEDINO, 1993; PERLINGIERI, 2002; TEPEDINO, 1999. Para uma crítica à dogmática da propriedade proposta através dos pressupostos do “Direito Civil-Constitucional”, veja-se, por todos: RODRIGUEZ JÚNIOR, 2012.
  • 7
    Cf. BOURDIEU, 1986; SIEBENEICHLER ANDRADE, 1997; SAVIGNY, 1946.
  • 8
    Sobre o assunto, ver: SACCO, 1983.
  • 9
    O conceito de “dogmática ascendente” pode ser utilizado para além dessas hipóteses. Em outro lugar (FERNANDES JR., 2022c) mostrei como ela pode ser manejada como ferramenta heurística para codificar a interpretação que migrantes internacionais dão à eficácia dos documentos migratórios em face de suas relações jurídicas e de parentesco, por exemplo.
  • 10
    Recorre-se aqui à ideia de “tipo concreto”, conforme definida em: LARENZ, 2012. p. 655-659. Demonstrei a utilidade desta categoria para fins da pesquisa jurídica empírica em: FERNANDES JR., 2019b; 2018a.
  • 11
    Inobstante sejam raras as análises jurídicas que se debrucem sobre essas “celeumas do tempo”, por assim dizer, elas hão de ser mais comuns do que aparentam. Algo semelhante pode ser encontrado, por ocasião da aplicação do princípio do tempus regit actum aos negócios jurídicos, em: FERNANDES JR, 2019a.
  • 12
    Entende-se a posse, na análise, como situação de fato, conforme a interpretação de Pontes de Miranda (1971). Sobre as maneiras através das quais o Direito funcionaliza situações de fato, e, mais especificamente, a posse, ver: FERNANDES JR., 2018b.
  • 13
    A desagregação da “propriedade” em sentido genérico e abstrato como corolário do reconhecimento das diferentes funções exercidas pelos direitos e pelas coisas em si tem sido percebida há tempo suficiente para que não soe novidadeira para ninguém. Colocando a questão em termos claros: TOMASETTI JR., 1996.
  • 14
    Os autores falam em “aquisição compulsória” do bem, mas a isto não lhes assiste, já que aquilo que fundamenta a perda do bem para o titular do ius possidendi é o seu perecimento, e que não cabe falar em aquisição de algo inexistente por já ter já se extinguido.
  • 15
    Sobre a maneira como o conhecimento objetivado por outras disciplinas ingressa no Direito foi objeto de discussão, v.g., em: FERNANDES JR., 2022a, 2021.
  • 16
    De acordo com a Seyla Benhabib (2004, p. 19-20): “Democratic iterations are complex processes of public argument deliberation and learning through which universalist right claims are contextualized, invoked and revoked, throughout legal and political institutions as well as public sphere of liberal democracies. (…) Through such processes the democratic people shows itself to be not only the subject but also the author of its laws”.
  • 17
    Para uma análise sobre os custos deste procedimento, ver: FERNANDES JR.; BOLOTI, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jan 2022
  • Aceito
    20 Jul 2022
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