RESUMO
O objetivo deste artigo é analisar o projeto folclorista de João Simões Lopes Neto (1865-1916), redesenhando suas conexões com movimentos contemporâneos de definição da cultura popular, além de seus contatos com práticas de representação letrada baseadas na cultura campesina dos países vizinhos, Argentina e Uruguai. Metodologicamente, explorarei a materialidade/edição e a economia textual de seu livro Cancioneiro Guasca (1910-1917). É possível concluir que existiu um projeto coletivo de invenção de tradições gaúchas no Rio Grande do Sul da Primeira República, suportado pelas práticas do folclorismo mais amplo, do qual participou o esforço simoniano. Essa variação de identidade gaúcha também observava o projeto castilhista-positivista de modernização conservadora, além de integrar a patrulha nacionalista de suas fronteiras simbólicas.
Palavras-chave:
invenção de tradições; folclore e folclorismo; gauchismo; Rio Grande do Sul; bacia do Prata
ABSTRACT
This article analyzes the folklorist work of João Simões Lopes Neto (1865-1916). In particular, it reinterprets his connections with contemporary movements to define popular culture, as well as his contacts with practices of literary representation based on peasant culture in neighboring Argentina and Uruguay. Through an exploration of his book Cancioneiro Guasca (1910-1917), this article shows that there was a collective project of inventinggaucho (southern Brazilian) traditions in Rio Grande do Sul during the First Republic, which included the folklore practices that Lopes Neto had collaborated on. This variation of Gaucho identity also aligned with the Júlio de Castilhos Positivist project for conservative modernization, in addition to integrating the nationalist patrol of its symbolic borders.
Keywords:
Invention of traditions; Folklore and folklorists; gaucho movements; Rio Grande do Sul; Rio de la Plata Region
RESUMEN
El objetivo de este artículo es analizar el proyecto folclorista de João Simões Lopes Neto (1865-1916), rediseñando sus conexiones con movimientos contemporáneos de definición de la cultura popular, además de sus contactos con prácticas de representación letrada basadas en la cultura campesina de los países vecinos, Argentina y Uruguay. Metodológicamente, exploré la materialidad/edición y la economía textual de su libro Cancioneiro Guasca (1910-1917). Es posible concluir que existió un proyecto colectivo de invención de tradiciones gauchas en Rio Grande do Sul de la Primera República, sustentado por las prácticas del folclorismo más amplio, del cual participó con gran esfuerzo. Esa variación de identidad gaucha también observaba el proyecto positivista de Júlio de Castilhos de modernización conservadora, además de integrar la patrulla nacionalista de sus fronteras simbólicas.
Palabras Clave:
Invención de tradiciones; Folklore y folclorismo; gaucho; Rio Grande do Sul; Cuenca del Plata
Na década de 1950, Florestan Fernandes chamava a atenção para os limites entre o folclore, entendido como “campo especial de indagações e conhecimento” (FERNANDES, 2003FERNANDES, Florestan. O folclore em questão. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 23), e as Ciências Sociais. No momento em que o movimento folclórico brasileiro ganhava espaço na estrutura burocrática, com a constituição de comissões oficiais que recebiam apoio de organismos internacionais, como a Unesco, e o folclore ambicionava institucionalizar-se como disciplina universitária,1 1 Em 1947, foi fundada a Comissão Nacional de Folclore, por Renato de Almeida, no Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura. A entidade ganhou diversos braços estaduais nos anos seguintes. A esse respeito, ver o trabalho de Vilhena (1997). o jovem sociólogo recuperava a trajetória do folclorismo no Brasil para negar-lhe o estatuto científico. Para o autor, caberia uma divisão de tarefas: a especificidade das “indagações humanísticas” de seus oponentes, nessa luta disciplinar por espaço universitário, lhes reservaria a análise formal dos fatos folclóricos em si e a sua classificação. Essas formulações não se baseavam apenas na constituição brasileira dos estudos folclóricos. O colecionismo, herança do espírito antiquário, o anonimato e o gosto pelo pitoresco, sobrevivências do Romantismo, constituíam uma “acidentalidade metodológica” necessária à afirmação de uma disciplina sem quadros profissionalizados e que se dirigia a um público não especializado (ORTIZ, 1992ORTIZ, Renato. Românticos e folcloristas: cultura popular. São Paulo: Olho D’Água, 1992., p. 46). No Brasil, essa configuração pode, grosso modo, ser delimitada temporalmente pelas primeiras publicações de poesias orais, como as coletâneas de Silvio Romero, e pelo debate de que Florestan Fernandes fazia parte, ou seja, a média duração da fundação de um campo transnacional de conhecimento erudito e autodidata e as tentativas de profissionalização de suas atividades em nosso país. Nesse ínterim, diversos intelectuais brasileiros desenvolveram projetos folcloristas com pretensões científicas. No Rio Grande do Sul, João Simões Lopes Neto (1865-1912)2 2 Nascido e atuante em Pelotas, próximo à fronteira com o Uruguai. Antigo centro aristocrático da elite provincial no Império, ainda era a segunda cidade mais rica (e populosa) da região no período. Simões foi um intelectual polígrafo, com produção em teatro amador, jornalismo, ficção e folclore. Seus contos foram recuperados pela geração modernista gaúcha, após edição póstuma de 1926, como obra precursora da estética do movimento no Sul. explorou essa possibilidade do folclorismo colecionista na sua obra de estreia, Cancioneiro Guasca, de 1910, revista e ampliada em 1917.3 3 O escritor faleceu um ano antes, mas sabe-se que ele já havia entregue a versão revisada do livro ao editor. Logo, as inclusões e alterações são de sua responsabilidade.
O objetivo deste artigo é analisar o projeto folclorista do autor, redesenhando suas conexões com movimentos contemporâneos de definição da cultura popular, além de seus contatos com práticas de representação letrada baseadas na cultura campesina dos países vizinhos, Argentina e Uruguai. Trata-se, ainda, de uma contribuição aos estudos sobre a fabricação de identidades políticas baseadas no mito romântico do gaúcho pampiano, num momento chave de sua atualização no sul do Brasil e nos países do Rio da Prata, a virada do século XIX para o XX.
Folclorismo e poesia popular
É possível dizer que toda a obra de Simões Lopes Neto, incluindo os títulos apreciados como literatura de imaginação, dialoga com o folclorismo da época. Mesmo os Contos gauchescos (1912), que lhe conferiram consagração póstuma no campo literário brasileiro, traziam o subtítulo “Folclore regional” na edição original da Livraria Universal, de Pelotas; mais tarde abandonado pela Editora Globo, de Porto Alegre.4 4 Editora gaúcha de alcance nacional, nascida como seção da Livraria do Globo, de Porto Alegre, na década de 1920. O abandono do subtítulo fazia parte do esforço para recolocar a obra em circulação como alta ficção, o que se efetivou com a edição crítica, de 1949, organizada por Aurélio Buarque de Holanda. Nem as Lendas do Sul (1913), pelo teor menos autoral dos textos anunciados no próprio título, dispensaram explicação semelhante: eram originalmente apresentadas como “populário”. Os Casos do Romualdo (1952), que Simões não chegou a ver publicados em livro, também eram acompanhados de uma nota introdutória significativa, repetindo os dois termos, como sinônimos: “assunto de populário (folclore diz-se elegantemente nas altas letras...)” (grifo do autor) (LOPES NETO, 1952LOPES NETO, João Simões. Casos do Romualdo. Porto Alegre: Globo, 1952., p. 9). Além de afirmar uma identidade folclórica, esse paratexto editorial5 5 Emprego as categorias de Gérard Gennete (2009) para analisar os elementos paratextuais: discursos geralmente verbais que cercam e prolongam o texto principal na própria materialidade do livro; com funções de apresentação, ou seja, visando garantir a presença, a recepção e o consumo da obra. conforma a maneira legítima de apreensão da obra: “O merecimento deste livro subsiste na paciência com que foi ele coligido; falta-lhe relevância artística, é certo; fora porém crueza destroçá-lo por esse pecado” (LOPES NETO, 1952LOPES NETO, João Simões. Casos do Romualdo. Porto Alegre: Globo, 1952., p. 9). Mais do que dissimular uma modéstia intelectual que não condizia com suas ambições no período, esse discurso possui uma função epistemológica, uma vez que reproduz o veto à intervenção do folclorista no produto da coleta, por meio da censura à imaginação autoral. Uma decalagem típica do folclorismo positivista em relação aos antecessores românticos, que buscava contornar as suspeitas de falta de cientificidade. Esse argumento também foi parcialmente usado por Simões na apresentação do Cancioneiro: “Seja este livrinho o escrínio pobre; mas, que dentro dele resplandeça a ingênua alma forte dos guerrilheiros, campesinos, amantes, lavradores; dos mortos e, para sempre, abençoados Guascas!”6 6 “Guasca” originalmente significava uma tira de couro usada em trabalhos campeiros. Pela resistência do material, o termo passou a designar o peão, sugerindo ao mesmo tempo força e rudez. (LOPES NETO, 1910, p. 5). Em seu projeto folclórico, a pobreza artística era corolário da autenticidade e da simplicidade popular.
Essas observações, assim como o emprego do termo “folclore”, de cunhagem então relativamente recente, revelam que nosso autor conhecia as características da disciplina em formação. A primeira sociedade folclórica foi instituída em 1878, na Inglaterra, alguns anos depois de seu fundador, o antiquário William John Thoms, criar o termo “folk-lore”, “sabedoria do povo”. Com esse neologismo, os ingleses também exportaram um modelo novo de apreensão da cultura popular, notavelmente influenciado pelo livro Cultura primitiva (1871), de Edward Tylor, que permitiu adotar a noção positiva de “sobrevivência”, em oposição ao uso generalizado de “superstição” para definir as crenças e narrativas campesinas. A partir de 1885, a palavra folclore passou a substituir sistematicamente a expressão “tradições populares” na França. Por essa dupla via, chegou a Portugal e ao Brasil, respectivamente nas obras de Teófilo Braga e Silvio Romero. Mas sua apropriação por Simões Lopes Neto não pode ser atribuída apenas à leitura dos títulos lançados na área pelo famoso escritor brasileiro e seu contemporâneo português. Havia também uma conjuntura regional favorável à recepção da nova disciplina, com antecedentes locais de primeira hora.
Segundo Ortiz, em países então periféricos, no Sul e Leste europeu, como a Alemanha, a Itália, Espanha e Portugal, o “popular” folclorista foi logo identificado à ideia de “cultura nacional”, em seus processos de construção ou redefinição de identidades políticas (ORTIZ, 1992ORTIZ, Renato. Românticos e folcloristas: cultura popular. São Paulo: Olho D’Água, 1992., p. 65). Também no Brasil, a recepção à nova disciplina se deu primeiramente em regiões relativamente afastadas do centro político e econômico: Maranhão, Sergipe, Pernambuco e Rio Grande do Sul, espaços que buscavam participar da invenção romântica da brasilidade, sem abrir mão de seu ponto de vista particular. Nesse contexto, o mais notório antecedente sul-rio-grandense de Simões Lopes Neto foi o jornalista alemão Carlos von Koseritz, que coligiu poesia anônima nas páginas da Gazeta de Porto Alegre, em 1880, recolhida pioneiramente em trabalho de campo incentivado pelo próprio Silvio Romero.7 7 Segundo von Koseritz, o escritor sergipano havia dado a sugestão de coligir e publicar quadrinhas populares que circulavam oralmente na província, o que ele realizou entre janeiro e março de 1880. Mais tarde, os versos compilados foram transcritos em Cantos populares do Brasil (1883), de Romero. Além dos contatos nacionais, suas redes intelectuais com na Europa garantiram a importação rápida da perspectiva folclorista, que encontrava no regionalismo romântico sul-rio-grandense um clima propício para se desenvolver.
Mas voltemos à questão epistemológica. Com raras discussões teóricas, basicamente centradas na definição do objeto - culturas primitivas no seio de sociedades modernas - e quase nenhuma pretensão interpretativa, pouco sobrava ao folclorista além do ordenamento da coleção que ele constituía. Apesar da “obsessão classificatória” da disciplina, também não era comum enunciar os critérios adotados na organização do material folclórico. Assim, nos resta sondar as escolhas simonianas através da economia do texto e da materialidade das duas edições que tiveram seu acompanhamento. Mais uma vez, o subtítulo é a porta de entrada para a coleção: “poesias populares”. Em 1910, o livro possuía uma primeira parte dedicada a narrativas, que acabaram aproveitadas na publicação de Lendas do Sul, três anos mais tarde. Com isso, a edição de 1917 teve a seção suprimida. Não se trata apenas de um rearranjo editorial, mas de uma depuração do trabalho de classificação. Com a revisão e a ampliação do Cancioneiro Guasca, Simões Lopes Neto podia apresentar ao público três títulos especializados, respectivamente, em prosa narrativa realista (contos), prosa narrativa fantástica (lendas) e poesia popular. Conforme observou Peter Burke, a descoberta do “povo” pelos folcloristas do oitocentos, quando “cultura” significava arte acadêmica, levou à busca de equivalentes populares da literatura, da música clássica etc. (BURKE, 2010, p. 22). Isso explica a feição do projeto folclórico de Simões, bem como sua incursão inicial pela produção de ficção.
Voltando ao texto, todas as demais partes da primeira edição foram mantidas, respeitando certa unidade: I - Antigas danças, II - Quadras, III - Poemetos, IV - Trovas, V - Poesias históricas, VI - Desafios, VII - Dizeres, VIII - Diversas, IX - Modernas. Os acréscimos mais significativos estão nas partes II e IX. As poesias modernas, com conteúdo político, passaram de 8 a 13. As quadras,8 8 “Quadras” são pequenos poemas compostos de quatro versos, geralmente de sete sílabas (redondilha maior), em que o segundo e o quarto versos comumente rimam entre si. Segundo Bráulio Tavares, é a forma poética mais comum na “cultura popular brasileira” (TAVARES, 2009, p. 32). eminentemente centradas na lírica amorosa, de 706 a 727. Ainda que tímido, o trabalho de recolha de versos parece não ter parado mesmo quando as energias intelectuais de Simões Lopes Neto se dirigiam para a produção de contos e para o jornalismo profissional, no final de sua vida. E o impressionante número de quadras apresentado não deixa dúvidas de que este era, então, o núcleo de seu projeto folclórico. Era nessa seção da coleção, também, que ele provavelmente exercitava um pequeno trabalho de campo. Nas demais, temos a indicação de uma fonte escrita ou da autoria dos versos coligidos. É verdade que boa parte dos poemas foi retirada de impressos que circulavam na província desde o final do Império, como o Anuário do Rio Grande do Sul, o Almanaque Literário e Estatístico do Rio Grande do Sul e o Almanaque Popular Brasileiro, este último publicado pela editora do autor. Mas o anonimato dessas criações possivelmente instigava o novo folclorista a coletar material na oralidade, em entrevistas com “pessoas respeitáveis que se prestaram gentilmente à rebuscar na memória adormecida o saudoso recordar que a muitas fez parar em meio à recitação... a muitas fez umedecer os olhos... ou já sorrir!...” (LOPES NETO, 1917LOPES NETO, João Simões. Cancioneiro Guasca. 2. ed. (ampliada). Pelotas: Livraria Universal, 1917., p. 263).
Na impossibilidade de analisar qualitativamente um volume tão grande de poesias, e na necessidade de me aproximar das temáticas privilegiadas na coleção, procedi a um balanço quantitativo. Na tabela abaixo, distribuí as 727 quadras de acordo com tópicas isoladas, como “amor” e “saudade”, ou com agrupamentos de tópicas de mesmo campo semântico, como “partida/despedida/fuga”, “solidão/tristeza/desdita” ou “canto/dança/trova”. As quadras que tematizam figuras femininas foram divididas em duas categorias, aquelas em que a mulher é objeto de atração ou desejo sexual e aquelas em que é alvo de desconfiança ou medo. Duas rubricas foram adicionadas ao quadro para destacar emulações de performances orais, independentemente do assunto nelas explorado: as provocações e respostas dos desafios de trova e os (auto)elogios do “cantor”. Outra rubrica agrupa temas diversos, mas que possuem afinidade formal pelo tom de ensinamento de verdades universais, que designei como “lições de vida”. Tópicas com apenas uma ou duas ocorrências foram agrupadas na categoria “diversas”. Por fim, separei algumas quadras que insinuam leve crítica de costumes ou de sociedade, que serão discriminadas e analisadas mais tarde. Dada a raridade significativa, também isolei em rubrica à parte as menções à condição de escravo e/ou negro.
Salta aos olhos a grande quantidade de quadras sobre o amor: 395 - quase 55% da coleção. Somadas a outras rubricas que denotam estados de sentimento - saudade, solidão, tristeza -, situações pessoais - despedidas, fugas - ou pontos de vista individuais sobre a mulher, chegamos a cerca de 80% de conteúdo lírico tradicional. É comum encontrarmos na bibliografia especializada sobre o cancioneiro popular a avaliação de que a poesia oral rio-grandense, durante o século XIX, era predominantemente dessa natureza. Trata-se de um argumento do primeiro historiador da literatura no estado, João Pinto da Silva, de 1924, que acabou sendo reproduzido sem muita reflexão. Nesse sentido, Augusto Meyer, que seguiu os passos folcloristas de Simões, foi uma exceção, pois considerava que a observação de Silva dependia do “método ou do arbítrio com que se tentara o trabalho de classificação da poesia popular gaúcha” (MEYER, 1952MEYER, Augusto. Cancioneiro gaúcho. Porto Alegre: Globo, 1952., p. 2).
Portanto, é importante reconsiderar essa avaliação. Tendo em vista que poesia oral hoje considerada patrimônio regional foi praticamente toda coletada e publicada na virada do século XIX para o XX, por autores como Carlos Von Koseritz, João Cezimbra Jacques e Simões Lopes Neto, de semelhantes inclinações políticas e intelectuais, sua natureza lírica pode nos dizer mais sobre a ideologia dos folcloristas do que sobre uma suposta cultura popular campesina singular. Como sabemos, as condições sociais da vida letrada no Rio Grande ainda não permitiam uma divisão das tarefas de produção cultural. Apesar da sintonia temporal com seu berço europeu, o Folclore no estado não podia desenvolver instituições científicas próprias. Em contrapartida, a ampliação do parque gráfico local e a disseminação de periódicos de perfil literário, quer dizer, de alta cultura, facilitava a circulação de ideias e a correspondência de autores locais. Se as sociedades cívicas gauchescas fundadas na Primeira República também não apresentavam homogeneidade de características e de objetivos, elas formaram uma rede de intelectuais polígrafos com preocupações regionalistas comuns de salvaguarda de costumes considerados periclitantes, que auxiliaram a difundir a perspectiva folclorista. A primeira delas, o Grêmio Gaúcho, liderada por João Cezimbra Jacques, foi fundada na capital, Porto Alegre, em 1898. No ano seguinte, surgiu a União Gaúcha de Pelotas, da qual nosso personagem faria parte, algum tempo depois. Em 1899, ainda, foi criado o Centro Gaúcho, na cidade fronteiriça de Bagé. Em 1901, o Grêmio Gaúcho de Santa Maria.
Não é difícil sustentar, portanto, que existia, no momento, um projeto coletivo de invenção de tradições gaúchas para o Rio Grande do Sul, cujo olhar conformou o trabalho de campo e a organização das coleções folclóricas. Inicialmente, elas deveriam fornecer material para o culto do universo gauchesco nas cidades, o que incluía a dramatização de suposta vida campeira originária: “Assim constituída a sociedade, farão parte dos programas das nossas festas tradicionais o mais que for possível: - a representação teatral em cenários campestres improvisados ligeiramente, de atos do passado [...]” (JACQUES, 1912JACQUES, João Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Escola de Engenharia, 1912., p. 42).
Vale dizer que os literatos românticos do XIX produziram e fixaram lugares-comuns a respeito da campanha rio-grandense, sua paisagem, sua vocação para a pecuária e o tipo social representativo, um camponês idealizado nas figuras do “monarca das coxilhas” ou do “centauro dos pampas”, suposto cavaleiro de ideias liberais atávicas e defensor dos limites luso-brasileiros no sul do continente. Mas a parcela regionalista porto-alegrense dominante costumava evitar o termo “gaúcho”, ainda associado ao imaginário fronteiriço do gaucho malo, personagem errante e indisciplinado, de nacionalidade indefinida, que assaltava os vilarejos locais e praticava o contrabando e o abigeato.9 9 Para uma análise detida da ressignificação da palavra “gaúcho” na segunda metade do século XIX, incluindo o empenho de escritores de ficção para superar seu estigma de bandido, conferir a pesquisa de Carla Renata Gomes (2009). A geração de Simões Lopes Neto e de Cezimbra Jacques foi a primeira a enfrentar essa suspeita simbólica, atribuindo os traços heroicos do “monarca” literário ao significante “gaúcho”, identificando essa construção com o peão assalariado da estância de criação moderna.
O inventário das tradições
Os traços regionalistas na coleção podiam aparecer na lírica de amor, mas é na pequena parte de poesia narrativa ou épica10 10 Nos versos anônimos, a poesia épica/narrativa está praticamente restrita aos motivos de danças, como o Tatu e a Chimarrita. , nos versos autorais e, principalmente, na lírica não amorosa que transparece um breve inventário de coisas do Sul: a viola (CGu 336)11 11 Para facilitar as citações e individualizar as análises dos poemas, adoto como convenção a sigla CGu, de Cancioneiro Guasca, seguida do número da quadra transcrita, na edição ampliada de 1917. e o canto (CGu 297), os desafios de trova (CGu 24), as danças (CGu 19), o gosto pela carne assada,12 12 “Adeus, barrigas verdes/ Já vou a monarqueiar,/ Gosto mais do meu churrasco/ Que desses bagres do mar” (PORTO ALEGRE apud LOPES NETO, 1917, p. 127). o mate (CGu 259). Eram elementos e práticas relativamente vivas no universo rural regional, não apenas fronteiriço, mas que tinham certo apelo de memória ancestral e podiam ser transformadas em emblemas de um passado imaginado. Caso da suposta vocação artística espontânea do homem rude e simples, mais comumente lembrado pela belicosidade: “Você me mandou cantar,/ Pensando que eu não sabia;/ Pois eu sou como a cigarra,/ Que cantando, passa o dia” (GGu 389).
Conforme Eric Hobsbawm, os processos de invenção de tradições exigem a utilização de elementos antigos, mesmo que sirvam a propósitos novos, o que lhes confere credibilidade e legitimidade (HOBSBAWM, 2002HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 9-23., p. 10). Em primeiro lugar, o repertório de que Simões Lopes Neto lança mão, nas quadras coletadas, integra um projeto mais amplo do qual a própria poesia popular fazia parte. Não é à toa que a primeira parcela do livro apresenta “antigas danças”. Segundo, é esse inventário textual que dá autenticidade ao conjunto dos versos, quer dizer, certifica a “cor local” da lírica amorosa e de temas abstratos. De certa maneira, dá ambiência e moldura para as mensagens de cunho universal e linguagem culta sobre o amor, a saudade, a solidão, a tristeza; mesma função das metáforas campeiras no interior de algumas quadras amorosas: “Vou-me embora, tenho pressa,/ Tenho muito que fazer;/ Tenho que parar rodeio,/13 13 “Parar rodeio”: reunir o gado em algum ponto determinado do campo para contá-lo ou marcá-lo. No peito do bem querer” (CGu 497).
Assim, ainda que certo casuísmo possa ter determinado o acúmulo da coleção, sua arquitetura geral não me parece fortuita. A exploração do conteúdo comumente lírico do popular, sem assunto e forma estritamente local, também era uma opção do folclorista. Consultando as fontes impressas utilizadas por Simões Lopes Neto, percebi que algum material deixou de ser aproveitado. Do mesmo número do Almanaque Estatístico e Literário do Rio Grande do Sul, organizado por Alfredo Rodrigues, em que Simões recolhe uma persignação farroupilha, por exemplo, é desconsiderado o poemeto anônimo de um soldado da campanha do Paraguai que sonhava em desertar. Seguem as duas estrofes:
da Margarida Pilar
mil saudades numa carta
que me fez quase rodar.
Cué puxa! deu-me na mata
co’as ganas de desertar!
sinal de que continua;
enquanto os bugres aprontam
na serra a defesa sua,
bom era que me pozessem
desde já no olho da rua.
Nesse caso, a forma poderia ter causado a exclusão, já que as estrofes de seis versos não permitiriam sua alocação na silva de quadras. Contudo, Simões costumava alterar os textos das fontes quando considerava necessário, o que serviria para contornar esse problema, caso sua ambição de registro fosse meramente compilatória. Além do mais, o texto caberia na seção “Poemetos”, que traz poesias autorais e algumas anônimas mais desenvolvidas. O que parece mesmo ter motivado a supressão foi o tema da deserção, que revela um lado diverso do gaúcho valente idealizado, “guasca largado”, “de todos temido”:14 14 Em “Os cabelos da china”, de Contos gauchescos, o personagem-narrador Blau Nunes se recusa a passar por desertor no conflito farrapo.
Galeguinhos que vem da cidade.
Sei valente suster nas batalhas
O fulgor da feliz liberdade.
(grifo da edição) (ASSIS BRASIL apudLOPES NETO, 1917LOPES NETO, João Simões. Cancioneiro Guasca. 2. ed. (ampliada). Pelotas: Livraria Universal, 1917., p. 151)
É importante dizer que o autor não produziu uma higienização radical dos assuntos possivelmente problemáticos. Uma leve crítica social se insinua em 8 quadras, destacadas na última rubrica da Tabela 6. Geralmente, o gaúcho se queixa do excesso de trabalho frente aos ganhos muito modestos: “Vivo sempre a trabalhar/ Na vida da mandioca,/ Sem nunca poder comer/ Um beiju de tapioca” (CGu 249). O regime de exploração do trabalho impede, inclusive, o estabelecimento de laços amorosos mais efetivos: “Triste vida a do tropeiro,/ Que não pode namorar;/ De dia, reponta o gado,/ De noite, passa a rondar” (CGu 300). Essa é também uma das razões da desconfiança em relação à mulher, como veremos mais adiante. Por fim, a pobreza no campo aparece num lamento resignado: “Tenho meu chapéu de palha,/ De pelo não posso ter;/ De pelo custa dinheiro,/ De palha posso fazer” (CGu 509). A rebeldia e/ou aversão à autoridade, tópicas privilegiadas da gauchesca platina,15 15 Gênero de alta literatura, geralmente em poesia narrativa, que emula a linguagem de gaúchos campeiros, incluindo algumas lógicas formais de sua literatura oral. A obra mais conhecida e aclamada do gênero é El gaucho Martín Fierro (1872), do argentino José Hernández. também comparecem na seleção dos poemetos. Nessa seara, o caso limítrofe é a transcrição de O gaúcho, texto campestre anônimo com dez estrofes, publicado originalmente na edição de 1890 do Anuário, que exalta a bravura e a autonomia da figura na autoaclamação do eu-lírico, com o elogio à violência: “Ser monarca da coxilha/ Foi sempre meu galardão/ E quando alguém me duvida/ Descasco logo o facão” (LOPES NETO, 1917LOPES NETO, João Simões. Cancioneiro Guasca. 2. ed. (ampliada). Pelotas: Livraria Universal, 1917., p. 156).
A economia do texto aponta, então, para uma função interna de neutralização. O conteúdo lírico tradicional nas quadras parece ser um contraponto aos rompantes barbarescos presentes em muitos dos poemetos e à dura condição da vida do campeiro, em algumas das quadras. Essa construção talvez atendesse ao gosto pessoal de Simões Lopes Neto. Comparando a literatura do autor com a gauchesca platina, César Guazzelli observou que sua diferença mais marcante é a primazia dos “dramas individuais, densos e muitas vezes trágicos” (GUAZZELLI, 2002GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. Matrero, Guerreiro e Peão Campeiro: aspectos da construção literária do gaúcho. In: MARTINS, Maria Helena (org.). Fronteiras Culturais: Brasil - Uruguai - Argentina. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. p. 107-125., p. 113). Vale dizer que, nos Contos gauchescos, a violência só emerge em situações particulares, geralmente atreladas a conflitos amorosos, como em “Negro Bonifácio” e “No manantial”, assuntos tradicionalmente líricos. Conforme Guazzelli, ainda, a delinquência não seria para Simões algo constitutivo da psicologia coletiva do gaúcho, nem mesmo uma função das opressões sociais, como ocorre no Martín Fierro, de Hernández. De qualquer maneira, sua resposta pessoal atendia a problemas compartilhados. Acredito que a exploração da veia lírica amorosa do cancioneiro, e talvez o lirismo de alguns contos, caminhava ao encontro da necessidade de domesticação da cultura popular no projeto republicano de modernização conservadora, pois compensava a rebeldia e desviava a atenção de possível crítica social. Assim, o discurso folclorista escondia aquilo que pretendia mostrar. Uma função característica da disciplina, desenvolvida a partir da repressão política às obras consideradas “subversivas” e “imorais”, conforme Revel, de Certeau e Julia (1989REVEL, Jacques; CERTEAU, Michel de; JULIA, Dominique. A beleza do morto: o conceito de cultura popular. In: REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 49-75.).
Como nos países europeus periféricos do século XIX, a noção de “povo” mobilizada pelo Folclore no Rio Grande do Sul não tinha a ver com a ampliação de direitos. Ela devia servir à política de conciliação de classes do positivismo castilhista. Com um histórico de conflitos recentes na região e com o estigma de barbárie que ainda pesava sobre o homem do campo, era necessário contornar as desconfianças e criar um gaúcho dócil no plano simbólico. Tratava-se de um esforço de (auto)propaganda correlato ao processo de disciplinarização dos grupos subalternos rurais e urbanos, que vinha se concretizando pela extensão do aparelho de vigilância policial, pelos mecanismos de censura e de controle político e pela ampliação da oferta escolar. Esse último elemento dispunha sobre os corpos e sobre as mentes dos sul-rio-grandenses. Daí a grande preocupação da escola com práticas de higiene, educação física e formação cívica, da qual fazia parte o ensino de história e do folclore. A invenção de tradições gaúchas cumpria, portanto, uma dupla função simbólica: a) inculcação de valores, junto à população local, incluindo a defesa da versão vitoriosa de republicanismo; b) construção de uma imagem pública positiva para o estado e para o governo do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), no cenário nacional.
Em Porto Alegre, o folclorismo cívico de Cezimbra Jacques recebia apoio oficial. Em 1900, A Federação deu ampla divulgação para o primeiro grande evento da entidade, uma cavalhada realizada nos arredores da cidade, fato que provavelmente explica o público de cerca de 7 mil assistentes. A descrição da festa deixa claro que o aparato estatal foi mobilizado para a organização do espaço, provendo os campos então desertos do atual bairro Menino Deus de equipamentos públicos, incluindo um pavilhão central para abrigo das principais autoridades e de seus familiares. Dele, acompanharam a dramatização o presidente Borges de Medeiros, o líder do PRR Júlio de Castilhos, o intendente municipal José Montaury, o chefe da polícia Major Cherubim da Costa, entre “outras pessoas e conceituados membros da classe comercial, oficiais do exército e da Brigada Militar”16 16 AS CAVALHADAS. A Federação. Porto Alegre, 2 jul. 1900, p. 2. .
Três anos depois, o falecimento de Castilhos motivou o enquadramento de sua memória, o qual significativamente passou pela domesticação simbólica do gaúcho. Além da criação do primeiro museu do Estado em sua antiga residência, foi projetado um monumento em sua homenagem na principal praça da capital. Executado entre 1910 e 1913, o conjunto estatuário lembra um altar positivista, com um obelisco ao centro, circundado por diversos elementos da simbologia republicana, como referências a Tiradentes e José Bonifácio e inscrições alusivas à proclamação da República no Brasil e à Revolução Francesa. Em sua face sul (Figura 1), foi erigida a escultura de um jovem gaúcho a cavalo, herói anônimo, primeira do gênero no Rio Grande, simbolizando o apoio das camadas populares. Além de traços físicos europeus, um atributo caro ao projeto de representação do estado, a figura mítica é materializada no peão das estâncias modernas, numa provável cena de doma, na qual o campeiro empunha o chapéu de abas largas na mão direita, enquanto subjuga o animal pelas rédeas na mão esquerda. O traje ostentado é aquele inventariado e folclorizado pelo Grêmio Gaúcho, com destaque para as bombachas, de uso então recente e atual nas áreas rurais, em detrimento do chiripá, vestimenta do gaúcho histórico indisciplinado.
Outras invenções gauchescas: alteridades platinas
O Cancioneiro Guasca não apresenta descrições detalhadas da indumentária popular no campo, mas seu aparato paratextual denota tal opção. Desde a primeira edição, seu frontispício carregava uma elaborada gravura, com cena pampiana emoldurada por diversos símbolos regionais. A Figura 2 é uma reconstituição da imagem, realizada a partir dos exemplares da Biblioteca Nacional e da Coleção Júlio Petersen, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Na base da ilustração, há um dístico independente que porta a cabeça de um touro em seu centro. Por trás da figura, à esquerda, e sobre ela, à direita, emergem ramas de plantas diversas, com destaque para folhas de erva-mate. São nítidas alusões à pecuária e à lavoura rio-grandense, com destaque para a primeira, quer dizer, à base econômica mais tradicional do estado, além de sua já considerada bebida típica. Entre os elementos que circundam a imagem, há, ainda, uma viola, uma adaga, um laço e uma cuia com bomba sobre uma chaleira, que era usada para esquentar a água do chimarrão. Na parte superior, uma moldura de galhos secos, possivelmente de taquara, espécie local de bambu, orna a cena principal: cinco gaúchos de bombachas, com seus respectivos cavalos, sob a sombra de um umbu, árvore símbolo da pampa, que costumava servir de abrigo do sol a quem cruzava os descampados na região. Ao fundo, descortinam-se, ainda, um mar de coxilhas17 17 Ondulações baixas nos campos abertos da savana, encontradas principalmente no sul do Rio Grande do Sul e no norte do Uruguai. e um pequeno rancho no último plano, à esquerda. Sobre a copa do umbu, aparece o título do livro. Dois dos gaúchos se encontram em pé; o primeiro tomando mate, o segundo tocando uma viola. Dos três sentados, o mais distante parece assistir ao canto dos demais. Os dois gaúchos mais próximos do violeiro cantam ou, mais provavelmente, disputam um desafio de trova.
Em termos editoriais, o propósito mimético da ilustração é evidente, uma vez que ela representa o universo imagético das poesias coletadas com riqueza de detalhes. Mais do que isso, ela conforma o olhar do leitor para a natureza regional(ista) da obra, possuindo idêntico valor probatório ao da linguagem e do assunto local, proporcionalmente parcos na recolha do folclorista, como vimos. Ela emula, ao mesmo tempo, a situação (meramente ideal) de criação e circulação da poesia popular, com alguns de seus motivos: aqueles que possuem o efeito performativo de dotar um espaço diverso e em modernização de uma tradição gauchesca inventada como sua antítese, socialmente una/coesa e fixa num tempo imemorial, ou melhor, num universo simbólico imune aos efeitos do tempo; uma “idade de ouro”.
Para a viabilidade desse modelo de identidade coletiva, sua alteridade privilegiada se tornaria aquela que apresentava, em relação a ele, mais elementos comuns: o gaucho platino. A ostentação da bombacha em Simões Lopes Neto, em Cezimbra Jacques e na autoimagem do projeto castilhista permitia a mesma distinção simbólica: definia o gaúcho rio-grandense, assim como o chiripá identificava, pelo menos nesse imaginário brasileiro, seus pares uruguaio e argentino.18 18 O gauchismo cívico no Uruguai e na Argentina lançava mão tanto da bombacha como do chiripá, em suas dramatizações urbanas, diferentemente do rio-grandense. Talvez daí venha o reforço da imagem do gaucho platino trajando a indumentária histórica original. Paradoxalmente, semelhantes processos de modernização da economia pecuária e de diversificação da sociedade, com crescimento urbano, surto industrial e recrudescimento da imigração, levavam os dois países vizinhos a traçar identidades políticas nacionais a partir do mesmo sujeito popular fronteiriço originário.
Logo, complicações ideológicas semelhantes também exigiam a “domesticação” do passado no Prata. Esse termo, que venho utilizando para a descrição do processo rio-grandense de invenção de tradições gaúchas, foi cunhado originalmente por Ángel Rama (1982) para designar o gauchismo cívico e literário uruguaio de fim de século, que esvaziava o universo gaúcho de seu histórico potencial de rebeldia. Em 1894, o médico e professor universitário Elías Regules fundou, em Montevidéu, a Sociedad Criolla, entidade pioneira do também chamado criollismo. Esse movimento cultural nasceu da experiência pregressa de construção de um “teatro nacional” baseado em temas rurais. As dramatizações da vida campeira passaram a extrapolar os palcos, ganhando vida em desfiles cívicos a cavalo e bailes a caráter, com o cultivo ritual de práticas rurais, como o mate e a carne assada com couro, em festas urbanas abertas à participação do grande público não militante. Ainda que se apresentasse como agremiação apolítica, um contrassenso em se tratando de gauchesca, como notou Ángel Rama, havia na iniciativa uma crítica social regressiva, motivada pela aversão à imigração.
Regules, que também lançou livros de poesia, se inspirava na criação literária e pictórica da geração anterior, como as pinturas naturalistas de Juan Manuel Blanes e o romance histórico de Eduardo Acevedo Díaz, empenhados na construção de uma orientalidad a partir da representação das lutas de independência e da figura do gaúcho (SOUZA, 2008SOUZA, Susana Bleil de. O pincel e a pena na construção da nação: pintando e narrando um mito político fundacional.Amérique Latine Histoire et Mémoire. Les Cahiers ALHIM[En línea], n. 15, 2008. Acesso em: 25 nov. 2017. Disponível em:Disponível em:http://alhim.revues.org/2911 .
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). As sociedades crioulas fundadas no Uruguai, e um pouco mais tarde na Argentina, a partir do exemplo de Montevidéu, portanto, participavam de um processo mais amplo e antigo de produção e controle de imaginário, que ganhou novo fôlego após o êxito do gauchismo ritual. Também é importante perceber que houve certa dose de intercâmbio de estratégias, técnicas e convenções de representação, além dos temas e figuras, em projetos nacionalistas/regionalistas coletivos de mesma temporalidade no Brasil, na Argentina e no Uruguai.
Assim como no Rio Grande do Sul, o gauchismo cívico surgiu na Argentina somente após a fundação da uruguaia Sociedad Criolla. Segundo Oscar Chamosa (2010), o movimento começou a avançar a passos lentos na era do Partido Radical, entre 1916 a 1930, crescendo no período conservador de 1930 a 1943, devido a uma confluência de fatores, como a constituição disciplinar acadêmica do Folclore, com a expansão universitária; o surgimento do nacionalismo cultural crioulo após 1910, crítico ao modelo liberal cosmopolita de formação de nação disseminado a partir da capital Buenos Aires; e a ação das elites políticas regionais, como os produtores de açúcar da província de Tucumán, estudados em sua pesquisa. Portanto, o imaginário gauchesco também servia à constituição de identidades políticas periféricas, vinculados a grupos rurais, não necessariamente à economia pecuária. Matías Emiliano Casas tem mostrado que o criollismo argentino assentado na figura do gaúcho ganhou corpo a partir da década de 1930, com sua apropriação pelo governo da província de Buenos Aires. Antes, havia um imaginário social gauchesco alimentado pela bagagem literária oitocentista, reproduzido sem intervenção direta das instituições que regulavam a estrutura social (CASAS, 2016CASAS, Matías Emiliano. Las metamorfosis del gaucho: círculos criollos, tradicionalistas y la política en la provincia de Buenos Aires, 1930-1960. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2016.).19 19 Sobre a situação do gaúcho argentino nos conflitos de fronteira e sua constituição inicial como mito literário e político, na virada do século XVIII para o XIX, ver Richard Slatta (1983).
Contemporâneo a Simões Lopes, o escritor uruguaio Pedro Figari se dedicaria às artes visuais, em idade avançada, já na década de 1920, para representar em estética modernista as novas tradições gaúchas de seu país. Caso da dança El Pericón, frequentemente encenada pela Sociedad Criolla, elevada a símbolo nacional na Argentina e no Uruguai, que foi tematizada em uma série de quadros. Essa menção se deve a um fato, no mínimo, intrigante: muitas das pinturas de Figari sobre esse motivo apresentam idêntica estrutura convencional à da gravura do Cancioneiro Guasca. Ainda que permaneçamos no plano da especulação, é possível acreditar que as imagens possuíam fontes semelhantes, como impressos platinos do final do século XIX. No que toca a Simões Lopes Neto, a coincidência muito provavelmente é consequência da “mente do editor”, na feliz expressão de Roger Chartier (2014). Alguns testemunhos indicam que os originais do livro de folclore foram organizados por Guilherme Echenique, dono da Livraria Universal, de Pelotas, e amigo próximo do autor, que também incentivou a produção dos contos e das lendas. Segundo seu filho, o editor “gostava bastante dos assuntos regionais”20 20 ECHENIQUE, Sylvio da Cunha. Recrutando sinuelo para a tropa das nossas tradições. Correio do Povo. Porto Alegre, 12 mar. 1965, p. 5. . Essa adesão à temática o levara a publicar pioneiramente, desde pelo menos 1898, uma coleção de livros regionalistas, a Biblioteca Rio-Grandense, que contava, entre seus títulos, com o Vocabulário Sul-Rio-Grandense, de Romaguera Corrêa, Rio Grande do Sul: descrição física, histórica e econômica (1897), de Alfredo Varella, e a segunda edição de Recordações gaúchas (1905), de Luiz Araújo Filho, todos eles fontes de Simões Lopes Neto.21 21 Em Porto Alegre, a edição de uma coleção inteiramente dedicada a assuntos regionais só aconteceria no final dos anos 1940, com a Coleção Província, da Editora Globo (inaugurada pela reedição de Simões). Nos anos seguintes, a Sulina também lançará sua Coleção Meridional. Os três livros do nosso personagem, aliás, estavam inseridos no mesmo projeto, conforme a publicidade da segunda edição do Cancioneiro Guasca. No seu contexto, o apreço pessoal pelo regional dificilmente excluía a produção literária platina, algo potencialmente mais acentuado num editor que importava livros para abastecer suas lojas e, assim, conhecia os cânones editoriais portenhos, bem como os impressos uruguaios, talvez até mais adequados às condições técnicas do parque gráfico local.
Esse curioso fato, por si, justificaria uma rápida comparação das imagens. Além disso, sabe-se que os polígrafos brasileiros conheciam não apenas a literatura e a pintura platina, mas também a iniciativa do grupo de Elías Regules, por sua vez matriz temática da obra de Figari. Na Figura 3, a pintura não datada El Pericón, que se encontra atualmente no acervo do Museu Juan Manuel Blanes, da capital uruguaia, exemplifica a série de Figari dedicada ao motivo. Num prado pampiano, sob a sombra de três umbus, ao cair da noite, um grupo de homens e mulheres se encontram para bailar. Em primeiro plano, no canto direito inferior, três gaúchos empunham suas violas. O mesmo cenário, em idêntica disposição de elementos, emula situação também semelhante nas duas imagens: o exercício de uma arte supostamente espontânea. São, portanto, dois testemunhos de processos específicos de invenção de tradições que recorrem a um repertório de imagens fronteiriças comuns.
As diferenças, mais visíveis no conteúdo do que nas estratégias gerais de composição, também são muito reveladoras. A primeira, diz respeito ao vestuário. O uso do chiripá na pintura de Figari denota uma escolha menos problemática no Uruguai do que seria no Rio Grande do Sul, como tenho sustentado. A segunda divergência é a presença do cavalo na gravura, o que aponta para o uso de uma convenção local, que tem origem nas figuras românticas do centauro e do monarca. Não que esse elemento seja menos importante no Prata, mas sua evocação indica que o aparato paratextual da publicação necessitava apelar a práticas de representação letrada mais consolidadas em seu contexto específico. Nesse mesmo sentido, a comparação nos chama a atenção para uma ausência bastante notável no caso brasileiro. A mulher, equiparada ao homem no espaço da pintura e, como se sabe, de participação ativa no criollismo performático platino, com suas danças de inspiração folclórica, foi esquecida no frontispício do Cancioneiro Guasca, ainda que apareça como objeto da poesia coletada e, em alguns poucos casos, assuma a voz do eu-lírico popular.
Tudo leva a crer que não estejamos tratando de simples esquecimento, mas de silêncio deliberado. O discurso do paratexto pictórico da obra simoniana está de acordo com a exclusão da mulher na primeira etapa de invenção de tradições gaúchas para o Rio Grande do Sul. Quando o tradicionalismo cetegista surgiu, no final dos anos 1940, havia disponível para apropriação uma série de lugares-comuns de gestação local sobre o homem pampiano, mas quase nada sobre a mulher, a não ser a desconfiança em relação à figura da “china”, companheira do gaúcho histórico, percebida como uma aventureira que trocava de amores ao sabor de suas andanças pelo território, ou à “muchacha” dos versos populares, demasiado castelhana para um movimento cultural extremamente nacionalista. A solução seria criar uma categoria social inteiramente nova, sem qualquer precedente histórico razoável, a “prenda”, que atualmente se encontra folclorizada como par do gaúcho rio-grandense.22 22 “Prenda”, no vocabulário regional, significava objeto material de valor, se referindo comumente ao aparato de montaria, como esporas de prata etc. Como precedente, havia apenas o uso metafórico da palavra em alguns versos do cancioneiro e na canção “Prenda minha”, registrada na década de 1920. Nessas situações poéticas, a mulher é vista como posse do homem (ZALLA, 2018).
Alteridades internas: a mulher e o negro
Portanto, a domesticação do passado gaúcho foi ainda mais conservadora no sul do Brasil do que nos países platinos. Mesmo que o Grêmio Gaúcho, de Porto Alegre, pretendesse incorporar a mulher em suas dramatizações, não encontrei, na documentação disponível, nenhuma baliza que nos permita acreditar na concretização desse plano. Além disso, os quadros de sócios e suas diretorias eram formados exclusivamente por homens, mesma configuração do União Gaúcha, de Pelotas. As descrições dos jornais das duas cidades acerca das atividades realizadas pelos dois clubes também indicam apenas a celebração de práticas campeiras socialmente construídas e legitimadas enquanto masculinas, como o trato com o gado (que incluía o abate e o preparo do churrasco), a montaria e os exercícios a cavalo, além de “jogos” de enfrentamento, como a esgrima. O fundador desse gauchiscmo cívico, Cezimbra Jacques, aliás, dedicou algumas linhas sobre a questão, revelando uma visão muito estreita e rígida em relação ao feminino. Confluência de açorianos, paulistas, espanhóis e indígenas (note-se a ausência dos elementos africanos!), a mulher sul-rio-grandense teria herdado seus melhores atributos, como a “beleza”, a “inteligência” e os “sentimentos de humanidade”, e todos eram empenhados na “digna submissão ao homem”. Seu papel, no passado e no presente, seria o de “esposa, mãe e irmã”, tendo sabido se manter “firme” no lar doméstico, “para felicidade da nossa terra, na posição de fiel e sublime anjo da guarda do filho e de inspiradora do marido e do irmão” (JACQUES, 1912, p. 35). Percebe-se, assim, uma crítica reativa à incorporação da mulher ao mercado de trabalho, uma transformação social recente, mas inexorável, creditada em seu livro a “ideias anarquistas”.
Além desse tipo de pressão conservadora, o histórico de misoginia na cultura campeira levava ao reforço da posição subalterna da mulher no imaginário gaúcho e gauchesco, com sua consequente exclusão na formalização de rituais. A antropóloga Ondina Fachel Leal estudou o comportamento de peões de estância na campanha rio-grandense nos anos 1980, quando atestou a sobrevivência de padrões antigos de identidade de gênero, com grande desconfiança em relação ao feminino, sustentados pelo regime de trabalho pastoril, em condições impeditivas à constituição de família: “Por toda a sua vida o gaúcho evita laços, para ele casamento ou filhos significa estar amarrado, enrolado. Mulher é um laço que sufoca. Ter ou cultivar a terra significa criar laços ou vínculos” (LEAL, 1992LEAL, Ondina Fachel. O mito da Salamanca do Jarau: a constituição do sujeito masculino na cultura gaúcha. Cadernos de Antropologia. Porto Alegre, n. 7, p. 14, 1992., p. 145). Os versos do Cancioneiro Guasca retratam essa realidade antropológica persistente. Com a classificação da Tabela 6, identifiquei 27 quadras que expressam suspeita em relação à “natureza” feminina: “Meus senhores, é verdade,/ Assim digo e vou de lado:/ Tenho medo da mulher/ E da rabiça do arado...” (CGu 26). Sentimento que denota um estigma social e seus atributos negativos, como a inconstância, a falsidade, a extravagância, a volubilidade, a sedução, que desenham uma feminilidade perversa: “Alfinetes são ciúmes,/ Agulhas - variedade;/ As moças são como cobras,/ Bichos de toda maldade” (CGu 522). Daí a cautela do gaúcho em estabelecer laços matrimoniais: “Todo homem quando embarca/ Deve rezar uma vez;/ Quando vai à guerra, duas;/ E quando se casa, três!” (CGu 215).
Outra alteridade rio-grandense à gauchidade celebrada, bastante durável e cunhada desde o cancioneiro folclorista, é a tradição afro-brasileira. Podemos notar a ausência de representações do gaúcho negro nas duas imagens apresentadas acima. No Prata, além do “gringo”, alteridade privilegiada nos discursos gauchescos, o negro constituía um “outro invisível”. Em Buenos Aires, como salienta Matías Casas, o discurso hegemônico no final do oitocentos apagava a presença afroporteña na sociedade, o que se desdobrou em sua exclusão na definição do gaúcho como sujeito nacional (CASAS, 2014CASAS, Matías Emiliano. “Gaucho primero, después hombre, después negro”. Identidad y relaciones en la pieza teatral El gaucho negro. En Caiana - Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro Argentino de Investigadores de Arte(CAIA), n. 5, p. 1-15, 2º sem. 2014., p. 11). Processo semelhante ocorria em Porto Alegre, potencializado pelo fim ainda recente da escravidão e o afluxo de libertos para a capital do estado nos primeiros anos da República. Na historiografia tradicional, começava o debate em torno do episódio farrapo de Porongos, quando um batalhão de lanceiros negros foi massacrado pelas forças legalistas. Alfredo Varella afirmava que o comandante farroupilha David Canabarro sabia do avanço inimigo e nada fizera para alertar a tropa de ex-escravos. O evento trágico se mostraria necessário para a saída conciliatória do conflito, pois contornava os compromissos abolicionistas assumidos pela República Rio-Grandense durante a guerra. Alfredo Ferreira Rodrigues questionava a veracidade das fontes do oponente e defendia a índole dos líderes da revolta. Logo, os brios republicanos castilhistas passaram a insinuar que o emprego de mão de obra escrava nas estâncias gaúchas era mínimo e, assim, a libertação dos cativos que lutaram no lado farrapo não oferecia um problema efetivo à elite rio-grandense. Essa tópica de memória histórica é reveladora da invisibilidade do negro para os dirigentes positivistas, que começavam, dessa maneira, a ensaiar o “mito da escravidão que não houve”, premissa fundamental do branqueamento discursivo do gaúcho rio-grandense.23 23 Sobre o debate entre Varella e Rodrigues nos anos 1900 a respeito de Porongos, além de considerações sobre o próprio evento, ver Silva (2014). A respeito da mitologia da historiografia tradicional sul-rio-grandense, ver a coletânea organizada por Gonzaga e Dacanal, 1980.
O folclorismo se revela ambíguo no que toca à questão. De certa maneira, participa do esforço de apagamento do passado escravocrata e de ocultamento da população negra, sempre minorada como contribuição étnica e social para a formação do estado. Mas o faz através da mesma operação de neutralização da rebeldia na cultura campeira e no imaginário gauchesco: escondendo algo que mostra. As ilustrações de Assuntos do Rio Grande nos dão um bom exemplo disso. A busca pelas sobrevivências do passado faz o autor reproduzir fotografias de variados grupos indígenas, mais ou menos agauchados no trajar, e peões de estância, quando se antevê algum indivíduo negro ou mestiço no trato com o gado, da mesma forma que os raros versos sobre a escravidão no Cancioneiro Guasca. O vocabulário de Romaguera Correa, empreendimento lexicográfico mais desenvolvido sobre o linguajar regional até então, também participa dessa aproximação cautelosa. Após incluir entre as matrizes do dialeto campeiro rio-grandense a língua bunda (angolense), oferecendo alguns termos como exemplos, o autor afirma que o português, o castelhano e o guarani predominariam na composição do léxico regional, enquanto os vocábulos africanos seriam raros, devido ao “nulo influxo do elemento etíope sobre o Rio Grande, onde a escravatura foi sempre resumida” (CORREA, 1898, p. 6).
No cancioneiro, um duplo preconceito, do letrado folclorista e das fontes populares, leva à escassez de tradições afro-brasileiras na poesia compilada. A coletânea de Simões não escapa dessa tendência. Nas 5 quadras (de 727, vale lembrar!) em que o negro aparece explicitamente, se recorre geralmente à condição de escravo como uma metáfora amorosa: “Nasci forro, sou cativo.../ Fui volúvel, sou constante;/ Sou forro de condição/ Cativo por ser amante” (CGu 219). Nesse sentido, aliás, o amor é quase uma concessão no regime de exploração: “Quem é cativo não ama.../ Só o forro pode amar?/ O cativo também ama,/ Conhecendo o seu lugar” (CGu 321). E a ruptura amorosa também seria fruto da insubmissão: “Menina, você que tem/ Que comigo se enfadou?/ Será porque seu negrinho/ A seus pés não se curvou?” (CGu 564). Uma das quadras, no entanto, insinua leve crítica ao estigma: “Todos me chamam de negro/ Não sou negro por meu gosto,/ Já estou ficando branco/ Só pra te causar desgosto” (CGu 288). Mas a reclamação do eu-lírico não questiona a hierarquia racial. Pelo contrário, apela à superioridade branca no sistema de classificação vigente para atingir seu desafeto, fazendo uma provável referência ao branqueamento social, estratégia comum de libertos letrados que chegavam a alcançar posições destacadas pelo desempenho de ofícios liberais.
A invisibilidade reservada ao negro, vale dizer, não atingia culturalmente os povos originários. Parte das tradições gauchescas inventadas, como o mate chimarrão e o manejo das boleadeiras, provinham das culturas guarani e charrua, por exemplo. Os folcloristas declaravam esses vínculos publicamente, num esforço de valorização do índio que remetia ao romantismo oitocentista e ao mito rousseauniano do bom selvagem. Essa posição ambígua é característica da disciplina, que associa o “popular” ao ingênuo, ao espontâneo e ao infantil: “O olhar dos letrados pode querer-se neutro e, por que não, simpático. A violência mais secreta do primeiro folclorismo foi ter camuflado a sua violência” (REVEL; CERTEAU; JULIA, 1989, p. 59).
Conclusões
Pode-se concluir que o projeto folclorista mais estreito de Simões Lopes Neto se adequava ao gauchismo cívico do período, observando os limites da vertente republicana de viés positivista desenvolvida na capital do Rio Grande do Sul, matriz da gauchidade mais conservadora. Participou, ainda, da patrulha nacionalista das fronteiras simbólicas do estado, que relegava à alteridade platina os signos negativos do estigma histórico de gaúcho. Ainda assim, O Cancioneiro Guasca apresenta fissuras em relação à narrativa oficial, colocando em cena, ainda que poucas vezes, temas problemáticos, como a deserção do soldado gaúcho, ou recorrendo a estratégias de representação importadas dos contextos nacionais a que se queria contrapor. Todavia, seria necessário o desenvolvimento de sua literatura de ficção autoral, seus contos e lendas, para superar os entraves oficiais da memória local. Para Flávio Loureiro Chaves (2001), o reconhecimento do folclore regional, na elaboração do Cancioneiro, permitiu que o autor criasse posteriormente um projeto literário moderno e singular. Mas, talvez, a identificação dos vetos simbólicos do PRR, conhecidos na experiência com o folclorismo colecionista, e sua vontade futura de renegá-los, quando se afastava da heterodoxia positivista, também tenha forjado a originalidade do escritor. Em sua ficção, vale lembrar, Simões construiu personagens negras e femininas complexas, protagonistas de narrativas inesquecíveis na literatura e no imaginário regional, como O negrinho do pastoreio, e sua crítica à instituição da escravidão, O negro Bonifácio, temido e respeitado pelos brancos, e A Salamanca do Jarau, com a princesa moura encantada, mulher engenhosa que engana o próprio Diabo.
Periódicos
- AS CAVALHADAS. A Federação Porto Alegre, 2 jul. 1900, p. 2.
- ECHENIQUE, Sylvio da Cunha. Recrutando sinuelo para a tropa das nossas tradições. Correio do Povo Porto Alegre, 12 mar. 1965, p. 5.
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- SOUZA, Susana Bleil de. O pincel e a pena na construção da nação: pintando e narrando um mito político fundacional.Amérique Latine Histoire et Mémoire. Les Cahiers ALHIM[En línea], n. 15, 2008. Acesso em: 25 nov. 2017. Disponível em:Disponível em:http://alhim.revues.org/2911
» http://alhim.revues.org/2911 - TAVARES, Bráulio. Contando histórias em versos: poesia e romanceiro popular no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2009.
- VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: FUNARTE, FGV, 1997.
- ZALLA, Jocelito. O centauro e a pena: Barbosa Lessa e a invenção das tradições gaúchas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2018.
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Em 1947, foi fundada a Comissão Nacional de Folclore, por Renato de Almeida, no Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura. A entidade ganhou diversos braços estaduais nos anos seguintes. A esse respeito, ver o trabalho de Vilhena (1997).
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Nascido e atuante em Pelotas, próximo à fronteira com o Uruguai. Antigo centro aristocrático da elite provincial no Império, ainda era a segunda cidade mais rica (e populosa) da região no período. Simões foi um intelectual polígrafo, com produção em teatro amador, jornalismo, ficção e folclore. Seus contos foram recuperados pela geração modernista gaúcha, após edição póstuma de 1926, como obra precursora da estética do movimento no Sul.
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O escritor faleceu um ano antes, mas sabe-se que ele já havia entregue a versão revisada do livro ao editor. Logo, as inclusões e alterações são de sua responsabilidade.
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Editora gaúcha de alcance nacional, nascida como seção da Livraria do Globo, de Porto Alegre, na década de 1920. O abandono do subtítulo fazia parte do esforço para recolocar a obra em circulação como alta ficção, o que se efetivou com a edição crítica, de 1949, organizada por Aurélio Buarque de Holanda.
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Emprego as categorias de Gérard Gennete (2009) para analisar os elementos paratextuais: discursos geralmente verbais que cercam e prolongam o texto principal na própria materialidade do livro; com funções de apresentação, ou seja, visando garantir a presença, a recepção e o consumo da obra.
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“Guasca” originalmente significava uma tira de couro usada em trabalhos campeiros. Pela resistência do material, o termo passou a designar o peão, sugerindo ao mesmo tempo força e rudez.
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Segundo von Koseritz, o escritor sergipano havia dado a sugestão de coligir e publicar quadrinhas populares que circulavam oralmente na província, o que ele realizou entre janeiro e março de 1880. Mais tarde, os versos compilados foram transcritos em Cantos populares do Brasil (1883), de Romero.
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“Quadras” são pequenos poemas compostos de quatro versos, geralmente de sete sílabas (redondilha maior), em que o segundo e o quarto versos comumente rimam entre si. Segundo Bráulio Tavares, é a forma poética mais comum na “cultura popular brasileira” (TAVARES, 2009, p. 32).
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Para uma análise detida da ressignificação da palavra “gaúcho” na segunda metade do século XIX, incluindo o empenho de escritores de ficção para superar seu estigma de bandido, conferir a pesquisa de Carla Renata Gomes (2009).
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Nos versos anônimos, a poesia épica/narrativa está praticamente restrita aos motivos de danças, como o Tatu e a Chimarrita.
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Para facilitar as citações e individualizar as análises dos poemas, adoto como convenção a sigla CGu, de Cancioneiro Guasca, seguida do número da quadra transcrita, na edição ampliada de 1917.
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“Adeus, barrigas verdes/ Já vou a monarqueiar,/ Gosto mais do meu churrasco/ Que desses bagres do mar” (PORTO ALEGRE apud LOPES NETO, 1917, p. 127).
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“Parar rodeio”: reunir o gado em algum ponto determinado do campo para contá-lo ou marcá-lo.
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Em “Os cabelos da china”, de Contos gauchescos, o personagem-narrador Blau Nunes se recusa a passar por desertor no conflito farrapo.
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Gênero de alta literatura, geralmente em poesia narrativa, que emula a linguagem de gaúchos campeiros, incluindo algumas lógicas formais de sua literatura oral. A obra mais conhecida e aclamada do gênero é El gaucho Martín Fierro (1872), do argentino José Hernández.
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AS CAVALHADAS. A Federação. Porto Alegre, 2 jul. 1900, p. 2.
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Ondulações baixas nos campos abertos da savana, encontradas principalmente no sul do Rio Grande do Sul e no norte do Uruguai.
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O gauchismo cívico no Uruguai e na Argentina lançava mão tanto da bombacha como do chiripá, em suas dramatizações urbanas, diferentemente do rio-grandense. Talvez daí venha o reforço da imagem do gaucho platino trajando a indumentária histórica original.
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Sobre a situação do gaúcho argentino nos conflitos de fronteira e sua constituição inicial como mito literário e político, na virada do século XVIII para o XIX, ver Richard Slatta (1983).
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ECHENIQUE, Sylvio da Cunha. Recrutando sinuelo para a tropa das nossas tradições. Correio do Povo. Porto Alegre, 12 mar. 1965, p. 5.
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Em Porto Alegre, a edição de uma coleção inteiramente dedicada a assuntos regionais só aconteceria no final dos anos 1940, com a Coleção Província, da Editora Globo (inaugurada pela reedição de Simões). Nos anos seguintes, a Sulina também lançará sua Coleção Meridional.
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“Prenda”, no vocabulário regional, significava objeto material de valor, se referindo comumente ao aparato de montaria, como esporas de prata etc. Como precedente, havia apenas o uso metafórico da palavra em alguns versos do cancioneiro e na canção “Prenda minha”, registrada na década de 1920. Nessas situações poéticas, a mulher é vista como posse do homem (ZALLA, 2018).
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Sobre o debate entre Varella e Rodrigues nos anos 1900 a respeito de Porongos, além de considerações sobre o próprio evento, ver Silva (2014). A respeito da mitologia da historiografia tradicional sul-rio-grandense, ver a coletânea organizada por Gonzaga e Dacanal, 1980.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
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Recebido
27 Nov 2020 -
Aceito
24 Fev 2021