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Escravidão e as fundações da ordem constitucional moderna: representação, cidadania, soberania, c. 1780-c. 18301 1 Versões anteriores do argumento aqui exposto, parte de uma pesquisa maior sobre a escravidão negra nas Américas, receberam comentários estimulantes de diversos pesquisadores. Gostaria de agradecer em especial a Paulo Henrique Pereira, Rodrigo Turin, Christy Pato, Andrea Slemian, Thiago Krause, Vitor Izecksohn, Bruno Lima, Télio Cravo, Roberto Pich, José Antonio Piqueras, Marcos Queiroz, Elisa Dourado, Karen Souza, João Victor Leite, Jean Lucas Veloso e Henrique dos Santos. Também agradeço à FAPERJ pelo apoio no âmbito do Programa Jovem Cientista do Nosso Estado.

Slavery and the foundations of the modern constitutional order: representation, citizenship, sovereignty, c. 1780-1830

La esclavitud y los fundamentos del orden constitucional moderno: representación, ciudadanía, soberanía, c. 1780-c.1830

RESUMO

Este artigo, redigido no campo da história conceitual, examina a relação entre a escravidão negra e os três conceitos políticos fundamentais do liberalismo na Era das Revoluções: representação, cidadania e soberania. Seu propósito é avaliar o peso do escravismo na organização constitucional do poder público no Brasil depois da Independência de 1822. Embora diversos estudos tenham avaliado a importância da escravidão para as fundações políticas do Brasil, com foco ora na construção da unidade nacional, ora na opção pela monarquia, as relações conceituais entre escravidão e ordem constitucional ainda permanecem pouco exploradas na historiografia. Como a história constitucional de um país é sempre parte de uma história global do constitucionalismo, este artigo explora o problema procedendo a uma história conceitual comparada das experiências constituintes escravistas atlânticas em cinco espaços políticos: Estados Unidos (1787), França (1789-1791), Espanha (1810-1812), Portugal (1821-1822) e Brasil (1823-1824).

Palavras-chave:
história conceitual; história atlântica política; escravidão negra nas Américas; Era das Revoluções; ordens constitucionais

ABSTRACT

This article, written from the perspective of conceptual history, sheds light on the relationship between black slavery and the three fundamental political concepts of liberalism in the Age of Revolutions: representation, citizenship, and sovereignty. Its purpose is to evaluate the weight of slavery in the constitutional organization of public power in Brazil after the Independence of 1822. While several studies have recognized the importance of slavery for the political foundations of Brazil, focusing either on the issue of national unity or on the option for the monarchy as a form of government, the conceptual relations between slavery and the constitutional order remain little explored in historiography. As the constitutional history of a country is always part of a global history of constitutionalism, this article explores the problem through a comparative conceptual history of constitution-making and slavery in five political spaces: the United States (1787), France (1789-1791), Spain (1810-1812), Portugal (1821-1822) and Brazil (1823-1824).

Keywords:
conceptual history; political Atlantic history; New World black slavery; Era of Revolutions; constitutional orders

RESUMEN

Este artículo, escrito en el campo de la historia conceptual, examina la relación entre la esclavitud negra y los tres conceptos políticos fundamentales del liberalismo en la Era de las Revoluciones: representación, ciudadanía y soberanía. Su propósito es evaluar el peso de la esclavitud en la organización constitucional del poder político en Brasil después de la independencia de 1822. Aunque diversos estudios han evaluado la importancia de la esclavitud para las funciones políticas de Brasil, como foco ya sea en la construcción de la unión nacional, o en la opción por la monarquía, las relaciones conceptuales entre la esclavitud y el orden constitucional todavía permanecen poco exploradas en la historiografía. Como la historia constitucional de un país es siempre parte de una historia global del constitucionalismo, este artículo indaga el problema derivando de a una historia conceptual comparada del constitucionalismo esclavista atlántico en cinco espacios políticos: Estados Unidos (1787), Francia (1789-1791), España (1810-1811), Portugal (1821-1822) y Brasil (1823-1824).

Palabras clave:
historia conceptual; historia política atlántica; esclavitud negra en las Américas; Era de las Revoluciones; órdenes constitucionales

A escravidão negra teve o triste dom da ubiquidade no Brasil. Meio século depois da Independência, em 1872, e já vinte anos distante do tráfico negreiro transatlântico, a nação ainda exibia pessoas escravizadas por toda parte. Nas suas vinte províncias. Em cada uma das suas 635 cidades. E em 1.442 das suas 1.449 paróquias. Os números não mentem: 8.411.398 dos 8.419.672 brasileiros livres, ou 99,9%, viviam em comunidades onde também moravam seres humanos escravizados2 2 Recenseamento do Brazil em 1872. Rio de Janeiro: Typ. G. Leuzinger, 12 v. [1874]. . O quadro era excepcional, e em mais de um sentido. Nas outras partes das Américas, os senhores de escravos viviam barganhando e negociando politicamente com elites não escravistas e às vezes até mesmo antiescravistas, pois sempre atuavam no interior de soberanias partilhadas com sociedades livres. O Sul dos Estados Unidos dividia com o Norte o condomínio da União; as colônias caribenhas de Cuba, Jamaica e São Domingos se inscreviam em soberanias mais amplas de impérios regidos por metrópoles europeias. Diferenças à parte, o “Velho Sul” e as ilhas caribenhas eram o que se pode chamar de sociedades escravistas semissoberanas. Sem igual no mundo, o Brasil era outra coisa. O Brasil era uma sociedade escravista de soberania plena (FINLEY, 1991MOSES, Finley [1980]. Escravidão antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991.; PARRON, 2015PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade. Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese (Doutorado em História), Departamento de História, FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015.).

Admitida essa excepcionalidade, qual teria sido o peso do ecumenismo da escravidão na organização constitucional do poder público no Brasil depois da Independência de 1822? Embora a importância da escravidão para as fundações políticas do Brasil tenha merecido diversos estudos, com foco ora na construção da unidade nacional, ora na opção pela monarquia (SILVA, 1972SILVA, Maria Odila Leite da. A interiorização da metrópole. In: MOTA, C. G. (org.). 1822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 160-184.; MAXWELL, 1999MAXWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a ideia do império luso-brasileiro (1973). Chocolates, piratas e outros malandros. Ensaios tropicais. São Paulo: Paz & Terra, 1999. [1973]; ALENCASTRO, 1979ALENCASTRO, Luiz Felipe de. La traite négrière et l’unité nationale brésilienne. Revue Française d’Histoire d’Outre-Mer, v. 56, n. 244-245, p. 395-419, 1979.; JANCSÓ; PIMENTA, 2000JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec/Edufba, 1996.; JANCSÓ, 2005JANCSÓ, István. Independência, independências. In: JANCSÓ, István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005. p. 17-52.; MATTOS, 2005MATTOS, Ilmar Rohloff. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade política. Almanack Braziliense, n. 1, p. 8-26, 2005.), as relações entre escravidão e ordem constitucional ainda permanecem pouco exploradas na historiografia. Como a história constitucional de um país é sempre parte de uma história global do constitucionalismo (CLAVERO, 2017CLAVERO, Bartolomé. Constitucionalismo global: por uma história verossímil dos direitos humanos. Goiânia: Palavrear, 2017.), nas páginas a seguir exploro o problema procedendo a uma história conceitual comparada do constitucionalismo escravista atlântico em cinco espaços: Estados Unidos (1787), França (1789-1791), Espanha (1810-1812), Portugal (1821-1822) e Brasil (1823-1824). No percurso, examino a relação ao mesmo tempo tensa e orgânica entre a escravidão negra e os três conceitos-chave da ordem liberal: representação, cidadania e soberania. Meu argumento é que, na Era das Revoluções, a escravidão negra e os conceitos modernos da política se determinaram numa relação de causalidade circular, na qual os conceitos foram definidos como meios de gestão do futuro da escravidão e a escravidão como pressuposto histórico dos conceitos. Devido à excepcionalidade do escravismo no Brasil, as soluções constitucionais foram sui generis no país e ajudam a explicar por que ele foi o último das Américas a abolir o cativeiro humano.

Liberalismo e escravidão: historiografia

“Os autores [da Constituição] entenderam não dever nodoar o foral da emancipação política do país aludindo à existência da escravidão. [...] No mais os estatutos da nossa nacionalidade não fazem referência à escravidão”. Extraídas da obra maior de Joaquim Nabuco, O abolicionismo (1883), essas palavras encerram uma curiosa contradição. Ao passo que o livro pretendia cartografar a potência da escravidão no Império do Brasil, aquele colosso social que os abolicionistas se esforçavam por destruir no fim do século 19, o trecho dissocia escravidão e ordem constitucional como se fossem polos incompatíveis de uma dualidade estática: o cativeiro não manchava (“nodoava”) a lei orgânica do país (“foral da emancipação política”). Se o escravismo tinha importância decisiva sobre o destino nacional, não procediam da Constituição seus poderes, seu vigor, sua energia dinâmica.

Basta folhear as páginas de algumas obras mais recentes para perceber que a visão de Nabuco, seu modo de sentir e enquadrar o problema, não morreu com o seu tempo. Pelo contrário, ela saltou para os livros de teoria e análise social dos séculos 20 e 21. No célebre ensaio “As ideias fora do lugar” (1973), o crítico literário marxista Roberto Schwarz sugeriu que, enquanto as ideias de liberdade individual tinham racionalidade ideológica na Europa, onde encobriam a exploração do trabalho assalariado por levar o trabalhador a acreditar que trabalhava para si quando trabalhava para o patrão (aparência essencial), no Brasil eram irracionais e deslocadas, pois faziam entrar pelos olhos de todos que a escravidão era uma violação aberrante e evidente dos direitos inalienáveis dos seres humanos. Os conceitos liberais não passariam, entre nós, de “ideias fora do lugar”. Uma moda “importada”. “Mania entre manias”.

Outro artigo conhecido sobre o tema é “Escravidão e razão nacional” (1988), de José Murilo de Carvalho. Embora tenha perspectiva teórica contrária ao marxismo de Schwarz, Carvalho chegou às mesmas conclusões ao argumentar que o liberalismo no Brasil do século 19 baqueou a legitimidade ideológica da escravidão negra. A questão não seria exatamente o conjunto dos valores individualistas, que segundo Carvalho seria arraigado no Atlântico Norte, mas superficial no Brasil. No seu entender, o liberalismo deslegitimou a escravidão ao colocar no topo da agenda pública a necessidade de unificar a “nação brasileira” num “corpo de cidadãos” homogêneo - base dos novos conceitos de representação, cidadania e soberania. Visto que a escravidão gerava uma pluralidade de estados civis (livres, libertos, escravos), ela seria, nas palavras do autor, “obstáculo intransponível” para a construção de uma “razão nacional”. Bem encaixada na ordem colonial, achava-se em casa alheia quando recolocada no mundo do liberalismo (CARVALHO, 1988DOLHNIKOFF, Miriam. Conflitos intraelite, cidadania e representação da minoria: o debate parlamentar sobre a reforma eleitoral de 1875. Tempo, v. 27, p. 693-715, 2021.; ver também VAINFAS, 1988VAINFAS, Ronaldo. Escravidão, ideologias e sociedade. In: CARDOSO, Ciro F. S. (org.). Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.).

A noção de dualidade externa entre escravidão e liberalismo também aparece na obra de brasilianistas. Em The Long, Lingering Shadow, o historiador do direito Robert Cottrol afirmou que a Constituição de 1824 era paradoxal, pois espelhava “mais o idealismo que informou os redatores do documento que as inegáveis realidades da escravidão […]. A escravidão não é mencionada em nenhum lugar do documento”3 3 No original: “is more reflective of the liberal idealism that informed the document drafters than it was of the undeniable realities of slavery […] Slavery is nowhere mentioned in the document”. As traduções deste artigo, quando seguidas da transcrição do original no rodapé, são minhas. (2013, p. 66). Não muito diferente é a leitura positivista que o historiador norte-americano Jeffrey Needell faz do texto em The Sacred Cause: “não há lugar para a escravidão e a raça na Constituição de 1824”4 4 No original: “There is no place for slavery and race in the Constitution of 1824”. (2020, p. 37), diz o assertor ao não encontrar ali as palavras que busca: escravo, escravidão, cativo, cativeiro. Dá-se assim uma volta completa no círculo. É como se a voz de um morto (Nabuco) falasse pela boca dos vivos.

Seria possível explorar variações nos procedimentos metodológicos dos autores. Schwarz e Carvalho essencializam o liberalismo sob o signo da identidade, como um corpo de ideias coeso de países não escravistas que se recusa a mesclar-se com o que não é o seu semelhante. Daí a imagem do liberalismo e da escravidão como binômios isolados, categorias impermistas, realidades inarticuláveis. Cottrol e Needell partilham um viés nominalista que toma os significantes ausentes (escravo, por exemplo) como ausência de significado da escravidão para o espaço semântico dos demais signos verbais da Constituição. Embora importantes, essas diferenças encobrem os influxos comuns que suas análises receberam das teorias da modernização (TILLY, 1975TILLY, Charles. Western State-Making and Theories of Political Transformation. In: TILLY, C. (org.). The Formation of National States in Western Europe. Princeton: PUP, 1975. p. 601-639.; LEYS, 1996LEYS, Colin. The rise and fall of development theory. London: James Curry, 1996.; OSBORNE, 2005; LATHAM, 2000LATHAM, M. E. Modernization as Ideology: American Social Science and “Nation Building” in the Kennedy era. Chapel Hill, NC: University of North Carolina Press, 2000.; GILMAN, 2003GEGGUS, David. The Caribbean in the Age of Revolution. In: ARMITAGE, David; GILMAN, N. Mandarins of the future: modernization theory in Cold War America. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2003.). Todos os autores olham para o problema a partir do liberalismo, buscando entender como os seus institutos denunciam (Schwarz), afetam (Carvalho) ou ignoram (Cottrol, ­Needell) a escravidão. Neste artigo, inverto o olhar. O que importa aqui é interpretar como a escravidão ordenou a construção interna dos conceitos políticos fundamentais das ordens constitucionais - no Atlântico em geral, no Brasil em particular.

Como já demonstraram diversos estudos, a escravidão negra é inseparável do modo pelo qual foi definido o conceito de cidadania no Estado constitucional brasileiro (MATTOS, 2000MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000., 2009MATTOS, Hebe. Racialização e cidadania no Império do Brasil. In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das (orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 342-392.; GRINBERG, 2002GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.; SLEMIAN, 2005SLEMIAN, Andrea. Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005.; PEREIRA, 2010PEREIRA, Vantuil. Ao soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do Estado Imperial brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010.; BERBEL, MARQUESE, PARRON, 2010BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010.; QUEIROZ, 2017QUEIROZ, Marcos V. L. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico negro: a experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.). Neste ensaio, exploro o tema redefinindo o escopo da análise. Em vez de enfocar só um conceito, trabalho com a noção de que os conceitos políticos constituem, na verdade, uma rede semântica em dois graus. No primeiro, o âmbito da experiência constituinte, eles apresentam uma notável interrelação semântica, de modo que a determinação de um deles influi nos demais e vice-versa, e por causa dessa interrelação a sequência com que são discutidos também é decisiva para o desenho do pacto político. Denomino esses fenômenos, respectivamente, de interseccionalidade dos conceitos constitucionais e percurso constitucional dos conceitos, e chamo a atenção para essas expressões porque acredito que, no limite, o estudo da organização conceitual do poder público no liberalismo perde potencial explicativo quando se dedica a um único conceito. Uma vez firmada num país, essa rede semântica se projeta num segundo grau: não só os conceitos individualmente, mas o modo como estão amarrados uns aos outros se inscrevem no campo sociopolítico da experiência constituinte dos outros países. Calibrar os conceitos por dentro, atar e desatar os fios invisíveis que os unem: essa é a história que conto a seguir.

Estados Unidos: o valor do valor

Cidade da Filadélfia, Pensilvânia, 1787. As ex-Treze Colônias, agora Estados Unidos da América, decidem convocar uma Constituinte para reformar a organização do poder público. Até então o país vinha sendo governado nos termos da sua primeira lei orgânica, os Artigos da Confederação (aprovados em 1777, vigentes a partir de 1781), com um Congresso unicameral, absoluto e paritário - isto é, havia uma única casa legislativa, as bancadas estaduais eram do mesmo tamanho e o voto, por bancada, tinha igual peso. Os Artigos da Confederação também definiam o recolhimento tributário como competência exclusiva dos estados particulares, cabendo a cada um deles uma “quota de contribuição” a ser repassada para o governo geral de acordo com suas riquezas (RAKOVE, 1996RAKOVE, Jack N. Original Meanings: Politics and Ideas in the Making of the Constitution. Nova York: Vintage Books, 1996.; EINHORN, 2006EINHORN, Robin L. American Taxation, America Slavery. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.). Essa arquitetura do edifício político desagradava a muitos dos seus moradores. A incapacidade tributária da União dava o que pensar aos credores da dívida pública, uma enormidade contraída durante a guerra de independência contra os britânicos. Já o arranjo de governo, dando o mesmo poder ao minúsculo Rhode Island e à gigantesca Virgínia, jogava claramente contra o interesse dos estados mais ricos e populosos. Eram esses os males que a Convenção da Filadélfia, grau zero do constitucionalismo moderno, fora chamada para remediar. Durante os meses que durou, de junho a setembro, a Convenção funcionou como uma grande sessão de maçonaria. As portas do Independence Hall, o prédio que a abrigou, eram trancadas, ninguém podia assistir aos seus debates e a transcrição oficial das falas estava proibida.5 5 FARRAND, Max (org.) [1911]. The Records of the Federal Convention of 1787, v 1. New Haven: Yale University Press, 1966, p. 15-16, 29 maio 1787. Esse segredo de sacristia deixou os founding fathers à vontade para manipular livremente as chaves conceituais do governo que estavam prestes a inventar.

O problema mais debatido na Filadélfia foi de longe o da representação. A discordância elementar entre os founding fathers era se a representação devia ser um conceito de base fixa - como ainda hoje no Senado de muitos países, inclusive dos Estados Unidos e do Brasil, onde o número de senadores é o mesmo para todos os estados - ou se devia ser proporcional, com a quantidade de membros oscilando segundo algum critério preestabelecido. Ao passo que por razões óbvias os estados pequenos tendiam para a primeira opção, por razões não menos óbvias os deputados da Virgínia, Pensilvânia e Massachusetts, todos grandes e bem povoados, eram pela proporcionalidade. A divisão deixava pouca margem de manobra para os reformistas. Como a Convenção trabalhou em geral com onze bancadas, e seu regime de votação seguia as regras dos Artigos da Confederação6 6 FARRAND, Max (org.) [1911]. The Records of the Federal Convention of 1787. 4 v. New Haven: Yale University Press, 1966. (RAKOVE, 1996RAKOVE, Jack N. Original Meanings: Politics and Ideas in the Making of the Constitution. Nova York: Vintage Books, 1996.), Virgínia, Pensilvânia e Massachussetts precisavam do apoio de pelo menos mais três estados para formar uma maioria de seis e emplacar a ideia da representação proporcional. Não era segredo para ninguém que o sucesso dessa aliança dependeria de uma e apenas uma coisa: qual seria, afinal, a régua usada para distribuir o poder no interior do arranjo que estava sendo proposto na república?

Na Era das Revoluções, assim como hoje, o conceito de representação que gozava de maior popularidade e prestígio era aquele que dizia que o Congresso era uma espécie de tecnologia política, um recurso técnico inventado para viabilizar reuniões deliberativas de comunidades extensas que jamais conseguiriam se reunir de outro modo devido a constrangimentos de tempo e espaço (PITKIN, 1967PITKIN, Hanna. The Concept of Representation. Los Angeles: University of California Press, 1967.; PODLECH, 1984PODLECH, Adalbert. Repräsentation. In: BRUNNER, Otto; CONZE, Werner; KOSELLECK Reinhart (orgs.). Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. Stuttgart: Klett-Cotta, v. 5, p. 509-547, 1984.; COSTA, 2010COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010.). Nessa acepção, a representação representaria as pessoas que podem opinar e agir sobre a gestão da coisa pública, portanto aquelas que são livres, e não as escravizadas, que carecem dos direitos que a própria representação pressupõe. Esse entendimento banal e até intuitivo do conceito foi contemplado pelos estados grandes, pois o plano de governo que eles apresentaram na Convenção, idealizado em grande parte pelo virginiano James Madison, previa como possibilidade que a bancada de cada estado no Congresso federal correspondesse ao tamanho da sua “população livre”.7 7 Ibidem, v. 1, 29 maio 1787, p. 20. O problema dessa solução tão simples estava justamente na sua simplicidade. Com os estados pequenos contrários à ideia da proporcionalidade, não restava aos grandes senão aliarem-se aos escravistas do Sul Inferior - Carolina do Norte, Carolina do Sul e Geórgia - e atenderem ao que eles esperavam do conceito de representação. Esses estados ocupavam uma posição toda especial no debate. Sua população inexpressiva os classificava como pequenos no presente, porém sua área extensa os habilitava a imaginar um futuro no qual seriam populosos. Para entender a dança dos conceitos na Convenção da Filadélfia, é preciso observar mais de perto os medos, as utopias e as estratégias dos escravistas do Sul Inferior.

Observando o avanço da abolição legal nos estados do Norte, onde a emancipação escrava deixara de ser uma ação privada ou uma escolha individual para se tornar objeto do poder público (ZILVERSMIT, 1967ZILVERSMIT, Arthur. The First Emancipation: The Abolition of Slavery in the North. Chicago: UCP, 1967.; DAVIS, 1975DAVIS, David B. The Problem of Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823. Oxford: Oxford University Press, 1999.; BROWN, 2005BROWN, Christopher Leslie. Moral Capital. Foundations of British Abolitionism. Chapel Hill: UNCP, 2005.), os deputados das Carolinas e da Geórgia sinalizaram que gostariam de fazer da futura Constituição uma praça-forte contra os assaltos do antiescravismo. O texto tinha de conter “alguma segurança para os estados sulistas contra a emancipação dos escravos”, explicou o deputado Cotesworth Pinckney, da Carolina do Sul.8 8 Ibidem, v. 2, 23 jul. 1787, p. 95. No original: “some security to the Southern States agst. an emancipation of slaves”. Pierce Butler, do mesmo estado, foi mais incisivo: “A segurança que os estados sulistas querem é que seus negros não sejam extraídos deles, o que alguns senhores aqui dentro ou lá fora querem fazer de muito bom grado”.9 9 Ibidem, v. 1, 13 jul. 1787, p. 605. No original: “The security the Southn. States want is that their negroes may not be taken from them which some gentlemen within or without doors, have a very good mind to do”. A melhor expressão desse horizonte constitucional foi uma proposta de artigo proibindo permanentemente o Congresso Federal de banir o tráfico negreiro transatlântico para os Estados Unidos, uma maneira de perpetuar as condições de reprodução da escravidão. Se as tentativas de guardar explicitamente o cativeiro no sacrário inviolável da Constituição tivessem dado certo na Filadélfia em 1787, esses escravistas suspeitosos e inseguros teriam inventado uma fórmula constitucional que simplesmente teria situado a escravidão numa espécie de tempo fora do tempo, de história além da história, como que no oitavo dia da semana.

Mas tinha uma pedra no meio do caminho dos escravistas. A versão final da Constituição ainda teria de ser ratificada em três quartos dos estados da república. Como esperar das unidades do Norte a cortesia de aceitar a proteção universal explícita do cativeiro humano, uma forma de propriedade que o poder público estava começando a conceber como suprimível e que era restrita a alguns espaços do novo país? Seria razoável supor que os políticos do Norte ignorassem os sentimentos e as ações coletivas dos seus moradores, tanto negros como brancos, contra a escravização do homem pelo homem? Lutar pela perpetuação constitucional explícita do cativeiro naquela Filadélfia de 1787 era pedir o que não se pode pedir, nem se pode desejar, nem pode ser; e invertendo então sua estratégia ideal, os founding fathers escravocratas encontraram uma solução inesperada. Em vez de encapsular o escravismo nas redomas trans-históricas da Constituição, eles se esforçaram por definir os conceitos fundamentais da Constituição - representação, cidadania, soberania - como meios de gestão política do escravismo. Não se tratava mais de apartar a escravidão do tempo histórico do liberalismo, mas de definir o núcleo conceitual do liberalismo como um meio de determinar politicamente o tempo histórico da escravidão. Nesse giro, a política da escravidão se deslocou do campo da escravidão em si para o coração da própria política.

O realismo dos founding fathers escravocratas e a realpolitik dos estados grandes e populosos criaram a atmosfera perfeita para a aliança majoritária de seis votos que conduziu a forma e a substância da Constituição norte-americana de 1787. Se para os homens da Pensilvânia, Virgínia e Massachusetts o essencial era garantir a representação proporcional no lugar da paritária, para os comissários do Sul Inferior só fazia sentido embarcar na aventura da proporcionalidade se o conceito de representação pudesse se transformar naquela trave de “segurança contra a emancipação dos escravos” que a Constituição mesma não ia oferecer com cláusulas explicitamente escravistas. Da sua perspectiva, a concepção mais autoevidente e popular de representação do ambiente revolucionário, a de que o Congresso é um expediente técnico para representar sujeitos de direitos que do contrário não conseguiriam se reunir, era simplesmente inadmissível. As Carolinas e a Geórgia eram estados de plantation, enxameados de grandes propriedades monocultoras movidas a trabalho escravo, e qualquer pessoa sabia que se um dia fossem populosas como a Virgínia, quase metade da sua população seria de escravos, esses operadores da riqueza, esses extraordinários meios da fortuna, mas jamais sujeitos de direitos, nem membros daquela comunidade promissora que o artifício da política estava erguendo sobre o solo americano. Como esses estados sempre teriam mais poder econômico que poder demográfico, algo muito além de direitos precisava ser representado. Para suas bancadas, o princípio da proporcionalidade só valia a pena se a representação no Congresso federal também representasse riquezas. Power is money, money is power, diriam. Pressentindo esse tipo de demanda, Madison e seus aliados dos estados grandes haviam preparado um presente para aqueles escravistas encarniçados do Sul Inferior. Seu plano de governo, além da representação de “pessoas livres”, também previa a possibilidade de proporcionar o poder dos estados no Congresso federal segundo suas “quotas de contribuição”, isto é, o cálculo que fixava a capacidade de arrecadação tributária de cada estado e que, no Sul, incluía escravos.10 10 Ibidem, v. 1, 29 maio 1787, p. 20.

Quando os porta-vozes dos estados pequenos se depararam com a aliança majoritária e perceberam que sua pedra angular eram as “quotas de contribuição”, o que significava uma concepção de representação como representação de riquezas e coisas, eles desferiram ataques impiedosos contra a maioria. Um dos seus líderes, William Patterson, procurador da Nova Jérsei, disse que “não podia considerar os escravos negros senão como propriedade. Eles não são agentes livres, não têm liberdade pessoal, faculdade de adquirir propriedade”, isto é, não são sujeitos de direitos, “mas ao contrário são eles mesmos propriedade e, como qualquer outra propriedade, submetidos à vontade do senhor”. Era inadmissível colocá-los na base da representação. “Qual é o verdadeiro princípio da representação?”, insistiu. “É um recurso pelo qual uma assembleia de alguns indivíduos escolhidos substitui a inconveniência do encontro de todas as pessoas.”.11 11 Ibidem, v. 1, 9 jul. 1787, p. 561. No original: “He could regard negroes slaves in no light but as property. They are no free agents, have no personal liberty, no faculty of acquiring property, but on the contrary are themselves property, & like other property entirely at the will of the Master”. “What is the true principle of Representation? It is an expedient by which an assembly of certain individls. chosen by the people is substituted in place of the inconvenient meeting of the people themselves”. Ao menos em tese, é a representação do povo pelo povo. Mas tornar a propriedade a base da representação realizaria uma espécie de fetiche na política: os homens agiriam como procuradores não de outros homens, e sim das coisas que eles mesmos produzem ou possuem.

Patterson teria levado a melhor se a Constituinte dos Estados Unidos tivesse funcionado como os Parlamentos modernos, com suas portas abertas, a livre publicização dos seus debates, a politização apaixonada das ruas, onde trabalhadores rurais, artesãos, aprendizes, pequenos manufatureiros, peritos, oficiais e trabalhadores de toda sorte vinham insistindo cada vez mais em ter vez e voz naquele governo que estavam ajudando a criar desde a Guerra de Independência. Mas, sob a custódia do segredo, a franqueza antipopular das elites ganhou foro privilegiado, e os deputados da maioria se sentiram à vontade para filosofar livremente sobre a origem e o fim do governo representativo. “Dizem geralmente que a vida e a liberdade valem mais que a propriedade”, ensinou Gouverneur Morris, da Pensilvânia. “Uma visão precisa do assunto provaria, ao contrário, que a propriedade é o principal objetivo da sociedade.” Logo, “a propriedade devia ser incluída na conta”, no conceito e na alma da representação política.12 12 Ibidem, v. 1, 5 jul. 1787, p. 533. No original: “Life and liberty were generally said to be of more value, than property. An accurate view of the matter would nevertheless prove that property was the main object of Society”, “it [property] ought to be one measure of the influence due to those who were to be affected by the Governmt”. As bancadas do Sul inferior agradeceram a cortesia. O discurso dos seus colegas do Norte, disseram, “traduziu seus sentimentos com precisão”.13 13 Ibidem, v. 1, 5 jul. 1787, p. 534. No original: “had spoken some of his sentiments precisely”. Para Pierce Butler, da Carolina do Sul, “a propriedade era a única boa medida da representação. Ela era o grande objeto do governo: a grande causa da guerra, o grande meio de executá-la”.14 14 Ibidem, v. 1, 6 jul. 1787, p. 542. No original: “property was the only just measure of representation. This was the great object of Governt: the great cause of war, the great means of carrying it on”. Com a maioria bem firmada, o máximo que os estados pequenos conseguiram arrancar foi a regra da representação fixa para o Senado, onde a representação representaria o território jurisdicional de cada unidade federativa. Para a Câmara dos Deputados venceu o princípio da proporcionalidade. E da proporcionalidade segundo riquezas.

Incluir coisas e propriedade no núcleo semântico da representação criava um impasse. Que tipo de propriedade seria tão universal a ponto de servir de unidade de conta da representação em todo o país? Pairava na plenária uma resistência nada desprezível à ideia de embutir os escravos na representação como forma jurídica de propriedade, inclusive entre alguns legisladores da Pensilvânia e de Massachusetts, estados que ao menos em tese deviam estar afinados com os do Sul Inferior. “Negros são propriedade e são usados no Sul”, já havia advertido Elbridge Gerry, de Massachusetts, “como cavalos e gado no Norte; e por que a representação do Sul deveria ser aumentada por conta do número de escravos, mas não a do Norte por causa de seus cavalos e bois?”.15 15 Ibidem, v. 1, 11 jun. 1787, p. 205-206. No original: “Blacks are property, and are used to the southward as horses and cattle to the northward; and why should their representation be increased to the southward on account of the number of lsaves than horses or oxen to the north?” “Os escravos estão sendo admitidos como propriedade?”, perguntou-se James Wilson, da Pensilvânia. “Então por que não admitir outras formas de propriedade no cálculo?”.16 16 Ibidem, v. 1, 11 jul. 1787, p. 587. No original: “Are they admitted as property? then why is no other property admitted into the computation?” Para contornar o problema, alguns constituintes chegaram a mencionar o valor dos lotes agrários como possível parâmetro de riqueza, mas a questão não era tão fácil como parecia, pois a terra não tinha o mesmo valor nos diferentes estados (no Sul, costumava inclusive ser menor), e seu valor era autodeclarado, o que abria espaço para a má-fé e a chicana com vistas a inflar artificialmente o poder político dos estados no seio da União. “Analisado detidamente”, argumentou um sulista, “o valor da terra se revelou uma regra impraticável”. Ainda como possível medida de riqueza, também mencionam en passant as “contribuições tributárias incluindo importações e exportações”, mas o problema permanecia irresolvido: se alguns estados arrecadavam muito mais que outros pela vantagem de seus portos marítimos, como usar um critério tão incerto e enviesado para distribuir o poder político?17 17 Ibidem, v. 1, 6 jul. 1787, p. 542. No original: “The value of land had been found on full investigation to be an impracticable rule”. Do ponto de vista dos escravocratas, o que devia ser incluído na representação não era nem terra nem arrecadação fiscal, e sim a sua riqueza sobre escravos. Mas a questão básica permanecia a mesma. Como a escravidão poderia ser sentida, medida e comparada na república inteira se ela só existia em alguns dos seus estados? Como - de novo - transformar uma forma jurídica particular de propriedade na base de uma substância política universal?

Coube ao gênio de James Madison responder ao irrespondível. O escravo entraria no cômputo da representação não como uma relação jurídica de propriedade, mas como valor do trabalho, não como forma social concreta, mas como abstração de formas sociais. “O valor do trabalho pode ser considerado o principal critério de riqueza”, explicou ele, seja essa riqueza o valor das terras ou o valor das mercadorias tributadas nos portos marítimos; “e ele se equalizaria em diferentes lugares onde o intercurso seria fácil e livre, com tanta precisão como o valor do dinheiro ou de qualquer outra coisa”.18 18 Ibidem, v. 1, 11 jul. 1787, p. 585-586. No original: “The value of labour, might be considered as the principal criterion of wealth and ability to support taxes; and this would find its level in different places where the intercourse should be easy & free, with as much certainty as the value of money or any other thing”. Madison estava ensinando três lições aos seus colegas. Que as formas sociais visíveis de propriedade (“dinheiro ou qualquer outra coisa” como terras e impostos) não passam de materialização de uma essência abstrata, o valor. Que a fonte do valor é o trabalho humano (ele “pode ser considerado o principal critério de riqueza”). E que numa sociedade mediada pelo princípio da troca (“onde o intercurso seria fácil e livre”), o trabalho humano se torna o elemento universal de integração social independentemente do seu status jurídico, seja ele livre ou escravo. A fala de Madison expõe os pressupostos filosóficos e teóricos da solução que Virgínia, Massachusetts e Pensilvânia haviam oferecido à plenária: graças à abstração do trabalho, caso a representação não representasse “pessoas livres”, ela poderia perfeitamente representar riquezas nos termos das “quotas de contribuição”. Quando David Ricardo escreve revolucionariamente em 1817RICARDO, David. On the Principles of Political Economy and Taxation. Londres: Murray, 1817. que “o trabalho [é] tal como todas as coisas que se podem comprar ou vender” porque é a fonte de valor de tudo, ele está trinta anos atrasado no relógio da história que os founding fathers trazem no bolso.19 19 RICARDO, David. On the Principles of Political Economy and Taxation. Londres: Murray, 1817, p. 90. No original: “Labour, like all other things which are purchased and sold, and which may be increased or diminished in quantity, has its natural and its market price”.

Precedentes são multiplicadores de forças, a seiva sobre a qual se precipitam intuitivamente as ações das pessoas. Sua tradição, sua autoridade, sua prática pesam sobre o senso coletivo, e quem fala por eles sempre fala em coro mesmo quando fala sozinho. As quotas de contribuição, tendo sido testadas e aprovadas na administração federal desde 1783, eram exatamente esse precedente que já trazia as chaves para o enigma conceitual da representação. Sua própria história, suas dificuldades iniciais e sua solução final haviam antecipado todos os impasses da Constituinte de 1787. No início do processo de Independência, as “quotas” tinham sido fixadas segundo o valor de bens de raiz rurais e urbanos de cada estado, mas o plano não havia funcionado porque faltava ao poder público capacidade administrativa para aferir seus valores de modo imparcial e objetivo (EINHORN, 2006EINHORN, Robin L. American Taxation, America Slavery. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.). Em 1783, o Congresso norte-americano resolveu o problema mudando o critério para o valor do trabalho humano, pois, sendo o indivíduo a fonte do trabalho, bastava contar as pessoas de cada estado para extrair uma “proxy” de suas respectivas riquezas. E como a base do valor é o trabalho em abstrato, ensinavam os founding fathers, “era indiferente o nome pelo qual você chama as pessoas, se homens livres ou escravos”. Afinal, “500 homens livres não produzem mais lucro nem maior excedente para pagamento de impostos que 500 escravos” - essa taxa de conversão, de um para um, foi depois arbitrariamente alterada para três quintos, como se o trabalho do escravo produzisse 60% do trabalho da pessoa livre.20 20 Letters of Delegates to Congress, 1774-1789. 24 v. Washington, D. C.: 1976, respectivamente, v. 4, p. 438-445, e v. 19, p. 569-570. Quando Madison usa o precedente das “quotas de contribuição” como o provável núcleo semântico da representação proporcional e define o valor do trabalho humano como princípio articulatório da vida econômica, voilà! A mágica está feita: os escravos do Sul integram a substância universal da representação, os cavalos do Norte não, porque a riqueza contemplada na representação espelha a abstração do trabalho humano, e não relações jurídicas de propriedade.

A filosofia pragmática de Madison, apaixonada por respostas, não por perguntas, era poderosa e elegante, mas não resolveu nem podia resolver tudo. A Convenção da Filadélfia aceitava bem a ideia de que representação e desigualdade caminhavam juntas, afinal o regime representativo filtrava a opinião popular com mecanismos eletivos que produziam uma elite escolhida por sua distinção, saber e riqueza (MANIN, 1997MANIN, Bernard. The Principles of Representative Government. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.). Mas ela só aceitou uma representação coisificada da política, ou uma representação humana das riquezas, depois de muitas barganhas, chantagens e ameaças - os escravistas do Sul Inferior chegaram a ameaçar abandonar a União caso a representação proporcional baseada nas quotas de contribuição fosse descartada. No texto final da Constituição, o conceito de representação como representação do trabalho abstrato se tornou pressuposto implícito da redação do artigo 1, seção 2. A representação política na Câmara dos Deputados, diz a cláusula usando a mesma taxa de conversão da cobrança de impostos, é calculada “adicionando-se ao número total de pessoas livres [...], excluindo-se índios não tributados, três quintos de todas as outras pessoas”.21 21 FARRAND, Max (org.) [1911]. The Records of the Federal Convention of 1787, v. 2. New Haven: Yale University Press, 1966, p. 651-652. No original: “adding to the whole Number of free Persons […] excluding Indians not taxed, three fifths of all other Persons”. Para os incautos, o trecho soa como se a representação representasse pessoas: os cativos estão inclusive sendo referidos aí como outras pessoas, e não como escravos. Mas a impressão é falsa. O uso do termo escravos remeteria à forma jurídica particular de propriedade, fazendo desabar o edifício lógico desenhado por Madison, ao passo que o nome universal pessoas podia ser traduzido como fonte de trabalho abstrato, riqueza na sua forma socialmente mais inespecífica. Essa acepção do vocábulo pessoas explica por que os índios não tributados, que também são pessoas, acabaram excluídos da representação. Como vivem “fora” da comunidade, seu trabalho não integra aquele “intercurso fácil e livre” mencionado por Madison. Não se inscreve no circuito de trocas que faz do trabalho humano o equivalente universal das distintas mercadorias trocadas.

Só depois que o conceito de representação como abstração do trabalho forneceu o consenso mínimo entre os founding fathers - o que consumiu simplesmente a metade dos trabalhos da Constituinte - é que a Convenção se sentiu livre para entrar na manipulação conceitual da cidadania e da soberania. Livre é um modo de dizer. Os conceitos constitucionais têm uma profunda interseccionalidade; fazer a passagem de um tema para outro é sempre estar parcialmente preso nas malhas lógicas do conceito já aprovado. Feitas as contas, o valor semântico da representação desenhou o horizonte de sentido da cidadania e da soberania. Vejamos caso a caso.

De início, os líderes de dois estados populosos - Madison, da Virgínia, e Morris, da Pensilvânia - declararam que gostariam de universalizar uma concepção de cidadania política, aplicando os mesmos quesitos de propriedade para congressistas e eleitores da república inteira (KEYSSAR, 2014KEYSSAR, Alexander. O direito de voto: a controversa história da democracia nos Estados Unidos. São Paulo: Unesp, 2014., p. 35-64). Mas sua proposta foi abafada pelas vozes dos seus colegas. A vida eleitoral variava muito de estado para estado, e tocar na sua delicada trama despertava todos os perigos sedutores da novidade. George Mason, da Virgínia, explicou aos colegas: “Oito ou nove estados estenderam o direito do sufrágio para além dos proprietários de terra. O que essas pessoas dirão se forem privadas de seus direitos?”.22 22 Ibidem, v. 2, 7 ago. 1787, p. 201-202. No original: “Eight or nine States have extended the right of suffrage beyond the freeholders. What will the people there say if they should be disfranchised”. Oliver Ellsworth, de Connecticut, foi ainda mais enfático que Mason. Relembrou que a escravidão criava formas sociais de riqueza e de distribuição de propriedade contrastantes demais com os estados livres para que a propriedade fosse a base universal da cidadania. Seria “impróprio possuir qualificações uniformes e fixas [na Constituição]”, disse. “Torne-as altas o suficiente para ser úteis ao Sul”, onde a riqueza se empilhava nas mãos de poucos, “e elas se tornarão inaplicáveis aos estados do Leste [Nova Inglaterra]”, com seu enxame de pequenos proprietários e arrendatários.23 23 Ibidem, v. 2, 10 ago. 1787, p. 249. No original: “improper to have either uniform or fixed qualifications. Make them so high as to be useful in the S. States, and they will be inapplicable to the E. States”. Dominada pelas ressalvas, a Convenção decidiu com autocomplacência que a Constituição federal abordaria a cidadania política sem definir os seus cidadãos. Os deputados federais seriam escolhidos conforme os critérios de voto que cada estado adotasse para a sua própria Câmara estadual, e os senadores federais seriam eleitos pelos respectivos senados estaduais, cada qual composto segundo normas estabelecidas pelos próprios estados da União.

Impossível não notar a inversão que está sendo feita aí. A mesma escravidão que fora abstraída como valor para servir de base a uma representação nacional também foi evocada como realidade particular para justificar a estadualização dos direitos políticos. Representação universal e cidadania local não formam um mero jogo de oposições. Entre elas há um nexo lógico que permite que uma seja o contrário da outra. Os estados só recebem o poder de fixar os direitos dos seus cidadãos e, assim, definir a extensão da sua comunidade política porque, antes, já se definira que a representação nacional representaria as riquezas, e não os direitos das pessoas dos estados. Como anéis que giram em paralelo, e não embutidos um no outro, o raio da cidadania podia se alargar ou estreitar livremente em cada estado porque seu tamanho não afetaria o raio da representação política no Congresso nacional. Essa engenharia conceitual tem um quê de perversidade que dificilmente teria passado em branco nas ruas da Filadélfia caso a Constituinte fosse pública. Como aceitar passivamente a ideia de que enquanto a escravidão se eleva de uma base jurídica particular para a substância universal do trabalho abstrato (no campo da representação), os direitos individuais desçam do pedestal da universalidade abstrata para formas sociais particulares (no campo da cidadania)? Escravidão universal, direitos particulares. Um slogan duro para a república que se imagina fundadora da liberdade moderna mundial. Mas não mais duro que verdadeiro, dadas as políticas estaduais de exclusão racial autorizadas pela Constituição federal que nodoariam as páginas da história norte-americana.

A representação também parece ter pré-determinado o espaço semântico do conceito de soberania na Convenção da Filadélfia. Se o peso político de cada estado na composição da soberania nacional já estava definido no campo da representação segundo critérios de riqueza, a Constituinte não precisava, como de fato não precisou, gastar sua reserva de boa vontade inquirindo quais eram as fontes da soberania ou que partes do povo ou tipos de entidade formavam as origens sociais do pacto político. O que faltava fazer, na verdade, era alocar as prerrogativas de cada esfera da governança, repartir as competências entre estados e União. Originalmente, o plano de governo apresentado pelos estados populosos era vago nesse ponto. Dizia que o governo federal podia “legislar em todos os casos sobre os quais os estados individuais não têm competência”.24 24 Ibidem, v. 1, 29 maio 1787, p. 21. No original: “to legislate in all cases to which the separate States are incompetent”. Cães de guarda como sempre, os escravistas do Sul Inferior farejaram nessa redação porosa um flanco de ataque à escravidão e propuseram uma relação especificando o que a União podia e não podia fazer. Depois de algum vaivém, a Convenção de fato preparou duas listas, uma elencando as matérias autorizadas e outra as matérias interditas ao Congresso Federal (futuras seções 8 e 9 do artigo I). Foi aí que os sulistas tentaram perpetuar o tráfico negreiro transatlântico colocando-o na seção 9, no que foram derrotados quando uma redação, vitoriosa, determinou que o Congresso Federal teria, sim, poderes para suprimir o tráfico a contar de 1807. Isso quanto ao tráfico, mas e a respeito da escravidão? A resposta estava na seção 8. Ela atribuía ao Congresso competência sobre política externa, arrecadação fiscal, gestão da dívida pública e que tais, mas não falava nada sobre regimes de trabalho nos diferentes estados. Inferia-se da lacuna que as unidades federativas reservavam o assunto para si, lançando as bases do que os especialistas chamam de “consenso federal”: o entendimento de que “só os estados podiam abolir ou regular de algum modo a escravidão dentro de suas jurisdições” e que “o governo federal não tinha poder nenhum sobre a escravidão nos estados” (WIECEK, 1977WIECEK, William M. The Sources of Antislavery Constitutionalism in America, 1760-1848. Ithaca, NY: Cornell UP, 1977., p. 16; FINKELMAN, 1981FINKELMAN, Paul. An Imperfect Union: Slavery, Federalism, and Comity. Chapel Hill: UNCP, 1981.; OAKES, 2013OAKES, James. Freedom National: The Destruction of Slavery in the United States, 1861-1865. Nova York: Norton, 2013.). Dentro como fora dos Estados Unidos, a comunidade atlântica leu a repartição da soberania norte-americana nesta cartilha: em comunidades divididas em regiões escravistas e regiões livres, a escravidão devia ser considerada assunto da gestão local exclusiva dos escravistas, e não da soberania nacional partilhada com jurisdições livres.

Com o tempo, o conceito de soberania se revelaria problemático não exatamente por suas contradições internas, e sim por sua relação tensa com o conceito de representação. Na medida em que a soberania proibia, implicitamente, o Norte de atuar contra a escravidão no nível federal, e a representação premiava a escravidão no Sul com poder no Congresso, a escravidão se tornou ao mesmo tempo politicamente irrepresentável para Norte e base da representação política para o Sul, uma duplicidade constitucional que, dando voto ao Sul e tirando voz ao Norte, faria do cativeiro fonte de denúncias políticas permanentes na imprensa e no Congresso, um nervo sensível e constantemente exposto no tecido institucional da república. Imperceptível para os franceses em 1789, essa contradição de fundo já tinha se inflamado o suficiente, com seus focos de dissenso e potencial de fragmentação, aos olhos dos constituintes brasileiros por volta de 1820.

Retomemos, enfim, os fios do argumento. Abalada a imutabilidade da escravidão, sendo impossível paralisar o tempo do cativeiro no silêncio de cristal das Constituições, os escravistas tentaram retomar o controle da mudança social pelos freios conceituais do constitucionalismo, definindo o valor semântico dos conceitos políticos liberais como forma de recapturar o tempo histórico que eles mesmos viviam. Representação, cidadania, soberania se tornam então os loci de reconstrução do escravismo nos quadros da temporalização do cativeiro humano. Não há nos três conceitos uma única referência explícita à raça. Ainda assim, na medida em que são modelados para ser instrumentos de gestão do futuro da escravidão e a escravidão é redefinida como pressuposto histórico de cada um deles, pode-se dizer que os três conceitos que marcam o nascimento da geocultura liberal contemporânea são profundamente racializados. Do ponto de vista lógico-verbal (friso essa causa, pois há outras em jogo), os marcadores linguísticos da raça e da escravidão desaparecem do texto constitucional em resultado da contradição de se reunir uma forma jurídica particular de propriedade aos conceitos de conteúdo ecumênico. Mas concluir da ausência do signo a ausência do referente seria como dar um passo no abismo, pois os princípios constitutivos do regime representativo têm por premissa as práticas escravistas e as práticas escravistas estão abstraídas nos princípios políticos. Vejamos a seguir o percurso constitucional dos conceitos e a interseccionalidade dos conceitos constitucionais nas experiências da França e da Espanha, elas que serviram de mediações mundiais entre a republicaníssima Filadélfia de 1787 e a imperial cidade do Rio de Janeiro dos anos 1820.

Interlúdio: França e Espanha, 1789-1812

Não me cabe fazer aqui o roteiro fascinante e revolucionário da primeira Constituinte francesa e das Cortes de Cádiz, senão apenas oferecer uma abordagem concisa do modo pelo qual elaboraram - ou tentaram elaborar - as bases constitucionais de uma ordem liberal escravocrata sobre os escombros do Antigo Regime. Quando chamados para ditar as normas para suas comunidades, os constituintes da França e da Espanha tiveram de mover as mesmas peças no interior de um jogo mais ou menos igual ao da Filadélfia. Nos dois cenários, guerras na arena atlântica tinham abalado as antigas estruturas financeiras ou políticas dos seus respectivos Estados. Em ambos se decidiu reconstruir a legitimidade do poder público por uma ruptura consciente com o passado mediante o repertório do liberalismo. E tanto uma como outra Constituinte precisaram regular sob o peso e o signo de um ordenamento institucional comum espaços escravistas (colônias caribenhas) e espaços livres (metrópoles europeias) - isso sem contar as formações sociais tão complexas como as colônias da América continental hispânica. Mundos substancialmente heterogêneos que o ecumenismo liberal trataria de abraçar como se fosse um só corpo.

O que chama a atenção do observador naquela Paris de 1789 é a autoconfiança dos senhores brancos do Caribe francês, em especial de São Domingos, que agem sob inspiração do que parecia ser o êxito constitucional norte-americano. Embora não tivessem sido convocados para a reunião dos Estados Gerais, eles nomearam seus deputados para Paris, vivendo direta ou indiretamente o transe explosivo dos eventos revolucionários, desde a queda da Bastilha, passando pela proclamação da Assembleia Constituinte, até a declaração universal dos direitos do homem (BOISSONNADE, 1906BOISSONNADE, Prosper. Saint-Domingue à la veille de la Révolution et la question de la représentation coloniale aux États-généraux (Janvier 1788-7 Juillet 1789). Paris: Geuthner, 1906.; GARRETT, 1918; POPKINS, 2011POPKINS, Jeremy D. Saint Domingue, Slavery, and the Origins of the French Revolution. In: KAISER, Thomas; VAN KLEY, Dale (orgs.). From Deficit to Deluge: The Origins of the French Revolution. Stanford, CA: SUP, 2011. p. 220-248.). A Filadélfia também fez escola no campo conceitual. Como se tomassem por seu ponto de partida o ponto de chegada dos norte-americanos, os senhores brancos franceses não tentam aquela estratégia ideal de cristalizar o tempo histórico da escravidão em cláusulas pétreas da Constituição; todo o seu esforço construtivo consiste, desde o início, em manipular a economia interna dos conceitos políticos a favor da ordem escravista. Querem um conceito universal de representação que represente suas riquezas, inclusive aquela espetacularmente acumulada sobre escravos. Buscam um conceito de cidadania provincializado, um que no ultramar servisse só aos brancos, e não aos negros livres. E dão a vida e o sangue por uma divisão de soberania que situasse a gestão política da escravidão no nível local, ao abrigo da política metropolitana. É como se desejassem inocular na Constituição francesa o modo de constitucionalizar a escravidão da Constituição norte-americana.

Mas Paris não é Filadélfia para que as soluções da Filadélfia salvem Paris. O peso do ultramar francês na Assembleia Nacional é diminuto em comparação com o do Sul na Convenção: enquanto a bancada sulista ocupa mais de 40% do Congresso da Filadélfia, os deputados coloniais da França não chegam a uma quinzena dos mais de 1.150 reunidos em Paris. Outra diferença profunda é que o Parlamento francês é uma casa legislativa moderna: seus debates são públicos, suas falas taquigrafadas, suas decisões ganham as ruas, os jornais, os panfletos e os corações do povo, o que diminui a margem de manobra para negociatas polêmicas e contraintuitivas. Por cima desses elementos ainda pairava o poder ascendente dos antiescravistas franceses na véspera da Revolução (DORIGNY; GAINOT, 1988DORIGNY, Marcel; GAINOT, Bernard. La Société des Amis des Noirs, 1788-1799: contribution à l’histoire de l’abolition de l’esclavage. Paris: Unesco-Unicef, 1998.; SAES, 2016SAES, Laurent de. A Sociedade dos Amigos dos Negros: a revolução francesa e a escravidão (1788-1802). Curitiba: Prismas, 2016.). Em 1788 a Société des Amis des Noirs conseguiu disparar uma carta para cada círculo eleitoral da metrópole instando que as pessoas pressionassem o governo a considerar “meios de destruir o tráfico e de preparar a destruição da escravidão”25 25 CONDORCET, M. de [1789]. Au corps électoral, contre l’esclavage des noirs. In: CONDORCET, M. de. Oeuvres de Condorcet, v. 9. Paris: Firmin Didot, 1847. p. 469-475. No original: “moyens de détruire la traite, et de préparer la destruction de l’esclavage”. ; e nada menos que 24 das 185 localidades contatadas responderam pedindo ao governo ações antiescravistas nas suas listas de propostas, os cahiers des doléances.26 26 LAURENT, Emile; MAVIDAL, Jérôme (dir.). Archives Parlementaires de 1787 à 1860: première série (1787-1799), v. 7. Paris: Librairie Administrative P. Dupont, 1879, p. 296-297. Nas colônias, o quadro das relações de poder também era todo particular. Enquanto a população livre negra era menos de 2% da total na Virgínia, Carolina do Sul e Geórgia, em São Domingos, por exemplo, ela atingia uma massa crítica decisiva. Era quase a metade das pessoas livres, além de possuir, nos dizeres de um contemporâneo, “um quarto dos escravos” e “um terço das terras”.27 27 Ibidem, v. 15, 14 maio 1791, p. 68. Em vista das diferenças, não admira que para cada vitória colhida pelos senhores sulistas na Filadélfia os colonos brancos franceses amargassem uma derrota em Paris.

A disputa pelos conceitos em Paris também começa pela representação. Segundo as regras de convocação dos Estados Gerais, o Legislativo seria composto segundo um sistema misto de representação, com um critério demográfico sendo o principal (um deputado por vinte mil pessoas) e um critério supletivo dizendo que as deputações podiam ser corrigidas segundo a “importância” da localidade, noção dilatada que podia encerrar diversos parâmetros, inclusive formas de riqueza.28 28 Ibidem, v. 1, p. 544-545. A bancada da região de Paris, por exemplo, recebeu 30 deputados pelo critério demográfico e 10 pelo critério supletivo, sendo o terço adicional atribuído por alguns parlamentares às riquezas dela.29 29 Ibidem, v. 8, 3 jul. 1789, p. 187-188. De partida, os porta-vozes dos escravistas brancos de São Domingos pediram uma bancada de trinta pessoas, o suficiente para alçar a colônia entre as províncias mais populosas do reino. Na sua justificativa, alegaram que o pedido estava “fundado na combinação de sua população, das riquezas de suas propriedades e da soma de suas contribuições”.30 30 PRÉCIS sur la situation de la députation de Saint-Domingue, aux États Généraux. Versailles: [s. e.], 1789, p. 11. No original: “fondée sur la combinaison de sa population, des richesses de ses propriétés, & de la somme de ses rétributions”. Mas na verdade o que eles estavam fazendo era incluir integralmente os escravos nas contas do seu ábaco. Sendo a sua população total oficialmente estimada de 455 mil pessoas, dividida entre 405 mil escravos e 50 mil livres31 31 HALLE, Étienne Herbin de. Statistique générale et particulière de la France et ses colonies. Paris: Hautefeuille, 1803, p. 49-50. , a colônia daria “22,75” deputados na razão 1:20 mil. Acrescidos de um terço pela “importância” da colônia, chegariam a trinta. A demanda dos senhores de escravos causava desarranjo nas estruturas de poder do império: os mais de 600 mil habitantes livres de Paris teriam uma bancada de 40 deputados, ao passo que os 50 mil habitantes livres de São Domingos emplacariam uma de 30? “Se admitirmos um número tão grande de representantes para São Domingos”, alertou um deputado, outras províncias e colônias “reivindicarão proporcionalmente o mesmo, e então esse número poderá se elevar a 200.” Outro completa: “Essa desigualdade da representação não vai parar”.32 32 LAURENT, Emile; MAVIDAL, Jérôme (dir.). Archives Parlementaires de 1787 à 1860: première série (1787-1799), v. 8. Paris: Librairie Administrative P. Dupont, 27 jun. 1789, p. 164-165. No original: “Si l’on admettait un aussi grand nombre de représentants pour Saint-Domingue, les colonies en réclameraint en proportion, et alors ce nombre pourra s’élever à 200”. “Cette inégalité de répresentation ne doit pas l’arrêter”.

A ação escravocrata causa espécie em Paris, onde as pautas constituintes são disputadas a portas abertas, ganham as ruas, entram nos salões, saem na imprensa e ativam a fibra viva das paixões. Os antiescravistas franceses, que sabiam dos arranjos sórdidos da representação na Filadélfia por seus contatos nos Estados Unidos e estavam à espreita do problema, fizeram fogo tão logo o assunto veio à tona. “No novo sistema federal dos Estados Unidos”, acusou Brissot de Warville num panfleto, quadro da Société, “os negros [escravos] são contados na representação por apenas três quintos de seu número.” “É uma iniquidade absurda”, continua. O “compromisso ridículo” só passara nos Estados Unidos porque a Convenção temia “alienar alguns estados onde os proprietários de escravos são a maioria. A mesma razão não se encontra aqui. Nossos fazendeiros são uma parte bem pequena da nação”.33 33 WARVILLE, Brissot de. Note sur l’admission des planteurs. In: Notes relatives au plan de conduite pour les députés du peuple aux États-Généraux de 1789. [S. l.], [s. e.], 1789, p. 21-28. No original: “Dans le nouveau systême fédéral des Etats-Unis, les Noirs ne sont pas comptés dans la répresentation que pour les trois cinquième de leur nombre”. “C’est une absurde iniquité”. “la crainte d’une scission, qui auroit entraîné les suítes les plus facheuses, a forcé les amis du bien, à risquer ce ridicule compromis”. Iniciada pela Société e agitada na imprensa, a acusação continuou no Parlamento. “Relembro este dilema irreplicável”, disse Mirabeau na plenária. “Se os colonos querem que seus negros e as pessoas de cor sejam homens, que libertem os primeiros”. “Do contrário, pediremos que notem que, ao proporcionar o número de deputados à população da França, não levamos em consideração a quantidade de nossos cavalos nem de nossas mulas”.34 34 LAURENT, Emile; MAVIDAL, Jérôme (dir.). Archives Parlementaires de 1787 à 1860: première série (1787-1799), v. 8. Paris: Librairie Administrative P. Dupont, 3 jul. 1789, p. 187-188. No original: “je rappelle ce dilemme irrépliquable: [...] Si les colons veulent que les nègres et les gens de couleur soient hommes, qu’ils affranchissent les premiers”. “Dans le cas contraire, nous le prierons d’observer qu’en proportionnant le nombre des députés à la population de la France, nous n’avons pas pris en considération la quantité de nos chevaux ni de nos mulets”. Cavalos, mulas. A mesma analogia, os mesmos animais, o mesmo problema: como conciliar uma relação tão peculiar de propriedade com o absolu abstrato de um conceito universal? Os homens da Filadélfia haviam tentado escapar dessa prisão lógica abstraindo a propriedade escrava como valor do trabalho humano. Mas a tapeçaria filosófica era sutil demais para ter algum poder persuasivo no calor do debate público. A denúncia antiescravista então se populariza, e a Assembleia derruba a deputação de São Domingos para seis membros, dignidade reservada às províncias nanicas.35 35 Ibidem, v. 8, 4 jul. 1789, p. 190. A decisão é temporária, e a plenária promete outra, definitiva, para o futuro.

A derrota dos escravistas brancos no campo da representação abre uma violenta disputa sobre o seu conceito vizinho, o de cidadania. Motivados pelos debates sobre a bancada colonial e excluídos do processo de escolha dos deputados enviados ao Legislativo, negros e mestiços livres de São Domingos presentes na capital francesa se organizaram, aliaram-se com a Société e vieram a campo esgrimindo sua própria crítica ao conceito de representação (DEBIEN, 1950DEBIEN, Gabriel. Gens de couleur libres et colons de Saint-Domingue devant la Constituante (1789-mars1790). Revue d’Histoire de la Amérique Française, v. 4, n. 2, p. 211-232, set. 1950; n. 3, p. 398-426, dez. 1950.; BLACKBURN, 1988BLACKBURN, Robin. The Overthrow of Colonial Slavery. Londres: Verso, 1988.; GEGGUS, 2002GEGGUS, David P. Racial Equality, Slavery, and Colonial Secession during the Constituent Assembly. In: GEGGUS, David P. Hatian Revolutionary Studies. Indianapolis: IUP, 2002. p. 157-170.; DUBOIS, 2004DUBOIS, Laurent. Avengers of the New World: The Story of the Haitian Revolution. Cambridge, MA: Belknap Press, 2004.; GARRIGUS, 2007GARRIGUS, John. Before Haiti: Race and Citizenship in French Saint Domingue. Nova York: 2007., 2011GARRIGUS, John. Vincent Ogé jeune (1757-1791): Social Class and Free Colored Mobilization on the Eve of the Haitian Revolution, Americas, v. 68, p. 33-62, 2011.). O foco deles não é a universalização indevida da escravidão, afinal eles também têm seus escravos. O problema era abstrair uma única raça, a branca, como equivalente à totalidade da população livre colonial: se a representação representava pessoas, como dava a entender a decisão da Assembleia ao encolher a bancada senhorial do ultramar, então como é que “os cidadãos de cor se encontrariam representados por deputados dos colonos brancos”? Com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em agosto de 1789, o problema escalou rapidamente para o da cidadania. “Nascidos cidadãos livres”, explicam reiteradamente nas suas petições à Assembleia Nacional, “eles vivem estrangeiros em sua própria pátria. Excluídos de todos os lugares, de todas as dignidades, de todas as profissões”.36 36 Ibidem, v. 9, 22 out. 1789, p. 476-478; v. 10, 28 nov. 1789, p. 329-333; v. 11, 30 jan. 1790, p. 400-401. No original: “les citoyens de couleur se trouveraient représentés par les députés des colons blancs”? “Nés citoyens et libres, ils vivent étrangers dans leur propre patrie. Exclus de toutes les places, de toutes les dignités, de toutes les professions”. A não representação dos negros nas bancadas coloniais, misturada com a efervescência revolucionária dos debates públicos, preparou o caminho para outra discussão ainda mais delicada sobre os direitos políticos e civis da população negra livre no ultramar. Lacerada por forças opostas, a Assembleia promete, também aí, regular o assunto dos direitos individuais no futuro.

Perdendo o controle sobre a elaboração interna dos conceitos de representação e cidadania, os colonos brancos do ultramar francês tentam virar o jogo mudando de estratégia. Em vez de disputar os conceitos fundamentais num espaço que agora percebem ser hostil, a Assembleia Nacional, insistem num regime de soberania onde acham que podem determinar a cidadania e a representação: o autogoverno colonial. Cada colônia, dizem, devia ter um “plano de Constituição próprio a nossos costumes, a nossos usos, a nossas manufaturas e a nosso clima”.37 37 Ibidem, v. 10, 26 nov. 1789, p. 256; 28 nov. 1789, p. 335. No original: “un plan de constitution propre à nos mœurs , à nos usages, à nos manufactures et à notre climat”; OPINION de M. de Cocherel, député de Saint-Domingue, sur l’admission des Nègres et Mulâtres libres aux Assemblées Provinciales. Paris: Cloussier, 1789, p. 3. Ao mudar de conceito, os colonos brancos sabiam que também estavam mudando a escala da política: “a Constituição das colônias deve ser feita nelas”, insistem.38 38 MÉMOIRE des députés de Saint-Domingue a MM. les membres du comité, pour les colonies de l’Assemblée Nationale. Paris, 1790, p. 16. No original: “la Constitution des Colonies doit se faire chez elles”. Nelas: ali onde se sentem senhores do jogo, e não em arena alheia. Sua posição é reforçada pelo lobby senhorial e pelos negociantes das cidades portuárias que têm vida e alma caribenhas, como Nantes e Bordeaux, e a Assembleia decide agir nomeando uma comissão para atender ao apelo colonial em março de 1790.39 39 LAURENT, Emile; MAVIDAL, Jérôme (dir.). Archives Parlementaires de 1787 à 1860: première série (1787-1799), v. 12. Paris: Librairie Administrative P. Dupont, 2, 4, 6 e 8 mar. 1790, p. 2-13, 19, 25-26, 68-73.

A estratégia é contraproducente. Regrar a soberania supõe que a casa esteja arrumada nos conceitos da representação e da cidadania, pois as definições destes servem de base ao exercício daquela. No entanto, fazia dez meses, desde maio de 1789, que os assuntos da representação e da cidadania vinham fervendo no Parlamento, na imprensa, nos panfletos e nas ruas de Paris e das colônias sem definição nenhuma, numa sequência de hesitações perigosas que agora cobrariam o seu preço. Quando a Assembleia autorizou o ultramar a ter constituições, ela se viu obrigada a adotar uma definição preliminar de representação e cidadania para a montagem dos parlamentos locais, e com isso todos os problemas, como se fossem recalques mal resolvidos, retornam com mais força, fúria e descontrole. O decreto da Assembleia acabou prescrevendo um deputado para cada cem cidadãos, portanto nada de representação escrava, esvaziando assim o poder político das zonas de plantation e aumentando o das cidades, onde se concentravam negros livres. Os colonos brancos reagem dizendo que a representação devia representar a riqueza do trabalho, o que incluiria os escravos, mas é como se gritassem no deserto, e são ignorados. Sobre os direitos políticos, a Assembleia determinou que seriam considerados cidadãos “todas as pessoas com mais de 25 anos” proprietárias ou contribuintes - assim mesmo, “todas as pessoas”, sem distinção de cor.40 40 Ibidem, v. 12, 23 mar. 1790, p. 312-317. Protestando com veemência contra o decreto, os colonos brancos tentaram bloquear sua execução em São Domingos, dando início à violenta guerra civil entre brancos, negros e mestiços livres que, reforçada por uma espetacular revolta escrava e agravada por invasões de exércitos estrangeiros, desaguaria no fim da própria escravidão e na independência do Haiti (JAMES, 2000JAMES, C. L. R [1938]. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a Revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000. [1938]; FICK, 1990FICK, Carolyn. The Making of Haiti: The São Domingos Revolution from Below. Knoxville, TN: UTP, 1990.; DUBOIS, 2004DUBOIS, Laurent. Avengers of the New World: The Story of the Haitian Revolution. Cambridge, MA: Belknap Press, 2004., 2006DUBOIS, Laurent. An Enslaved Enlightenment: Rethinking the Intellectual History of the French Atlantic. Social History, n. 31, p. 1-14, 2006.; GEGGUS, 2010GEGGUS, David P. Racial Equality, Slavery, and Colonial Secession during the Constituent Assembly. In: GEGGUS, David P. Hatian Revolutionary Studies. Indianapolis: IUP, 2002. p. 157-170.). Não deixa de ser notável que quanto mais os senhores franceses imitavam percurso conceitual da Constituinte norte-americana, que eles enxergavam como rota segura nas águas móveis da revolução, tanto menos eles controlavam a interseccionalidade constitucional dos conceitos, afastando-se do modelo que seguiam e rumando à sua própria destruição.

Ao contrário dos Estados Unidos, onde o conceito de representação se nacionaliza graças à abstração da escravidão como valor do trabalho e, assim, serve de ponte para o consenso entre os constituintes na metade final da Convenção, no império francês o conceito de representação abre fissuras profundas entre grupos diversos, lança uns contra os outros e inflama divergências públicas sobre a cidadania. O dissenso que cresce num conceito faz sua morada no outro. Como não podia deixar de ser, a busca por uma solução para tudo no campo da soberania implicou importar o caos dos outros conceitos para a prática política em São Domingos, abrindo a antessala da subversão revolucionária da ordem escravista da colônia. Depois da Revolução Francesa, o pacote conceitual que parecia tão seguro nos Estados Unidos - representação como representação de riquezas (escravos), cidadania a variar de região para região, soberania local da gestão política da escravidão - já podia ser recebido com um grão de sal no mundo ibérico.

Transitar da Filadélfia e de Paris para as Cortes de Cádiz (1810-1812) - apesar das semelhanças de fundo, como o enlace de formações sociais heterogêneas sob a égide universalista do liberalismo, o percurso constitucional dos conceitos e a interseccionalidade dos conceitos constitucionais - é como passar de um universo a outro. Aquela linha divisória entre regiões escravistas e livres, nítida nos enredos anteriores, se redesenha agora numa oposição entre bancada metropolitana e bancadas coloniais, algumas escravistas, outras não. Esse antagonismo, eixo vivo das Cortes de Cádiz, é filho do medo que a deputação peninsular sentia de ser dominada por uma maioria americana no Parlamento, temor que, apesar de censurado na historiografia, não é de todo injustificável (KING, 1953KING, James F. The Colored Castes and American Representation in the Cortes of Cadiz. The Hispanic American Historical Review, v. 33, n. 1, p. 33-64, 1953.; RIEU-MILLAN, 1990RIEU-MILLAN, Marie-Laure. Los diputados americanos en las Cortes de Cádiz. Madri: CSIC, 1990.; FRADERA, 2013FRADERA, Joseph M. Include and Rule: The Limits of Liberal Colonial Policy, 1810-1837. In: BROWN, Matthew; PAQUETTE, Gabriel (orgs.). Connections after Colonialism: Europe and Latin America in the 1820s. Tuscaloosa: University of Alabama Press, 2013., p. 65-86). Àquela altura, as tropas napoleônicas tinham tomado quase toda a Espanha e forçado a abdicação da família real, trauma coletivo que gerava empatia espontânea com o absolutismo ferido pelo estrangeiro. Nas mãos dos americanos, as Cortes talvez suprimissem o exclusivo metropolitano, talvez rebaixassem as barreiras tarifárias, pontos sempre sensíveis que afetariam a bolsa dos influentes na Península, podendo empurrá-los de vez para o absolutismo ou até mesmo para Napoleão. Na mirada dos liberais europeus, manipular os conceitos constitucionais a favor da Espanha era a condição de existência do próprio constitucionalismo no império espanhol.

Outra falsa semelhança: embora os espanhóis também façam do conceito de representação seu ponto de partida e sua matéria de vida ou morte, eles não enfrentam a questão pelo prisma da propriedade humana. Pelo contrário, um dos fenômenos mais espetaculares de Cádiz é que o conceito da representação se desloca sub-repticiamente da propriedade escrava para as relações raciais da escravidão. Razões de toda ordem, desde as doutrinas jurídico-políticas neoescolásticas, que insistiam que o poder pactuado representava o povo, e não suas riquezas, até o curso revolucionário da França, que com a crise da escravidão no Caribe enterraria de vez a ideia de representação de riquezas no Parlamento, ajudam a explicar a novidade espanhola, mas talvez a causa mais poderosa estivesse na força silenciosa da demografia. Ainda que a população africana ou afrodescendente da América hispânica fosse estatisticamente relevante (20%-25% do total), a maior parte dela (70%-75%) vivia fora, e não dentro, do cativeiro (ANDREWS, 2004ANDREWS, George Reid. Afro-Latin America, 1800-2000. Oxford: OUP, 2004., t. 1.1, p. 41). Os escravos eram só 4% da população total no ultramar espanhol, em contraste com os 40% de escravos no Sul dos Estados Unidos e os 90% nas colônias francesas.41 41 RETURN of the Whole Number of Persons within Several Districts of the United States. Filadélfia/Londres: Phillips, 1793; HALLE, Étienne Herbin de. Statistique générale et particulière de la France et ses colonies. Paris: Hautefeuille, 1803. Era possível então definir, sem traumas, representação como representação de pessoas livres, e não de propriedade - só Cuba e Porto Rico seriam prejudicadas com a exclusão dos escravos, mas nesse ponto elas não recebiam o mais cálido apoio nem mesmo das outras regiões do Novo Mundo. Como população era poder e poder era população, decisivo mesmo em Cádiz era definir quem tinha direito de representação entre as pessoas livres.

No limite, os espanhóis europeus eram pela representação dos livres brancos, o que daria uma deputação europeia quatro vezes maior que a americana, e os espanhóis americanos defendiam a representação abrangente de todos os livres, o que significaria predomínio americano no Parlamento (KING, 1953KING, James F. The Colored Castes and American Representation in the Cortes of Cadiz. The Hispanic American Historical Review, v. 33, n. 1, p. 33-64, 1953.). Da polarização resultou uma espécie de meio-termo. Os originários da Espanha (brancos) e da América (índios), bem como seus descendentes mestiços, seriam representáveis; as demais pessoas livres - africanos e descendentes de africanos, as chamadas “castas” -, não. A história do constitucionalismo atlântico então se repete. A definição do conceito de representação perturba e agita o interior dos demais conceitos, a começar pelo problema da cidadania. Se representação representa pessoas e direitos, e se os negros são irrepresentáveis, então os negros estariam excluídos da cidadania. Ora, é exatamente isso o que os peninsulares, lógicos em suas consequências, impõem e decidem. Não deixa de ser notável que uma monarquia orgulhosa do seu paternalismo social, de garantir canais para a alforria escrava e assimilar libertos ao mundo dos livres numa escala maior que o escravismo anglo-saxão e mesmo o francês, também fosse o único Estado liberal a racializar explicitamente o conteúdo das noções modernas de representação e cidadania. Passionais, polêmicas, arrebatadoras, essas decisões de Cádiz levariam água, energia e munição aos movimentos de independências da América hispânica, onde guerras civis e emancipações escravas entrariam no repertório dos pesadelos senhoriais do atlântico (HELG, 2004HELG, Aline. Liberty & equality in Caribbean Colombia, 1770-1835. Chapel Hill: UNCP, 2004.; ­LASSO, 2007LASSO, Marixa. Myths of Harmony: Race and Republican­ism during the Age of Revolution, Colombia 1795-1831. Pittsburgh: UPP, 2007.; CLÉMENT, 2017CLÉMENT, Thibaud. Libérer le Nouveau Monde. La fondation des premières républiques hispaniques (Colombie et Venezuela, 1780-1820). Paris: Les Perséides, 2017.; ECHEVERRI, 2020ECHEVERRI, Marcela. Slavery in Mainland Spanish America in the Age of the Second Slavery. In: TOMICH, Dale (org.). Atlantic Transformartions: Empire, Politics, and Slavery during the Nineteenth Century. Nova York: SUNY, 2020., p. 19-45).

A posição dos senhores cubanos no meio dessas disputas ajuda a explicar, entre diversos outros fatores, por que o regime constitucional não deitaria raízes nas sociedades escravistas espanholas. A julgar pelas cartas trocadas entre a base eleitoral de Havana e seu principal deputado em Cádiz, Andrés de Jáuregui, o senhoriato cubano se sente desconfortável nos acordos firmados nas Cortes. Quando a plenária já tinha aprovado a Constituição até o artigo 129, com o tópico da representação fixado no 29, Jáuregui desabafa numa carta aos havaneses: “Segue avançando a discussão do projeto de Constituição, pois está aprovado até o art. 129.” “O 29, que passou como está, nos prejudica muito porque diminui a população que há se servir de base para a nomeação de deputado[s]”.42 42 JÁUREGUI, Andrés de. Carta ao Ayuntamiento de Havana. 3 out. 1811, ANC, GSC, legajo 39, fo. 18. No original: “Sigue avanzando la discusion del proyecto de constitucion, pues está aprobado hasta el art.° 129”. “El 29. que ha pasado segun está, nos perjudica mucho disminuie la poblacion que ha de servir de base para el nombram.to de diputado”. Também é grande na ilha o desconforto com o tratamento constitucional da cidadania. Os havaneses pedem ao Parlamento que deixe o assunto para depois, para a atmosfera emocionalmente menos carregada das leis ordinárias: “antes fixar os direitos e os gozos que aqui deve ter a cidadania”, dizem às Cortes, “que determinar o tamanho e o número das portas que para esses gozos devem ser abertas ou fechadas às pessoas de cor”.43 43 REPRESENTACIÓN de la ciudad de la Habana a las Cortes, el 20 de julio de 1811. In: PARREÑO, Francisco Arango y. Obras (volumen II). Havana: Imagen Contemporánea, 2005, p. 39. No original: “antes fijar los derechos y los goces que aquí debe tener la ciudadanía, que determinar el tamaño y número de las puertas que para estos goces deben abrirse o cerrarse o las gentes de color”. Sua fórmula não engana ninguém. Regular direitos e gozos da cidadania sem nomear cidadãos era o American way of politics. Fazer isso na Filadélfia, onde a representação se desprendeu dos direitos, é uma coisa. Mas querer o mesmo em Cádiz, onde cidadania e representação completam o círculo de um horizonte semântico unificado, é pedir o impossível. De ouvidos fechados, os peninsulares atropelam a demanda dos senhores cubanos. E com razão.

As Cortes de Cádiz são incontroláveis para os hispano-cubanos, o que eles querem não cabe no projeto político dos europeus. Nem sua concepção de representação desracializada, nem sua concepção de cidadania sem cidadãos. Sem força para determinar conceitos tão fundamentais, o senhoriato cubano mudaria seu foco de atuação dali por diante e seguiria a terceira e última das regras da Filadélfia - que em comunidades políticas de formações sociais heterogêneas, a gestão política da escravidão deve ser material local. Entre 1812 e 1825, sugeririam à Coroa, reiteradamente, a construção gradual de um regime de soberania que depositasse o controle da escravidão na autoridade ultramarina máxima, o capitão-general, e não nos conselhos da metrópole. Em 1825, finalmente, a Coroa concedeu à ilha um regime militar excepcional pelo qual os hispano-cubanos fariam, via capitania-general, a gestão da escravidão frente à política metropolitana, fosse ela absolutista, fosse ela parlamentar (PIQUERAS, 2005PIQUERAS, José A. El mundo reducido a una isla. La unión cubana a la metrópole en tempos de tribulaciones. In: PIQUERAS, José A. (ed.). Las Antillas en la era de las Luces y la Revolución. Madri: Siglo XXI, 2005. p. 319-342.; PARRON, 2015PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade. Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese (Doutorado em História), Departamento de História, FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015., p. 113-150). Ter perdido o controle sobre os conceitos fundamentais do liberalismo talvez não explica integralmente o abandono do regime constitucional pelos hispano-cubanos - fatores como a emancipação política e o antiescravismo nas Américas tiveram peso enorme na decisão. Mas ao menos esclarece por que nunca mais lutaram por ele com o ardor e a paixão de quem ama a liberdade.

Feitas as contas, tudo também passou pela representação nas experiências constituintes escravistas “falhadas” da França e da Espanha. Tudo dependeu dela. O problema mal resolvido da representação contaminou as paixões individuais da cidadania. E por aí os escravistas fizeram da soberania um verdadeiro campo de batalha (França) ou o duplo oposto do constitucionalismo (Espanha-Cuba). Pelo ângulo da análise comparada, pode-se dizer que só nos Estados Unidos, uma Constituinte excepcionalmente fechada como se fosse conciliábulo de hereges nos tempos da inquisição, a representação foi manipulada ao ponto de construir consenso majoritário para trilhar o percurso conceitual das Constituintes e desarmar o teor explosivo da interseccionalidade constitucional dos conceitos. Somente lá foi possível transfigurar o valor do trabalho num valor político. Diante dessas experiências, o que os constituintes brasileiros tentariam fazer?

Brasil: síntese do mundo

Rio de Janeiro, 1824. Um grupo de dez pessoas, do Conselho de Estado, redige a portas fechadas aquela que seria a Constituição mais longeva do Brasil. Esses homens têm, por assim dizer, a boa sorte dos retardatários. Os eventos que haviam se desenrolado na planície da história desfiam velozmente sob o seu olhar atento, visão privilegiada de quem pode se colocar no alto da montanha dos tempos. Dali podiam notar que a Constituição norte-americana de 1787 era a única sobrevivente da era revolucionária, mas que mesmo ela tinha seus conceitos explosivos - com destaque para o da representação dos escravos, que, disparando discórdias públicas depois de 1816, culminara na Crise do Missouri em 1820. Também viam que a primeira Constituinte da França fora o duplo invertido da norte-americana, que a politização extrema dos princípios de representação, cidadania e soberania desembocara numa guerra civil e abolicionista em São Domingos. Por fim, ainda viam que a manipulação indevida da representação e da cidadania em Cádiz contribuíra para o separatismo, as guerras, os abalos irreversíveis na escravidão na América hispânica. Quando o Brasil se tornou independente, a glória e a miséria do constitucionalismo escravista atlântico se apresentavam reduzidas à condensação viva da experiência histórica, sugerindo o que fazer - e, em especial, o que não fazer - para manter intacto o cativeiro humano no futuro. A consciência das revoluções sempre alimenta uma contrarrevolução consciente.

Não tem nada mais fácil que recolher na esfera pública do Império referências às Constituições anteriores, principalmente aos exemplos “falhados” da França em diante, como modelos corrompidos da política, como operadoras do mau destino dos povos. É bem conhecido o discurso de D. Pedro I na abertura da Constituinte brasileira de 1823: “Todas as Constituições, que à maneira das de 1791 e 92, têm estabelecido suas bases, e se têm querido organizar, a experiência nos tem mostrado que são totalmente teoréticas e metafísicas e por isso inexequíveis: assim o prova a França, Espanha e ultimamente Portugal”.44 44 ANNAES do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte, 1823. Rio de Janeiro: Typ. Do Imperial Instituto Artístico, 1874. A experiência política espanhola, porque mais próxima no tempo e vivida em países vizinhos, foi especialmente decisiva para a formação do campo sociopolítico de experiência dos constituintes brasileiros (PIMENTA, 2015PIMENTA, João Paulo. A Independência do Brasil e a experiência hispano-americana (1808-1822). São Paulo: Hucitec, 2015.). Por anos, o Correio Braziliense, o principal jornal a circular no império português no período joanino (1808-1821), publicizou denúncias contra a manipulação indébita do conceito de representação nas Cortes de Cádiz. “As províncias da América desejaram entrar nesta organização [regime liberal] com igual representação”, lê-se em um dos seus números; “na Europa não as quiseram admitir; e agora há quem as acuse de quererem separar-se da integridade do império espanhol; logo se estão separadas a culpa não é delas”.45 45 COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, n. 6, 1810, p. 708. As páginas do jornal repercutiam o ponto de vista dos americanos sobre o problema da cidadania: na Constituição espanhola de 1812, “se excluem do censo espanhol os americanos espanhóis que por alguma linha sejam reputados por ter origem, ainda que remotíssima, na África. E como estes serão de 10 a 12 milhões, se entende a igualdade de representação nas Cortes futuras reduzida à metade ou mais da povoação da América”.46 46 COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, n. 8, 1812, p. 296-300. São notícias que penetram os poros, os olhos e os ouvidos da administração luso-brasileira. Na chancelaria portuguesa, o representante joanino na Espanha reporta que a “questão das castas” havia ajudado a transformar o sólido império espanhol num cacho de repúblicas independentes no Novo Mundo (BERBEL; MARQUESE; PARRON, 2010BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010.).

Sensível na América hispânica, o assunto era ainda mais vital no Brasil, a única jurisdição da América ibérica onde a população branca era possivelmente menor que a escravizada. Em contraste com as potências escravistas do seu tempo (Estados Unidos e Cuba), o Brasil é aquela com a menor porcentagem de brancos na população total. No máximo, 30%. Do mesmo modo que os brancos, negros e mestiços livres também assistem ao teatro constitucional do mundo atravessando um período de formação e pedagogia política (ASSUNÇÃO, 2011ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. “Sustentar a Constituição e a Santa Religião Católica, amar a Pátria e o Imperador”. Liberalismo popular e o ideário da Balaiada no Maranhão. In: DANTAS, Monica Duarte(org.). Revoltas, motins, revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011. p. 295-328.). Demandam participação efetiva na reorganização do poder na revolta de 1798 no Recôncavo baiano, mobilizam-se na malfadada Revolução de Pernambuco de 1817 e engajam-se de corpo e alma na crise de Independência de 1822 (TAVARES, 1975TAVARES, Luís Henrique Dias. História da sedição intentada na Bahia em 1798 (“A Conspiração dos Alfaiates”). São Paulo: Pioneira, 1975.; JANCSÓ, 1996JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec/Edufba, 1996.; KRAAY, 2001KRAAY, Hendrik. Race, State, and Armed Forces in Independence-Era Brazil. Bahia, 1790-1840. Stanford: SUP, 2001.; ARAÚJO, 2004ARAÚJO, Ubiratan Castro de. A política dos homens de cor no tempo da Independência. Estudos Avançados, v. 50, n. 18, p. 253-269, 2004.; MATTOSO, 2004MATTOSO, Kátia. M. de Queirós. Da revolução dos alfaiates à riqueza dos baianos no século XIX. Itinerário de uma historiadora. Salvador: Corrupio, 2004.; QUEIROZ, 2017SLEMIAN, Andrea. Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005.). Suas ações no interior desses movimentos reforçam a ideia de que a luta do liberalismo contra o poder instituído implica sempre mobilização coletiva em maior escala, o que no Brasil significava, inevitavelmente, maior abrangência sociorracial (JANCSÓ, 1996JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec/Edufba, 1996.). Abre-se aí então um círculo que se retroalimenta mas nunca se fecha. Por um lado, a dilatação do horizonte semântico dos conceitos do liberalismo solicita a expansão não só dos conceitos senão também da prática política e dos grupos sociais. Por outro, os grupos de extração popular, inquietos, agitados, descontentes, testam a capacidade de absorção das tensões sociais, étnicas e políticas pelos novos conceitos, pela organização conceitual das novas instituições, pelo governo em formação. A passagem do momento filosófico para o sociológico no campo sociossemântico do liberalismo é sempre permeada de contradições, hiatos, descontinuidades.

Das Cortes de Lisboa (1820-1822), a primeira experiência constitucional dos brasileiros, à Constituinte do Brasil (1823) e à Constituição imperial de 1824, a ideia fixa das elites letradas é despolitizar os conceitos políticos, diminuir seu potencial de alta voltagem, para arrebatar melhor o poder público liberal no momento mesmo em que ele nasce. Há no entanto uma diferença de contexto que modifica tudo na passagem de Lisboa para o Rio de Janeiro e anula o que até então havia sido uma constante no constitucionalismo escravista atlântico: no meio do caminho desaparece o desafio de unificar formações sociais heterogêneas sob os mesmos conceitos políticos universais do liberalismo. João Severiano Maciel da Costa, um dos próceres da geração da Independência do Brasil, tocou exatamente nesse ponto num dos seus panfletos endereçados às Cortes de Lisboa. Como escrever, ele pergunta, “Planos Orgânicos [Constituições] que bem ajustassem à nossa situação e pudessem aplicar-se assim ao pequeno território de Portugal e sua população homogênea, como ao vastíssimo do Brasil e sua desgraçada população bárbara e heterogênea”? Ele pensava que essa “combinação” era de “não pequena dificuldade”. “Não temos aí aberto o Grande Livro, o livro Mestre de páginas ensanguentadas, onde estão escritas as calamidades que têm assolado a Europa em nossos dias?”.47 47 COSTA, João Severiano Maciel da. Apologia que dirige à nação portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1821b, p. 29.

A maior preocupação dos proprietários e letrados brasileiros é originalmente determinada pela convocatória eleitoral de 22 de novembro de 1820 que os portugueses redigiram para as Cortes de Lisboa, que circulou no Correio Braziliense alguns meses depois e que D. João VI chancelou para o Brasil em março de 1821.48 48 COLEÇÃO das leis do Brazil de 1821. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 27; COLECÇÃO das decisões do Governo do Brazil de 1821, p. 10. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889; COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, n. 25, 1820, p. 648 ss. O decreto era cópia das normas eleitorais fixadas na Constituição de Cádiz, onde o conceito de representação vinha mesclado com o de cidadania, e as populações africanas ou afrodescendentes eram excluídas tanto de uma como da outra. Como não podia deixar de ser num país complexo do ponto de vista demográfico e racial, suas instruções acenderam um facho de alerta no Brasil. Sabendo do que se passara no império espanhol, nestes vizinhos malvistos onde a tentativa de regular a relação horizontal entre os corpos da comunidade política (representação) escalou para um conflito vertical entre as camadas sociais da comunidade (cidadania), um grupo de brasileiros se empenhou seriamente em despolitizar a política da representação, na sua visão o primeiro gatilho da explosão vermelha e lacerante de uma comoção popular. No plano de governo que a deputação de São Paulo levou às Cortes de Lisboa, José Bonifácio e seus colegas paulistas propuseram a rejeição radical do princípio da proporcionalidade como base da distribuição do poder no império português. “Para que haja justiça e igualdade nas decisões das Cortes Gerais e Ordinárias”, diz, “parece necessário que os seus deputados tanto no reino de Portugal como no ultramar sejam sempre em número igual, qualquer que seja para o futuro a população dos estados da união”.49 49 LEMBRANÇAS e apontamentos do Governo Provizorio da Provincia de S. Paulo para os seus deputados, mandadas publicar por ordem de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1821, p. 7-8. Na sua opinião, se a representação representasse territórios, o mundo português se livraria in limine do problema que ainda intoxicava os Estados Unidos, que tinha assolado São Domingos e que estava espedaçando o império espanhol.

Quando o plano de São Paulo foi lido nas Cortes de Lisboa (6 de março de 1822), os portugueses já haviam montado uma constelação conceitual incompatível com a representação fixa. Sua concepção de soberania, por exemplo, ecoa aquela da Espanha. “A soberania reside na nação inteira: todos os cidadãos devem ter parte no exercício desta soberania”, ensinava um dos líderes do Parlamento. “Temos sancionado que a soberania reside na nação”,50 50 CORTES Geraes e Extraordinarias da Nação Portugueza, v. 2. Lisboa: [s.e.], 9 fev. 1822, p. 138-139. repetem os portugueses. E repetem com exaustão: “os sábios do nosso tempo inventaram o sistema representativo; este sistema não é mais que a subdivisão da soberania que compete ao povo”51 51 Ibidem, 13 fev. 1822, p. 178, . Por esse ângulo, a representação representa as pessoas, e não as jurisdições abstratas que a representação fixa supõe como fonte da soberania. Desde agosto de 1821 os portugueses já tinham definido que o “povo” seria a base da representação na proporção de “cada deputado” por “30 mil habitantes”, um cálculo convenientemente redondo, visto que na altura se estimava a população de Portugal em 3 milhões, o que daria 100 parlamentares.52 52 Ibidem, v. 1, 27 ago. 1821, p. 2.031; 31 ago. 1821, p. 2.109. Não foi difícil para o Parlamento descartar, sem má consciência, a proposta de São Paulo.

Mas, com os brasileiros chegando às Cortes, os portugueses perceberam que a redação original incluiria integralmente os escravos na base da representação, afinal eles também eram habitantes, e então adicionaram uma sutil porém poderosa modificação no texto em abril de 1822: o número dos deputados seria “regulado na razão de um por cada 30 mil habitantes livres”.53 53 Ibidem, v. 2, 16 abr. 1822, p. 813. Sem o adjetivo, a representação brasileira representaria propriedade, a portuguesa não; e a bancada brasileira prevaleceria sobre a portuguesa, pois as estimativas da época davam mais de 3 milhões de moradores ao Brasil, dos quais 30% ou mais eram escravizados. Eliminando os escravos, os portugueses cravavam maioria parlamentar (cerca de 100 vs. 70); mantinham coerência com sua noção de soberania; e ainda nem precisavam recorrer ao precedente espanhol de racializar o conteúdo semântico de “povo”, isto é, reduzir a base da representação a brancos e indígenas. A expressão “habitantes livres” era abrangente, universal, sem a distinção odiosa de raça. “As Cortes”, diz um orgulhoso deputado português num exercício de contraste implícito com a Constituinte espanhola, “não querem governar o Brasil por um sistema diverso daquele por que querem governar Portugal; querem igualdade de direitos e igualdade de representação”.54 54 Ibidem, v. 3, 22 maio 1822, p. 230. Se o Brasil se separasse, não encontraria numa representação racializada a justiça da sua causa. Palavras bonitas que, como veremos mais abaixo, os brasileiros não deixariam passar sem contestação.

O à vontade português no campo da representação desracializada, em oposição aos pesos e constrangimentos dos espanhóis, condicionou silenciosamente o debate sobre a cidadania em Lisboa. Quando a convocatória eleitoral baseada na Constituição de Cádiz eletrizou o Brasil, o governador de Minas Gerais notou que “seria forçoso entender que os pardos ou crioulos por uma linha de portugueses e por outra de africanos se não compreendiam na representação nacional”, e que, portanto, eles estariam excluídos do exercício da cidadania, ambiente perfeito para abalar a “segurança pública com desordens perigosas” (apudSILVA, 2005SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Identidades políticas e a emergência do novo Estado nacional: o caso mineiro. In: JANSCÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec-Fapesp, 2005. p. 515-555., p. 548-549). Sua preocupação continuou sem transição na boca dos deputados brasileiros em Portugal. No dia seguinte à definição da base popular desracializada da representação, durante uma discussão sobre o direito do voto, eles insistiram em investir a população não branca, inclusive a liberta, dos poderes da cidadania. “Há muitos libertos no Brasil que hoje interessam muito à sociedade”, explicou um dos brasileiros, “e têm grandes ramos de indústria, muitos têm famílias; por isso seria a maior injustiça privar estes cidadãos de poderem votar”.55 55 Ibidem, v. 2, 17 abr. 1822, p. 838. Como essas demandas diziam respeito à organização do poder no interior do Brasil, e não à sua repartição entre Brasil e Portugal, questão resolvida no campo da representação, a maioria portuguesa admitiu, sem as dores do autossacrifìcio, não só a cidadania desracializada, mas também sua extensão aos “escravos que tivessem alcançado carta de alforria”.56 56 Ibidem, v. 4, 13 ago. 1822, p. 140. Formulação que contemplava todos os negros emancipados, fossem eles nascidos no Brasil ou na África.

Conceitos fundamentais são pura confluência. Como nos estuários, onde o rio vive a imensidão do mar e as marés provam as margens do rio, eles se misturam teimosamente, e o que se represa num deles pode bem estourar no outro. E não foi justamente este o destino da representação e da soberania em Lisboa? Com um quietismo louvável e suspeito, os deputados brasileiros tinham aceitado que os escravos fossem cortados da base de sua representação política. Mas dentro do seu silêncio cresceu um plano alternativo de poder. Seguindo a mente de Maciel da Costa - para quem era quase impossível unificar “Portugal e sua população homogênea” com o “Brasil e sua desgraçada população bárbara e heterogênea” sob a regência de preceitos comuns -, os brasileiros apresentaram à plenária das Cortes em junho de 1822 emendas constitucionais que simplesmente redesenhariam o pacto político de Lisboa. Nos termos do seu projeto, a soberania do Estado devia ser repartida entre as “Cortes Gerais”, onde se reuniriam comissários de todo o império, e as “Cortes Especiais”, uma sediada no Brasil para brasileiros e outra sediada em Portugal para portugueses. Às Cortes Gerais caberia legislar sobre guerra e paz, comércio exterior e orçamento imperial, enquanto as Especiais tratariam de todas as coisas que concerniam ao seu “regimento interior”, entre elas, é claro, a escravidão dos negros57 57 Ibidem, v. 3, 26 jun.1822, p. 558-559. (JANCSÓ, 2005JANCSÓ, István. Independência, independências. In: JANCSÓ, István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005. p. 17-52., 2008JANCSÓ, István. Brasil e brasileiros: notas sobre a modelagem de significados na crise do Antigo Regime português na América. Estudos Avançados, n. 22, p. 274, 2008.).

A exposição de motivos do projeto de emenda constitucional é reveladora. Primeiro, um problema geográfico: “O Reino do Brasil é mui arredado do de Portugal.” Depois, um social: “sua localidade e circunstâncias o diferenciam essencialmente de qualquer regime e sistema europeu”. Por fim, o político: “Como não sofrerá muito o país privando-se de dois em dois anos de setenta a oitenta pessoas conspícuas em saber e costumes, e isto para formarem uma constante minoridade”? A proposta causou espécie e espanto entre os portugueses. “Que outra cousa seria isto senão uma pura federação?” Ou: “Eis, segundo este plano, estabelecida a duplicidade da soberania do povo do Brasil: a saber, uma representação no seu território para regular segundo lhe convier, e outra em Portugal para figurar a quimérica união”.58 58 Ibidem, v. 3, 26 jun. 1822, p. 567; 3 jul. 1822, p. 659 ss.; 4 jul. 1822, p. 699 ss. Mas os portugueses entenderam rapidamente qual era a vexata quaestio para os brasileiros. “De tudo isto”, disse um europeu, “o remédio que se poderia adoptar para causar menos incômodo ao Brasil seria dar deputados com relação a maior número de habitantes que os que estão determinados até agora”.59 59 Ibidem, v. 3, 26 jun. 1822, p. 571. Engolindo convenientemente o adjunto livres do nome habitantes, sua fala acenava para a representação dos escravos. Com efeito: o preço da representação minoritária de uma sociedade escravista numa ordem constitucional bissocietária (livre e escravista) vinha sendo, sempre, um regime de soberania dual onde a gestão política da escravidão permanecesse em mãos senhoriais. Assim se decidira, implicitamente, na Filadélfia (consenso federal). Assim se havia tentado fazer em Paris (constituições coloniais). Assim conseguiram a seu modo, heterodoxamente, os cubanos (faculdades onímodas). Do ponto de vista atlântico, a demanda brasileira era lógica e até previsível. Quando a maioria portuguesa derrubou a emenda em 4 de julho, apenas terminou de empurrar um navio que já zarpara do porto. O Rio de Janeiro rumava para a separação, e os deputados brasileiros logo abandonariam as Cortes de Lisboa.

A Independência do Brasil tem um sabor de revolução: não pelo radicalismo que nunca teve, mas pela evidente novidade que introduziu no constitucionalismo atlântico até então vivido na Europa e na América. Da separação dos Estados Unidos, passando pelo vulcão napoleônico, até as rebeliões das ex-colônias espanholas, nunca uma classe senhorial tivera a chance de provar a experiência libertária de uma Constituinte nacional totalmente escravista. Uma casa que pudesse chamar de sua. Um espaço onde não tinha de disputar a cada palmo, como terreno de campanha, os grandes conceitos da política com uma maioria não escravista. O ineditismo da situação abriu brechas para manobras finas. Uma lacuna impensável aqui, uma decisão pontual ali, e aquela corrente da repetição quase monótona vista até agora se rompe: o percurso conceitual das Constituintes (representação, cidadania, soberania) e a interseccionalidade constitucional dos conceitos parecem desarmados no Rio de Janeiro. Se não por inteiro, ao menos nas suas partes centrais.

Questão perene nas experiências constitucionais bissocietárias, o problema da representação se tornou um não problema no Império do Brasil. Depois de ser vencido em Lisboa, o laborioso Bonifácio continuou apostando na despressurização do conceito na Assembleia Constituinte brasileira de 1823, só que desta vez conseguiu o que almejava. Quando ele e seu irmão, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, integraram o seleto grupo de sete deputados que a Constituinte nomeou para redigir o projeto da Constituição brasileira, os dois apoiaram - se é que a iniciativa não partiu deles - que o horizonte semântico da representação permanecesse indefinido no âmbito constitucional. O artigo do projeto que regrava o assunto dizia simplesmente que “uma lei regulamentar marcará o modo prático das eleições, e a proporção dos deputados à população”.60 60 ANNAES do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte, v. 5, 1º set. 1823, p. 18, art. 137. A manha do texto, sua sutileza de consciência contrarrevolucionária, está na expressão população. Ela não é definida pelos predicados esperados: população livre, o que excluiria escravos; população total, o que incluiria os escravos; ou alguma fração esdrúxula da população, à maneira da aritmética norte-americana. Ela tampouco é explicitamente racializada, o que remeteria ao campo da cidadania, amarrando os dois conceitos como nas Cortes de Cádiz. Pela redação, o campo semântico do termo pode conter a ideia de representação de pessoas e direitos, mas também a ideia de representação de riquezas e interesses.

Outro aspecto notável, que reforça a ideia do poder coesivo da escravidão negra no Brasil, é que enquanto a representação ocupou a primeira metade da Convenção norte-americana, agitou o Parlamento na França, onde serviu de espoleta para a explosão social em São Domingos, consumiu o estoque inicial de legitimidade das Cortes de Cádis e contribuiu para empurrar os brasileiros para uma posição federalista em Lisboa, a Constituinte brasileira de 1823 trabalhou por cinco meses sem a menor pressa de discutir o conceito e acabou sendo dissolvida por D. Pedro I muito antes de considerar o artigo 137. Ao contrário das comunidades políticas bissocietárias, onde tudo começa e tudo termina pelo valor da representação porque todos desconfiam de todos, o Rio de Janeiro é um ponto de encontro de pessoas que vivem e convivem com a escravidão. A formulação lacunar caiu tão bem no gosto dos poderosos que, quando D. Pedro I encarregou o Conselho de Estado de redigir a Constituição de 1824, seus membros repetiram o artigo do projeto de 1823 quase termo por termo: “Uma lei regulamentar marcará o modo prático das eleições, e o número dos deputados relativamente à população do Império” (art. 97). O primeiro signatário do documento é Maciel da Costa. Impossível não imaginar seu alívio diante da elipse de um adjetivo. Elipse impensável no “Grande Livro [...] de páginas ensanguentadas” do Atlântico.

Se a intenção dos redatores era invisibilizar uma pedra de escândalo e despolitizar o conceito central da política representativa, eles atingiram o objetivo. Um vibrante historiografia vem explorando o significado da representação política nas normas e leis eleitorais de 1842, 1846, 1855, 1875 e 1881, bem como no início da república (­DOLHNIKOFF, 2014DOLHNIKOFF, Miriam. Governo representativo e legislação eleitoral no Brasil do século XIX. Journal of Iberian and Latin American Research, v. 20, p. 66-82, 2014., 2017DOLHNIKOFF, Miriam. Governo representativo e eleições no século XIX. Revista do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, v. 474, p. 15-46, 2017., 2021DOLHNIKOFF, Miriam. Conflitos intraelite, cidadania e representação da minoria: o debate parlamentar sobre a reforma eleitoral de 1875. Tempo, v. 27, p. 693-715, 2021.; LIMONGI, 2014LIMONGI, Fernando. Revisitando as eleições do segundo reinado: manipulação, fraude e violência. Lua Nova, n. 91, p. 13-53, 2014. ; RICCI; ZULINI, 2017RICCI, Paolo; ZULINI, Jaqueline P. The meaning of electoral fraud in oligarchic regimes: lessons from the Brazilian case (1900-1930). Journal of Latin American Studies, v. 49, p. 243-268, 2017.; SOUZA, 2020SOUZA, Felipe Azevedo e. A dissimulada arte de produzir exclusões: as reformas que encolheram o eleitorado brasileiro (1881-1930). Revista de História, v. 179, p. 1-35, 2020.). Em geral, as discussões da época giravam em torno do perfil do eleitor e do elegido, com foco na sua qualificação, ilustração, patrimônio e capacidade. Ainda assim, pode-se dizer que o Império do Brasil atravessou alegremente décadas de regime representativo sem discutir essencialmente quem - ou o que - o representante representava. É o que mostra uma cena do Parlamento em 1853, quase trinta anos depois da outorga da Constituição. Na ocasião, um parlamentar resgatou o problema da natureza da representação do esquecimento inerte onde jazia, e a Câmara dos Deputados descobriu que alguns políticos achavam que a representação representava escravos, portanto propriedade, enquanto outros achavam que a representação representava pessoas livres, portanto direitos. “O nobre deputado”, resumiu um orador, “supõe que representamos almas [pessoas]; e eu entendo que representamos interesses [riquezas]”.61 61 ANNAES do Parlamento Brazileiro: Câmara dos Srs. Deputados, 25 ago. 1853. Rio de Janeiro: Tipografia Parlamentar, 1876, p. 336. Para um deputado do Maranhão, o escravo valia na íntegra para efeitos de representação. Ele citou os Estados Unidos para apoiar sua opinião: “Também se achava muito em voga e era estudado [em 1823] o sistema de governo dos Estados Unidos, onde a população escrava é contemplada, até um certo ponto [três-quintos], como base da representação nacional”; “não é portanto para estranhar que se procurasse imitar uma nação que nesta parte se assemelhava conosco, se não em tudo, ao menos aproximadamente, visto que felizmente entre nós não existem os ciúmes que se dão entre os Estados daquela república que têm ou não população escrava”.62 62 Ibidem, 24 ago. 1853, p. 320. Ou seja: visto que só o Brasil era, “felizmente”, uma nação escravista tout court. Quatro anos depois do debate, talvez em resposta a ele, José Antonio Pimenta Bueno, um dos maiores constitucionalistas do seu tempo, explicou que o significado da representação no Brasil era a indeterminação: “A principal base da fixação do número dos deputados é, como bem reconhece o nosso art. 97, a população, mas em que relação?” “As condições da divisão territorial do Estado, sua inteligência, riqueza e ainda outras considerações podem exercer influência a respeito.” Bueno argumentou que os autores da Constituição foram sábios ao indeterminar o conceito determinante do regime representativo, pois deixava o governo de mãos livres para atender “às públicas conveniências” conforme a maré do momento.63 63 BUENO, Antonio Pimenta. Direito público brasileiro e analyse da constituição do Império, v. 2. Rio de Janeiro: Villeneuve, 1857, p. 55. Escolher é, às vezes, não tomar decisão nenhuma.

Com a representação sendo tudo e nada ao mesmo tempo, a cidadania pôde ser destacada e pensada à parte no processo constituinte brasileiro - isso explica por que muitos especialistas a trataram como um conceito isolado, quando seu isolamento aparente foi conceitualmente construído (MATTOS, 2000MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000., 2009MATTOS, Hebe. Racialização e cidadania no Império do Brasil. In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das (orgs.). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 342-392.; GRINBERG, 2002GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.; SLEMIAN, 2005SLEMIAN, Andrea. Seriam todos cidadãos? Os impasses na construção da cidadania nos primórdios do constitucionalismo no Brasil (1823-1824). In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005.; PEREIRA, 2010PEREIRA, Vantuil. Ao soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do Estado Imperial brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010.; BERBEL, MARQUESE, PARRON, 2010BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Escravidão e política: Brasil e Cuba, c. 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010.; MAMIGONIAN, 2017MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.). Com a Independência do Brasil, a maior inovação substantiva da cidadania dos libertos diz respeito aos africanos. Enquanto as Cortes de Lisboa haviam considerado cidadãos os libertos nascidos em quaisquer partes da monarquia portuguesa, o que incluía os africanos, a Constituição de 1824 declarou cidadãos somente os libertos nascidos no Brasil (art. VI, inciso I). Se os conceitos de cidadania e representação fossem covariantes, a decisão teria tido impacto assimétrico sobre a distribuição do poder político, afetando negativamente as fronteiras mercantis brasileiras mais dinâmicas e mais vinculadas ao tráfico negreiro transatlântico, como as do café, do açúcar, do algodão e da agricultura mineira, onde a razão de africanidade dentro e fora das escravarias era altíssima (SCHWARTZ, 1988SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988., p. 287 ss; BERGAD, 2004BERGAD, Laird. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru, SP: Edusc, 2004.; LUNA; KLEIN, 2010LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert. Escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp, 2010., p. 54 ss.; PINHEIRO, 2007PINHEIRO, Fábio. O tráfico atlântico de escravos na formação dos plantéis mineiros, Zona da Mata, c.1809-c.1830. Dissertação (Mestrado em História), Departamento de História do IFCS da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007., p. 46 ss.). Tendo a representação dado à cidadania aspecto de verbete de dicionário, a definição dos direitos deixava de afetar aquela partilha de bens políticos que é toda representação.

Geralmente associada ao ciclo insurrecional de escravos da Bahia (1815-1835), a desinvestidura dos africanos dos direitos de cidadania se deve, provavelmente, a uma mudança na expectativa sobre o futuro do tráfico negreiro imposta pela Independência - afinal, a resistência escrava coletiva não fora o suficiente para Lisboa excluir os africanos da cidadania. O que mudava em 1822 é tão simples que é fácil perder de vista. Fora do império português, os brasileiros sabiam que o reconhecimento do seu novo país por Lisboa era necessário para abafar separatismos; que o melhor caminho para esse objetivo passava pela Grã-Bretanha; e que Londres só ofereceria seus bons ofícios se o Brasil proibisse o comércio negreiro mais volumoso do Atlântico (PARRON, 2015PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade. Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. Tese (Doutorado em História), Departamento de História, FFLCH, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015., p. 151-220). Com o roteiro cumprido à risca entre 1823 e 1825, a figura do africano mudou de status. Segundo os tratados assinados com Londres, os africanos a bordo de navios contrabandistas apreendidos receberiam cartas de alforria lavradas por um tribunal binacional anglo-brasileiro de inspiração antiescravista (BETHELL, 1976BETHELL, Leslie [1970]. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976. ). Tratava-se de uma modalidade de alforria exógena aos canais tradicionais de manumissão, aqueles que, mediados por relações de poder senhoriais, tendiam a criar entre ex-senhores e ex-escravos uma relação de fidelidade e assimilação segregada análoga àquela de patrono e clientes (PATTERSON, 1982PATTERSON, Orlando. Slavery and Social Death: a Comparative Study. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1982.). À luz disso, o corte que a Constituição de 1824 fez entre libertos brasileiros e africanos é revelador. Ao mesmo tempo que os negros e mestiços do Brasil viam atendidas suas expectativas de direitos, os africanos livres que o antiescravismo britânico botaria no mundo foram privados das seguranças constitucionais mais elementares. Espoliados do direito de ir e vir, deportáveis a qualquer instante, exploráveis pelo Estado, vulneráveis aos particulares, eles foram politicamente reposicionados para fora da comunidade, condição essencial à reabertura do tráfico negreiro transatlântico na forma de contrabando em escala sistêmica no futuro (1835-1850) (PARRON, 2011PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.).

Depois da base (representação) e do corpo (cidadania), a força coalescente da escravidão também se fez sentir na cúpula do edifício político: a soberania. Primeiro, pela negatividade, pela ausência. Em contraste com a reorganização do poder público nos Estados Unidos, na França, na Espanha e em Portugal, onde os políticos repassaram, ou tentaram repassar, para as mãos senhoriais do governo “local” as rédeas do cativeiro, o lugar da escravidão no regime de soberania do Brasil refluiu para um não assunto na Constituinte de 1823 e na Constituição de 1824. Tanto o projeto quanto a Carta estabeleciam um só nível legislativo no país, o nacional, e ninguém questionou quem presidiria os destinos do cativeiro. Um evento excepcional que só caiu dentro dos limites do possível porque o Brasil era, excepcionalmente, uma nação soberana e uma sociedade escravista. Dessa maneira, a gestão política da escravidão se tornou pauta política apenas com a oposição das elites provinciais à concepção centralista de Estado da Carta de 1824, num movimento que derrubaria D. Pedro I em 1831 e levaria à reforma da Constituição em 1834 (DOLHNIKOFF, 2005DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.).

“Originalmente, o projeto de emenda constitucional redigido em 1831 se inspirava tão claramente no governo norte-americano que previa assembleias legislativas provinciais, senado temporário e mandato parlamentar bienal. Pontos todos conhecidos. Menos comentado é o artigo 10º do projeto finalmente discutido em 1834, que transferia a gestão política da escravidão do governo geral para os governos provinciais: “Compete às assembleias legislativas provinciais legislar: 1º. Sobre as pessoas não livres”. Quando o artigo foi apreciado em 1834, o deputado pela Bahia Gonçalves Martins, grande proprietário de escravos, resumiu a questão assim chamando os colegas à consciência: “Acho imprudente portanto semelhante especificação [...] dando-se às províncias o direito absoluto de legislar sobre escravos, direito que pode ser exercido imprudentemente com risco mesmo dos interesses das demais, entretanto que, lhes sendo concedidos, creio que a assembleia não poderia cassar as resoluções a respeito”.64 64 ANNAES do Parlamento Brazileiro: Câmara dos Srs. Deputados, sessão de 1834. Rio de Janeiro: Tipografia de H. J. Pinto, 1879, v. 2, p. 13 e 26. Um espetáculo de inovação, a fala não tem outro exemplar no planetário de ideias do Atlântico revolucionário. Martins está alertando que os governos locais podiam cair reféns de pressões antiescravistas, risco imaginável naquelas províncias onde a população escrava raspava nos 15% da população total (ALDEN, 1999FINKELMAN, Paul. An Imperfect Union: Slavery, Federalism, and Comity. Chapel Hill: UNCP, 1981., tab. 4, p. 535). Por que abrir essa brecha se uma elite que se via como igual podia gerir o futuro da escravidão desde o Rio de Janeiro? Sua ponderação prevaleceu na plenária. O artigo caiu. E o Brasil se tornou o único país escravista do mundo onde as elites depositaram, sem restrições, a gestão do futuro histórico da escravidão na cúpula da soberania nacional. O destino da escravidão e o destino do império estariam deliberadamente unidos dali por diante.

Considerações finais

Primeiro a representação, depois a cidadania, depois a soberania. O percurso conceitual das Constituintes é quase monótono de tão repetitivo. Dentro dessa repetição, os conceitos se embaralham, a determinação de um prepara a determinação dos outros, sua interseccionalidade se impõe. E no interior dessas determinações, a lógica escravista é sempre a mesma: converter conceitos políticos num meio de gestão do futuro da escravidão e redefinir a escravidão como pressuposto histórico dos conceitos políticos. Apesar do seu roteiro comum, o desenlace das histórias não é previsível, pois depende das forças sociopolíticas no terreno. Algumas colônias escravistas emplacam uma república federativa (Sul dos Estados Unidos), outras sentem o baque da abolição (Caribe francês), outras embarcam no regime de exceção (Caribe espanhol).

Quando iniciam sua trajetória constitucional, os brasileiros têm vantagens que outros não tinham. Uma experiência socioinstitucional acumulada do constitucionalismo atlântico e o “presente da história” que fazia do país uma sociedade escravista de norte a sul. Com isso podem desarmar, e desarmam, o conceito mais explosivo da Era das Revoluções, a representação, aquele que empresta o seu nome ao novo governo (regime representativo) e por quem as elites se engalfinham como antes se engalfinhavam os herdeiros presuntivos da coroa absoluta. A fórmula brasileira - de indeterminar o conceito determinante do regime - está entre aquelas soluções que de tão bem-sucedidas fazem esquecer as suas origens, apagando-se perante os coevos e a posteridade. Das sociedades escravistas do Novo Mundo o Brasil também foi a única a fixar uma concepção de cidadania para todos e a única a depositar a gestão política da escravidão na cúpula da soberania nacional.

A capacidade do Brasil de tornar a escravidão esquecida (representação) ou universal (cidadania, soberania) teve efeitos prolongados na sua política da escravidão. O cativeiro se tornou uma espécie de absoluto imóvel, uma segunda natureza, quase impensada, quase irrefletida, convenientemente acomodada em sua inércia existencial. Essa é uma das razões por que o abolicionismo demorou a se firmar no Império do Brasil. E por que as futuras defesas ideológicas da escravidão não precisaram ser violentas no país como tiveram de ser nos Estados Unidos e no império espanhol MARQUESE; (PARRON, 2011PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.). Quando alguns historiadores sugerem que as elites escravistas brasileiras eram ideologicamente mais moderadas que as de outros países (SKIDMORE, 1976SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.; CARVALHO, 2003CARVALHO, José Murilo de [1980/1988]. A construção da ordem. Teatro de sombras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. [1980, 1988CARVALHO, José Murilo de. Escravidão e razão nacional. Dados, v. 31, n. 3, p. 287-308, 1988.]; WEINSTEIN, 2006WEINSTEIN, Barbara. Slavery, Citizenship, and National Identity in Brazil and the United States South. In: DOYLE, Don; PAMPLONA, Marco Antonio (orgs.), Nationalism in the New World. Athens: University of Georgia Press, 2006.; ALONSO, 2015ALONSO, Angela. Flores, fotos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), talvez estejam apenas perdendo de vista que sua verdadeira radicalidade é pré-política, cravada que está nas bases conceituais da ordem constitucional. O que não deixa de ser uma estranha forma de reinterpretar como bênção o que não passou de maldição.

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  • ZILVERSMIT, Arthur. The First Emancipation: The Abolition of Slavery in the North Chicago: UCP, 1967.
  • 1
    Versões anteriores do argumento aqui exposto, parte de uma pesquisa maior sobre a escravidão negra nas Américas, receberam comentários estimulantes de diversos pesquisadores. Gostaria de agradecer em especial a Paulo Henrique Pereira, Rodrigo Turin, Christy Pato, Andrea Slemian, Thiago Krause, Vitor Izecksohn, Bruno Lima, Télio Cravo, Roberto Pich, José Antonio Piqueras, Marcos Queiroz, Elisa Dourado, Karen Souza, João Victor Leite, Jean Lucas Veloso e Henrique dos Santos. Também agradeço à FAPERJ pelo apoio no âmbito do Programa Jovem Cientista do Nosso Estado.
  • 2
    Recenseamento do Brazil em 1872. Rio de Janeiro: Typ. G. Leuzinger, 12 v. [1874].
  • 3
    No original: “is more reflective of the liberal idealism that informed the document drafters than it was of the undeniable realities of slavery […] Slavery is nowhere mentioned in the document”. As traduções deste artigo, quando seguidas da transcrição do original no rodapé, são minhas.
  • 4
    No original: “There is no place for slavery and race in the Constitution of 1824”.
  • 5
    FARRAND, Max (org.) [1911]. The Records of the Federal Convention of 1787, v 1. New Haven: Yale University Press, 1966, p. 15-16, 29 maio 1787.
  • 6
    FARRAND, Max (org.) [1911]. The Records of the Federal Convention of 1787. 4 v. New Haven: Yale University Press, 1966.
  • 7
    Ibidem, v. 1, 29 maio 1787, p. 20.
  • 8
    Ibidem, v. 2, 23 jul. 1787, p. 95. No original: “some security to the Southern States agst. an emancipation of slaves”.
  • 9
    Ibidem, v. 1, 13 jul. 1787, p. 605. No original: “The security the Southn. States want is that their negroes may not be taken from them which some gentlemen within or without doors, have a very good mind to do”.
  • 10
    Ibidem, v. 1, 29 maio 1787, p. 20.
  • 11
    Ibidem, v. 1, 9 jul. 1787, p. 561. No original: “He could regard negroes slaves in no light but as property. They are no free agents, have no personal liberty, no faculty of acquiring property, but on the contrary are themselves property, & like other property entirely at the will of the Master”. “What is the true principle of Representation? It is an expedient by which an assembly of certain individls. chosen by the people is substituted in place of the inconvenient meeting of the people themselves”.
  • 12
    Ibidem, v. 1, 5 jul. 1787, p. 533. No original: “Life and liberty were generally said to be of more value, than property. An accurate view of the matter would nevertheless prove that property was the main object of Society”, “it [property] ought to be one measure of the influence due to those who were to be affected by the Governmt”.
  • 13
    Ibidem, v. 1, 5 jul. 1787, p. 534. No original: “had spoken some of his sentiments precisely”.
  • 14
    Ibidem, v. 1, 6 jul. 1787, p. 542. No original: “property was the only just measure of representation. This was the great object of Governt: the great cause of war, the great means of carrying it on”.
  • 15
    Ibidem, v. 1, 11 jun. 1787, p. 205-206. No original: “Blacks are property, and are used to the southward as horses and cattle to the northward; and why should their representation be increased to the southward on account of the number of lsaves than horses or oxen to the north?”
  • 16
    Ibidem, v. 1, 11 jul. 1787, p. 587. No original: “Are they admitted as property? then why is no other property admitted into the computation?”
  • 17
    Ibidem, v. 1, 6 jul. 1787, p. 542. No original: “The value of land had been found on full investigation to be an impracticable rule”.
  • 18
    Ibidem, v. 1, 11 jul. 1787, p. 585-586. No original: “The value of labour, might be considered as the principal criterion of wealth and ability to support taxes; and this would find its level in different places where the intercourse should be easy & free, with as much certainty as the value of money or any other thing”.
  • 19
    RICARDO, David. On the Principles of Political Economy and Taxation. Londres: Murray, 1817, p. 90. No original: “Labour, like all other things which are purchased and sold, and which may be increased or diminished in quantity, has its natural and its market price”.
  • 20
    Letters of Delegates to Congress, 1774-1789. 24 v. Washington, D. C.: 1976, respectivamente, v. 4, p. 438-445, e v. 19, p. 569-570.
  • 21
    FARRAND, Max (org.) [1911]. The Records of the Federal Convention of 1787, v. 2. New Haven: Yale University Press, 1966, p. 651-652. No original: “adding to the whole Number of free Persons […] excluding Indians not taxed, three fifths of all other Persons”.
  • 22
    Ibidem, v. 2, 7 ago. 1787, p. 201-202. No original: “Eight or nine States have extended the right of suffrage beyond the freeholders. What will the people there say if they should be disfranchised”.
  • 23
    Ibidem, v. 2, 10 ago. 1787, p. 249. No original: “improper to have either uniform or fixed qualifications. Make them so high as to be useful in the S. States, and they will be inapplicable to the E. States”.
  • 24
    Ibidem, v. 1, 29 maio 1787, p. 21. No original: “to legislate in all cases to which the separate States are incompetent”.
  • 25
    CONDORCET, M. de [1789]. Au corps électoral, contre l’esclavage des noirs. In: CONDORCET, M. de. Oeuvres de Condorcet, v. 9. Paris: Firmin Didot, 1847. p. 469-475. No original: “moyens de détruire la traite, et de préparer la destruction de l’esclavage”.
  • 26
    LAURENT, Emile; MAVIDAL, Jérôme (dir.). Archives Parlementaires de 1787 à 1860: première série (1787-1799), v. 7. Paris: Librairie Administrative P. Dupont, 1879, p. 296-297.
  • 27
    Ibidem, v. 15, 14 maio 1791, p. 68.
  • 28
    Ibidem, v. 1, p. 544-545.
  • 29
    Ibidem, v. 8, 3 jul. 1789, p. 187-188.
  • 30
    PRÉCIS sur la situation de la députation de Saint-Domingue, aux États Généraux. Versailles: [s. e.], 1789, p. 11. No original: “fondée sur la combinaison de sa population, des richesses de ses propriétés, & de la somme de ses rétributions”.
  • 31
    HALLE, Étienne Herbin de. Statistique générale et particulière de la France et ses colonies. Paris: Hautefeuille, 1803, p. 49-50.
  • 32
    LAURENT, Emile; MAVIDAL, Jérôme (dir.). Archives Parlementaires de 1787 à 1860: première série (1787-1799), v. 8. Paris: Librairie Administrative P. Dupont, 27 jun. 1789, p. 164-165. No original: “Si l’on admettait un aussi grand nombre de représentants pour Saint-Domingue, les colonies en réclameraint en proportion, et alors ce nombre pourra s’élever à 200”. “Cette inégalité de répresentation ne doit pas l’arrêter”.
  • 33
    WARVILLE, Brissot de. Note sur l’admission des planteurs. In: Notes relatives au plan de conduite pour les députés du peuple aux États-Généraux de 1789. [S. l.], [s. e.], 1789, p. 21-28. No original: “Dans le nouveau systême fédéral des Etats-Unis, les Noirs ne sont pas comptés dans la répresentation que pour les trois cinquième de leur nombre”. “C’est une absurde iniquité”. “la crainte d’une scission, qui auroit entraîné les suítes les plus facheuses, a forcé les amis du bien, à risquer ce ridicule compromis”.
  • 34
    LAURENT, Emile; MAVIDAL, Jérôme (dir.). Archives Parlementaires de 1787 à 1860: première série (1787-1799), v. 8. Paris: Librairie Administrative P. Dupont, 3 jul. 1789, p. 187-188. No original: “je rappelle ce dilemme irrépliquable: [...] Si les colons veulent que les nègres et les gens de couleur soient hommes, qu’ils affranchissent les premiers”. “Dans le cas contraire, nous le prierons d’observer qu’en proportionnant le nombre des députés à la population de la France, nous n’avons pas pris en considération la quantité de nos chevaux ni de nos mulets”.
  • 35
    Ibidem, v. 8, 4 jul. 1789, p. 190.
  • 36
    Ibidem, v. 9, 22 out. 1789, p. 476-478; v. 10, 28 nov. 1789, p. 329-333; v. 11, 30 jan. 1790, p. 400-401. No original: “les citoyens de couleur se trouveraient représentés par les députés des colons blancs”? “Nés citoyens et libres, ils vivent étrangers dans leur propre patrie. Exclus de toutes les places, de toutes les dignités, de toutes les professions”.
  • 37
    Ibidem, v. 10, 26 nov. 1789, p. 256; 28 nov. 1789, p. 335. No original: “un plan de constitution propre à nos mœurs , à nos usages, à nos manufactures et à notre climat”; OPINION de M. de Cocherel, député de Saint-Domingue, sur l’admission des Nègres et Mulâtres libres aux Assemblées Provinciales. Paris: Cloussier, 1789, p. 3.
  • 38
    MÉMOIRE des députés de Saint-Domingue a MM. les membres du comité, pour les colonies de l’Assemblée Nationale. Paris, 1790, p. 16. No original: “la Constitution des Colonies doit se faire chez elles”.
  • 39
    LAURENT, Emile; MAVIDAL, Jérôme (dir.). Archives Parlementaires de 1787 à 1860: première série (1787-1799), v. 12. Paris: Librairie Administrative P. Dupont, 2, 4, 6 e 8 mar. 1790, p. 2-13, 19, 25-26, 68-73.
  • 40
    Ibidem, v. 12, 23 mar. 1790, p. 312-317.
  • 41
    RETURN of the Whole Number of Persons within Several Districts of the United States. Filadélfia/Londres: Phillips, 1793; HALLE, Étienne Herbin de. Statistique générale et particulière de la France et ses colonies. Paris: Hautefeuille, 1803.
  • 42
    JÁUREGUI, Andrés de. Carta ao Ayuntamiento de Havana. 3 out. 1811, ANC, GSC, legajo 39, fo. 18. No original: “Sigue avanzando la discusion del proyecto de constitucion, pues está aprobado hasta el art.° 129”. “El 29. que ha pasado segun está, nos perjudica mucho disminuie la poblacion que ha de servir de base para el nombram.to de diputado”.
  • 43
    REPRESENTACIÓN de la ciudad de la Habana a las Cortes, el 20 de julio de 1811. In: PARREÑO, Francisco Arango y. Obras (volumen II). Havana: Imagen Contemporánea, 2005, p. 39. No original: “antes fijar los derechos y los goces que aquí debe tener la ciudadanía, que determinar el tamaño y número de las puertas que para estos goces deben abrirse o cerrarse o las gentes de color”.
  • 44
    ANNAES do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte, 1823. Rio de Janeiro: Typ. Do Imperial Instituto Artístico, 1874.
  • 45
    COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, n. 6, 1810, p. 708.
  • 46
    COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, n. 8, 1812, p. 296-300.
  • 47
    COSTA, João Severiano Maciel da. Apologia que dirige à nação portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1821b, p. 29.
  • 48
    COLEÇÃO das leis do Brazil de 1821. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889, p. 27; COLECÇÃO das decisões do Governo do Brazil de 1821, p. 10. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889; COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, n. 25, 1820, p. 648 ss.
  • 49
    LEMBRANÇAS e apontamentos do Governo Provizorio da Provincia de S. Paulo para os seus deputados, mandadas publicar por ordem de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1821, p. 7-8.
  • 50
    CORTES Geraes e Extraordinarias da Nação Portugueza, v. 2. Lisboa: [s.e.], 9 fev. 1822, p. 138-139.
  • 51
    Ibidem, 13 fev. 1822, p. 178,
  • 52
    Ibidem, v. 1, 27 ago. 1821, p. 2.031; 31 ago. 1821, p. 2.109.
  • 53
    Ibidem, v. 2, 16 abr. 1822, p. 813.
  • 54
    Ibidem, v. 3, 22 maio 1822, p. 230.
  • 55
    Ibidem, v. 2, 17 abr. 1822, p. 838.
  • 56
    Ibidem, v. 4, 13 ago. 1822, p. 140.
  • 57
    Ibidem, v. 3, 26 jun.1822, p. 558-559.
  • 58
    Ibidem, v. 3, 26 jun. 1822, p. 567; 3 jul. 1822, p. 659 ss.; 4 jul. 1822, p. 699 ss.
  • 59
    Ibidem, v. 3, 26 jun. 1822, p. 571.
  • 60
    ANNAES do Parlamento Brazileiro. Assembléa Constituinte, v. 5, 1º set. 1823, p. 18, art. 137.
  • 61
    ANNAES do Parlamento Brazileiro: Câmara dos Srs. Deputados, 25 ago. 1853. Rio de Janeiro: Tipografia Parlamentar, 1876, p. 336.
  • 62
    Ibidem, 24 ago. 1853, p. 320.
  • 63
    BUENO, Antonio Pimenta. Direito público brasileiro e analyse da constituição do Império, v. 2. Rio de Janeiro: Villeneuve, 1857, p. 55.
  • 64
    ANNAES do Parlamento Brazileiro: Câmara dos Srs. Deputados, sessão de 1834. Rio de Janeiro: Tipografia de H. J. Pinto, 1879, v. 2, p. 13 e 26.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2022
  • Aceito
    25 Maio 2022
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