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Solidariedade, democracia e inclusão: o Brasil em projetos, de Jurandir Malerba

Solidarity, democracy and inclusion: Brazil in projects by Jurandir Malerba

Solidaridad, democracia e inclusión: Brasil en proyectos de Jurandir Malerba

Malerba, Jurandir. . Brasil em projetos: história dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino: da ilustração portuguesa à Independência do Brasil . Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020. 416p.

A dinâmica de acessibilidade da obra Brasil em projetos não pode ser reputada pela ausência de rigor teórico e metodológico do fazer histórico. Ao contrário, Jurandir Malerba zela por essas características. Destaco isso como ponto de partida da análise, pois sou um historiador com surdez bilateral profunda, que luta diariamente por livros e artigos que possam destacar o valor da análise científica e, ao mesmo tempo, acolher aqueles que buscam inclusão no saber historiográfico dos centros acadêmicos.

Isso me faz lembrar de que “a verdadeira destinação de uma revista é a de anunciar o espírito da sua época” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012., p. 41), conforme afirmado por Walter Benjamin, acerca da Angelus Novus. Dito isso, aponto o lado primordial desse livro que é o objeto desta resenha, por reconhecer a emergência do diálogo com outras áreas do conhecimento, como o Jornalismo e a Literatura. O autor, assim, vai ao encontro da necessidade de se atingir públicos para além dos núcleos de pesquisa.

O escritor já publicou diversos livros, como A Corte no exílio (MALERBA, 2000) e Brasilianos: capítulos avulsos de história da formação brasileira (MALERBA, 2017MALERBA, Jurandir. Brasilianos - Capítulos avulsos de história da formação brasileira. São Paulo: Alameda, 2017.), além de nos apresentar, em 2020, Brasil em projetos (MALERBA, 2020MALERBA, Jurandir. Brasil em projetos: história dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino. Da Ilustração portuguesa à Independência do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2020.). Este é o primeiro volume da coleção “Uma outra história do Brasil”, que tem por objetivo mostrar aos leitores em geral como foi construída a ideia de nação, quais os conflitos atravessados, assim como os fracassos e as vitórias. Enfim, os diferentes aspectos que permitem a compreensão do porquê de o país ser, hoje, tão excludente e desigual.

Apesar de ser escrito por um historiador acadêmico, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com larga experiência no ensino e na pesquisa das discussões teóricas no campo da História, o autor mantém uma escrita fiel à prática acadêmica e a faz com a leveza necessária para também contemplar o grande público, sem se descuidar de um estilo elegante e acessível.

A escolha de João de Lira Cavalcante Neto para realizar o prefácio, usualmente conhecido como Lira Neto, escritor e jornalista, vencedor por quatro vezes do Prêmio Jabuti de Literatura (2007, 2010, 2013 e 2014), egresso da antiga Escola Técnica Federal do Ceará, atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), é algo que já indica a sensibilidade de escolher alguém que é oriundo de um projeto de educação que visa ofertar um ensino público de qualidade e de forma inclusiva para as classes menos favorecidas.

Em vista disso, Neto intitula o livro de Malerba de “leve como um pássaro, não como a pluma”, dando uma ideia do Brasil em projetos e do quanto é necessária a leitura para superarmos um plano de “elite brasileira que é, em geral, exclusivista, gosta de privilégios e, pior, de ostentá-los, de fechar-se na própria empáfia e na arrogância de novo rico” (NETO, 2022NETO, Lira. Entrevista com Lira Neto sobre a elite brasileira. Tab Uol, 2 abr. 2022.).

Talvez a temporalidade da redação se explique, considerando seu início, em 2016, e seu fim, em 2019, período compreendido entre o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro. Seis anos depois, ainda carecemos de entendimento dos projetos do grupo de poder que dirige o Brasil. Apesar de tratar dos contextos de projetos políticos do século XVIII até o período de autonomia política no século XIX, a obra apresenta para o público uma grande lição das continuidades e rupturas com um passado que privilegiava os direitos de uma elite senhorial e escravocrata.

Na apresentação do livro, Jurandir ressalta e delimita como objeto de conhecimento os perfis históricos dos ideólogos e das ideologias da formação das elites do “Brasil no Império português”, do “Império português no Brasil” e de “colônia portuguesa a Império do Brasil”. Daí vem o ponto de partida, uma vez que é importante entender a “História dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino” como pano de fundo dos impactos da ilustração portuguesa na formação da classe dirigente do Brasil. Nesse aspecto, se propõe a fazer “uma ponte para o passado”, respeitando as discussões já existentes sobre a segunda metade do século XVIII (governo pombalino) até a Independência brasileira, no século XIX.

Apesar do seu foco estar em projetos criados pelos grupos dominantes que se alinhavam a governos no reino e no Brasil, pode-se afirmar que o autor enuncia no livro o lugar de homens e mulheres, escravizados ou libertos, pobres todos, pretos e pardos, indígenas e defensores de uma imprensa livre, em diferentes temporalidades e espacialidades. Além disso, observa o cenário das diferentes historiografias, se posicionando e destacando o que é importante nos embates teóricos.

É possível dizer que o Brasil foi sendo desenhado aos poucos, de acordo com as circunstâncias que iam se apresentando, ou existiu um projeto definido pelos agentes de Estado e por aqueles a eles alinhados? Em seu livro, o pesquisador oferece algumas possibilidades de respostas para essa questão.

Para ele, os projetos, as ideias, os sistemas desenvolvidos para a organização da sociedade brasileira e as formas de exploração de riquezas naturais e da força de trabalho foram esboçados antes mesmo de o Brasil tornar-se uma nação, tal qual o conhecemos. O eixo de sua narrativa baseia-se em cotejar e esmiuçar os planos daqueles que lograram algum êxito, ou seja, os setores hegemônicos detentores do poder de Estado e que se conectavam aos interesses das elites dominantes do país, como os latifundiários, grandes comerciantes, industriais, conglomerados financistas, desde o governo pombalino até a Independência do Brasil.

Contudo, o autor não tem como propósito fundamental contar a história de Portugal desse período, já tão explorada em várias obras da historiografia. Seu intento é jogar luzes nos desígnios que os letrados da época, encarregados da governação do Império português vaticinavam para o território brasileiro, a princípio como domínio colonial e, mais tarde, como potencial país independente, afastando-se das divergências teóricas e cizânias historiográficas.

Um aspecto que merece destaque é a cuidadosa escolha do corpus documental utilizado, possibilitando aos leitores o contato com esses vestígios e testemunhas do passado, sem deixar de contextualizá-los e atribuir sentido aos seus conteúdos. Aqui cabe informar as origens da sua formação como graduado em História, na Universidade Federal de Ouro Preto, entre 1984 e 1988, espacialidade que foi cenário da Guerra dos Emboabas, em 1708, e da Revolta liderada por Filipe dos Santos; motins contra o Quinto da Coroa Portuguesa, em 1720, e da Inconfidência Mineira, em 1789. Nesse aspecto, Brasil em projetos também revela para além das Minas Gerais, elos com o Rio de Janeiro, São Paulo, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Sul e com centros de pesquisa na Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha.

Escrito e organizado com a metodologia de um historiador experiente, o escritor apresenta os fatos de forma clara, permitindo ao leitor entender as razões históricas, teóricas, sociais e econômicas que originaram as representações da classe dos grandes plantadores coloniais. Assim utilizou como ponto de partida para a sua narrativa as reformas pombalinas, destacando a reestruturação da Universidade de Coimbra, as características da ilustração ibérica e a condição colonial do Brasil, dos letrados treinados sob a égide das leis naturais ou da filosofia natural, das novas ciências baseadas no método experimental, hipotético e dedutivo e também da economia política (procurava explicar as riquezas das nações).

Malerba, responsável pela inauguração da Cátedra Sérgio Buarque de Holanda de Estudos Brasileiros no Instituto de América Latina da Universidade Livre de Berlim, compactua, na dedicatória do livro, com o conteúdo de uma frase do referido intelectual brasileiro - nome da Cátedra - citada por Antonio Candido na obra Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil (CANDIDO, 1998CANDIDO, Antonio. Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998.): “Para estudar o passado de um povo [...] é preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história [...]”. Assim, seguiu esse apontamento ao dedicar o livro aos grupos sociais que lutam por projetos de Brasil solidários, democráticos e inclusivos.

A estrutura da obra permite, de forma simples e objetiva, vislumbrar diferentes momentos históricos. Jurandir divide o livro em três partes. No primeiro eixo, identifica o Brasil no Império português, tendo como pano de fundo a era das reformas, a visão das luzes e o impacto teórico na condição colonial e nos projetos políticos dos reformadores. Na segunda seção, o autor observa o Império português no Brasil e caracteriza a era da guerra, a Corte nos trópicos, D. João e verifica as ações de José da Silva Lisboa, sendo definido como reformador. Mas é na terceira parte do volume, “De Colônia Portuguesa a Império do Brasil”, que está o delicado processo de independência, de homens com valores de antigo regime inseridos na era das revoluções. Nesse sentido, de uma forma ou de outra, todos os seus 17 capítulos estabelecem relações com a história de um país para poucos.

Jurandir Malerba entende que, entre meados do século XVIII e início do XIX, no contexto das chamadas revoluções liberais, se estabelece a formação dos rumos da emancipação política brasileira. Logo, o pesquisador insere a independência em um contexto muito mais amplo, além do grau de conscientização do lento emergir da antiga e maior colônia marítima no Atlântico. Isso nem sempre vai aparecer de forma explícita nos escritos, mas essa convicção central está sempre presente na obra. Malerba se detém na lenta e gradual inserção de Portugal no contexto europeu, mas apresenta indícios de que os ditos “estrangeirados”, como D. Luís da Cunha, no seu Testamento político, tinham especial ranço contra as ordens religiosas e as mesas inquisitoriais. Em vista disso, apresenta a dinâmica das pontes das formações de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Luís Vilhena dos Santos, José da Silva Lisboa e José Bonifácio de Andrada, com as novas ideias ilustradas, pontuando que as políticas demográficas se fariam presentes em todos os planos, sistemas e projetos dos reformadores portugueses.

Isso tudo leva a perspectivas surpreendentes para o leitor, e talvez até para o próprio autor, com a percepção de que os condutores do Estado português entenderam que o atraso do reino em relação às demais potências europeias atribuía-se aos antigos moldes fornecidos pela monarquia absoluta lusa. Nesse aspecto, esses dirigentes propuseram a reforma da universidade de Coimbra, aventando um modelo pedagógico reformador, numa visão segundo a qual Estado e Educação sustentavam-se reciprocamente e, para isso, tornou-se necessária a reformulação do corpo docente. A partir de tal mudança, o autor constata que “ao lado da nobreza tradicional de linhagem, surge uma nova espécie de nobreza civil, egressa dos bancos universitários”.

Nesse texto, já debatido em veículos de informação e em mesas redondas, Jurandir não deixa de aprofundar a polissemia da palavra “Luzes”, e aponta que a imitação constitui um dos traços principais do que foi chamado de ilustração, em Portugal. Ele também não evita a discussão das teses sobre a “ilustração luso-brasileira”, mas procura acolher o leitor, indicando esse movimento, a título de exemplo, com os mapas que deixaram de informar apenas posições geográficas para saberem do caráter, das condições da economia e da população, tanto na esfera civil quanto na pública. O autor afirma que houve, na verdade, uma reforma das velhas estruturas para garantir a sua manutenção, chegando a explicar que o liberalismo do começo do século XIX e suas interpretações subsequentes pintaram Pombal como um grande reformador, mas esse entendimento precisa ser relativizado.

A redação evidencia, também, que o historiador Jurandir Malerba respeita e demonstra habilidade de aprendizagem com os escritos de Fernando A. Novais (NOVAIS, 1995NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.), de A. J. R. Russell-Wood (RUSSEL-WOOD, 1981RUSSEL-WOOD, Anthony John R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: UnB, 1981.), de Kenneth Maxwell (MAXWELL, 1985MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985.) e de Maria Beatriz ­Nizza da Silva (SILVA, 1999SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira. Da reforma da universidade à Independência do Brasil. Lisboa: Estampa, 1999.), entendendo que as relações de tipo colonial eram caracterizadas pela ocupação e pela exploração, concordando com a tese do antigo sistema colonial. Assim, destaca que, nos reinados de D. José I (1750-1777), D. Maria I (1777-1792) e do príncipe regente D. João (1792-1816), a ideia básica dos que se formavam na universidade de Coimbra reformada era conhecer o território, mapear as reservas naturais e as gentes para mais eficazmente explorá-las.

No mais, o texto deflagra os ideais da geração de 1790, no contexto do Império luso-brasileiro, revelando o resultado do “abrasileiramento” da administração imperial e o pânico das elites coloniais que não se reconheciam como “brasileiras”, esquadrinhando uma análise dialética do temor que a Inconfidência Mineira e a Revolta dos Escravos causaram em uma elite que era tão portuguesa quanto o seu par no reino. Já os reformadores como D. Rodrigo de Sousa Coutinho, Luís dos Santos Vilhena e Bispo Azeredo Coutinho ao mesmo tempo em que reconheciam os novos conhecimentos e conflitos, também defendiam a manutenção das antigas práticas de comércio exclusivo com a metrópole.

Na segunda seção, o autor amarra os “projetos de Brasil” e os contextos abrangentes entre o “reformismo ilustrado” e a independência do Brasil. A figura de um monarca e da realeza vai edificando novos espaços sociais e de poderes na formação de um novo império nos trópicos. O sustento de uma Corte na América contava, afinal, com o financiamento da “boa gente” fluminense. Nesse momento, Jurandir Malerba demonstra um profundo conhecimento do corpus documental do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, destacando a importância dessa instituição para o estudo da sociabilidade cortesã e os vínculos “entre o Estado e os grandes escravistas proprietários rurais e traficantes de terra”. Sublinha que esses grupos são responsáveis, em parte, pelo financiamento do casamento de D. Pedro e, também, em 1889, depois da queda do Império brasileiro, pela construção negativa da monarquia e dos membros da família dos Bragança. Essa lógica de Corte é apresentada sob a perspectiva da lente de observação das teorias da sociedade de Corte Norbert Elias (ELIAS, 1987ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Trad. Ana Maria Alves. Lisboa: Estampa, 1987.) e do Georges Balandier (BALANDIER, 1982BALANDIER, Georges. O poder em cena. Trad. Luiz Tupy Caldas de Moura. Brasília: UnB, 1982.). Através dessa operacionalização, explica-se o capital simbólico das relações de poder no Rio de Janeiro.

Os capítulos 11, 12 e 13 do livro se aprofundam na discussão sobre classes sociais e sobre a constituição de uma nobreza brasileira, atreladas diretamente a projetos de Brasil, de dubiedade do Estado-nação - fundamentais para se entender a formação do Brasil contemporâneo. Tendo realizado parte da sua formação no Rio de Janeiro e em São Paulo, nessa parte do livro, o escritor dialoga de forma magistral com alguns clássicos da historiografia brasileira, como Caio Prado Junior (PRADO JR., 1983), Sérgio Buarque de Holanda (HOLANDA, 1984HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.), Manolo Florentino e João Fragoso (FRAGOSO; FLORENTINO, 1993FRAGOSO, João Luís Ribeiro; FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790- c. 1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.). Depois, retoma seus estudos sobre o perfil das elites no contexto da era das revoluções e de manutenção da integridade territorial do Brasil, diante da abertura dos portos e do fim do antigo sistema colonial - interiorização da metrópole de Maria Odila (DIAS, 1968DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v. 278, p. 105-170, jan.-mar. 1968.). Sua explicação sobre os projetos políticos de José da Silva Lisboa é esclarecedora, pois houve a influência da economia política, dando inteligibilidade para a ausência de desenvolvimento da industrialização na colônia e para a permanência da escravidão.

Na última parte, o livro nos conduz para o movimento de confrontos entre as Cortes de Portugal, os integrantes do Vintismo e a ausência de reconhecimento da importância de uma elite fluminense, uma nobreza brasileira que já não aceitava privar-se da autonomia e do seu lugar no cenário da era das revoluções e, ao mesmo tempo, perder conquistas arcaizantes no momento de construção de um Estado-nação, sendo essa, segundo o autor, uma característica moderna.

Malerba discorre que pouco a pouco é construída a legitimação da Independência e da autonomia política do Brasil - arcaizante, com valor de antigo regime, e moderna com projeto de nação - sendo José Bonifácio de Andrada um dos grandes responsáveis por esses esboços. Porém, como representante da elite, demonstrava ser um homem de dois tempos. Tudo isso nos leva a entender a crítica à manutenção da escravidão como barreira para a industrialização e, ao mesmo tempo, assimilar o índio e o descarte do elemento negro. Através da análise dessa figura emblemática - Bonifácio - o autor demonstra o marcador social do preconceito contra negros e indígenas e, ao mesmo tempo, a colisão com os valores de uma elite senhorial que priorizava a manutenção da grande propriedade escravocrata e dos antigos privilégios de uma sociedade de Corte nos trópicos.

Chegando à sua conclusão, em “Um país para poucos” Jurandir salienta as oscilações de um lado ao outro do Atlântico, ou seja, metrópole e colônia. Entre a franca decadência do reino e a interiorização da corte na América portuguesa, o novo contexto impunha lidar com uma elite crioula, que gradativamente se tornou autônoma. O que significava ser elite na colônia? Portugueses de primeira ou segunda geração, ocupantes dos cargos da administração, detentoras dos negócios na agricultura e no comércio de escravizados e com formação superior na Universidade de Coimbra. Para o autor, “os debates acirrados nas Cortes demonstram a incapacidade das elites de ambos os lados do Atlântico de preservarem a unidade do reino” (MALERBA, 2020MALERBA, Jurandir. Brasil em projetos: história dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino. Da Ilustração portuguesa à Independência do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2020., p. 313). Do lado de cá, no Brasil, traficantes de escravos se incorporaram na sociedade através de casamentos com as filhas da elite, sendo contra pobres e escravos e contra inimigos externos, quais sejam, os portugueses do reino que desejavam o retorno à condição colonial. Seguindo os passos de investigação e análise do “Brasil em projetos”, pode-se acompanhar que os crimes contra indigenistas, a mídia independente, as mortes de pessoas negras em ações policiais e o sucateamento do ensino, da pesquisa e da extensão em instituições federais se liga a um passado que precisa ser superado.

Impossível não me lembrar, novamente, de outro apontamento de Walter Benjamin: “Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe!” (BENJAMIN, 2013BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião. Trad. Nélio Schneider. Organização de Michael Löwy. São Paulo: Boitempo, 2013.). Estudando Brasil em projetos, antes de escrever essa resenha, em alguns momentos me senti abalado pelas notícias atuais. Então percebi que não estava indignado sozinho, pois tinha a presença de Jurandir Malerba. Logo, verifiquei uma recomendação de Sérgio Buarque de Holanda, que dizia para buscar nas origens, no processo colonizador (HOLANDA, 1984HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.), o fundamento de um “país para poucos”. Eis que me deparo, então, com essa obra acessível e com critérios, ares genuinamente inerentes a todo importante intelectual.

Agradeço aos comentários e sugestões da historiadora Helena de Sá e ao trabalho de revisão do texto, realizado pela doutora em Letras, Edilaine Vieira Lopes.

Referências

  • BALANDIER, Georges. O poder em cena Trad. Luiz Tupy Caldas de Moura. Brasília: UnB, 1982.
  • BENJAMIN, Walter. O capitalismo como religião Trad. Nélio Schneider. Organização de Michael Löwy. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • BENJAMIN, Walter. O anjo da história Organização e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
  • DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Rio de Janeiro, v. 278, p. 105-170, jan.-mar. 1968.
  • ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte Trad. Ana Maria Alves. Lisboa: Estampa, 1987.
  • FRAGOSO, João Luís Ribeiro; FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil no Rio de Janeiro, c. 1790- c. 1840. Rio de Janeiro: Diadorim, 1993.
  • HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984.
  • MALERBA, Jurandir. Brasil em projetos: história dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino. Da Ilustração portuguesa à Independência do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2020.
  • MALERBA, Jurandir. Brasilianos - Capítulos avulsos de história da formação brasileira São Paulo: Alameda, 2017.
  • MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio 2. ed.São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa Rio de Janeiro: Paz e Terra: 1985.
  • NETO, Lira. Entrevista com Lira Neto sobre a elite brasileira. Tab Uol, 2 abr. 2022.
  • NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808) 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1995.
  • PRADO Jr, Caio. Formação do Brasil contemporâneo 18. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
  • RUSSEL-WOOD, Anthony John R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: UnB, 1981.
  • SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira. Da reforma da universidade à Independência do Brasil Lisboa: Estampa, 1999.
  • CANDIDO, Antonio. Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2022
  • Aceito
    11 Jul 2022
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