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(Re)Invenções do Corpo na Irredutível Liminaridade do Samba: a teoria Cuíca

(Ré)Inventions du Corps dans la Liminarité Irréductible de Samba: la théorie Cuíca

RESUMO

Este artigo tem como objetivo pensar as especificidades das performatividades de gênero de corpos dissidentes que praticam performances de samba no Rio de Janeiro. Propõe-se uma reflexão sobre reinvenções sociais nas escolas de samba e sobre como a potencialidade de criação intrínseca ao samba, entendida em termos benjaminianos como sua aura, precisa ser retomada na contemporaneidade. A partir dos conceitos propostos por Walter Mignolo, de pensamento liminar e diferença colonial irredutível, de cruzo, intersecções de Simas e Rufino, discutem-se os entrecruzamentos entre os estudos queer e os contextos locais de raça e de classe. Por fim, elabora-se uma proposta para pensar os corpos dissidentes que sambam a partir do que se nomeia como a teoria Cuíca.

Palavras-chave:
Corpo; Colonialidade; Samba; Queer; Cuíca

RÉSUMÉ

Cet article vise à réfléchir sur les spécificités des performativités de genre des corps dissidents qui pratiquent des spectacles de samba à Rio de Janeiro. Une réflexion sur les réinventions sociales dans les écoles de samba est proposée; et sur la manière dont le potentiel de création intrinsèque à la samba, compris en termes benjaminiens comme son aura, doit être repris à l'époque contemporaine. Sur la base des concepts proposés par Walter Mignolo de pensée liminale et de différence coloniale irréductible, de cruzo, intersections de Simas et Rufino, les intersections entre les études queer et les contextes locaux de race et de classe sont discutées. Enfin, une proposition est élaborée pour réfléchir aux corps de dissidents de samba à partir de ce que nous appelons la théorie Cuíca.

Mots-clés:
Corps; Colonialité; Samba; Queer; Cuíca

ABSTRACT

This article aims to think about the specificities of the gender performativities of dissident bodies that practice samba performances in Rio de Janeiro. A reflection on social reinventions in samba schools is proposed; and about how the potential for creation intrinsic to samba, understood in Benjaminian terms as its aura, needs to be resumed in contemporary times. Based on the concepts proposed by Walter Mignolo, of liminal thought and irreducible colonial difference, of cruzo, intersections of Simas and Rufino, the interwovens between queer studies and local contexts of race and class are discussed. Finally, a proposal is elaborated to think about the samba dissident bodies from what we call the Cuíca theory.

Keywords:
Body; Coloniality; Samba; Queer; Cuíca.

O Samba e suas Escolas

As escolas de samba, ao longo das décadas, tornaram-se organizações complexas e com modos de funcionamento específicos. Elas surgiram da necessidade de se construir espaços comunitários de prática dos saberes pretos, instituições em cima do morro, assentadas às margens do Estado oficial, que pudessem reverberar os modos de ser e de estar das epistemologias afrodiaspóricas. A respeito dessa constituição, Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas (2018, p. 58) dizem:

As culturas africanas, aparentemente destroçadas pela fragmentação trazida pela experiência do cativeiro, se redefiniram a partir da criação de instituições associativas (zungus, terreiros de santo, agremiações carnavalescas etc.) de invenção, construção, manutenção e dinamização de identidades comunitárias.

Sua função social nunca foi limitada ao período carnavalesco definido pelo calendário gregoriano. Seus desfiles são apenas um dos modos de expressar sua existência, não sendo a única razão dela. “As escolas desfilam porque existem, e não existem porque desfilam”1 1 O historiador e pensador Luiz Antonio Simas (2019) é um dos grandes nomes que fomentam essa filosofia ao pensar a atual situação das escolas de samba. é uma máxima conhecida e citada entre os sambistas. As agremiações possuem um papel histórico importante na manutenção e na reinvenção das tradições dos corpos negros no Rio de Janeiro.

São nas escolas de samba que muitos corpos racializados encontram espaço para desenvolver suas habilidades e pretensões artísticas. Elas são berço de inúmeros intérpretes, compositores, pintores, escultores, bailarinos, ritmistas, percussionistas, entre diversas outras categorias de artistas que se desenvolveram a partir do samba, seja dentro dos próprios espaços do carnaval, seja para além deles. Com a captação do samba como um representante do nacionalismo brasileiro, várias vozes sambistas alcançaram sucesso internacional cantando os saberes praticados pelos corpos dos subúrbios, morros e favelas cariocas. As escolas de samba são territórios férteis para a criação porque são, elas mesmas, montagens de diferentes cantos, danças e fazeres corporais que só podiam resistir e existir a partir delas, afinal, “[...] por mais que o colonialismo tenha nos submetido ao desmantelo cognitivo, à desordem das memórias, à quebra das pertenças e ao trauma, hoje somos herdeiros daqueles que se reconstruíram a partir de seus cacos” (Rufino; Simas, 2018RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018., p. 13). O corpo que samba é um corpo preenchido pela vida, “[...] um corpo [que] não é vazio. É cheio de outros corpos, partes, órgãos, pedaços, tecidos, rótulas, anéis, tubos, alavancas e foles. É também cheio de mesmo: isso é tudo o que ele é” (Nancy, 2015NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015., p. 87).

Contudo, as escolas de samba na contemporaneidade estabelecem relações contraditórias com o poder hegemônico. Enquanto instituições que produzem um espetáculo de alcance mundial que tem grande importância para a economia local, precisaram fazer negociações com o Estado e com as empresas que investem seu capital na festa carnavalesca. Essas negociações transformaram os modos como as escolas de samba se relacionam com a cidade e, por consequência, os de suas comunidades. Não é pretensão aqui traçar um pensamento nostálgico de como era o samba e suas escolas antes desse processo, como no saudoso samba da São Clemente de 1990, reeditado na avenida em 2019, que dizia em seus versos “que saudade / da Praça Onze e dos grandes carnavais / antigo reduto de bambas / onde todos curtiam o verdadeiro samba”2 2 E o samba sambou..., G.R.E.S. São Clemente 1990/2019. Composição de Chocolate, Helinho 107, Mais Velho e Nino. . A aura que foi perdida não pode ser resgatada tal como era, em sua completude. O que pode ser feito é a sua restauração inacabada de sentidos. Assim, como podemos, diante dos espaços e dos cenários constituídos na atualidade, performar a potência de reinvenção do corpo que dá corpo ao samba, e que foi minada ao longo dos anos? E, para além disso, dada a possibilidade dessa performance, como ela poderia ser instrumento para a reinvenção de performatividades de gênero?

O Corpo que Samba e sua Potência

A potencialidade do samba foi desarticulada pelas instituições colonizadoras do corpo de modo sutil, sob um discurso de aceitação e midiatização. As escolas de samba surgiram como instituições contra-hegemônicas, mas foram absorvidas pelo Estado e pelo capital, como a cerveja derramada absorvida por uma folha de guardanapo, em um duplo movimento. A respeito disso:

O primeiro tratará de oficializar a festa popular, esvaziando-a, em alguma medida, de seus traços paródicos, críticos, iconoclásticos; o segundo, de mercadizá-la, transformando-a em espetáculo e objeto de consumo. Interpelado como símbolo de um Carnaval oficial e mercadológico, o soberano da folia vai deixando de zombar da ordem dominante e das verdades cristalizadas (Coutinho, 2006COUTINHO, Eduardo Granja. Os cronistas de Momo: imprensa e Carnaval na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006., p. 159).

Assim, houve um movimento de domesticação do carnaval, visto que seus desfiles nas avenidas eram manifestações que poderiam ser relativamente controladas e que se assemelhavam, de algum modo, aos moldes dos carnavais civilizados da elite europeia. Em segundo lugar, a legitimação e divulgação das escolas pela indústria cultural retirava o poder discursivo dos corpos da comunidade para dá-lo exclusivamente a seus representantes políticos e a quem controlava essas negociações. As comunidades deixaram de falar por si só e passaram a ter seus discursos mediados:

No Brasil, desde a abolição da escravatura, assistiu-se, com o desenvolvimento das relações capitalistas e o fortalecimento da sociedade civil, a uma modificação nas formas de dominação social. A velha estratégia de repressão física às formas carnavalescas do ‘populacho’ foi cedendo lugar a um projeto cultural que tinha como objetivo abafar a subversividade latente nessas formas de folia, de maneira a integrá-las à visão de mundo oficial, reinterpretando os seus signos e descartando toda tendência rebelde, explosiva, incontrolável (Coutinho, 2006COUTINHO, Eduardo Granja. Os cronistas de Momo: imprensa e Carnaval na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006., p. 25).

Certamente essas relações sempre foram muito conflituosas, considerando ainda as relações de dirigentes de escolas de samba com associações criminosas como o tráfico e o jogo do bicho. Não é intenção aqui fazer um aprofundamento nesse debate, mas destacar o fato de que houve, e ainda há, estratégias das instituições de poder para despotencializar os corpos que praticam o samba. Trata-se de um projeto de despotencialização, visto que, como nos aponta Coutinho:

Essa perspectiva envolve a consideração de que, para dominar culturalmente, as classes dirigentes são obrigadas a reconhecer o povo como sujeito cultural, compartilhar com as camadas subalternas uma cultura. Coube à imprensa, enquanto aparelho privado de hegemonia, a busca de consenso, a inclusão do popular na massa, a construção de uma cultura comum, nacionalpopular (Coutinho, 2006COUTINHO, Eduardo Granja. Os cronistas de Momo: imprensa e Carnaval na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006., p. 26).

Por outro lado, se considerarmos a potencialidade do samba como sua aura, podemos afirmar que sua derrubada não é seu desaparecimento, mas o surgimento de novos contextos para que possa existir. Diante do declínio da aura do samba, o que nós sambistas podemos rabiscar3 3 Rabiscar, neste contexto, trata-se da elaboração de um gesto a partir da própria experiência do corpo em movimento. É um procedimento presente no ato de sambar e deslocado para o fazer científico como uma metodologia. Desenvolvo o conceito de modo mais elaborado em minha dissertação de mestrado (Almeida, 2022). como reação é a criação de um outro corpo que samba. Apropriando-se dos conceitos benjaminianos e da leitura de Didi-Huberman (2015DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., p. 269) acerca deles, consideremos que “[...] a origem, em Benjamin, nomeia ‘o que está nascendo no devir e no declínio’. [...] O declínio da aura supõe [...] a aura enquanto fenômeno originário da imagem, fenômeno ‘inacabado’ e ‘sempre aberto’”. A minada da potência criativa do samba supõe, então, que essa potência é o fenômeno que dá origem - que permite que algo sempre em processo seja experienciado - ao corpo que samba. Trata-se de estabelecer um movimento corpóreo, uma dança entre quebras e gingados, com o que existe como memória do passado e sobrevive no presente.

Sob o conceito do tempo espiralar de Leda Maria Martins (2021)MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpotela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021., pode-se dizer que esse jogo com as reminiscências é a manutenção das curvas da tradição, que sempre retorna a um passado sem repeti-lo integralmente. É uma repetição diferente, que passa por outro lugar justamente por não ser círculo, mas espiral. É um movimento que se afasta de qualquer restauração completa do passado tal como era, do perigo do retorno redentor (DidiHuberman, 2015). Como o corpo que samba pode exercer sua potência contra-hegemônica a partir das negociações que operam o presente? Uma possibilidade é a de apropriar-se delas de modos que burlem, de dentro, as operações institucionais que tentam colonizar o corpo, instrumentalizando, para isso, os saberes e as práticas do passado, ensinadas pelos corpos que tornaram o samba um modo de conhecimento possível.

Assim, o passado não é nem rejeitado, nem ressuscitado, mas “retorna como anacronismo” (Didi-Huberman, 2015DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., p. 274), naquilo que podemos chamar de imagem dialética. O corpo que samba, no desejo de impulsionar a potencialidade que o samba lhe proporciona, aciona as diferentes temporalidades que o atravessam, estabelecendo vínculos com sua força ancestral e com os devires do que pode vir a ser reinventado. Assim como a imagem, o corpo que samba é um “cristal de tempo” (Didi-Huberman, 2015DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015., p. 274), onde encontra-se não só o “outrora” e o “agora”, mas também o que está depois, o futuro, o além. Nessa pulsão pela (re)criação do corpo que samba é que se torna possível, também, o pensamento sobre uma prática originária em ação, de novos modos de se entender e de se apresentar como corpo para além dos espaços do samba. Se é por meio de uma memória crítica que se pode originar algo no presente, é fundamental corporificar as práticas do samba para a (re)potencialização do corpo que samba.

Nesse sentido, “[...] partimos do pressuposto de que as experiências circuladas nas práticas são únicas, inesgotáveis e intransferíveis, enredam-se alinhavando uma complexa e diversificada trama de conhecimentos” (Rufino; Simas, 2018RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018., p. 27). Essa retomada da potência de criação significa ativar a memória nos gestos, na ação, na dança, no canto, no olhar. Muitas vezes a história é transmitida como um passado morto, sob o véu de algo que foi perdido e que não poderia voltar. São comuns lamentos como “naquela época é que era bom”, “antigamente é que se fazia samba de verdade”4 4 Frases ditas por sambistas mais saudosistas em discussões sobre a atual situação das escolas de samba. . O caminho desse modo de lidar com o samba é a sua destruição, a sua morte e desencantamento, que Alcione tanto clama para que não aconteça nos versos “não deixe o samba morrer / não deixe o samba acabar / o morro foi feito de samba / de samba pra gente sambar”5 5 Não deixe o samba morrer, canção cantada por Alcione e composta por Edson Conceição e Aloisio Silva Araújo. . Essa postura de lamentação diante de uma potência supostamente perdida, que aqui pode ser lida como a aura do samba, não engendra nada além de sua morte. Fica-se refém da impossibilidade de resgate integral do passado. Essa não é a postura do samba.

O que o samba rabisca como saber é a tradição como movimento, é a reinvenção do passado no agora, sempre de modo inacabado e aberto para o que pode vir. As mães e os pais do samba foram aqueles que, diante da iminência da morte de suas práticas, originaram outros modos de se manifestar e de dar continuidade à vida. O samba é uma experiência que se dá no aqui, no próprio lugar de sua performance, mas que se relaciona com um além que é tanto passado quanto futuro. Afinal, não há samba sem a presença ancestral dos corpos que habitam outros planos de existência, assim como não se samba sem a presença do samba que virá. Novamente, recorremos à aura benjaminiana, essa “teia singular, composta de elementos espaciais e temporais” (Benjamin, 2012BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 184) que nos serve de alegoria na encruzilhada do samba. A potência de criação que o samba tem como possibilidade é esse cruzo6 6 Entrecruzamento, interseção. Conceito desenvolvido por Rufino e Simas (2018). de espaços e de tempos, morada da abertura do corpo que dribla a violência, desvia-se do policiamento das subjetividades, para exercer sua liberdade no deslocamento de sentidos.

De modo prático e colocando em gira os samberes7 7 Samberes é um modo de nomear os saberes praticados no samba. Termo apreen-dido do curta-metragem Tenho receio de teorias que não dançam (Bahia, 2021), concebido pela artista Dodi Leal e dirigido por Gau Saraiva. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tdbfQmWJLoU. Acesso em: 13 mar. 2023. , é preciso sair do lugar pacífico que as instituições hegemônicas impuseram ao samba e novamente performar sua força destrutiva, transgressiva, subversiva. E não se trata de cobrar essa postura das escolas de samba enquanto empresas e de seus dirigentes, em grande parte, rendidos às coreografias engessadas do capitalismo. É uma revolução que deve partir de nós, sambistas, de nossos corpos, que são potencialmente revolucionários e que juntos podem (re)quebrar os quadris enrijecidos das políticas de subjetivação hegemônicas. De modo coletivo, cada corpo em seu processo individual e singular de formulação de conhecimentos, mas de modo que seja possível a (re)construção da prática de invenção pelo samba.

O englobamento do samba pelas instituições hegemônicas também suscitou tentativas de apagamento de seu caráter revolucionário. Isso significa dizer que, mesmo que sua história seja contada pela história oficial, o modo como esse discurso é construído invisibiliza sua força e seu poder de criação. A tomada do discurso sobre o samba pelas políticas colonizadoras é uma estratégia de enfraquecimento dos corpos que sambam. Por isso a retomada desse poder se faz tão importante. O discurso sobre o samba precisa ser emanado por corpos que sambam, por bambas, por quem de fato carrega os saberes praticados no samba como sabedoria de vida, como filosofia de vida. É a partir dessa experiência que a potência de criação pode circular por entre os corpos de modo ativo e como força motriz.

Isso não significa, de modo algum, negar as importantes mudanças que as negociações com o poder hegemônico provocaram nas escolas de samba. A profissionalização do espetáculo permite que milhares de trabalhadores e artistas tenham o carnaval e o samba como fonte de renda estável ou temporária, o que beneficia também as próprias comunidades através de projetos sociais que acontecem durante o ano inteiro. Esse papel econômico das escolas de samba deve também ser exaltado e as lutas por melhores condições de trabalho dentro desse sistema devem prosseguir. É exatamente nisso em que reside a não-tentativa de restauração integral do passado, pois não é desejo voltar às condições econômicas e sociais precárias de antes. Mas, diante desse cenário, podemos pensar em como modificar essa máquina estando dentro dela. É possível manter os desfiles das escolas de samba como espetáculo em negociação com as indústrias midiáticas, ao mesmo tempo em que se retoma o poder de criação do samba como possibilidade de reinvenção do corpo. O espetáculo pode, inclusive, ser um instrumento a favor dessa retomada. As condições estão dadas e o que podemos modificar são os modos como nos relacionamos e fazemos uso delas para sua manutenção ou modificação.

Sendo assim, é possível dizer que a potencialidade de criação provocada pelo samba nunca foi perdida ou completamente apagada porque ela é intrínseca a ele. O que precisamos fazer como sambistas e corpos que sambam é retomá-la e restaurá-la como abertura em um lugar de centralidade dentro de nossas práticas cotidianas. Trata-se de não restringir os efeitos dos samberes aos territórios do samba, mas de performá-los em todos os espaços. Mas, sendo assim, como ocupar a vida e o mundo com o samba?

Samba como Pensamento Liminar

O samba faz parte de uma epistemologia afro-brasileira que foi constituída a partir dos conhecimentos estilhaçados dos povos africanos que foram violentamente trazidos para essas terras. É um dos frutos do elaborado conjunto de saberes que o corpo negro formulou através de suas práticas afrodiaspóricas. O samba é consequência da modernidade e da colonialidade que estão nas raízes da constituição brasileira. Segundo Walter Mignolo (2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 82), o moderno sistema mundial é a “[...] genealogia do pensamento a partir das histórias locais que absorveram projetos globais”. Os países europeus que fundaram a modernidade e a colonização alçaram suas histórias locais ao patamar de universalidade, como se fossem verdades absolutas com o direito de dominar todas as demais histórias. O pensamento do moderno sistema mundial se pretende hegemônico e, para isso, precisa aniquilar as outras formas de pensar, pois “[...] a construção do cânone ocidental alçou a sua edificação em detrimento da subalternização de uma infinidade de outros conhecimentos assentados em outras lógicas e racionalidades” (Rufino; Simas, 2018RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018., p. 21). Toda epistemologia que não seja a si mesma é desconsiderada, o que explica o fato de os samberes serem considerados como inferiores no Brasil, assim como todas as outras epistemologias praticadas pelos corpos racializados, menosprezadas na categoria de “sabedoria popular”.

Na América Latina como um todo, e não apenas no Brasil, o período colonial não é o único âmbito em que a colonialidade existe. Trata-se de conceitos distintos. O período colonial é um tempo datado da história oficial em que o território era comandado politicamente por representantes do Estado colonizador. A colonialidade é um modo de pensar que atravessa o tempo e se atualiza com o objetivo de manter a operação das práticas do moderno sistema mundial. Ela é responsável por manter na América Latina uma tradição imitativa em relação à filosofia europeia (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.), um desejo de continuar se espelhando nos modelos civilizatórios ensinados pela missão colonizadora. “A América, ao contrário da Ásia e da África, incluíase como parte da extensão da Europa e não como sua diferença” (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 91), o que talvez nos auxilie a pensar no porquê de a colonialidade considerar todo o conjunto de saberes produzidos pelas experiências corporais latino-americanas como versões inferiores dos seus próprios saberes.

Esse equívoco é uma estratégia de violência e uma incapacidade de compreender histórias locais de outros lugares. “O ocidentalismo [...] como o imaginário dominante do sistema mundial moderno foi uma máquina poderosa para subalternizar o conhecimento [...] estabelecendo, ao mesmo tempo, um padrão epistemológico planetário” (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 92) e, em seguida, “[...] o orientalismo [...] foi uma rearticulação particular do imaginário do sistema mundial colonial/moderno em sua segunda fase, quando o ocidentalismo, estruturado e implementado dos impérios espanhol e português, começou a esvanecer” (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 95). Ou seja, o sistema mundial colonial/moderno é capaz de se atualizar de diferentes modos para continuar com o poder sob seu controle. A transformação do samba em um produto nacionalista foi uma dessas estratégias, pois não significou a transferência do poder para os subúrbios, morros e favelas, mas a captação da força de seus corpos para a produção capitalista que faz a manutenção do poder nas instituições da colonialidade. Essas estratégias são pensadas de modo muito específico, considerando os modos como as histórias locais de cada território colonizado se comportam diante do imaginário do sistema mundial. Elas são implementadas e encenadas de maneira diferente em locais particulares (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.).

As análises de Walter Mignolo, sobre como Abdelkebir Khatibi e Edouard Glissant utilizaram-se do pensamento liminar e da descolonização como forma de desconstrução, são-nos pertinentes para refletir sobre as condições da formulação do samba e sobre a sua performance como metodologia do pensamento. Para Mignolo, os escritos de Khatibi fazem uma dupla crítica ao pensar, ao mesmo tempo, os fundamentalismos ocidental e islâmico. Esse gesto de pensar criticamente ambas as tradições que o atravessam enquanto corpo em território que foi colonizado possibilita a emergência de um pensamento liminar que não está assentado em nenhuma delas.

Essas confrontações espaciais entre diferentes conceitos de história, entre histórias locais tão distintas, são uma condição necessária para a existência e para a criação de um outro pensamento: “‘um outro pensamento’ é possível quando são levadas em consideração diferentes histórias locais e suas particulares relações de poder” (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 103). Trata-se de um modo de pensar que busca escapar de dicotomias e do perigo de se prender a um local que deixa de existir ou a um local que existe apenas como imagem ideal. Diante da impossibilidade de um caminho ou de outro, é um pensamento que assume de modo crítico a posição liminar que a colonialidade estabelece.

Ao som dos toques do conceito de Mignolo, é possível dizer que o samba é um outro pensamento, um pensamento liminar que foi desenvolvido por corpos pretos em terreiros cariocas. Mas, nesse caso, não se trata apenas de uma dupla crítica, pois a base do samba como pensamento é constituída a partir de inúmeras tradições. Na encruzilhada em que o corpo do samba se assenta, são muitos os caminhos que se cruzam e, por isso mesmo, o conflito é constitutivo do corpo que samba. A formação do samba como pensamento não se deu de maneira tranquila, pois cada tradição afrodiaspórica também pretendia fazer uma máxima manutenção possível dos seus saberes. Seria errôneo pensar essa construção de modo pacífico, como se não houvesse divergências e confrontos também entre as culturas afrodiaspóricas. Por isso o samba é um pensamento que se dá a partir dessas tradições, mas não está localizado em nenhuma delas, mas sim em um território fundado na liminaridade, no cruzo, como em uma cultura de síncope:

As culturas de síncope nos fornecem condições para praticarmos estripulias que venham a rasurar a pretensa universalidade do cânone ocidental. Impulsionados pelas sabedorias dessas culturas, temos como desafio principal a transgressão do cânone. Transgredi-lo não é negá-lo, mas sim encantá-lo cruzando-o a outras perspectivas. Em outras palavras, é cuspi-lo na encruza. Enquanto algumas mentalidades insistem em ler o mundo em dicotomias, teimando na superação de um lado pelo outro, o poder da síncope se inscreve no cruzo (Rufino; Simas, 2018RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018., p. 19).

Para Mignolo (2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 104), “o potencial de ‘um outro pensamento’ é epistemológico e também ético”. O autor defende que é epistemológico pelo fato de não se inspirar em suas próprias limitações, por ser uma abertura para formulações que não se restringem a uma posição imóvel. E é ético por ser universalmente marginal, fragmentário e não ser etnocida, justamente por não se pretender hegemônico diante de outras formas de pensar. De modo similar, o potencial de criação agenciado pelo samba também é epistemológico e ético, visto que a sua prática ao longo do tempo proporcionou a eclosão de diversos saberes que foram gerados em seus espaços de sociabilidade. “Essa dobra política e epistemológica é crucial para um reposicionamento ético e estético das populações e das suas produções que historicamente foram vistas, a partir de rigores totalitários, como formas subalternas, não credíveis” (Rufino; Simas, 2018RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018., p. 11). Se considerarmos apenas os campos artísticos, teremos inúmeros exemplos de técnicas de produção de fantasias e alegorias, de construções poéticas e melódicas, de movimentações coreográficas, que estão implicadas na “epistemologia ziriguidum”8 8 O Ziriguidum como epistemologia é um “[...] conjunto de conhecimentos reunidos pelo viver a escola de samba, uma opinião fundada, refletida, um paradigma de viver em comunidade com múltiplos saberes estruturados na experiência”. Trata-se de um conceito desenvolvido pelo pesquisador e carnavalesco Milton Cunha. Mais detalhes estão disponíveis no vídeo A sabedoria da árvore (episteme ziriguidum). [S. l.: s. n.], 2021. 1 vídeo (3 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HASUGY9HLlk. Acesso em: 13 mar. 2023. corporificada pelo samba. Somado a isso está seu compromisso ético em fomentar a pulsão de vida dos corpos, em estimular o canto e a dança como práticas de encantamento do corpo. É um desafio às políticas da colonialidade e um desmonte do imaginário do sistema mundial moderno e de seus projetos globais.

Ao pensar especificamente o contexto brasileiro, podemos dizer que há, tanto instituições que perpetuam a prática da colonialidade, quanto as que assumem práticas descolonizadoras. Assim, particulariza-se tal prática, em certa medida, quando posta em relação a modos que acontecem em outros países latino-americanos ou em outros continentes, como os países árabes, que sofreram a colonização europeia. Encontramos, dentro do Brasil, sociedades silenciadas e sociedades silenciadoras. Há as instituições que são desdobramentos da colonização europeia e as instituições que foram organizadas pelos indígenas e afrodescendentes. De acordo com Mignolo (2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 108), as sociedades silenciadas são “[...] sociedades em que há fala e escrita, mas que não são ouvidas na produção planetária de conhecimento, orientadas pelas histórias locais e as línguas locais das ‘sociedades silenciadoras’ (isto é, desenvolvidas)”. No Brasil, podemos considerar a Língua Portuguesa como a dominante e silenciadora, enquanto as línguas indígenas e africanas são as silenciadas. O Brasil é berço de milhares de línguas que foram morrendo com o tempo por conta do etnocídio praticado pela colonialidade. Há as que ainda resistem e lutam por seus lugares, mas o único idioma considerado oficial é a Língua Portuguesa trazida pelos colonizadores portugueses.

Poderíamos citar outros, mas atendo-nos ao foco desta pesquisa, o samba é um dos conhecimentos que surge na interseção, na encruzilhada entre a língua silenciadora e as línguas silenciadas no Brasil. Isso porque o samba corporifica a linguagem dos tambores e das culturas dos povos que o originaram. Há um amplo número de pessoas que se iniciaram na cultura afro-brasileira por meio do samba. Até hoje as escolas de samba trazem em seus enredos e sambas palavras, sons e filosofias de matriz africana para estimular e colocar em movimento suas práticas. Para elencar apenas um caso, podemos citar o samba da União da Ilha de 2017, com um carnaval sobre a criação do universo para o povo banto. Com versos como “Salve, rei Kitembo / Nzara Ndembu em poesia / Pra dar sentido à vida, transformar / Numa odisseia rasga o céu, alcança a terra / Sagrada é a raiz Nzumbarandá / Katendê, segredos preserva”9 9 Nzara Ndembu - Glória ao Senhor Tempo, G.R.E.S. União da Ilha do Governador 2017. Composição de Beto Mascarenhas, Dr. Robson, Felipe Mussili, Gusttavo Clarão, Lobo Junior, Marcelão da Ilha, Marinho, MM e Rony Sena. , a escola cantou termos e inquices que fazem parte da cultura afro-brasileira, mas que são pouco conhecidos até mesmo por praticantes de religiões de matriz africana, visto que a popularidade das culturas nagô e iorubá é maior. Para muitos sambistas, a narrativa contada pela Ilha foi o primeiro contato com a língua banto.

Devido a essas questões, é possível dizer que as experiências dos corpos com a colonialidade não pode ser generalizada no Brasil. Nosso país é rico em histórias locais e, dentro de cada região, há histórias locais que se estabelecem como superiores por se espelharem no moderno sistema mundial. No caso específico do Rio de Janeiro, há a história local de uma elite da branquitude como intelectualidade, que se pretende global por se imaginar como um “mesmo” da história local europeia como projeto global; e há as histórias locais dos corpos racializados que estão às margens dos espaços culturais e que desenvolvem seus pensamentos liminares a partir da experiência de fragmentação. Não só o samba, mas, como diversos outros pensamentos liminares que se dão pelo fazer corporal, como por exemplo o funk, o slam, o rap, o jongo, a capoeira e manifestações religiosas variadas.

São nesses fazeres que também surgem novas línguas, como dialetos e gírias de grupos específicos. “Um outro pensamento’ é pensar em línguas, entre duas línguas e suas relações históricas no sistema mundial moderno e a colonialidade do poder” (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 112), mas, nesse caso, não apenas entre duas línguas, mas uma multiplicidade delas. Essa constituição plural e multifacetada é, também, o que torna cada pensamento desses uma experiência singular. Assim, seria equivocado dizer que elas se equivalem em uma análise dos pensamentos liminares no Rio de Janeiro, afinal cada experiência está entrecruzada pela colonialidade do poder de modo distinto uma da outra. Trata-se do que Mignolo chama de diferença irredutível. Para o pensador, não é possível resumir as experiências da diferença colonial uma à outra por serem perspectivas complementares, mas que se diferenciam por suas particularidades.

A Irredutível Dissidência pelo Samba

A questão da diferença irredutível será importante para pensarmos as dissidências sexuais e de gênero a partir da performance do samba. “A configuração-chave do pensamento liminar: pensar a partir de conceitos dicotômicos ao invés de organizar o mundo em dicotomias” (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 126) pode ser alargada na experiência do samba para conceitos que articulam possibilidades para além da dicotomia, pensamentos a partir de conceitos politômicos. O samba rompe com a perspectiva epistemológica eurocêntrica e também com as praticadas nas culturas africanas de onde vieram seus batuques e gestos. Ele funda uma epistemologia do cruzo e a forma desse rompimento é a diferença irredutível entre a crítica monotópica no interior do sistema mundial moderno e a crítica dupla e pluritópica a partir de seu exterior. Assim, a sua potência de criação e reinvenção dos modos de ser e estar no mundo não tem, ou não deveria ter, qualquer compromisso com as noções estabelecidas pelas lógicas colonizadoras dos corpos do pensamento ocidental moderno, o que inclui o modo como performamos socialmente os papéis de gênero.

A hostilidade perpetrada contra a diferença por meio de um discurso hegemônico de cis-heteronormatividade deve-se, em grande medida, a uma tendência perniciosa de encarar a complexidade do mundo em termos binários, invalidando, assim, o dissidente, o ambivalente, o não-conformado ou amoldado às normas regulatórias (Morais, 2020MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020., p. 60).

A partir disso, um primeiro passo nesse mover-se sincopado é questionar as categorias identitárias em que são agrupados os corpos que supostamente fazem a mesma coisa, que supostamente são iguais, sob um olhar que atribui marcações aos corpos a partir de um lugar muito seguro em que exerce o poder sem ser visto e marcado. Alguns lugares identitários comuns são agenciados quando se fala sobre os corpos que sambam. A mais recorrente é a categorização pelo adjetivo “popular” como modo de inferiorização intelectual e como tentativa de reduzir uma heterogênea gama de experiências a imagens fixas e superficiais. Não se trata de negar esse adjetivo, esses lugares identitários. Muito pelo contrário, a tomada do discurso sobre eles é importante. É latente, sim, o questionamento de seus usos pelo poder hegemônico como método de negligenciamento de toda uma plêiade de conhecimentos e práticas em prol de uma classificação desinteressada que seria suficiente para a resolução do problema. Afinal,

Devemos questionar a categoria de identidade, desse ‘idêntico a si mesmo’ como uma categoria estável, coerente e unificadora de experiências ainda mais quando todo feito de alguém de determinada identidade parece supor que não há singularidades, mas, sim, que são expressões identitárias e não performances situadas local e historicamente (Pereira, 2022PEREIRA, Bruno. Cartografias queer nas artes visuais: notas a partir da recepção da obra de Alair Gomes. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 28 n. 44, p. 69-92, jul./dez. 2022. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n44.4. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae. Acesso em: 13 mar. 2023.
https://doi.org/10.37235/ae.n44.4...
, p. 79).

A maneira como um corpo dissidente de gênero que samba se relaciona com a performatividade de gênero não é a mesma que a de um outro corpo que agencia outros saberes. É equivocado colocar, em uma análise, o corpo de um homem cis homossexual que pratica a elite carioca como equivalente ao corpo de um homem cis homossexual que pratica o samba no subúrbio. A bicha branca do Alto Leblon não é a mesma bicha racializada de Madureira. Ainda que ambas sejam atravessadas pelas questões da dissidência de gênero, o modo como seus corpos produzem performatividade é irredutível um ao outro, pois partem de experiências performáticas de conhecimento corporificado distintas. O que pretendo dizer é que a performance do samba provoca artifícios para performatividades de gênero cuja diferença é irredutível a outras. E, sendo assim, cabe aos corpos dissidentes que sambam explorar esse potencial próprio em suas experiências sociais com o samba e com o mundo.

Esse problema do agrupamento identitário que desconsidera a diferença colonial irredutível está presente também na crítica aos estudos queer elaborada por E. Patrick Johnson e analisada por Fernando Luís de Morais. Para ambos os autores, os estudos da teoria queer, ainda que importantes e necessários, por vezes são insuficientes para pensar as experiências de corpos dissidentes atravessados por recortes de raça e de classe. Por almejar uma ruptura total com classificações identitárias e se pretender como uma antiidentidade, a teoria queer desconsidera que os contextos sociais impostos aos sujeitos racializados e pobres são preponderantes em suas performatividades de gênero, o que ocasiona uma generalização da experiência queer como um corpo dentro da branquitude que usufrui dos privilégios da classe médiaalta. Se “[...] sujeitos queer inquietam porque reagem, não se curvam e transgridem. Corpos queer também; são corpos eletricamente transitantes, subversivos, antagonizantes, dotados de carga, potência e beleza” (Morais, 2020MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020., p. 31), é plausível dizer que ser queer também pode ser reagir e subverter os próprios estudos acadêmicos sobre a experiência queer, de modo a dinamizar o pensamento para que não seja fixado sob olhares específicos da perspectiva do sistema mundial moderno.

A presunção de que todos os queers são atingidos pelos mesmos mecanismos de opressão leva, de certa forma, ao retorno a uma matriz normativa obliterante de outras diferenças, relegando outros sujeitos ao ostracismo. Qualquer tentativa de análise dos sujeitos calcada tão simplesmente na noção de identidade de gênero seria, por assim dizer, limitante, pois desautorizaria a emergência de outras identidades patentes porém abafadas (Morais, 2020MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020., p. 64).

É a partir dessas inquietações que Johnson pensa em uma analítica quare como dobra sobre a teoria queer, incorporando raça e classe como atravessamentos fundamentais para se pensar nas experiências e estudos da sexualidade e de gênero. Para o autor, “‘quare’ [...] não só transpassa as identidades, mas também as articula. ‘Quare’ oferece uma maneira de criticar noções estáveis de identidade e, ao mesmo tempo, situar o conhecimento de raça e de classe. Meu projeto é de revisão e recuperação” (Johnson, 2020JOHNSON, E. Patrick. Estudos “quare” ou (quase) tudo o que sei sobre estudos queer aprendi com minha avó. In: MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020., p. 85). Dentro do estudo de Johnson, encontramos forças para repercutir, com nossos tambores, batuques que deem corpo ao samba como ritmo performativo de gêneros no Brasil e, de modo mais específico, no Rio de Janeiro.

Os estudos quare de Johnson são uma proposta teórica que se baseia “[...] nas raízes vernáculas implícitas no uso que minha avó faz da palavra para formular uma estratégia de teorização da sexualidade racializada” (Johnson, 2020JOHNSON, E. Patrick. Estudos “quare” ou (quase) tudo o que sei sobre estudos queer aprendi com minha avó. In: MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020., p. 84). Quare era a palavra que sua avó dizia ao pronunciar queer com seu dialeto carregado do sul dos Estados Unidos. Quare já nasceria, para a análise de Johnson, como um modo racializado de pensar o queer. Em sua pesquisa sobre a situação das dissidências sexuais e de gênero nos EUA, o autor destaca a importância das políticas de resistência praticadas em comunidades negras para a existência de corpos queer racializados e cita, como exemplo, as igrejas negras. Elas são lugares marginalmente seguros onde se pode buscar refúgio e formular estratégias contra a colonialidade do poder e onde muitos corpos queer encontram “local de sustentação da afirmação espiritual, de conforto e de vazão artística” (Johnson, 2020JOHNSON, E. Patrick. Estudos “quare” ou (quase) tudo o que sei sobre estudos queer aprendi com minha avó. In: MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020., p. 114).

Contudo, o autor também aponta para a necessidade de se tecer uma crítica desses próprios lugares a partir de dentro deles, ressaltando a crítica contra a negação da subjetividade quare que há dentro da igreja. Assim, ao propor a perspectiva dos estudos quare no contexto dos EUA, Johnson abre a discussão e uma via de pensamento liminar para os corpos dissentes sexuais e de gênero do país, pois está situado em uma crítica tanto da teoria queer marcada por alguns privilégios da modernidade e de seu projeto de imaginário global quanto das comunidades racializadas entrelaçadas pela colonialidade do poder, que negam as subjetividades que rompem com as performatividades binárias. Com essas considerações, de que modo podemos desenvolver uma crítica similar dentro das escolas de samba?

Rabiscos de uma Teoria Cuíca

Ao trazermos a discussão para o contexto brasileiro, também precisamos fazer uma crítica e uma revisão dos estudos queer a partir de nossa situação histórica. Na busca em pensar os estudos das dissidências sexuais e de gênero a partir de epistemologias consolidadas no corpo, temos exemplos de pensadores e autores que cruzam a teoria queer com as experiências aqui praticadas e que abrem novos olhares para as encruzilhadas de sexualidade, gênero, raça e classe.

Um caso desses usos decoloniais da teoria queer é a transformação de queer em cuir, uma tradução de forma incompleta que aproxima os estudos de gênero às realidades latino-americanas. O pensamento sobre o corpo cuir tem fomentado diversas pesquisas que geram tensões, reflexões, repercussões e contradições sobre a experiência dissidente a partir do Sul global. Desse modo, a “[...] abordagem ‘cuir’, na perspectiva em que seu pensamento favorece a modificação dos modos de ler a cultura e as subjetividades, desde a proposição de quebra de perspectivas hierarquizadoras, naturalizadas culturalmente e tidas por institucionais” (Inácio, 2018INÁCIO, Emerson da Cruz. Algumas intersecionalidades e um texto “cuir” para chamar de (m)eu: Retratos da produção estética afro-lusobrasileira. Revista Via Atlântica, São Paulo, n. 33, p. 225-240, jun. 2018., p. 238), possibilita articulações localizadas nos modos como a teoria queer é devorada e modificada pelos corpos brasileiros:

Cuir, quando lido em português, também remete ao cu, como acesso àquilo que é mantido escondido. É nesse sentido que Larissa Pelúcio sugere tratar os estudos queer como estudos cu, em uma tradução provocadora, pouco palatável, para que o campo se abra para novas possibilidades de contestação (Altmayer, 2018ALTMAYER, Guilherme. Apontamos para uma cartografia: o cuir/queer como território em expansão. seLecT_ceLesTe, 07 de maio de 2018. Disponível em: https://select.art.br/apontamentos-para-uma-cartografia/. Acesso em: 13 mar. 2023.
https://select.art.br/apontamentos-para-...
).

Ao falar sobre sua experiência como corpo dissidente e ao traçar estratégias de como organizar as informações sobre o mundo a nosso favor, a artista e pesquisadora Pêdra Costa põe em questão sua autoidentificação como corpo kuir. Essa proposta seria uma tomada de poder sobre os modos de negociação com os sistemas institucionais, oferecendo o que eles pedem para adentrá-los, mas ocupando-os de modo crítico e subversivo.

Quando trago a palavra kuir, eu trago a questão de que não aceitaremos ser civilizados pela sua integração europeia, porque já conhecemos isso profundamente. É uma resistência. Resistência essa que não pode ser demonstrada em toda sua potência de forma direta, mas de forma politicamente estratégica, pois existem muitas questões envolvidas em ocupar espaços de arte (Costa, 2016COSTA, Pêdra. The Kuir Sauvage. Revista concinnitas, Rio de Janeiro, ano 17, v. 01, n. 28, set. 2016., p. 356).

Para pensar no que a performance do samba pode provocar como movimento e pulsão de criação para a performatividade de gênero dissidente, é fundamental trazer para a batucada todos os instrumentos históricos e ancestrais que fundamentam o samba, assim como já foi dito anteriormente. Esse agenciamento dos tempos e espaços que são constitutivos do samba é importante, pois “[...] precisamos explicar a especificidade temporal e espacial da performance não apenas para moldar sua existência, mas também para nomear seus modos de significação” (Johnson, 2020JOHNSON, E. Patrick. Estudos “quare” ou (quase) tudo o que sei sobre estudos queer aprendi com minha avó. In: MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020., p. 100). Sendo assim, proponho a articulação requebrada de uma teoria assentada na encruzilhada entre a performance de samba e a performatividade de gênero. Tratase da teoria Cuíca. É uma proposta teórica como estratégia de retomada da potencialidade de criação e reinvenção do samba sob a luz de sua diferença colonial irredutível. É uma cuspida na teoria queer para torná-la cuíca - instrumento de transformação do corpo em samba.

A cuíca, instrumento musical, tornou-se peça-chave nas baterias das escolas de samba. Seu ronco característico pode ser identificado de longe e na primeira nota já cria expectativa para o samba que ecoará em seguida. É um tambor de fricção que possui uma haste de madeira fixada internamente na pele do tambor. É tocada pela fricção dessa haste com um pano úmido, em combinação com a pressão dos dedos pelo lado externo. Sua origem é pouco conclusiva, mas sabe-se que sua técnica ganhou desdobramentos no Brasil por meio dos corpos afrodiaspóricos. A cuíca é uma das grandes representantes da afromusicalidade brasileira.

As escolas de samba, como já dito, são comunidades que se configuram como redes de apoio para corpos atravessados pelas questões de raça e de classe, e que tornam possíveis práticas de epistemologias e metodologias afrorreferenciadas. Contudo, nem sempre são lugares isentos de violência para corpos dissidentes sexuais e de gênero. Essa relação se dá de maneira conturbada, pois, ainda que grandes artistas dissidentes tenham escrito seus nomes na história das escolas de samba e revolucionado seus desfiles carnavalescos, há fortes manifestações de machismo e de misoginia entranhadas nas raízes das agremiações.

Portanto, a luta pela ocupação desses espaços por corpos dissidentes nunca foi pacífica e continua até os dias de hoje sendo feita de maneira intensa e incansável. Talvez seja sintoma disso o fato de haver tantos enredos e sambas que agenciem questões de raça e de classe e poucos casos de narrativas que abordem reflexões sobre sexualidade e gênero. Isso significa que o movimento reinventivo do corpo que samba, do corpo Cuíca, é ambivalente, pois coloca em jogo, em dança, o que a performance de samba e a performatividade de gênero podem colocar para requebrar nos quadris uma da outra.

Esse embalo e bamboleio entre performance e performatividade vai de cima embaixo nessa experimentação. Mas por que teoria Cuíca, corpo Cuíca? Primeiramente, pela proximidade sonora do nome. Quase pelo caráter paródico do “queer/quir” se transformar em “cuí-ca” pela linguagem. Teoria “cuí”ca. Um desvio, um balanço sincopado da língua que desliza até chegar ao “cu”-íca do corpo. CUíca. O poder agenciado pela palavra cuíca em todas as suas possibilidades de sentidos já fala sobre a multiplicidade de modos pelo qual o corpo-queer-que-samba-cá pode assumir em sua performance-pela-cidade. O corpo “que(er)cá” se decompõe e se recompõe na composição do samba.

Entretanto também significa para além do jogo de linguagem, ainda que permaneçam os deslizes gingantes da língua. A cuíca é um tambor de fricção e seu toque requer o atrito entre corpos, entre duas matérias que se roçam para a produção de uma terceira matéria, que é o som. Assim também é o corpo Cuíca. É um corpo do atrito, da fricção de conceitos que são esfregados até surgir um pensamento que não é nem um, nem outro. É outra materialidade, outra forma de se propagar pelo espaço-tempo. A fricção da modernidade e da colonialidade é a condição violenta que provoca o prazeroso ecoar do samba e que coloca em movimento os processos discursivos de identificação e de subjetividade do corpo Cuíca.

É também na fricção dos corpos que formam a comunidade do samba que as práticas Cuícas se potencializam e circulam. É um fazer coletivo que agencia processos afetivos, a experiência suada de um corpo que se mistura ao suor do outro. Saberes suados que a pele tornou matéria molhada para poder lubrificar a fricção dos tempos. Experiências compartilhadas como modos de ensinar e de aprender. Uma ensinando e aprendendo com a outra. Fricção de olhares, de vivências, de modos de atacar e de se proteger. O samba como espaço de friccionar certezas, ideias que vêm de fora com ideias geradas no dentro. Goles de cerveja, goles de cachaça. Gargalhadas, choros, amores e ódios circulando em atritos como os pés de passistas que rabiscam o chão. Não há espaço para binarismo na fricção porque o que é gerado é sempre um outro. O corpo Cuíca é a transgressão pelo atrito, a transbinariedade da roçada. O atrito esquenta, gera faísca, fogo. A fricção da prática Cuíca bota fogo no gongá da cis-heteronormatividade. Tal como a bateria da Mocidade Independente, não existe mais quente.

Além da fricção, a cuíca também precisa da pressão dos dedos sobre a pele do tambor para ser tocada. O dedilhar que toca a pele também pode ser uma alegoria dos dedos como prática sexual do corpo Cuíca. Os dedos assumindo o lugar do falocentrismo patriarcal das relações cisheteronormativas. Dedos que tocam o outro e que também se tocam, trazendo para si a potência de provocar prazer. A investigação das zonas erógenas do corpo, do tatear a pele em diferentes pressões que produzem diferentes sensações, vibrações e orgasmos. Cuicar o sexo, cuicar o corpo. Atrelar o dedilhar ao friccionar, em movimentos que conversam entre si para gerar as ondas do prazer. Tocar o corpo com o desejo de tocar um samba, de pulsar a vida. Não necessariamente excluir o falo, mas trazer os dedos e outros dispositivos para o mesmo lugar de potencializar o prazer, de provocar o gozo.

O ronco da cuíca como o ronco de um motor. É um prenúncio, um aviso, um alerta de que há uma energia pulsante em movimento. É o som que rompe com o silêncio das coerências estáticas e convoca o corpo ao bole-que-bole que desestabiliza as construções de gênero coloniais. O ronco do corpo Cuíca é um abalo no ritmo clássico do que é ser homem ou ser mulher. Os passos das performatividades masculina e feminina do sistema moderno mundial ensinados pelas instituições da colonialidade do poder são impossíveis para o corpo Cuíca, pois este é sincopado pelo samba.

Segundo María Lugones (2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Tradução de Juliana Watson e Tatiana Nascimento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 320, set-dez. 2014., p. 936), “só os civilizados são homens ou mulheres”, e, nessa lógica, apenas os colonizadores poderiam ser civilizados. Mesmo quando os corpos colonizados são designados como homens e mulheres, quando a população racializada passa a ser marcada com esses rótulos pela modernidade/colonialidade, teria sido uma transformação não em identidade, mas em natureza. Daí o fato de Lugones (2014)LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Tradução de Juliana Watson e Tatiana Nascimento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 320, set-dez. 2014. dizer que nenhuma mulher é colonizada pelo fato de nenhuma fêmea colonizada ser mulher, segundo o que seria ser mulher para o sistema ocidental moderno. Se “descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis” (Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Tradução de Juliana Watson e Tatiana Nascimento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 320, set-dez. 2014., p. 940), o ronco do corpo Cuíca influi nesse fazer do corpo a partir de sua subjetividade ativa. Por ser uma prática de fricção, é a feitura do corpo na própria performance, um ronco que proclama “uma agência performativa para trabalhar nos e contra os sistemas opressivos” (Morais, 2020MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020., p. 102). O corpo Cuíca é local de efeito discursivo e de efeito social. Os saberes articulados na performance do samba, no roncar da cuíca, são estratégias de sobrevivência nas práticas cotidianas. O corpo Cuíca resiste pela fricção “entre a sujeitificação (a formação/informação do sujeito) e a subjetividade ativa” (Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Tradução de Juliana Watson e Tatiana Nascimento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 320, set-dez. 2014., p. 940). O lugar da fricção é próprio do

Colonizado/a [...] como um ser que começa a habitar um lócus fraturado, construído duplamente, que percebe duplamente, relaciona-se duplamente, onde os ‘lados’ do lócus estão em tensão, e o próprio conflito informa ativamente a subjetividade do ente colonizado em relação múltipla (Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Tradução de Juliana Watson e Tatiana Nascimento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 320, set-dez. 2014., p. 942).

Para o corpo que samba, essa fricção só pode dar samba; e, para o corpo Cuíca, esse samba é a possibilidade de criar performatividades de gênero que rabisquem os passos de sua própria experiência como corpo no mundo. Trata-se de não desejar ser, ou performar, o que é ser homem, o que é ser mulher, ou mesmo o que é ser gay, lésbica, trans, assexual, não-binárie, seguindo parâmetros da branquitude, parâmetros que nunca foram subjugados por seus contextos espaciais e temporais, por vieses de raça e de classe. A diferença irredutível da colonialidade torna essa dança impossível. Os corpos presos a essa tentativa de dança estão fadados à frustração de não exercerem a própria subjetividade e de nunca serem aceitos como mesmos pela cis-heteronormatividade branca. Serão, no máximo, um mesmo inferior. Por isso a importância da consciência espacial, temporal e histórica do território em que se agenciam essas performances - no caso, o samba.

Com base nessa discussão, podemos afirmar que é inerente às performances de samba a potencialidade de quebrar estruturas rígidas e inflexíveis e de reinventar práticas a partir das experiências vividas pelo corpo. Visto que a colonialidade do poder tem estratégias de coerção dessa potência, é latente a sua retomada e ativação em diferentes âmbitos performativos. É preciso incorporar às performances cotidianas os conhecimentos praticados pelo corpo nas performances de samba. Tal movimento requer a consciência da irredutibilidade dessas práticas e de suas múltiplas possibilidades de criação a partir dos fragmentos do mundo.

No que tange à performatividade de gênero, considera-se que os corpos dissidentes que sambam, por serem atravessados por questões raciais e de classe específicas do contexto dos territórios do samba, criam estratégias de existência que são intraduzíveis a outras experiências de gênero. A potencialidade do samba fornece meios de criação de performatividades que friccionam as certezas hegemônicas e rabiscam com os tradicionais passos da dança da cisheteronormatividade. Ao conceituar esses corpos como Cuícas, pretende-se não apenas investigar como a teoria queer se desdobra no contexto do samba, mas também estimular que essa possibilidade teórica seja um espaço de experimentação a ser expandido. A fomentação do entendimento dessa irredutibilidade tem como intenção instigar a identificação das especificidades dessas performatividades e, com isso, ressaltá-las e transbordá-las.

Por fim, a partir da prática de suas subjetividades e samberes localizados, os corpos dissidentes sexuais e de gênero podem reativar a potência de criação agenciada pelo samba e exercer a reinvenção de seus corpos de maneira friccionada, sincopada, gingada e requebrada, desviando das categorizações da colonialidade, mas conscientes dos atravessamentos contextuais que os afetam e que tornam suas experiências irredutíveis. Inventam, desse modo, nessas rodas e nessas giras, rabiscos do que pode ser chamado de uma prática Cuíca.

Disponibilidade dos dados da pesquisa:

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.

Notas

  • 1
    O historiador e pensador Luiz Antonio Simas (2019)SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. é um dos grandes nomes que fomentam essa filosofia ao pensar a atual situação das escolas de samba.
  • 2
    E o samba sambou..., G.R.E.S. São Clemente 1990/2019. Composição de Chocolate, Helinho 107, Mais Velho e Nino.
  • 3
    Rabiscar, neste contexto, trata-se da elaboração de um gesto a partir da própria experiência do corpo em movimento. É um procedimento presente no ato de sambar e deslocado para o fazer científico como uma metodologia. Desenvolvo o conceito de modo mais elaborado em minha dissertação de mestrado (Almeida, 2022ALMEIDA, Cleiton França de. A Sambalização do corpo: performances e imagens em-vias-de-ser transviadas. 2022. 247 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Estudos Contemporâneos das Artes, Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022.).
  • 4
    Frases ditas por sambistas mais saudosistas em discussões sobre a atual situação das escolas de samba.
  • 5
    Não deixe o samba morrer, canção cantada por Alcione e composta por Edson Conceição e Aloisio Silva Araújo.
  • 6
    Entrecruzamento, interseção. Conceito desenvolvido por Rufino e Simas (2018)RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018..
  • 7
    Samberes é um modo de nomear os saberes praticados no samba. Termo apreen-dido do curta-metragem Tenho receio de teorias que não dançam (Bahia, 2021), concebido pela artista Dodi Leal e dirigido por Gau Saraiva. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tdbfQmWJLoU. Acesso em: 13 mar. 2023.
  • 8
    O Ziriguidum como epistemologia é um “[...] conjunto de conhecimentos reunidos pelo viver a escola de samba, uma opinião fundada, refletida, um paradigma de viver em comunidade com múltiplos saberes estruturados na experiência”. Trata-se de um conceito desenvolvido pelo pesquisador e carnavalesco Milton Cunha. Mais detalhes estão disponíveis no vídeo A sabedoria da árvore (episteme ziriguidum). [S. l.: s. n.], 2021. 1 vídeo (3 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HASUGY9HLlk. Acesso em: 13 mar. 2023.
  • 9
    Nzara Ndembu - Glória ao Senhor Tempo, G.R.E.S. União da Ilha do Governador 2017. Composição de Beto Mascarenhas, Dr. Robson, Felipe Mussili, Gusttavo Clarão, Lobo Junior, Marcelão da Ilha, Marinho, MM e Rony Sena.

Referências

  • ALMEIDA, Cleiton França de. A Sambalização do corpo: performances e imagens em-vias-de-ser transviadas. 2022. 247 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Estudos Contemporâneos das Artes, Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2022.
  • ALTMAYER, Guilherme. Apontamos para uma cartografia: o cuir/queer como território em expansão. seLecT_ceLesTe, 07 de maio de 2018. Disponível em: https://select.art.br/apontamentos-para-uma-cartografia/ Acesso em: 13 mar. 2023.
    » https://select.art.br/apontamentos-para-uma-cartografia/
  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.
  • COSTA, Pêdra. The Kuir Sauvage. Revista concinnitas, Rio de Janeiro, ano 17, v. 01, n. 28, set. 2016.
  • COUTINHO, Eduardo Granja. Os cronistas de Momo: imprensa e Carnaval na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Tradução de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
  • INÁCIO, Emerson da Cruz. Algumas intersecionalidades e um texto “cuir” para chamar de (m)eu: Retratos da produção estética afro-lusobrasileira. Revista Via Atlântica, São Paulo, n. 33, p. 225-240, jun. 2018.
  • JOHNSON, E. Patrick. Estudos “quare” ou (quase) tudo o que sei sobre estudos queer aprendi com minha avó. In: MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020.
  • LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Tradução de Juliana Watson e Tatiana Nascimento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 320, set-dez. 2014.
  • MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpotela Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
  • MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
  • MORAIS, Fernando Luís de. Analítica Quare: como ler o humano. Salvador: Editora Devires, 2020.
  • NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.
  • PEREIRA, Bruno. Cartografias queer nas artes visuais: notas a partir da recepção da obra de Alair Gomes. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 28 n. 44, p. 69-92, jul./dez. 2022. ISSN-2448-3338. DOI: https://doi.org/10.37235/ae.n44.4 Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae Acesso em: 13 mar. 2023.
    » https://doi.org/10.37235/ae.n44.4» http://revistas.ufrj.br/index.php/ae
  • RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
  • SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
Editora responsável: Celina Nunes de Alcântara

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2023
  • Aceito
    05 Set 2023
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