Acessibilidade / Reportar erro

TERNURA IMENSA E DOLOROSA

Schwarcz, Lilia Moritz. . (2017). Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 648p

Lima Barreto é figura emblemática da literatura e da cultura brasileiras, em virtude de sua atuação enquanto afrodescendente, pobre, culto, deslocado de seu meio e lutando para se afirmar - ou se legitimar - como o grande escritor militante que era. Aproximar-se dessa obra em que vida e literatura se desdobram e se sobrepõem não é tarefa simples, pois a tentação é sempre a de cair na armadilha autobiográfica ou autoficcional, como forma de explicação simplista de uma vida-obra contraditória que se constrói no fio da navalha.

Fazer uma biografia de Lima é tarefa duplamente arriscada: cair nessa armadilha ou repetir o que a fortuna crítica numerosa do autor já disse e fazer algo além da valiosa biografia anterior de Francisco de Assis Barbosa.

Lilia Schwarcz aceitou correr o risco e se deu muito bem. Depois de mais de dez anos de pesquisa e estudo, nos entrega uma leitura efetivamente inovadora do escritor. O livro Lima Barreto: triste visionário é denso, múltiplo, apaixonado, rigoroso, erudito. Une a historiadora, a antropóloga e a crítica literária que daqui para frente a autora passa a ser também, sem dúvida nenhuma, tal é a maestria com que desvenda vida e obra, indissoluvelmente ligadas, em trânsito, diria ela, desse escritor que se deu inteiro à literatura (como exemplo, veja-se a leitura inteligente e sensível que faz de Clara dos Anjos, p. 401 e ss.). Por tudo isso, lê-se o livro como se fosse um belo e trágico romance, cujo personagem principal é Lima Barreto, é o Rio de Janeiro, é o Brasil. Até as substantivas notas podem ser lidas como narrativa paralela, que suplementa a narrativa maior, pois também despertam grande interesse; não são anotações meramente acadêmicas, a ser deixadas de lado na leitura. Daí a empatia imediata do leitor, que se entrega de imediato ao livro e passa a compartilhar os sonhos, os desejos e as frustrações desse personagem, emblemático, repito, que é Lima, o Rio, o Brasil, com a “ternura [...] imensa e dolorosa” (p. 422) que foi a de Lima, que é a de Lilia e passa a ser nossa no decorrer da leitura.

É difícil escolher um ponto que sintetize uma vida como a de Lima, uma biografia como a de Lilia, pois são múltiplos os caminhos que a vida e o texto abrem e percorrem. Ressalto, de início, a questão (auto)biográfica, da qual a biógrafa não poderia fugir em se tratando do escritor e sua obra. Não espere o leitor o biografismo do tipo a vida explica a obra. Nada disso, mesmo porque “Lima se transformava em seus próprios personagens assim como o oposto acontecia”, diz Lilia (p. 466). Com cuidado e minúcia, demonstra como se conectam, se chocam e correm paralelas e misturadas vida e literatura, a exemplo da análise que faz sobre “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e de Lima Barreto” (p. 467).

Para tanto, outra questão se coloca: a capacidade da autora de dar forma ao que se poderia chamar de uma poética do subúrbio, como lugar de atuação do escritor, ou melhor, um “entrelugar” onde se movimenta em meio aos “destroços como recordações” (Lima apud Lilia, p. 187). A história é para Lima como o foi para Benjamin ou o seu anjo: olha para frente com esperança e só vê ruínas em volta e para trás. A modernidade capenga que nos foi dado viver encontra em Lima um crítico feroz: se o subúrbio o enternecia (p. 187), mesmo nele se encontra deslocado, pois tem no centro uma sorte de ideal do ego que a um só tempo o atrai e o deixa de fora, o expulsa.

Uma estética popular se afirma em seus escritos, nos mostra Lilia. Se “a rua é seu elemento” (p. 301) é da rua que vem sua linguagem, desconstrutora do cânone vigente, é na forma da “redundância narrativa” (Silviano Santiago apud Lilia, p. 306) que essa linguagem encontra espaço para se legitimar enquanto língua literária que, por sua vez, criará uma “tradição afortunada” na literatura brasileira depois de Lima e até hoje. À redundância se une o “inacabamento” - em todos os sentidos da palavra - dos textos de Lima como forma de vida, como precariedade da existência e da escrita, em firme contraposição à forma helênica e bem-acabada dos textos de seus contemporâneos reunidos na ABL, instituição que atua como objeto estranho e familiar para Lima, desejado e repudiado, fantasma que o irá assombrar até o fim.

A questão racial, ponto alto da biografia, nunca foi tratada com tanto rigor crítico e teórico, em nenhum autor ou nenhuma autora da literatura brasileira como é nesse livro. Lilia, especialista maior e referência no assunto, trata-o longe dos lugares comuns com que é tratado, vai pouco a pouco entrelaçando dados e informações, mergulhando nos textos do escritor, em arquivos e jornais, para ir delicada, mas firmemente, traçando a história do racismo entre nós e da loucura que ele representa. A trajetória do personagem é dolorosa, a faca da biógrafa corta fundo nas instituições, na posição de cientistas, intelectuais e escritores, revelando “a falência dos projetos destinados ao bem-estar e riqueza pessoais, como também da nação” (p. 469). Texto, história e vida se entrelaçam mais uma vez em Lima Barreto, fazendo ressaltar o quanto a sua diferença de origem e cor se destacava “em meio a uma pretensa igualdade republicana” (p. 494). Mais um ponto para Lima, outro para Lilia.

A questão contemporânea nos traz Lima para hoje, Lilia o mostra com perspicácia e sutileza - “o coração ainda batia”, diz a citação final, de um poema de Oswald de Andrade (p. 511). A dolorosa constatação - o adjetivo se repete, persiste - nos traz de volta à realidade presente, à atualidade paradoxal da obra de Lima Barreto: quanto mais fincada no seu tempo, mais contemporânea a nós. Um país escravocrata, injusto, excludente e racista permanece - é a dor em última instância irrepresentável dos “humilhados e ofendidos” que continua a nos afetar e comover, convidando-nos, enfim, à ação de que Lilia M. Schwarcz nos dá brilhante exemplo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2017
  • Aceito
    02 Out 2017
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com