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CIDADE, HISTÓRIA E CULTURA: DOIS OLHARES SOBRE O RIO DE JANEIRO

Carvalho, Bruno. . (2013). Porous city: a cultural history of Rio de Janeiro. Liverpool: Liverpool University Press, 235p.
Hertzman, Marc. . (2013). Making samba: a new history of race and music in Brazil. Durham/London: Duke University Press, 364p.

A crônica é a polca da literatura”. Enunciada em tom de adágio popular, a frase de José Miguel Wisnik (2008: 29)Wisnik, José Miguel. (2008). Machado maxixe: o caso Pestana. São Paulo: Publifolha. sintetiza astutamente uma longa relação entre os fazeres musical e literário no Brasil. Para o crítico, tanto os comentários jornalísticos acerca do dia a dia quanto as melodias alegres que assomavam dos pianos teriam em seu estilo breve e gracioso a medida exata de um “caldo de cultura” responsável por conduzir, com “inequívoco sabor”, a nação brasileira à modernidade. Embora aspire a certa generalização, a afirmação de Wisnik é particularmente exemplar quando referida ao lugar e ao momento em que tais atividades ganharam autores do quilate de Machado de Assis e Chiquinha Gonzaga: o Rio de Janeiro no final do século XIX. Não obstante, precisá-la no espaço e no tempo não é reduzir sua voltagem heurística às dimensões de um “espírito do tempo” pontual e pretérito, mas sublinhar a importância dessa inflexão histórica na reorientação da produção cultural carioca nas décadas seguintes. O acirramento das forças políticas - culminando no colapso da monarquia e nas subsequentes bravatas republicanas -, as sucessivas reformas urbanas e a emergência das classes médias foram apenas alguns dos fatores que dariam novos contornos à palpitante cidade do Rio.

É justamente sobre esses fazeres e essa cidade que se detêm os livros Porous city, de Bruno Carvalho, e Making samba, de Marc Hertzman. Mais que simples afinidade temática, os dois historiadores compartilham o interesse pelo tema da modernização e modernidade brasileiras de acordo com premissas teórico-metodológicas que vinculam de maneira indissociável o espaço urbano, as práticas culturais e os regimes sociopolíticos de governo. Perfazendo um arco histórico de quase um século e meio - desde a chegada da família real portuguesa, em 1808, até os primeiros anos do regime ditatorial militar - os trabalhos recuperam os principais nós da história do Rio de Janeiro e procuram desatá-los conjugando e contrapondo perspectivas que vão além dos dados e versões “oficiais”, invariavelmente produzidos e enunciados pela voz do Estado. Em um tempo saturado de “agoras”, nas palavras de Walter Benjamin (2008)Benjamin, Walter. (2008). Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense., a “cultura” não se deixa apreender de uma só vez - ora como roupagem ideológica da burguesia, ora como flanco popular de resistência -, muito menos de uma vez por todas. Assim, pontos de vista de sujeitos de origens sociais distintas adquirem um valor analítico de primeira grandeza, fazendo dos próprios sentidos da história objetos de rica contestação e controvérsia.

Para os autores a cidade é tudo menos “palco” ou “pano de fundo” sobre o qual se desenrolam os eventos. Imaginada, construída, destruída, reconstruída e disputada, a ela é lograda a posição de “agente”, intervindo diretamente no conjunto de representações socioculturais que pululavam em suas ruas de capital. A imagem de uma “cidade porosa” onde os antagonismos sociais não se sedimentam, uma vez que permanecem em fluxo, põe em relevo contradições inerentes ao processo da modernização carioca, tais como o racismo, o machismo e a desigualdade, deslocando, portanto, o ideal de uma democracia racial pacífica e sincrética. Sem um “passado de limites étnicos definidos” e “permeada por uma história de fronteiras fluidas” (Carvalho, 2013Carvalho, Bruno. (2013). Porous city: a cultural history of Rio de Janeiro. Liverpool: Liverpool University Press.:10), a cidade possui em sua “porosidade” uma configuração espacial ímpar na qual a noção de uma cultura da “mescla” - concebida de forma organicamente integrada e tolerante por natureza - convive com disparidades socioeconômicas gritantes, mecanismos violentos de controle social e um incipiente mercado do entretenimento.

Nessa comissura entre história social, cultural e política, a música bem como a literatura não podem ser pensadas como valores em si, regidos por conceitos metafísicos internos, tampouco como o reflexo total da situação socioeconômica do país. Antes, ambas as atividades se constituem simultaneamente enquanto “linguagens” - engendrando um campo de significação com formas e conteúdos específicos e relativa autonomia - e “artefatos culturais”, estando em relação direta com as condições sociais e materiais de sua produção. Dessa maneira, divisões como música “erudita” e “popular”, ou “alta” e “baixa” literatura operam não como categorias analíticas, mas discursos políticos “nativos” construídos como auto-evidentes em dada realidade. A análise consiste, nos dois livros, na releitura das fontes culturais (escritas e sonoras) à luz da inter-relação entre seus produtores, consumidores e críticos. Especificamente no caso da música, questões como o perfil de recrutamento dos artistas, sua profissionalização e a autoria de suas canções entrelaçam, num mesmo compasso, experiências raciais, propriedade intelectual e a própria construção da nação. “Discordo fortemente da ideia de que expressões culturais reificadas são, por definição, despidas de sentidos políticos mais profundos”, pontua Marc Hertzman (2013: 8, tradução minha)Hertzman, Marc. (2013). Making samba: a new history of race and music in Brazil. Durham/London: Duke University Press.. A escolha em tratar a cultura como processo e não como “mercadoria” - commodity, em inglês - é o que nos permite aquilatar a relação entre cidade e produção cultural nas duas obras.

Sem perder de vista o efeito integrado do crescimento populacional do Rio de Janeiro e seus processos de estratificação social ao longo dos séculos XIX e XX, os dois autores empreendem, cada um a sua maneira, um tratamento fino de documentos variados - indo de boletins policiais a canções populares - e privilegiam trajetórias artísticas e institucionais envolvidas na criação de uma “cultura brasileira moderna”. Para Bruno Carvalho, literatos do porte de Manuel Antonio de Almeida, Lima Barreto, João do Rio e o próprio Machado de Assis são ombreados com nomes menos conhecidos tais como Alexandre José de Mello Moraes e Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa, escritores dedicados a narrar as peculiaridades geográficas da capital, bem como cinzelar alguns aspectos culturais e morais de sua população. Para Marc Hertzman, o esforço em reler as principais trajetórias do samba - como as de Pixinguinha e Donga - implicou a reavaliação crítica das fontes disponíveis acerca da história da música popular brasileira. Em ambos os casos, o cuidado em não considerar as fontes de forma hierarquizada, como se alguns autores fossem, de antemão, mais autorizados que outros, dá corpo à proposta de renovar a história cultural a partir de seus parâmetros epistemológicos.

O enfoque nos trânsitos e nas trocas entre sujeitos inscritos no espaço da cidade permitiu-lhes observar as parcerias travadas entre pessoas de classes sociais, “raças” e nacionalidades distintas. O emblemático caso de “Pelo telefone”, canção registrada por Donga em 1917, e a mítica Praça Onze, epicentro cultural do bairro carioca Cidade Nova até o início de década de 1940, figuram nas obras de Marc Hertzman e Bruno Carvalho como acessos privilegiados a esse mundo social poroso em que identidades e diferenças percorrem caminhos menos óbvios. Na visão dos autores, o samba, símbolo inconteste da “brasilidade”, não deve ser compreendido como expressão quintessencial da negritude - historicamente reprimida pela polícia e confinada no alto dos morros -, e sim como um campo discursivo complexo que seguiu interesses políticos multidirecionados. De maneira análoga, o estudo da antiga Praça Onze e de sua ocupação demográfica mostra que, além da maciça presença de africanos - atribuindo-lhe o epíteto de Pequena África -, um significativo contingente de imigrantes judeus oriundos de diversos países europeus começava a habitar aquelas imediações no início da década de 1920. Essa forma de dissecar as narrativas canônicas acerca da formação da “cultura brasileira”, desentranhando delas os entraves políticos, étnicos e sociais, bem como suas retraduções no plano artístico, dá aos trabalhos de Carvalho e Hertzman uma ossatura firme sem ser engessada e analiticamente potente sem recorrer a abstrações conceituais rarefeitas.

A estrutura dos livros obedece à proposta de seguir historicamente a cidade lendo-a a contrapelo. A cronologia historicista, adstrita à possibilidade de uma “reconstituição neutra dos fatos”, é preterida em prol da abordagem simbólica do passado sempre remissiva ao presente. Em Porous city, tanto a Introdução, “In search of things past”, como a conclusão, “The future revisited”, indicam que a história é tão artesanal quanto a própria cultura. Os seis capítulos do livro dedicam-se a mostrar, em última análise, que a construção do Rio de Janeiro em “capital do século XIX brasileiro” (Needell, 1993Needell, Jeffrey. (1993). Belle époque tropical. São Paulo: Companhia das Letras.: 19) culminou na sobreposição de espacialidades e temporalidades igualmente inventadas por seus citadinos. Sua cartografia é, portanto, sempre incompleta e bidimensional. Não por acaso a metáfora do palimpsesto talvez seja particularmente oportuna como ponto de partida para investigar “para onde foi o passado e para onde ele irá” (Carvalho, 2013Carvalho, Bruno. (2013). Porous city: a cultural history of Rio de Janeiro. Liverpool: Liverpool University Press.: 10, tradução minha): ele se presentifica nas coisas, nas pessoas e, ironicamente, na ausência de ambos.

Making samba é composto de modo a ressaltar a morfologia social da produção musical do Rio. Nos oito capítulos do livro, Marc Hertzman coloca as trajetórias de instrumentistas, compositores e empresários da música em primeiro plano sem deixar que a visada biográfica ofusque as mediações que tais sujeitos estabelecem uns com os outros, e todos eles com o espaço da cidade. Calibrado a dimensões institucionais, o estudo prosopográfico tem o objetivo de reapresentar o samba como gênero musical racializado “e” racializante, generificado “e” generificante, brasileiro e “abrasileirante”. Making samba inviabiliza pensarmos a história das relações raciais no Brasil independentemente dos planos simbólico e material da cultura, algo já prefigurado em seu título: o verbo fazer (to make, em inglês), que, conjugado no gerúndio, indica um processo inacabado e vivo como a própria música.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Benjamin, Walter. (2008). Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política São Paulo: Brasiliense.
  • Carvalho, Bruno. (2013). Porous city: a cultural history of Rio de Janeiro Liverpool: Liverpool University Press.
  • Hertzman, Marc. (2013). Making samba: a new history of race and music in Brazil Durham/London: Duke University Press.
  • Needell, Jeffrey. (1993). Belle époque tropical São Paulo: Companhia das Letras.
  • Wisnik, José Miguel. (2008). Machado maxixe: o caso Pestana São Paulo: Publifolha.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2016
  • Aceito
    31 Jan 2017
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