Acessibilidade / Reportar erro

A REVOLUÇÃO BURGUESA1 1 Aqui acrescido de uma introdução escrita por Silviano Santiago especialmente para esta edição de Sociologia & Antropologia, este artigo foi originalmente publicado como resenha de A revolução burguesa no Brasil (2 ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1976, 413 p.) na revista Contexto (n. 2, março, 1977), mas quis a fortuna que ficasse praticamente desconhecido pela crítica até hoje.

THE BOURGEOIS REVOLUTION

Resumo

Neste texto publicado em 1977 e escrito por sugestão do próprio Florestan Fernandes, mas pouco conhecido pela ampla fortuna crítica da obra do sociólogo paulista e praticamente inacessível hoje, Silviano Santiago apresenta leitura original de A revolução burguesa no Brasil. Apreendendo essa obra por prisma ainda hoje inovador e provocador, acentua a recusa de Florestan pela postura eurocêntrica ao rejeitar o raciocínio por conceitos tomados das ciências sociais para adotar o princípio operativo da diferença como força mobilizadora de novo discurso crítico da periferia na periferia. O texto é precedido de uma introdução em que, relendo a resenha 40 anos depois, o autor narra ao leitor contemporâneo seu encontro com Florestan nos Estados Unidos e o início de uma amizade.

Palavras-chave
A revolução burguesa no Brasil; Florestan Fernandes; Silviano Santiago; diferença; periferia

Abstract

In this text published in 1977 and written at the suggestion of Florestan Fernandes himself, yet little known to the ample critical literature on the work of the São Paulo sociologist and practically inaccessible today, Silviano Santiago presents an original reading of A revolução burguesa no Brasil. Approaching the work through a prism that remains just as innovative and provocative today, it foregrounds Florestan’s refusal to adopt a Eurocentric posture by rejecting the reasoning through concepts taken from the social sciences in order, instead, to adopt the operative principle of difference as a mobilizing force of a new critical discourse on the periphery in the periphery. The text is preceded by an introduction in which, rereading the review 40 years later, the author tells the contemporary reader of his encounter with Florestan in the United States and the beginning of a friendship.

Keywords
A revolução burguesa no Brasil; Florestan Fernandes; Silviano Santiago; difference; periphery

Só em Nova York e no ano de 1970 é que venho a conhecer o professor Florestan Fernandes pessoalmente. É-me apresentado pelo nosso conterrâneo Abdias do Nascimento. Eu fazia carreira no exterior. Apesar de estar contratado como associate professor pelo Departamento de Francês da State University of New York at Buffalo, mantenho interesse pelos estudos latino-americanos. Por essa razão, aproximo-me do jovem professor porto-riquenho Francisco (Paco) Pabón. Recém-contratado como assistant professor pelo Departamento de Espanhol e Português, a que eu não pertenço, ele quer criar na Universidade um Puerto-rican Studies Center nos moldes do Black Studies Program. Recentemente, Arcádio Diaz-Quiñones lembrou o no man’s land em que o estudante de graduação porto-riquenho vivia então: “No saber institucionalizado nas universidades dos Estados Unidos, o lugar de Porto Rico é muito incerto. Como não é nem ‘latino-americano’ nem ‘norte-americano’, termina por desaparecer. [...] Sua exclusão tem sido a norma”. Secundado pelos professores Larry Chisolm e Albie Michaels, Pabón submete o projeto do Centro a John P. Sullivan, decano de Arts & Letters. É aprovado, e a reitoria lhe concede três vagas (three lines, como dizem no jargão acadêmico). A primeira seria ocupada por ele, a segunda por Alfredo Matilla, e, para a terceira, interessa aos fundadores que, extramuros, se contrate um intelectual latino-americano reconhecido por sua participação política. Os tempos o reclamam.

Fico sabendo pelo Hélio Oiticica que o Abdias do Nascimento está autoexilado em Nova York. Indico-o a Pabón. Indicação aceita, Abdias é convidado a Buffalo, apresenta o CV, faz palestra e é contratado como professor. Tem ao lado a companheira, Isabel, e o filho Bira. Regresso definitivamente ao Brasil em 1974, e ele permanece em Buffalo até a aposentadoria em 1981, quando, de volta ao Brasil, retoma a carreira política.

Num dos primeiros encontros meus com Abdias, ainda em Nova York, ele se fez acompanhar do velho amigo Florestan, que estava para ocupar - ou já ocupava − cargo de visitante na Universidade de Toronto, no Canadá. O sociólogo tinha vindo a Nova York para ser homenageado pelo professor ítalo-argentino Gino Germani, na Universidade de Harvard. Não posso dizer se a cerimônia recobriu também a entrega do Anisfield-Wolf Book Award, prestigioso prêmio que Florestan recebe em 1970 (e não em 1969, como consta da biografia) pela publicação do livro The negro in Brazilian society.

A ida de Florestan a Harvard estava cercada por alguma formalidade. Talvez por indicação de Fernando Henriques Cardoso, ele procura o jornalista Fernando Pedreira, então adido de imprensa na Embaixada do Brasil e morador de um pequeno hotel da avenida Lexington, quase esquina da rua 57. Os dois viajam a Boston e são recebidos por Hélio Jaguaribe em Cambridge. Em livro intitulado Entre a lagoa e o mar. Reminiscências e publicado em 2016, Fernando Pedreira afirma que Hélio “lá estava como professor visitante, quase que na condição de exilado político; escrevera no N Y Times, pouco antes, um artigo violentíssimo contra o governo Castelo Branco, chamando o regime brasileiro de ‘colonial fascismo’, nada menos”. Do mesmo livro, reproduzo curta passagem em que o jornalista narra o que pode entreouvir por ocasião da reunião solene da congregação:

A láurea a Florestan Fernandes foi entregue [...] numa reunião solene da Congregação, rigorosamente vedada a estranhos e, especialmente, a jornalistas; mesmo em casos especiais como o meu, que era apenas, na ocasião, um mero acompanhante do mestre homenageado. [...] Ainda assim, entreouvi alguns bons trechos de discursos - o do Florestan e o do grande sociólogo de Harvard na época, um respeitadíssimo professor de nome grego,2 2 Teria sido Gino Germani o professor que saúda o homenageado ou a congregação teria convidado Ashley Montagu? À semelhança de Florestan, Ashley Montagu é aposentado compulsoriamente pela Rutgers University em 1955, aos 50 anos. A medida foi tomada em represália às suas ideias liberais e por libelos escritos por ele contra o senador McCarthy. Durante anos Ashley Montagu foi não só professor visitante em Harvard, Princeton, NYU e Santa Barbara, como também o presidente do júri que concedia anualmente o Anisfield-Wolf Book Award, recebido em 1970 por Florestan. Estabelece-se finalmente em Princeton. Se a hipótese for verdadeira, talvez seja essa a razão pela qual a sessão solene fora “rigorosamente vedada a estranhos e, especialmente, a jornalistas”. nome que agora me escapa. E muitos aplausos, risos, apartes. Posso pois testemunhar que a homenagem a Florestan foi calorosa, fraterna, eu diria até carinhosa.

Não há novidade em dizer que Florestan é pessoa modesta e de hábitos simples. Naquele período especial da carreira, quando é atingido pela aposentadoria compulsória, “com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço”, não quer se apresentar em público com a roupa que tinha trazido de país tropical. Como eu vivia nos Estados Unidos desde 1962, tinha me acostumado a comprar roupas de inverno, de ótima qualidade e a preços baixíssimos, no que hoje se chama de outlets, mas que, naquela época, ficavam escondidas no basement das grandes lojas. Era preciso fuçar. Ofereço-lhe minha ajuda na compra do enxoval de professor brasileiro homenageado no Primeiro Mundo. Aceita. E daí nasce uma boa camaradagem que se prolonga inicialmente até o ano de 1976, quando volto a encontrá-lo pessoalmente, agora em Austin. Já professor na PUC-Rio, recebo convite da Universidade do Texas para dar aulas de literatura brasileira.

O professor Richard Graham, sensibilizado por Carlos Guilherme Mota e Janice Theodoro da Silva, então professores visitantes, organiza um evento em torno da publicação recente de A revolução burguesa no Brasil. Visam tirar partido do retorno de Florestan aos Estados Unidos, agora como convidado da Yale University. Não consegui a documentação sobre o evento. Se não me falha a memória, encontraram-se em Austin, além dos dois professores paulistas já citados, o sociólogo homenageado, Maria Emília Viotti da Costa (então em Yale) e Anita Novinsky. Sandra Lauderdale, pós-graduanda em história, cuidou da organização. Eu mantinha boa camaradagem com o grupo uspiano, mas − não fosse a sugestão feita pelo Florestan, subscrita pelo Carlos Guilherme e a Janice − o literato não teria participado do evento realizado no respeitado Latin American Institute. Apresento aos presentes o resumo da leitura cuidadosa que tinha feito da Revolução burguesa no Brasil. As muitas anotações no livro da Zahar, que guardo ainda, não me desmentem. O texto - reproduzido a seguir − é lido em plenário e logo enviado ao Jaime Pinsky com vistas à sua possível publicação na revista Contexto. Sai no número de março de 1977.

Às vésperas do ano 2000, tendo sido encarregado pelo Itamaraty de organizar alguma publicação que comemorasse a efeméride, submeti-lhe o projeto de antologia intitulado Intérpretes do Brasil. Selecionei, editei e prefaciei, com a ajuda de colegas da Uerj, os três volumes em papel bíblia, tendo escolhido a Revolução burguesa no Brasil para o grand finale. Homenagem ao sociólogo já falecido e ao amigo. A bem da verdade, acrescento que em todo Natal subsequente aos nossos encontros no exterior recebia pelo correio um singelo cartão de Natal assinado por ele.

I
Cartão de Natal enviado por Florestan Fernandes

Ao reler hoje a resenha, descubro que lá está o jovem literato dos anos 1950 que, ainda aluno da UFMG, teve a orelha puxada por mestre Francisco Iglésias. Segundo ele, eu me preocupava demais com os problemas estéticos, informado pelas sugestões de leitura teóricas dadas pelo Jacques do Prado Brandão. Minimizava o estudo da história social e econômica do Brasil e, além do mais, favorecia uma visão cosmopolita de história que minha paixão na juventude, o cinema, necessariamente inspira. Puxão de orelha aceito, distancio-me das leituras de cineclubista e das especializadas em literatura para tornar-me autodidata em disciplinas afins. Combino como posso - os artistas não são, foram e serão sempre diletantes? − áreas distintas do conhecimento. As décadas de 1960 e 1970 foram definitivas nessa formação anfíbia.

Nas entrelinhas da resenha de 1977, percebo minhas leituras de Jacques Derrida e dos pós-estruturalistas franceses, iniciadas após o doutorado na Sorbonne, em abril de 1968. Refiro-me, em particular, à aproximação paralela da sociologia pelo viés da “desconstrução da filosofia ocidental”, expressa no momento em que acentuo e reafirmo o repúdio por Florestan da postura eurocêntrica (só por má-fé é que o repúdio será confundido com adesão ao nacionalismo). Postura ainda expressa quando assinalo que o sociólogo rejeita o raciocínio por conceitos tomados das ciências sociais para adotar o princípio operativo da diferença (da “lógica da diferença”, e não da repetição do mesmo, repetição degradada por ser apriorística e em segundo grau) como força mobilizadora de novo discurso crítico da periferia na periferia. Percebo ainda como me posiciono discretamente a favor do modo como o sociólogo se safa - na tradição da “teoria da dependência”, para me valer do valor de época − da categoria de “homens livres na ordem escravocrata”, lançada por Caio Prado Jr. em Formação do Brasil contemporâneo e retomada pela cientista social Maria Sylvia de Carvalho Franco e pelos críticos literários Antonio Candido e Roberto Schwarz.

Por último, detecto a adesão do artista que existe em mim ao decálogo tropicalista, que é contemporâneo da ditadura militar. Assumo a crítica nietzschiana ao “ressentimento”, expressa em Genealogia da moral e explorada radicalmente no Crepúsculo dos ídolos. “A própria dor é uma felicidade”, retomo de Losango cáqui o verso de Mário de Andrade e sugiro a leitura da carta que ele escreve a Carlos Drummond em 10 de novembro de 1924.3 3 Como a matéria é pouco estudada, reproduzo Nietzsche: “O artista trágico não é nenhum pessimista. Ele diz justamente sim a tudo que é digno de questão e passível mesmo de produzir terror, ele é dionisíaco ...”. Não resisto e copio trecho de carta escrita por Mário: “No Losango cáqui eu escrevi um pensamento que não é a síntese mas é a resultante mais feliz da minha maneira de ser feliz: ‘A própria dor é uma felicidade’. Pra felicidade inconsciente por assim dizer física do homem comum qualquer temor qualquer dor é empecilho. Pra mim não porque pela minha sensibilidade exagerada, pela qual eu conheço por demais, a dor principia, a dor se verifica, a dor me faz sofrer, a dor acaba, a dor permanece na sua ação benéfica histórica moral, a dor é um dado de conhecimento, a dor é uma compreensão normalizante da vida, a própria dor é uma felicidade”. Salto algumas cartas de Mário a Drummond e volto a copiar: “Você por acaso já desassociou a palavra felicidade da palavra prazer e a palavra infelicidade da palavra dor ? Desassocie e você compreenderá o que se passa em mim. O prazer e a dor são concomitâncias ou melhor são resultantes da felicidade e da infelicidade porém nunca jamais em tempo algum a felicidade e a infelicidade resultaram do prazer ou da dor”. Retomo os versos do pernambucano Manuel Bandeira, autor não só do sentido e melancólico “Pneumotórax”, como também do poema “Não sei dançar”: “Uns tomam éter, outros cocaína. / Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.”

A lição nietzschiana assumida por mim advém da leitura de Gilles Deleuze que sublinha no filósofo alemão a rejeição - a marteladas, Wie man mit dem Hammer philosophiert − do pessimismo tomado como ressentimento, e pregado por Schopenhauer e Wagner. A atitude filosófica nietzschiana se torna evidente na dupla afirmação da Vida. Sim à dor, sim ao prazer. Leia-se o belo La force majeure, de Clément Rosset. Ou os romances Em liberdade (1981) e Stella Manhattan (1985), de intenção mais modesta.

2 a e b
Marginália do exemplar de Silviano Santiago de A revolução burguesa no Brasil

2
Capa da revista Contexto, n. 2, março de 1977

Louve-se A revolução burguesa no Brasil por ser um livro que traz o desejo de fazer acompanhar a descrição sociológica de um aparato teórico. Louve-se, ainda e sobretudo, Florestan Fernandes por ele ter-se dado conta de que o aparato não podia vir-de-fora sem se tomarem as devidas preocupações epistemológicas (heurísticas, como quer ele) no processo de adaptação das categorias de análise às nossas expectativas e à nossa realidade. Assim é que todo o sistema conceitual que arma para a apreensão de uma dada realidade brasileira que surge no século XIX, em flagrante decorrência de um processo de transformação básico na nossa história, a independência, consegue uma determinada especificidade tanto nos seus elementos estruturais quanto nos dinâmicos, vale dizer tanto na sua espacialidade estrutural quanto na sua temporalidade energética. A espacialidade específica - e daí a necessidade de rever o modelo importado - seria a de uma burguesia nascida de uma economia capitalista, dependente e subdesenvolvida. E a temporalidade específica seria o retardamento. As coisas começam a significar semelhantemente, mas em diferença e retardamento. E é dessa nova e dupla constante que advém a crítica maior que faz Florestan Fernandes à revolução burguesa no Brasil: ela “encarna atualmente a própria contrarrevolução” (p. 295).

Aliás, desde a página de abertura Florestan Fernandes lamenta que ainda não se tivesse criado entre os nossos cientistas sociais “uma perspectiva de interpretação histórica livre de etnocentrismos, aberta a certas categorias analíticas fundamentais e criticamente objetivas” (p. 15).

Para dar início à criação de tal sistema, ou possíveis outros sistemas decorrentes, é que Florestan Fernandes teve de estabelecer uma tipologia sociológica para definir o lugar onde entra e encaixa o seu discurso. Assim é que, num primeiro e definitivo gesto, abandona tanto os casos clássicos de análise da sociedade burguesa, naturalmente europeucêntricos, como também os casos “atípicos”, o japonês e o alemão, para se dedicar a este curioso espécimen (dependente, subdesenvolvido e imperializado) que no próprio movimento do estabelecimento da tipologia vai desvelando sua temporalidade própria: é o terceiro e último a chegar. Acredita Florestan Fernandes que “só assim se pode colocar em evidência como e por quê a revolução burguesa constitui uma realidade histórica peculiar nas nações capitalistas dependentes e subdesenvolvidas, sem se recorrer à substancialização e à mistificação da história”. Acreditamos, portanto, que A revolução burguesa no Brasil, por trazer uma tipologia social prévia a qualquer discussão epistemológica das categorias e por implicar uma crítica antropológica-sociológica da história, possa ter um valor de modelo para a análise de sociedades que possivelmente tenham algo em comum com a descrita.

Mas não se creia que o gesto de livrar-se dos esquemas clássico e atípico é o gesto da tabula rasa e do isolamento teórico e do nacionalismo ufanista. Pelo contrário, tratando-se de interpretação de uma sociedade dependente, o sociólogo teria de usar necessariamente certas categorias de pensamento que naturalmente mostrassem a ligação, a dependência, mas que ao mesmo tempo dessem conta de todas as forças, digamos, progressistas, que tentavam neutralizar a dependência. Tomemos como exemplo a categoria principal, a de burguês. Florestan Fernandes logo no início do seu livro critica a maneira como tem sido compreendida a categoria entre nós. Ou de maneira demasiado livre, ou em sentido muito estreito. No primeiro caso, teríamos sociedade burguesa no Brasil desde a implantação e a expansão da grande lavoura exportadora, vale dizer desde os tempos coloniais. Já no segundo caso, isto é, no sentido estreito, encontra-se a atitude de afirmar que o Brasil nasceu “fora e acima dos marcos histórico-culturais do mundo social europeu”. E conclui Florestan: “os dois procedimentos parecem-me impróprios e extravagantes”.

A categoria de burguês vai sendo então esvaziada parcialmente de determinada carga semântica expressa pelos modelos clássico e atípico, e preenchida por outra, dada pela nossa perspectiva, pois burguês e burguesia - continua o texto de Florestan - são “entidades que aqui aparecem tardiamente, segundo um curso marcadamente distinto do que foi seguido na evolução da Europa, mas dentro de tendências que prefiguram funções e destinos sociais análogos tanto para o tipo de personalidade quanto para o tipo de formação social”. E em lugar de datar o surgimento do burguês no período colonial, acata parte da tese, mas a acata compreendendo-a com a categoria de repressão, pois é ela que lhe permite que operacionalize certos e poucos elementos da sociedade colonial sem subscrever à tese global. Prestemos atenção em como Florestan formula a condição da burguesia no período colonial: “Pela própria dinâmica da economia colonial, as duas florações do ‘burguês’ permaneceriam sufocadas [grifo nosso], enquanto o escravismo, a grande lavoura exportadora e o estatuto colonial estiveram conjugados”.

A independência possibilita e deixa falar esse elemento recalcado no período colonial, mas que ali estava, mas só que em silêncio. Mas se o deixa falar, não o deixa falar ainda a plenos pulmões, pois mesmo no Império o burguês ainda não é uma “figura dominante ou pura”, e nem consegue ele se articular em “força socialmente organizada, consciente e autônoma”. E continua Florestan Fernandes: “Mas (o burguês) erigiu-se no fermento daquele espírito revolucionário, de que fala Nabuco, que “a sociedade abalada tinha deixado escapar pela primeira fenda revolucionária dos seus alicerces”. As páginas que Florestan Fernandes dedica a essa fenda revolucionária, ao espírito liberal no século XIX brasileiro, são perfeitas e já se dão como antológicas. Preciso é o seu método de apreensão de um “elemento puramente revolucionário e outro elemento puramente conservador” como fios que tecem as possibilidades de atuação social das elites nativas.

Já por esse ligeiro resumo que fizemos do percorrer da categoria burguês por três séculos de nossa história, podemos dar conta de que a principal pergunta pode ser posta: existe ou não uma revolução burguesa no Brasil? Responde o sociólogo: “A questão estaria mal colocada, de fato, se se pretendesse que a história do Brasil teria de ser uma repetição deformada e anacrônica das histórias daqueles povos. Trata-se ao contrário de determinar como se processou a absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura”.

Deixando de lado o estudo desse caso concreto, voltemos agora ao discurso teórico que se lhe segue dentro da organização estrutural do livro. Para dar conta do duplo movimento a que nos estamos referindo e que poderia ser sumariamente e imprecisamente definido pelo par de oposições dependência/independência, Florestan Fernandes vai trabalhar com as categorias estruturais e semânticas de repetição e diferença. No processo de repetição, existe por um lado uma atitude de absorção e de cópia, e que redunda, do ponto de vista semântico, em silêncio significativo para o sociólogo. No processo de diferença, existe transgressão a valores estabelecidos e imperialistas, e do ponto de vista semântico, significação.

Leiamos Florestan Fernandes:

O que a parte da periferia “absorve” e, portanto, “repete” com referência aos “casos clássicos”, são traços estruturais e dinâmicos essenciais, que caracterizam a existência do que Marx designava como uma economia mercantil, a mais-valia relativa etc. e a emergência de uma economia competitiva diferenciada ou de uma economia monopolista articulada etc. Isso garante uniformidades fundamentais, sem as quais a parte dependente da periferia não seria capitalista e não poderia participar de dinamismos de crescimento ou de desenvolvimento das economias centrais.

A essa “uniformidade fundamental” de dois elementos estranhos, mas dependentes, Florestan vai opor:

No entanto, a essas uniformidades - que não explicam a expropriação capitalista inerente à dominação imperialista e, portanto, a dependência e o subdesenvolvimento - se superpõem diferenças fundamentais, que emanam do processo pelo qual o desenvolvimento capitalista da periferia se torna dependente, subdesenvolvido e imperializado, articulando no mesmo [grifo nosso] padrão as economias capitalistas centrais e as economias capitalistas periféricas.

E conclui: “Em um sistema de notação marxista, é a estas diferenças (e não àquelas uniformidades) que cabe recorrer, para explicar a variação essencial e diferencial, isto é, o que é típico da transformação capitalista e da dominação burguesa”.

O que fizemos foi ler um parágrafo da p. 291 de A revolução burguesa no Brasil, e a nossa contribuição foi a de pontuar o texto para melhor extrair as categorias filosóficas que o sociólogo operacionalizou e apresenta. São elas as de repetição e de diferença, pertencentes a uma lógica do mesmo (e não a uma lógica da alteridade), enquanto as possibilidades de significação repousam nos elementos diferenciais. Acreditamos ainda que o desejo global do sociólogo é o de ler estruturas de transformação que se encontram presas a um mesmo sistema.

Ao tentar avançar este nosso discurso teórico, paralelo ao de Florestan Fernandes, é que somos levados a colocar em discussão a necessidade (ou não) de se estabelecer uma diferenciação precisa e operacionalizável (ou não) entre transformação e ruptura para se compreender o processo geral da história econômica, política e social brasileira. Pensamos que o modelo de análise interpretativa, que estivemos apressadamente resumindo não dava conta dos processos de ruptura, já que eles não se situam dentro de uma lógica do mesmo, da continuidade, da evolução e da linearidade, mas instauram um espaço difícil de ser definido abstratamente e que é o espaço onde circulam o anarquismo da reviravolta no poder e a dessacralização dos valores sociais estabelecidos. Dentro do pensamento que estamos avançando agora, um problema bem mais complexo se coloca que é o de saber se a categoria de “síntese” em A revolução, visivelmente calcada (ou não) em Marx, daria conta de um processo de ruptura ou se seria necessário dizer que o sociólogo está apelando para outro sistema filosófico? ou ainda seria o caso de se redefinir como o sociólogo apropriou e recuperou a categoria de síntese hegeliano-marxista dentro de uma problemática da evolução linear.

De qualquer modo, pode-se dizer, a favor do sociólogo Florestan Fernandes, que ainda não houve um processo básico e definitivo de ruptura dentro da sociedade brasileira e que, portanto, qualquer especulação teórica sobre processos de ruptura ficaria inexoravelmente circunscrita a discursos utópicos. E Florestan, quer-nos parecer, em tempo algum esteve interessado na estrutura e na força do discurso utópico entre nós, ou seja, no estudo da relação precária entre esse discurso e a realidade. Quer dizer: na possibilidade de se organizar uma utopia revolucionária que tome e envolva a realidade numa gigantesca e aberrante racionalidade. O sociólogo, sabemos, só se interessa pelos casos concretos, e obviamente esse discurso utópico nunca se concretizou entre nós. Mas seria o caso de se perguntar se ele, na sua circularidade quase imaterial e na sua economia de derrota, não teria sido uma força progressista tão propulsora quanto o liberalismo o foi - na leitura de Florestan - para o século XIX.

A ausência, portanto, nesse livro, de considerações e análises de práticas discursivas ao lado da interpretação do concreto acarreta talvez algumas lacunas no levantamento propriamente histórico do período colonial. É assim que compreenderíamos em livro tão abrangente a ausência na análise de Florestan da economia da mineração, já que ele centralizou toda sua atenção na economia da agricultura. Poderíamos aventurar a hipótese de que é na economia da mineração que surgem os discursos mais audaciosos do ponto de vista revolucionário, e é lá que se criam as utopias mais próximas de se imporem à realidade.

Talvez essa ausência seja corroborada por uma nota pessimista que perpassa todo o livro com relação ao processo atual da revolução burguesa. Na p. 296 escreve Florestan: “Torna-se, assim, muito difícil deslocar (as burguesias) politicamente, através de pressões e conflitos mantidos ‘dentro da ordem’; e é quase impraticável usar o espaço político, assegurado pela ordem legal, para fazer explodir as contradições de classe, agravadas sob as referidas circunstâncias”. Estaria nos conduzindo o sociólogo a pensar que as formas de abertura progressista, encontradas no século XIX e explicadas pela fenda de Joaquim Nabuco, não estariam encontrando o seu correspondente estrutural dentro da sociedade brasileira atual? Ou seria mais acertado e mais ousado dizer que os elementos que levam a uma transformação ainda existem, mas não os que levam a uma ruptura? E, portanto, em lugar de cair o pessimismo sobre o processo atual de transformação, ou seja, sobre os personagens do livro, recairia antes ele sobre o narrador, isto é, o sociólogo? Estaríamos, portanto, diante de um pessimismo mais profundo e mais radical, pois tentaria ele explicar um cansaço ideológico. Cansaço ideológico do sociólogo (brasileiro) reduzido a explicar apenas as formas reacionárias de um pensamento e de uma ação de personagens que apenas e só nos seus limites chegam a ser progressistas.

NOTAS

  • 1
    Aqui acrescido de uma introdução escrita por Silviano Santiago especialmente para esta edição de Sociologia & Antropologia, este artigo foi originalmente publicado como resenha de A revolução burguesa no Brasil (2 ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1976, 413 p.) na revista Contexto (n. 2, março, 1977), mas quis a fortuna que ficasse praticamente desconhecido pela crítica até hoje.
  • 2
    Teria sido Gino Germani o professor que saúda o homenageado ou a congregação teria convidado Ashley Montagu? À semelhança de Florestan, Ashley Montagu é aposentado compulsoriamente pela Rutgers University em 1955, aos 50 anos. A medida foi tomada em represália às suas ideias liberais e por libelos escritos por ele contra o senador McCarthy. Durante anos Ashley Montagu foi não só professor visitante em Harvard, Princeton, NYU e Santa Barbara, como também o presidente do júri que concedia anualmente o Anisfield-Wolf Book Award, recebido em 1970 por Florestan. Estabelece-se finalmente em Princeton. Se a hipótese for verdadeira, talvez seja essa a razão pela qual a sessão solene fora “rigorosamente vedada a estranhos e, especialmente, a jornalistas”.
  • 3
    Como a matéria é pouco estudada, reproduzo Nietzsche: “O artista trágico não é nenhum pessimista. Ele diz justamente sim a tudo que é digno de questão e passível mesmo de produzir terror, ele é dionisíaco ...”. Não resisto e copio trecho de carta escrita por Mário: “No Losango cáqui eu escrevi um pensamento que não é a síntese mas é a resultante mais feliz da minha maneira de ser feliz: ‘A própria dor é uma felicidade’. Pra felicidade inconsciente por assim dizer física do homem comum qualquer temor qualquer dor é empecilho. Pra mim não porque pela minha sensibilidade exagerada, pela qual eu conheço por demais, a dor principia, a dor se verifica, a dor me faz sofrer, a dor acaba, a dor permanece na sua ação benéfica histórica moral, a dor é um dado de conhecimento, a dor é uma compreensão normalizante da vida, a própria dor é uma felicidade”. Salto algumas cartas de Mário a Drummond e volto a copiar: “Você por acaso já desassociou a palavra felicidade da palavra prazer e a palavra infelicidade da palavra dor ? Desassocie e você compreenderá o que se passa em mim. O prazer e a dor são concomitâncias ou melhor são resultantes da felicidade e da infelicidade porém nunca jamais em tempo algum a felicidade e a infelicidade resultaram do prazer ou da dor”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com