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O CINEMA ENCLAUSURADO E A CASA COMO REFÚGIO* * Este ensaio é fruto do debate do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizado no dia 8 de outubro de 2020, intitulado “Cinema e pandemia: reflexões sobre Feito em casa”. Agradecemos a Felícia Picanço pelo convite, pela mediação e pela ideia do evento. Sobre Feito em casa (Homemade): “Nessa eclética seleção de curtas, cineastas do mundo todo mostram sua criatividade durante o isolamento imposto pela pandemia da Covid-19”; uma criação de Fabula e The Apartment Pictures, lançada em 2020.

Feito em Casa . Criação: Larraín, Juan de Dios; Larraín, Pablo; Mieli, Lorenzo. . Direção: Ly, Ladj. . [S. l.]: Fabula; Roma: The Apartment Pictures, 2020. 17 vídeos (138 min). Disponível em <>. Acesso em: 27 dez. 2022.

“O que é essencial?” A pergunta feita pela adolescente escocesa em Ferosa1 1 Curta realizado por Ferosa Mackenzie & David Mackenzie. , um dos 17 curtas que compõem a produução planetária de nome Feito em casa (no original Homemade ) (Feito…, 2020Feito em Casa. Criação: Juan de Dios Larraín; Pablo Larraín & Lorenzo Mieli. Direção: Ladj Ly et al. [S. l]: Fabula; Roma: The Apartment Pictures, 2020. 17 vídeos (138 min). Disponível em <Disponível em https://www.netflix.com/br/title/81285512 >. Acesso em: 27 dez. 2022.
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), de 2020, poderia inspirar reflexões para o mundo e para a vida, mesmo em épocas ditas “normais”. oderia também servir para produções cinematográficas em grande escala, afinal, o que seria essencial para fazer filmes? Respostas infinitamente possíveis certamente ganham nova gravidade quando o mundo e o cinema se veem atingidos por cirses de diversas ordens em decorrência do coronavírus - convertido, na antologia, em dispositivo.

Refletir e escrever sobre Feito em casa envolve o esforço de transformar imagens e sentimentos da pandemia em palavras, algo que nos abre a possibilidades criativas relativas ao funcionamento de uma experiência em rede nunca antes sentida: conexões de um trauma coletivo. Do Japão ao Chile, passando pela Alemanha, México, Estados Unidos e Líbano (entre 11 países ao todo), a covid-19 representada nesse título da Netflix nos coloca diante de janelas de fabulação que entram em contato direto e subjetivo com o impacto, que é ao mesmo tempo global e local, comum e particular.

Ao fazermos uma rápida análise da recepção de Feito em casa, notamos que parte da crítica relacionou os métodos de construção do dispositivo fílmico - o vírus - a regras já usadas por movimentos “anti-industriais” de outrora, como o Dogma 95 e seu manifesto/“Voto de castidade”, ou a máxima cinemanovista “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”2 2 Para mais detalhes, ver Steve Rose (2020), Jorge Pereira Rosa (2020) e Miguel Barbieri (2020). . Não à toa, o teaser nos apresenta a obra da seguinte forma: “Uma compilação de curtas de cineastas renomados de todo o mundo, filmados durante a quarentena, sem equipe, sem orçamento, só criatividade” (Homemade…, 2020Homemade | Official Trailer | Netflix. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (1 min). Publicado pelo canal Netflix. Disponível em <Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9JaGmaiKRLA >. Acesso em 11 nov. 2020.
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, tradução nossa).

A estética do claustro, como poderíamos chamar, também fez boa parte da crítica internacional acionar o termo personal diaries, ou intimate diaries, em análises sobre as obras da coletânea3 3 Verificar, por exemplo, Dray (2020), Stiff (2020), sites como Rotten Tomatoes <https://www.rottentomatoes.com/tv/homemade/s01>, entre outros. . Vale notar que algumas matérias, ao enfatizar ideias de testemunho e memória, fazem regular menção às “histórias pessoais4 4 Verificar, entre outros, Rahul Desai (2020), Patrick Cremona (2020), Demetrios Matheou (2020) e Álvaro Cueva (2020). . Junto a isso, em sinopses oficiais da série, pode-se ler que “filmadas apenas com equipamentos encontrados em casa, as histórias [são compostas por] diários íntimos do dia-a-dia dos cineastas” (Acclaimed…, 2020Acclaimed filmmakers from around the world join together for “Homemade,” a collection of short films created while sheltering at home. (2020). Netflix, 23 jun. Entertainment. Disponível em <Disponível em https://about.netflix.com/en/news/acclaimed-filmmakers-from-around-the-world-join-together-for-homemade-a-collection-of-short-films-created-while-sheltering-at-home >. Acesso em: 26 dez. 2022.
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, tradução nossa).

Tais concepções poderiam ser associadas a ensaios vanguardistas como os de Jonas Mekas. Filmes-diário do lituano-americano são interpretados como construções “amadoras” - em sentido amoroso, não comercial - autorrepresentadas justamente como testemunhos ou narrativas do vivido5 5 Para mais detalhes, conferir Ikeda (2012), Gutfreind & Valles (2017), entre outros. . Certa ironia dessas correlações estaria no fato de que, na versão pandêmica de 2020, as produções caseiras de Homemade foram distribuídas por uma das maiores plataformas de streaming por assinatura do globo.

Se atentarmos aos títulos e aos créditos que acompanham os curtas, veremos que os próprios diretores e diretoras afirmam terem feito os filmes em casa, de casa e ao modo caseiro. Nesse sentido, o dispositivo vírus/pandemia parece abrir duas frentes, uma estética e outra ética.

O primeiro caso parece em consonância com o modelo comentado acima: Feito em casa pode significar muitas coisas, dentre as quais, que grandes nomes do cinema se comprometeram com a realização de curtas em aproximação maior aos predicados de um ensaio do que à obra acabada - como um livro ou um longa-metragem (Barthes, 2004Barthes, Roland. (2004). O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes.). Esse “inacabamento” ou amadorismo (no sentido amoroso referido acima) pode significar que as pequenas fitas foram feitas num gesto de perseverança num momento em que produções fílmicas tiveram que ser interrompidas, e que a indústria e salas de cinema se encontravam vazias. Com isso, é possível reconhecer que grandes cineastas realizaram obras curtas, possíveis, com equipe e estética caseiras que podem ser recebidas reciprocamente com o amor de quem, como disse Antoine Hennion (2011Hennion, Antoine. (2011). Pragmática do gosto. Desigualdade & Diversidade - Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, 8, p. 253-277.), doa, oferece (e reconhece) de si ao objeto amado.

Quanto à frente ética, verifica-se um consenso em relação à adesão ao confinamento tanto das produções quanto dos(as) cineastas envolvidos(as), em oposição a ideais negacionistas de políticos e grupos sociais6 6 Sobre o tema, conferir Szwako (2020). . Nessa mesma frente, também se destaca uma condição privilegiada (e aqui lembramos os inúmeros debates, que envolvem classes sociais e identidades, sobre quem pôde, de fato, praticar a quarentena7 7 Verificar, por exemplo, Lima (2020). ).

Nesse sentido, num diálogo reflexivo com a crítica, observamos que, além do amadorismo dos diários íntimos, o “privilégio” foi outra categoria mencionada regularmente em matérias. Em outras palavras, não foram poucas as leituras sobre os “luxos, privilégios e facilidades”8 8 Entre outras críticas, verificar Peter Bradshaw (2020), Marcio Melo (2020) e Juan Pablo Cinelli (2020). de cineastas como Rachel Morrison, que fez, ela mesma, uma autorreflexão de sua condição em Os afortunados (The lucky ones)9 9 Para mais detalhes, ver Feito… (2020). . Igualmente, outra questão a se considerar, junto aos textos críticos, está no filme de Ladj Ly (Clichy-Montfermeil): “São tempos duros e ruins, mas para quem?”10 10 Novamente para mais detalhes, ver Feito (2020).

Com essas breves impressões em mente, daremos início às nossas considerações sobre os curtas. Assinalamos, antes, que, costuradas umas às outras, ao modo de uma colcha de retalhos, as obras são múltiplas e impactam por sua diversidade - por isso, também, a impossibilidade de adentrar cada uma detidamente. Não obstante, parece-nos possível agrupá-las em categorias ou repertórios não estanques.

Dos filmes-carta, como documentos imaginados a visarem o futuro/posteridade retomando memórias passadas, estariam os trabalhos do cineasta chinês Johnny Ma, que, enquanto prepara bolinhos fritos com a família do México, escreve para a mãe - improvável destinatária da mensagem; e o da já mencionada Rachel Morrison, que, num metadiálogo com sua própria infância, narra uma carta-poema para o filho, na tentativa de extrair do trauma momentos de esperança. Há aqueles que poderíamos chamar de alucinatórios, principalmente os que mostram a solidão de adultos confinados, como o thriller psicanalítico de Sebastian Schipper e o thriller insone de Kristen Stewart. Nesta categoria, ainda poderíamos visualizar as peças de/com crianças, também em estado solitário, rodadas por Natalia Beristáin e Nadine Labaki & Khaled Mouzanar. Como fábulas apocalípticas/impressionistas, a abrir mão do modelo documental, estariam as produções de Maggie Gyllenhaal, Antonio Campos e Naomi Kawase. Há também os que tendem ao cômico, variando entre a sátira hipotética - como no encontro promovido por Paolo Sorrentino entre bonecos que interpretam o papa e a rainha da Inglaterra num improvável encontro amoroso -, as desventuras remotas de amantes e casais (Pablo Larraín e Rungano Nyoni) e o musical político, como visto no curta de Sebastián Lelio, em que se escuta ao final o som de Chile Despertó - manifestação democrática de março de 2020. Verifica-se, então, que a força de Feito em casa está na soma dos fragmentos desse caleidoscópio e em suas possibilidades de viver a quarentena: como filha(o), criança, mulher, marido, amante, mãe, pai, irmão, irmã, solteiro(a), nos quatro continentes.

Dentro da variação, escolhemos adentrar cinco filmes como universos particulares. A motivação para tal escolha se deu pela via da subjetivação, envolvendo nossa apreciação ético-estética, também múltipla, ao partir de duas perspectivas que se juntam a quatro mãos.

“O inquietante”, afirma Freud (2010Freud, Sigmund. (2010). O inquietante. In: Freud, Sigmund. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, p. 329-376. (Sigmund Freud Obras Completas, v. 14).: 331) em seu ensaio de 1919, “é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar”. Esse sentimento do unheimliche parece guiar a visualização dos primeiros curtas que exercitaremos cotejar: o da diretora mexicana Natalia Beristáin (Espacios) e o de Nadine Labaki & Khaled Mouzanar, em Beirute, este último intitulado Mayroun and the unicorn. Ambos os filmes têm como personagens centrais meninas de aproximadamente 5 anos em seus espaços domésticos - o primeiro com foco em atividades montadas ao longo de diferentes dias, e o segundo filmado no meio de uma única noite em que a criança desperta e o pai a acompanha com a câmera. Inicialmente, vale destacar que as meninas, em algum momento da narrativa, ensaiam sair do claustro ou indicam a impossibilidade de sair: a pequena Jacinta tenta abrir o cadeado de casa, primeiro na ponta dos pés e depois com o esforço de puxar um banco, se machucar e chorar; e Mayroun, no meio de uma brincadeira de estar presa e longe de sua família, grita “me deixa sair!” Nessas cenas, a casa, antes ambiente conhecido, de conforto, torna-se um cárcere/casulo, proteção e inferno, espaço onde nascem terrores e alucinações11 11 Para um debate sociológico sobre a casa em tempos de pandemia, ver, entre outros, Araújo (2020). .

Outro ponto a este relacionado é o dispositivo de estarem sozinhas, mesmo quando sabemos que são os responsáveis que as filmam por trás das câmeras. Jacinta, filha da diretora, faz seu café da manhã, rega as plantas, sobe e desce por entre escadarias íngremes, caminha pelo terraço, dança com sua própria sombra, se pinta, se joga no chão em tédio profundo depois de inventar mundos lúdicos e realizar suas tarefas domésticas. Mayroun, por sua vez, realiza uma performance com cenário, adereços e roupas, narrando uma história de prisão, sufocamento e socorro num imaginário distante da família. Tanto a voz em off da diretora, mãe de Jacinta, quanto Mayroun, que se refere ao pai atrás da câmera, não são suficientes para nos transmitir a certeza de que estão acompanhadas. As performances solitárias são maiores - convencem e confundem. Enclausurados, os filmes e as vidas das meninas se tornam indiscerníveis.

Assim, encarceramento e solidão são marcas de ambas as narrativas, e cada uma, ao seu modo, gera no espectador o sentido do inquietante, do estranhamento advindo do familiar. No curta de Nadine Labaki & Khaled Mouzanar, o terror alucinatório é próprio à estética do filme, ambientado com efeitos sonoros que acompanham sua narrativa a integrar bruxas, tubarões, insetos e um grande unicórnio de brinquedo. Além disso, sua textura, que começa realista, passa a ganhar contornos de animação ao longo da montagem, atingindo seu ápice com o grito de Mayroun em frenesi: “Eu desisto!” O estranhamento que impacta o filme de Beristáin se realiza na sensação que temos ao assistir a Jacinta fazer tudo em sua independência solitária. Mas a diretora mexicana opta pelo caminho contrário, da fuga do cativeiro a partir de um encontro possível, no momento que a menina, sentada cabisbaixa na mureta, de repente recebe um aviãozinho de papel, e, ao levantar-se, percebe que o objeto veio da direção de outro pátio com duas crianças que sorriem para ela, assim inventando uma brincadeira possível, um encontro possível.

No ensaio acima referido, Freud (2010Freud, Sigmund. (2010). O inquietante. In: Freud, Sigmund. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, p. 329-376. (Sigmund Freud Obras Completas, v. 14).) menciona o terror que emerge diante do diferente e o terror que se revela do conhecido. Seguindo suas pistas, os dois filmes nos apresentam a possibilidade do paradoxo: do terror que vem de fora enquanto desconhecido e também de dentro da casa, onde deveríamos estar seguros. Crianças pequenas em situação de risco, qualquer risco, compreendem denso material para o terror como sentimento, estado psíquico ou gênero literário/fílmico.

Duas experiências a essas contrapostas podem ser vistas nos filmes de Ladj Ly e Maggie Gyllenhaal. Em Clichy-Montfermeil e Penelope, de ambos os diretores respectivamente, o sufocamento não vem do claustro. Ambientados ao ar livre, os dois filmes exploram consequências, no primeiro caso, e possibilidades, no segundo, decorrentes de ações humanas em contextos socioeconômicos específicos.

Por meio de uma plasticidade que podemos chamar de pós-panóptica, o drone do curta de Ladj Ly nos permite ver desigualdades vividas por moradores e moradoras de Seine-Saint-Denis, região da capital francesa escrita por Victor Hugo, em Os miseráveis (1862). Esta obra foi adaptada em filme homônimo dirigido pelo referido cineasta quase 160 anos depois12 12 A versão de Ladj Ly é de 2019. Vale lembrar que o cineasta é membro do coletivo Kourtrajmé desde 1996 e, em 2007, rodou 365 jours à Clichy-Montfermeil (Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=_zg_qgDt3t8>. Acesso em 27 dez. 2022). Importante ressaltar também que, como mencionado nos créditos finais de seu curta de Homemade, a região foi uma das mais afetadas pela pandemia do coronavírus. Para mais dados, verificar Allard, Bayardin e Mosny (2020). . Assim como Les misérables (2019), que compartilhou o Prêmio do Júri em Cannes com o brasileiro Bacurau (2019), Clichy-Montfermeil nos apresenta a máquina voadora - o drone - tanto como personagem quanto como possibilidade tecnológica de certo fazer cinematográfico. Ao fugir de outras formas clichês, que também se aproveitam desse tipo de filmagem aérea13 13 Ver Gilbey (2020). , Ladj Ly confere ao drone o papel de subversão estético-política, fílmica e voyeurística, sobretudo em tempos de visualidades enclausuradas. No curta, que abre a série Feito em casa, a aeronave ótica do realizador francês, pilotada por seu filho, Al-Hassan Ly, nos possibilita ver para além de nossos olhos, vistas e janelas. Com ela, voamos e testemunhamos “a miséria social que se passa no interior desse difícil território francês”14 14 Fala extraída da entrevista com o diretor sobre seu outro filme (Interview…, 2020, tradução nossa). Não entendo o pedido de mudança - bairro de origem do cineasta.

Num outro lugar distante, porém possível, quiçá até provável, a estância onde acontece o ensaio de Maggie Gyllenhaal, Penelope, tem um único habitante a ouvir as notícias, pela “rádio difusora Elo Internacional”, de que “ocorreram mais modificações na constelação sul de Crater […] A superfície e a rotação lunar também foram alteradas, com sua densidade aumentando rápido e sua órbita em média 390 vezes mais perto da Terra que na semana passada”. Outra notícia é a de que “378 milhões de pessoas sucumbiram ao vírus”. Do pacato cenário, aqui perturbador, extrairemos uma única imagem (ou enquadramento): a da Lua inchada devido às “alterações moleculares causadas pelo vírus” - fenômeno que faz com que peixes pulem para fora do lago, em movimento suicida. O ângulo específico do satélite natural dilatado de Gyllenhaal nos provoca e reinstaura a sensação gerada pelo planeta Melancolia, do filme homônimo (parte da “trilogia da depressão”) de Lars von Trier15 15 Para uma leitura sobre o filme realizado pelo cineasta dinamarquês em 2011, conferir Klein e Herzog (2018). .

Em Homemade, a Lua de Penelope evoca um sofrimento psíquico, uma quase-constatação mental e física do mal-estar da cultura moderna ou do que nós, humanos, fizemos de/com nós mesmos. Em visão similar à Lua inchada, no filme de Trier (cuja personagem Justine é inspirada na obra homônima de Sade), Melancolia é um planeta dez vezes maior que a Terra e dela se aproxima num espetáculo do infortúnio. O vazio da perda do que um dia nunca se teve é semelhante ao sentimento provocado pela imagem da Lua avolumada que, do alto do céu, aponta-nos como algozes e vítimas de nós mesmos, criadores e criaturas de dores, doenças e pandemias nessa má vida na Terra. Aqui, pequenas borboletas amarelas não são sintomas de profecias, tampouco dispersões poéticas. A salvação esteve no que não foi.

Por outros caminhos distópicos, chegamos ao último exercício de filme-universo, coincidentemente o curta final da série, intitulado Vá de bike (Ride it out). Impressa na película da diretora iraniana-americana, Ana Lily Amirpour, a voz over e grave da atriz Cate Blanchett acompanha a cartografia errante da cineasta, que passeia de bicicleta por uma Los Angeles vazia. Nesse cenário inóspito, a câmera nos convida a ver essa figura em movimento por uma cidade que não existe, já que uma cidade não existe sem o movimento, sem a mancha móvel, manada humana e maquínica que a compõe. Se entendermos, com Michel de Certeau (2014Certeau, Michel de. (2014). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Vozes.), que um “lugar” é transformado em “espaço” pelo modo de sua ocupação, Ride it out nos colocaria diante do fim da cidade? A partir de múltiplas perspectivas - aproximação e distanciamento; alto e chão; cima, baixo e dentro - em companhia da ciclista mascarada, de óculos, chapéu, anônima, desconhecemos ruas de Hollywood. O passeio nos leva a (re)parar em sinais que recomendam isolamento, nos faz (re)conhecer artes urbanas e (re)ver a cidade como um grande museu a céu aberto, uma outra possibilidade de espaço, talvez a subverter a lógica de Certeau. Afinal, uma cidade sem gente, sem carros, sem paisagem sonora seria um “espaço liso”? (Deleuze & Guatarri, 1995Deleuze, Gilles & Guatarri, Félix. (1995). Mil platôs: volume 1. Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34.). O que haveria para ver, ouvir e apreender na silenciosa ruína urbana?

Despertadas pelo multiperspectivismo da câmera distópica na cidade sem trânsito (contrariamente ao multiperspectivismo da câmera utópica modernista da cidade-máquina de Dziga Vertov), tais perguntas são acompanhadas por imagens narradas a clamarem por outro modo de sobrevivência: “a arte, em seus termos mais simples, é apenas uma forma de forçar uma nova perspectiva sobre algo familiar. Destruir sua definição e redefini-lo é o trabalho de um artista” (Gonçalves, 2020Gonçalves, Marco Antonio. (2020). Blade Runner BR, 2071: sitiando fronteiras entre Ceilândia e Brasília (o cinema de Adirley Queirós). Revista de Antropologia, 63/1, p. 12-34.). Com essa proposição, permitimo-nos refletir sobre a “potência que reside na distopia” (Gonçalves, 2020Gonçalves, Marco Antonio. (2020). Blade Runner BR, 2071: sitiando fronteiras entre Ceilândia e Brasília (o cinema de Adirley Queirós). Revista de Antropologia, 63/1, p. 12-34.)16 16 Em referência ao filme A cidade é uma só? (2013), de Adirley Queirós, Marco Antonio Gonçalves (2020: 28) constrói essa noção: “Filme de combate, destruição, ao não reificar Brasília faz emergir a cidade como ilusão. Ceilândia não é uma derrota do projeto arquitetônico, mas mundo possível porque distópico. Exibe em toda a sua plenitude o “efeito Blade Runner” em que destruição é potência reveladora, o que garante a insurgência do próprio filme enquanto mundo possível por ser um modo de compreensão de Ceilândia e de Brasília”. , quando, diante de perdas totais, podem nascer imaginações reorientadoras.

Ao final do curta - e também da antologia - a narradora diz que “agora ela [a ciclista] está indo pra casa, assim como você, assim como eu, assim como todos nós”. Em sequência, no mundo vivido, entendemos a casa como um lugar complexo em que “se gera e reproduz a vida no sentido biológico, biográfico e social” (Araujo, 2020Araujo, Marcella. (2020) A casa como problema e os problemas das casas durante a pandemia de Covid-19. DILEMAS - revista de estudos de conflito e controle social, p. 1-9.: 3). Dela esperamos refúgio, não claustro; espaço doméstico e político, simbólico e material; abrigo de pessoas, afetos, cuidados, propósitos, trocas, e também de reflexões sobre o que seria essencial para tanto.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Curta realizado por Ferosa Mackenzie & David Mackenzie.
  • 2
    Para mais detalhes, ver Steve Rose (2020Rose, Steve. (2020). “I had this image of my husband making love to a tree”: directors on filming shorts for Netflix’s Homemade. The Guardian, 2 jul. Culture. Disponível em <Disponível em https://www.theguardian.com/film/2020/jul/02/i-had- this-image-of-my-husband-making-love-to-a-tree-directors-on-filming-shorts-for-netflixs-homemade >. Acesso em 5 out. 2020.
    https://www.theguardian.com/film/2020/ju...
    ), Jorge Pereira Rosa (2020Rosa, Jorge Pereira. (2020). Homemade: histórias de confinamento, o Dogma 2020. C7nema, 3 jul. Disponível em <Disponível em https://c7nema.net/critica/item/84461-homemade-historias-de-confinamento-o-dogma-2020.html >. Acesso em 4 out. 2020.
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    ) e Miguel Barbieri (2020Barbieri, Miguel. (2020). Feito em casa, da Netflix: quais filmes da quarentena valem a pena? Veja, 21 jul. Cultura & Lazer. Disponível em <Disponível em https://vejasp.abril.com.br/blog/miguel-barbieri/feito-em-casa-da-netflix-quais-filmes-da-quarentena-valem-a-pena/ >. Acesso em 5 out. 2020.
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    Verificar, por exemplo, Dray (2020Dray, Kayleigh. (2020). Netflix’s Homemade: 6 best episodes of the coronavirus lockdown movie project. Stylist, 2 jul. Disponível em <Disponível em https://www.stylist.co.uk/life/homemade-review-netflix-lockdown-anthology-best-episodes-ranked/404407 >. Acesso em 3 out. 2020.
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    ), sites como Rotten Tomatoes <https://www.rottentomatoes.com/tv/homemade/s01>, entre outros.
  • 4
    Verificar, entre outros, Rahul Desai (2020Desai, Rahul. (2020). Homemade on Netflix is a rare anthology whose sum is greater than its parts. Film Companion, 1 jul. Disponível em <Disponível em https://www.filmcompanion.in/streaming/homemade-netflix-review-is-a-rare-anthology-whose-sum-is-greater-than-its-parts-rahul-desai/ >. Acesso em 6 out. 2020.
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    ), Demetrios Matheou (2020Matheou, Demetrios. (2020). Homemade review - laughs, loss and madness in lockdown. Theartsdesk.com, 4 jul. Disponível em <Disponível em https://theartsdesk.com/film/homemade-review-laughs-loss-and-madness-lockdown >. Acesso em 5 out. 2020.
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    Para mais detalhes, conferir Ikeda (2012Ikeda, Marcelo. (2012). Os filmes-diários de Jonas Mekas: as memórias de um homem que se filma. Rumores, 6/11, p. 220-232.), Gutfreind & Valles (2017Gutfreind, Cristiane Freitas & Valles, Rafael. (2017). A construção da autorrepresentação nos filmes-diário de Jonas Mekas. Galaxia, 36, p. 31-44.), entre outros.
  • 6
    Sobre o tema, conferir Szwako (2020Szwako, José. (2020). O que nega o negacionismo? A terra é redonda, 10 abr. Disponível em <Disponível em https://aterraeredonda.com.br/o-que-nega-o-negacionismo/ >. Acesso em 2 set. 2020.
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    Verificar, por exemplo, Lima (2020Lima, Ludmila Moreira. (2020). “Não estamos todos no mesmo barco”: Pensando trabalho, precariedade e vulnerabilidade em tempos de pandemia. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Reflexões na Pandemia 2020, p. 1-9.).
  • 8
    Entre outras críticas, verificar Peter Bradshaw (2020Bradshaw, Peter. (2020). Homemade review - Kristen Stewart leads Netflix’s lockdown short films. The Guardian, 29 jun. Disponível em <Disponível em https://www.theguardian.com/film/2020/jun/29/homemade-review-kristen-stewart-leads-netflix-lockdown-short-films >. Acesso em 5 out. 2020.
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    ), Marcio Melo (2020Melo, Marcio. (2020). Crítica | Feito em casa (Homemade). Pocilga, 6 jul. Disponível em <Disponível em http://pocilga.com.br/2020/07/critica-feito-em-casa-homemade/ >. Acesso em 6 out. 2020.
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    ).
  • 10
    Novamente para mais detalhes, ver Feito (2020Feito em Casa. Criação: Juan de Dios Larraín; Pablo Larraín & Lorenzo Mieli. Direção: Ladj Ly et al. [S. l]: Fabula; Roma: The Apartment Pictures, 2020. 17 vídeos (138 min). Disponível em <Disponível em https://www.netflix.com/br/title/81285512 >. Acesso em: 27 dez. 2022.
    https://www.netflix.com/br/title/8128551...
    ).
  • 11
    Para um debate sociológico sobre a casa em tempos de pandemia, ver, entre outros, Araújo (2020Araujo, Marcella. (2020) A casa como problema e os problemas das casas durante a pandemia de Covid-19. DILEMAS - revista de estudos de conflito e controle social, p. 1-9.).
  • 12
    A versão de Ladj Ly é de 2019. Vale lembrar que o cineasta é membro do coletivo Kourtrajmé desde 1996 e, em 2007, rodou 365 jours à Clichy-Montfermeil (Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=_zg_qgDt3t8>. Acesso em 27 dez. 2022). Importante ressaltar também que, como mencionado nos créditos finais de seu curta de Homemade, a região foi uma das mais afetadas pela pandemia do coronavírus. Para mais dados, verificar Allard, Bayardin e Mosny (2020Allard, Théodora; Bayardin, Vinciane & Mosny, Emmanuel. (2020). L’Île-de-France, région la plus touchée par le surcroît de mortalité pendant le confinement. Insee Analyses, 118. Disponível em <Disponível em https://www.insee.fr/fr/statistiques/ 4517283#titre-bloc-4 >. Acesso em 10 dez. 2020.
    https://www.insee.fr/fr/statistiques/ 45...
    ).
  • 13
    Ver Gilbey (2020Gilbey, Ryan. (2020). Eye in the sky: how drone technology is transforming film-making. The Guardian, 31 ago. Disponível em <Disponível em https://www.theguardian.com/film/2020/aug/31/how-drone-technology-is-transforming-film-making-french-drama-les-miserables >. Acesso em 3 out. 2020.
    https://www.theguardian.com/film/2020/au...
    ).
  • 14
    Fala extraída da entrevista com o diretor sobre seu outro filme (Interview…, 2020Interview Ladj Ly - LES MISÉRABLES. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (3 min). Publicado pelo canal ZFF Zurich Film Festival. Disponível em <Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-JFDb6IlsfA >. Acesso em 27 dez. 2022.
    https://www.youtube.com/watch?v=-JFDb6Il...
    , tradução nossa). Não entendo o pedido de mudança
  • 15
    Para uma leitura sobre o filme realizado pelo cineasta dinamarquês em 2011, conferir Klein e Herzog (2018Klein, Thais & Herzog, Regina. (2018). A melancolia em Lars von Trier e a psicanálise. Psicologia Clínica. 30/1, p. 129-145. Disponível em <Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652018000100008#:~:text=No%20luto%2C%20o%20mundo%20se,libido%20para%20o%20mundo%20externo >. Acesso em 3 dez. 2020.
    http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
    ).
  • 16
    Em referência ao filme A cidade é uma só? (2013), de Adirley Queirós, Marco Antonio Gonçalves (2020Gonçalves, Marco Antonio. (2020). Blade Runner BR, 2071: sitiando fronteiras entre Ceilândia e Brasília (o cinema de Adirley Queirós). Revista de Antropologia, 63/1, p. 12-34.: 28) constrói essa noção: “Filme de combate, destruição, ao não reificar Brasília faz emergir a cidade como ilusão. Ceilândia não é uma derrota do projeto arquitetônico, mas mundo possível porque distópico. Exibe em toda a sua plenitude o “efeito Blade Runner” em que destruição é potência reveladora, o que garante a insurgência do próprio filme enquanto mundo possível por ser um modo de compreensão de Ceilândia e de Brasília”.
  • *
    Este ensaio é fruto do debate do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizado no dia 8 de outubro de 2020, intitulado “Cinema e pandemia: reflexões sobre Feito em casa”. Agradecemos a Felícia Picanço pelo convite, pela mediação e pela ideia do evento. Sobre Feito em casa (Homemade): “Nessa eclética seleção de curtas, cineastas do mundo todo mostram sua criatividade durante o isolamento imposto pela pandemia da Covid-19”; uma criação de Fabula e The Apartment Pictures, lançada em 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2021
  • Aceito
    05 Fev 2021
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