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Literatura infantil contemporânea: o passado (revestido) bate à porta

Contemporary children’s literature: (revested) past knocks at the door

Resumo

A literatura infantil contemporânea tem revelado uma tendência de atualizar discursos do passado por meio da criação de enredos que revelam conflitos localizados num tempo distante do leitor contemporâneo. Além dessa característica da literatura ela tem sido enriquecida pelo investimento na visualidade, de modo que os livros se constituem como objetos híbridos, e a leitura destas obras deve considerar, pois, aspectos postos tanto pela linguagem verbal como pela visual.

Palavras-chave:
literatura infantil; leitura; memória

Abstract

Contemporary children’s literature has revealed a tendency to upgrade speeches of the past by means of creating scenarios, which show conflicts situated within a distant time from the contemporary reader. Besides this feature, literature has been enriched by visual investment in such a way that books have become hybrid objects, and the reading of these works must consider, therefore, two characteristics on both the verbal and the visual language.

Key words:
children’s literature; reading; memory

A narrativa é a correnteza que nos leva, embora (sejamos) nós que guiamos o barco.

José Saramago

Leitores acionam narrativas, movidos pelas próprias vivências, suas memórias, sua herança cultural, guiando sua leitura e também sendo guiado pelo seu objeto. Nesse sentido, algumas perguntas nos inquietam e orientam a composição deste artigo. Qual é a importância da memória na constituição do homem? O que entendemos por memória? Para responder essas questões e entrar especificamente na análise de obras cujas histórias são antigas, mas continuam repercutindo na atualidade, este texto discorre acerca do conceito de memória e da literatura infantil como um texto híbrido. Na sequência, são focalizadas três obras publicadas para o público infantil que, de alguma forma, dialogam com um tempo passado e, portanto, distante do leitor contemporâneo: A arca de Noé, de Ruth Rocha, As cocadas, de Cora Coralina, e Lebre que é lebre não mia, de Celso Sisto.

Memória pode ser entendida como “um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (Le Goff, 1994LE GOFF, Jacques (1994). História e memória. 3. ed. Campinas: Ed. Unicamp., p. 423). Os dados priorizados por um narrador autobiográfico, por exemplo, provêm tanto da sua memória individual como da coletiva, conforme divisão proposta por Maurice Halbwachs (2004HALBWACHS, Maurice (2004). A memória coletiva. Trad. Laís Teles Benoir. São Paulo: Centauro., p. 57-62). A memória individual, armazenada no sujeito, está inteiramente nele, no entanto não é isolada, pois, para evocar o passado, o homem pode apelar também às lembranças de outros. Desse modo, constata-se que o funcionamento da memória individual apoia-se em palavras e ideias que o sujeito toma emprestadas do meio onde está inserido: para reconstituir a lembrança de um acontecimento, por exemplo, é necessário agregar várias reproduções deformadas e parciais de todos os membros de um grupo sobre o objeto ou sobre o fato, ou seja, vale-se da memória coletiva.

Halbwachs afirma que seria o caso de distinguir duas memórias: interna (autobiográfica/individual) e externa (histórica/social). A autobiográfica se apoiaria na histórica, que é mais ampla, “pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral” (Halbwachs, 2004HALBWACHS, Maurice (2004). A memória coletiva. Trad. Laís Teles Benoir. São Paulo: Centauro., p. 59). Ambas contribuem para a escrita de uma obra literária, em especial, a autobiográfica. Acredita-se que, mesmo em texto que não seja autobiográfico, a matéria narrativa surge das vivências do escritor, as quais estão inscritas num tempo e num espaço, já que o universo ficcional prioriza o relato de experiências e de acontecimentos (mesmo os totalmente inventados). Esse universo não apenas nasce da sociedade, mas também interfere nela, porque o contato com a ficção - produto de uma memória individual e coletiva - gera também uma memória individual e coletiva. Trata-se da vida alimentando a ficção e da ficção constituindo a vida. Os limites entre elas são muito tênues.

O livro nasce, pois, nesse contexto cultural. É um dos artefatos culturais que podem guardar a memória individual e coletiva das experiências de vida que alimentam a ficção e retornam à própria vida. Como objeto cultural, possui marcas de suas condições sociais de produção, de circulação e de recepção que o referenciam dentro de práticas sociais estabelecidas na sociedade. Desse modo, o livro participa da história cultural de um povo, por meio da sua leitura, e inclui sua própria história, constituindose pelo desenvolvimento de tecnologias gráficas e de comunicação social.

Ao longo dos tempos, o livro passa por mudanças. Tratando-se aqui da literatura infantil, percebe-se que seus formatos se modificaram, houve a introdução de diferentes materiais na sua confecção e um investimento considerável nos recursos visuais, ampliando-se também a oferta à população leitora. Essas modificações caracterizaram o livro como um texto híbrido, ou seja, um texto que articula sistemas diversos, no caso, o verbal e o visual. Como já sinalizavam Marisa Lajolo e Regina Zilberman, a presença da ilustração no livro para crianças passa “a constituir uma espécie de novo objeto cultural, onde visual e verbal se mesclam” (Lajolo e Zilberman, 1984LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina (1984). Literatura infantil brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática., p. 14). Essas autoras preconizam contemporâneos sobre a articulação verbo-visual que constitui o foco de análise do texto, que é literatura, e, como tal, um objeto artístico - plástico e gráfico. Para dar conta da compreensão desse hibridismo, é preciso recorrer às instâncias discursivas de análise dos efeitos de sentido que resultam da junção de diferentes sistemas constituintes e que dotam o texto de qualidades de natureza complexa, pois reúne ao mesmo tempo o caráter literário, artístico, estético, cultural e comunicativo.

Atualização do mito

A obra A arca de Noé, escrita por Ruth Rocha e ilustrada por Mariana Massarani, contém 38 páginas e conta a conhecida história de Noé, o herói bíblico que recebeu ordens de Deus: “mandou que ele construísse um barco bem grande” (Rocha, 2009ROCHA, Ruth (2009). A arca de Noé. Ilust. Mariana Massarani. São Paulo: Salamandra., p. 6) para colocar “dentro do barco um bicho de cada qualidade” (id., p. 7). Trata-se aqui do Dilúvio, na ótica da tradição judaico-cristã. Sob o ponto de vista das histórias de civilizações ao redor do planeta, existem outros relatos semelhantes à arca de Noé. Estudos antropológicos registram mais de duas centenas de narrativas desse episódio oriundo de tempos imemoriais. Fontes de diferentes culturas ocidentais e orientais compartilham dessa tradição, composta de mitos e de lendas equivalentes que envolvem inundações, chuvas torrenciais, interferências divinas e salvação de criaturas. Assim, a narrativa literária contribui para a permanência dessa memória coletiva enquanto se alimenta a memória individual.

O livro anunciado pertence à série “Vou te contar”, integrante da Biblioteca Ruth Rocha. A história é contada por um narrador mirim e contemporâneo, que se posiciona ludicamente em relação aos fatos bíblicos, como ocorre em diferentes momentos. Essa informação também é sugerida pela ilustração da última página do texto, em que aparece um menino com acessórios de nosso tempo, como óculos de mergulho e guarda-chuva. As imagens também referendam o processo de atualização da obra quando mostram, por exemplo, o uso do guarda-chuva para se proteger do clima.

As primeiras frases anunciam e situam o leitor quanto ao tempo, quem conta e qual a origem da narrativa: “Esta é uma história muito, muito antiga” (id., p. 5); identifica o narrador como uma criança: “Eu li num livrão grande do papai, que se chama BÍBLIA” (id., ibid.). Apesar de ser de origem religiosa, o processo de atualização da história privilegia o tom artístico para o conflito.

A obra apresenta dinamismo na sua diagramação, na apresentação da linguagem verbal e também nas ilustrações. O projeto gráfico, cujas ilustrações ocupam grande parte do espaço, destaca as cores, em combinações harmonizadas. O esquema cromático é tratado com cuidado, há contraste, mas as cores são rebaixadas em seus valores tonais, criando suavidade, como no caso das águas, que aparecem em azul claro e dois tons de verde claro (id., p. 12 e 13); os peixes também são construídos por tons rosados, cinza, telha e amarelo. A escrita se utiliza de fonte em caixa-alta, organizada em blocos de texto compostos por poucas frases que se alternam com as imagens dispostas em diferentes campos das páginas.

A parte verbal sustenta qualidades literárias adequadas à interação do leitor com a obra. A narrativa explora possibilidades estruturais do gênero por meio da criação do narrador, através do modo como apresenta as personagens. O texto prioriza a ação e não os aspectos ligados à temporalidade como duração da história ou mesmo a espacialidade.

Uma velha história é contada, mas, em alguns momentos, vale-se de linguagem quase poética e bastante próxima do universo infantil, pois brinca com as palavras, como se percebe na apresentação dos animais que entram na barca: “Um caititu e uma caititoa... quer dizer, caititoa não, que eu nem sei se isso existe” (id., p. 9). Ao expressar a dúvida em relação à existência do termo no feminino, cria-se um neologismo, procedimento bem ao gosto da criança. Gradativamente, o narrador torna-se porta-voz da dúvida infantil e, em “E paca, tatu e cutia também” (id., p. 15), remete a uma parlenda popular. Há comparações que podem estimular a criatividade e a imaginação da criança, como: “E zebra, que parece cavalo de pijama...” e “E pavão, que parece um galo fantasiado pra baile de carnaval” (id., p. 14). A onomatopeia é explorada em: “Como pulga, barata e pernilongo, que faz FIUUUMMMM no ouvido da gente” (id., p. 16) e no balão de fala de uma arara “Ha! Ha!” (id., p. 11).

Em relação à linguagem verbal, destaca-se o predomínio da oralidade, que sugere a contação de histórias, estratégia mobilizadora do leitor. Além de repetições, a presença de rimas marca o texto: bicharada, embarcada, chuvarada (id., p. 22), ou de aliterações da letra “c”: cachoeira, caindo, acabava (id., p. 23).

O modo de dizer promove uma aproximação do leitor ao texto, como na explicação das brigas entre os bichos, efeito do confinamento dos mesmos: “o gato e o rato começaram a brigar nesse tempo e até hoje não fizeram as pazes” (id., p. 29). A obra examinada tem uma proposta de diálogo do narrador com o leitor: “Você já viu, depois da chuva, o arco-íris redondinho no céu? Pois é pra sossegar a gente. Pra gente nunca mais ter medo da chuva!” (id., p. 36).

A ilustração acompanha e mostra a perseguição do gato ao rato pela amurada do barco, completa a situação posta pela palavra, o estresse entre o gato e o rato, e amplia a situação, na página oposta, para outros quatro pares de animais de mesma espécie que se defrontam - focinho a focinho -, elefantes, cavalos, cães, jacarés. No mesmo espaço, ao alto, dois pássaros voam em direções opostas e três pequenas manchas pretas parecem ter saído daquele posicionado mais acima. Nada disso está verbalizado e as estratégias visuais imprimem ao texto um caráter jocoso e também articulador entre os sistemas comunicativos que configuram o hibridismo de linguagens neste objeto de leitura.

A ilustração da capa, que não se repete no interior do livro, traz o rosto de Noé visto de perfil e, sobre sua cabeça, uma arca com diversos pares de animais, como uma espécie de chapéu. Nessa imagem, Noé volta seu olhar para cima, o que remete a atenção para seu chapéu-arca, ou mesmo, que essa arca seja o centro de suas preocupações. Ao fundo, uma linha ondulada, em tonalidade mais forte da amarela do fundo, sugere a superfície da água e está repleta de diversos animais marinhos, indicando que a arca, do mesmo modo que o chapéu, é proteção.

Ao abrir o exemplar, o verso da capa, da contracapa e a folha de rosto, em vermelho, estão repletos de seres aquáticos desenhados por meio de traços simplificados que lembram os traços infantis. No verso da folha de rosto, a ilustração antecipa-se à palavra e mostra os animais em pares, seguindo Noé e outros humanos também em duplas. Os animais estão dispostos a partir do canto superior esquerdo e descem até o pé da página dupla. Essa colocação das figuras gera movimento, como se os animais estivessem se deslocando do mundo exterior para dentro do livro, da história que será contada.

Em geral, as ilustrações atuam como articuladoras da escrita e, por vezes, ampliam significados. Por exemplo, a escrita não menciona a presença da esposa de Noé, mas em várias páginas (3, 17, 21, 23, 30, 32, 34 e 35) as imagens trazem uma mulher acompanhando o protagonista. Outro exemplo é em relação à presença de outros seres humanos na arca, o que não é tratado pelo texto escrito, mas pelas ilustrações da folha de rosto e das páginas 18-19 e 23. Na página 16, há uma representação do “projeto” da arca, que está sendo construída sobre um gramado, e nas páginas 1819, a ilustração mostra o interior da arca, com sua organização e divisão internas.

Aponta-se ainda que há exploração lúdica e poética da linguagem, que tanto a linguagem como o foco narrativo são adequados ao leitor infantil, que a orientação da narrativa é literária, e não doutrinária, uma vez que, além de assumir a perspectiva infantil, prevê espaços para atuação do leitor, de modo que a leitura da obra pode ser vista como uma experiência estética.

Em síntese, a obra que prioriza o ludismo, tanto pela palavra como pela ilustração, oferece um grau de abertura que convida à participação criativa na leitura, como também não conduz o leitor na narrativa, pelo contrário, sugere a brincadeira, tão agradável ao universo infantil, e ainda o diálogo com o texto bíblico, por meio da reescritura da narrativa religiosa. A narrativa verbo-visual apresenta uma proposta de atualização da história e, dessa forma, mostra ao leitor a possibilidade de outras versões para o texto.

A infância revisitada pela poesia

As cocadas é um conto da escritora goiana Cora Coralina (1889-1985) e ilustrado por Alê Abreu. No entanto, a obra, que partilha lembranças de uma infância distante no tempo, não é só um conto, já que a linguagem é tingida por poesia e o conjunto do texto verbal está significado por ilustrações que auxiliam o leitor atual a entender aspectos que teria dificuldade de concretizar sozinho. São 25 páginas, mais a capa e a contracapa, que se mobilizam para registrar uma história contada em duas linguagens - verbal e visual - e ainda acolher as expectativas do leitor contemporâneo. A proposta narrativa, expressa pela linguagem verbal, ultrapassa a exploração da palavra e acolhe elementos poéticos através da sutileza da narradora. Trata-se, pois, de uma obra que contribui com registros da memória social, possui características híbridas na articulação verbo-visual, além de sua qualidade literária e adequação ao leitor contemporâneo, que o leitor infantil brasileiro tem o direito de conhecer.

A qualidade do projeto gráfico-editorial cria condições favoráveis à leitura. Nesse aspecto, destacam-se as cores. As ilustrações, desde a capa, constroem-se por tons de ocre, que expressam, nas suas misturas e variações, a terra, a tradição culinária das cocadas, a tentação e a frustração. O elemento mais claro da capa e da contracapa é uma lua minguante, ao centro e abaixo há pequenos losangos claros. Constata-se, no interior do livro, que esses losangos saem de uma panela: as cocadas anunciadas no título. Ao ler o exemplar, pela união da palavra e da ilustração, descobrese que a tal panela chama-se terrina e que é o local onde são guardadas as cocadas depois de prontas. A cor anunciada na capa mantém-se no interior do livro, nas páginas em que é contada a narrativa. Ilustrações e palavras se harmonizam pelo ocre como fundo das páginas. A narrativa inicia com parte da imagem do rosto de uma menina na página 4 e se estende até quase a metade da página 5. Vêem-se os olhos da criança, que parecem mirar para fora do livro. Seus olhos dirigem-se para a esquerda do leitor. A palavra, neste caso, vem depois da ilustração, na parte exterior da página da direita, disposta em apenas três linhas com letra vazada em branco (aliás, é o único momento em que a letra é branca, depois sempre será preta): “Eu devia ter nesse tempo dez anos. Era menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo” (Coralina, 2007CORALINA, Cora (2007). As cocadas. Ilust. Alê Abreu. São Paulo: Global., p. 5). Nesse caso, nem palavra nem ilustração indicam o tempo, o único dado que orienta essa concretização são as informações sobre a autora, nos paratextos.

Como já foi afirmado, o texto verbal é classificado como conto, mas vale-se de recursos expressivos próprios da linguagem poética, conforme se percebe nos fragmentos:

De noite, sonhava com as cocadas.

De dia, as cocadas dançavam pequenas piruetas na minha frente.

(id., p. 12)

Ou ainda na forma como descreve as cocadas mofadas: “estavam cobertas de uma penugem cinzenta, macia e aveludada de bolor.” (id., p. 19). Há ainda trechos em que se podem encontrar neologismos, ao gosto do poeta e da criança: “Entrou na copa e desceu a terrina, botou em cima da mesa, deslembrada de seu conteúdo.” (id., p. 17)

Embora não haja discurso direto e, portanto, não se possam identificar variantes sociais ou dialetais dos personagens, a voz da narradora é marcada por aspectos de uma cultura própria de determinada região e de um tempo, provavelmente distantes do leitor contemporâneo. No entanto, a articulação do discurso possibilita o entendimento do texto sem assumir um tom diretivo que explique referencialmente uma época. Isso pode ser percebido, por exemplo, ao ensinar o preparo de uma cocada:

Tinha ajudado a fazer aquela cocada.

Tinha areado o tacho de cobre e ralado o coco.

Acompanhei rente à fornalha todo o serviço, desde a escumação da calda até a apuração do ponto. (id., p. 6)

O modo como o texto verbal vai-se construindo silencia sobre a configuração de objetos e de relações ou sentimentos que são apresentados no conto. Esses silêncios são preenchidos pelas ilustrações ou pelo leitor. A referência ao ato em que a prima retira do armário a terrina com as cocadas (id., p. 16-17) é potencializada pela visualidade. A ilustração mostra o olhar de espanto da criança que muito deseja comer os doces. Em outros momentos, até mesmo a ilustração se cala, e o leitor vai atuar diretamente no dito pela palavra e mostrado pela ilustração para concretizar o texto híbrido. Desse modo, pode-se afirmar que a narrativa não conduz a opinião do leitor e, consequentemente, oferece-lhe alto grau de abertura, convidando-o a participar criativamente da reconstrução textual. Por situar o conflito em um tempo distante das vivências do leitor contemporâneo, pode instigá-lo a estabelecer relações com outros textos da autora ou do período, ampliando suas vivências.

No que se refere à qualidade do texto verbal e da sua relação com a palavra, aponta-se que a leitura da obra propicia uma interação com aspectos da narrativa e com uma cultura nacional talvez distante do leitor e ainda oportuniza uma experiência lúdica com a linguagem poética. Mesmo que aparentemente o conflito e a ambientação possam parecer distantes da criança atual, a linguagem verbal é mediada pela ilustração, que aproxima a narrativa do leitor.

A atualização do conto de Cora Coralina por meio da ilustração de Alê Abreu potencializa a história, e a interação entre palavra e visualidade revela sintonia, tornando a experiência de leitura ainda mais significativa. No campo da linguagem verbal, aponta-se que a narração em primeira pessoa cria um tom confessional à história, no qual o leitor pode sentir-se o ouvinte/confidente da narradora, como também conhecer inquietações e peculiaridades do ser criança em outros tempos. Dessa forma, o texto, ao se valer de recursos expressivos, permite ao leitor contemporâneo colocar-se na narrativa, preenchendo os não ditos com as suas vivências. Em síntese, a leitura de Cora Coralina, neste caso, além de ampliar as vivências dos leitores mirins ao atualizar situações/acontecimentos de um tempo e espaço desconhecidos, pode propiciar uma experiência estética significativa de leitura literária.

As artimanhas do pequeno

A obra Lebre que é lebre não mia, escrita e ilustrada por Celso Sisto, é constituída por quatro contos do folclore africano, cujo protagonista é a lebre, “ágil e esperta”, conforme é mencionado na contracapa. Palavra e ilustração interagem e potencializam os sentidos veiculados nas narrativas, desafiando o leitor a percorrer as 38 páginas do exemplar. Os quatro contos são “A lebre prepara a terra para plantar”, “A lebre e o fabuloso inkalimeva”, “A lebre e o leão vão caçar” e, por último, “O pedido da lebre ao grande gênio do bosque”. A obra destaca-se tanto pelo projeto gráfico-editorial como pelas qualidades do texto verbal na apresentação desses contos populares. A capa é rica visualmente e chama a atenção, em especial, pela quantidade e variedade de lebres representadas em formas e cores variadas. O livro contém internamente grande diversidade cromática e contrastes sobre a cor empregada como fundo de página.

A demarcação entre as histórias se dá por uma ilustração que antecede o texto verbal, ocupando duas páginas, e pela diferença de tonalidades entre as páginas de cada narrativa. Destaca-se que essa ilustração inicial não é meramente decorativa, já que pode motivar o leitor a levantar hipóteses sobre o enredo.

O prefácio intitulado “Segredos por trás das histórias” é escrito pelo próprio autor. Trata-se de uma apresentação que, além de convidar o leitor a conhecer os contos e a compreender a diversidade cultural africana, também orienta acerca de peculiaridades relativas à origem de cada uma das histórias. Nesse texto, Celso Sisto conta que, devido ao seu interesse pelas histórias africanas, decidiu fazer uma pequena coletânea de contos sobre a lebre, animal bastante admirado na África, por ser ágil e esperta. O autor explica que, naquele continente, a lebre é sempre vencedora, porque usa a inteligência. Em matéria de esperteza só pode ser vencida pela tartaruga, outro animal presente em várias narrativas do continente. Sisto ainda lembra ao leitor que seja tolerante em relação às possíveis “estranhezas” que sinta por alguns elementos e valores veiculados nos contos, porque são histórias de uma cultura distinta da sua: “Não estamos dentro daquele universo e, por isso mesmo, vemos as coisas com outros olhos!” (Sisto, 2007SISTO, Celso (2007). Lebre que é lebre não mia. Ilust. Celso Sisto. São Paulo: Larousse do Brasil., p. 6). Nesse mesmo texto, o autor ainda contextualiza brevemente cada uma das histórias, indicando o povo ou o local em que são contadas originalmente.

No que se refere à ilustração, destaca-se que há uma convivência harmônica entre o figurativo e o decorativo, pelo modo de preencher as formas com padrões que se valem de elementos plásticos característicos da cultura africana. A figura do hipopótamo e do elefante (id., p. 8 e 9), que antecede a história “A lebre prepara a terra para plantar”, segue o traçado convencional, no entanto seus corpos são preenchidos por motivos que lembram traçados primitivos presentes em objetos artesanais africanos como jarros e tapetes. Entre os dois animais, ligados por uma corda, está a lebre, equilibrando-se sobre o fio e com uma sombrinha colorida. Além desses personagens, essas páginas têm um fundo verde recoberto por folhas e plantas estilizadas, em cores variadas. Aponta-se ainda a novidade no modo de ilustrar o leão da história “A lebre e o leão vão caçar”. O corpo do animal é decorado com quadriculados coloridos, lembrando um patchwork; o animal está em pé, imitando os humanos e ainda tem os traços do rosto muito expressivos.

A densidade e a diversidade de ilustrações dialogam com o texto verbal, ampliando suas possibilidades significativas. O traçado eleito, a diversidade de formatos e de cores recriam e atualizam aspectos da cultura africana na obra. A agilidade da lebre é assumida pela diagramação e pela ilustração que configuram uma proposta dinâmica de interação com o leitor, independente de idade.

O título da obra desperta curiosidade, pois relaciona a lebre com o som emitido por um felino. Vale-se destacar que tal título não é retomado em nenhum dos contos, cabendo ao leitor tentar entender a metáfora “lebre que é lebre não mia”, a partir da leitura do conjunto de contos. As quatro narrativas revelam qualidade literária, em especial, pela recuperação de traços presentes em contos populares, seja pelas marcas de oralidade, seja pelos animais como personagens, seja pela eleição da lebre (animal pequeno e aparentemente frágil, mas que acaba vencendo os conflitos e ainda ludibriando animais tidos como fortes, como o leão).

A linguagem dos contos apresenta traços sutis da fala (inclusive no discurso do narrador) como em “E puxa daqui, puxa dali, puxa de lá, puxa de cá, cada vez que a corda se movia e os animais se mexiam, eles iam arando um pedaço de terra da lebre” (id., p. 11). O narrador se aproxima do leitor, como numa conversa, retomando aspectos da oralidade: “Você, se quiser, pode ouvi-lo ainda hoje rindo pelas matas! Hihihihi!” (id., p. 28) e pelo questionamento retórico que desafia o leitor a responder em: “E a lebre? Bem... a lebre não ia desistir! Não ia sossegar enquanto o grande gênio não concordasse em atender ao seu pedido!” (id., p. 38).

No conto “A lebre e o fabuloso inkalimeva”, a palavra “fabuloso” pode ser tomada tanto no sentido literal (ser quase lendário), como no figurado (ser incomum, admirável). Além disso, esse conto não explicita que tipo de ser é esse, exigindo do leitor curioso que fique atento às ilustrações. A personagem central das histórias, a lebre, é astuta, ágil e inteligente. O narrador segue a protagonista, sem fazer julgamento moral de suas ações, e sim relatando sua esperteza: “Mas, como a lebre era muito esperta, rapidamente apareceu com uma de suas idéias” (id., p. 10). O estereótipo do leão como rei da selva é quebrado no conto “A lebre e o leão vão caçar”, em que a lebre consegue vencê-lo e lográ-lo, mostrando ser mais esperta do que ele. Dessa forma, a obra, além de não apresentar moralismos, proporciona ao leitor momentos de humor e incentiva a autonomia, uma vez que a lebre, apesar de ser pequena, consegue superar conflitos através da inteligência, sem precisar da intervenção de seres mágicos. Sua astúcia a torna vencedora dos conflitos a que se submete, exceto na última história em que almeja aumentar a sua inteligência; apesar de ter conseguido cumprir todas as tarefas que o gênio do bosque lhe atribui, ele não lhe concede mais inteligência e justifica: “- Você já é muito esperta. Se fosse ainda mais esperta, seria capaz de se tornar até meu dono e meu senhor! Adeus!” (id., p. 38). A lebre, no entanto, não vai desistir de ter mais inteligência.

Em cada conto, a lebre é representada de uma forma peculiar, de modo a enfatizar a característica da protagonista mais marcante em cada peripécia: por exemplo, enfatiza-se a diversão (id., p. 8-9), a satisfação (id., p. 13), a atenção (id., p. 19), a persistência e o cansaço (id., p. 30 e 38). As ilustrações presentes na obra são ricas, de modo que, ao recriar artisticamente os elementos retratados, é feita relação com a tradição africana. Apesar de não haver explicação sobre as imagens, parecem ter sido compostas com tinta e colagens de papéis e de tecidos, conforme se percebe na página 39. Enfim, pode-se afirmar que predomina a coerência no conjunto da obra, seja na relação entre os contos ou entre palavra e visualidade, como na postura da protagonista. No conjunto da edição, as quatro narrativas, a interação entre palavra e ilustração, o modo de construir os conflitos e a atuação da protagonista, entre outros aspectos, oferecem uma experiência singular ao leitor brasileiro.

Essas histórias são compostas para serem lidas como textos de natureza híbrida, assim como diferentes objetos que proliferam em nosso universo cultural contemporâneo. A literatura incorpora escrita e imagem, com recursos estéticos e técnicas na construção de narrativas, de modo a criar uma forma de transposição ou tradução simbólica. Cada sistema que compõe o texto interage e, nessa articulação, tornam-se interdependentes na constituição de significados. O regime do verbal escrito, no suporte da página do livro infantil, integra-se ao regime visual, gerando um diálogo potencial que convoca a percepção global do leitor. Os sistemas gráficos e as palavras criam uma textura híbrida na qual se entrelaçam, criando mundos ficcionais e aproximações reais. As fronteiras entre as linguagens se diluem no percurso de leitura e buscam-se novas relações entre o texto e o seu leitor.

A seleção de obras para compor essa reflexão evidencia uma tendência da literatura produzida para o público infantil na contemporaneidade: a atualização do discurso do passado. Essa tendência parece vir contra a corrente, pois predomina na sociedade uma valorização do novo e, consequentemente, um apagamento da tradição.

A literatura, porém, continua desempenhando seu papel de romper com a hegemonia de um estado de dominação ao criar um discurso de resistência à dominação. A partir das três obras estudadas, nota-se que a arte não referenda o apagamento da herança cultural de um povo - como tem feito a sociedade no geral. Pelo contrário, a literatura assume a incumbência de partilhar, por meio da palavra artística, as inquietações humanas em diferentes momentos históricos e espaços geográficos.

Ruth Rocha, por exemplo, atualiza um mito presente na cultura judaico-cristã, por meio de um narrador infantil, que se aproxima do leitor mirim. Cora Coralina partilha com o leitor, por meio da poesia, a percepção da criança de outros tempos acerca de cocadas, hoje industrializadas, de modo que o infante não participa do seu preparo. Celso Sisto traz a sabedoria do povo africano e a revela, por meio da astúcia da lebre - pequeno animal rápido e esperto que mimetiza comportamentos humanos, talvez semelhantes àqueles da criança.

Em As cocadas, há uma visita à infância distante pelo olhar poético. Em Lebre que é lebre não mia, um narrador alheio à história conta sobre conflitos que estão na formação do homem, conta histórias que foram filtradas pela sabedoria do povo e guardadas pela memória. A arca de Noé sugere que uma história sempre pode ser recontada.

Essas obras se apoiam na memória individual ou coletiva e, ao trazerem essas lembranças distantes, cumprem o papel de brindar o leitor atual com uma herança cultural a que ele tem direito. Não contar, não partilhar essas narrativas implica sonegar a herança que os leitores mirins têm direito de receber. A interação com essas reflexões pode contribuir para a formação da identidade da criança.

Em síntese, são narrativas que nos contam, que só continuam a ser contadas porque têm sentido para a nossa existência, porque configuram a nossa identidade. Em um tempo de infância globalizada, essas histórias podem contribuir para a formação da identidade das nossas crianças.

Referências bibliográficas

  • CORALINA, Cora (2007). As cocadas Ilust. Alê Abreu. São Paulo: Global.
  • HALBWACHS, Maurice (2004). A memória coletiva Trad. Laís Teles Benoir. São Paulo: Centauro.
  • LE GOFF, Jacques (1994). História e memória 3. ed. Campinas: Ed. Unicamp.
  • LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina (1984). Literatura infantil brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática.
  • ROCHA, Ruth (2009). A arca de Noé Ilust. Mariana Massarani. São Paulo: Salamandra.
  • SISTO, Celso (2007). Lebre que é lebre não mia Ilust. Celso Sisto. São Paulo: Larousse do Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2010

Histórico

  • Recebido
    Jun 2010
  • Aceito
    Ago 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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