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Os sons das palavras: possibilidades e limites da novela gráfica

The sounds of the words: possibilities and limits of the graphic novel

Resumo

A novela gráfica, que hoje aspira a um status literário, tem especificidades de linguagem que, ao mesmo tempo, permitem um uso crítico e criativo de seus instrumentos e a este uso se contrapõem. Nesta análise, demonstro como a manipulação do tempo é o ponto nodal deste processo. Ao ralentar o receptor, retirando sua atenção do eixo narrativo, a novela ganha em seu apelo de sedução mais imediato e perde na construção propriamente literária. Entre nós, brasileiros, a coisa adquire tonalidades específicas, na medida em que esta comunicação traz com ela os vestígios das condições de produção que lhe deram origem, e que nos são estrangeiras.

Palavras-chave:
novela gráfica; quadrinhos; eixo narrativo

Abstract

The graphic novel today aims to a literary status, but its attributes at the same time favor such possibility and frustate it. In this analysis, I demonstrate how time control by the artists is at the center of this process. Halting the reader, distracting him/her from the narrative, the novel can increase its appeal but will loose in the literary construction. Between us, Brazilians, the graphic novel brings another question to be considered, since it contains traces from its origin of a different cultural context.

Key words:
graphic novel; comic; narrative axis

A novela gráfica se pretende cada vez mais literária, desde sua guinada na década de 1970, quando almejou sair da sua recepção tradicional como bem de consumo de massa majoritariamente destinado a um público infantil ou semiletrado. Isto provoca a necessidade de um pensamento sobre sua estrutura específica, sua potencialidade, assim como seus limites, neste seu novo papel pretendido de suporte a uma expressão artística de realce a narrativas ficcionais. Este pensamento, pouco desenvolvido em nível acadêmico internacional, se torna ainda mais urgente em nossa geografia particular. Temos, ao abordar o assunto, mais uma preocupação além de buscar o conhecimento desta relativamente nova forma artística. Temos de pensar esta nova forma artística em termos de nossa recepção peculiar. Pois se trata, como pretendo demonstrar, de uma forma artística altamente manipulável por seus produtores, oriundos e atuantes em outras condições e contextos ou que mimetizam, entre nós, tais condições e contextos.

É o que me disponho a fazer, a partir - não só, e sequer principalmente - de minha formação nos dois campos de expressão, o visual e o literário. Quero pensá-la como instrumento prático de atuação artística na especificidade de seu momento histórico entre nós, lançando mão, para isso, de referências a outros momentos históricos em que a junção de texto e imagem prevaleceu. É como produtora desta forma artística de grande impacto emotivo e maiores implicações de legitimidade artística, mais do que como teórica, que inicio esta análise. Vou explorar o que se pode fazer ao produzir uma novela gráfica, e é a partir daí que pensarei o (ab)uso possível daquilo que é assim feito.

A novela gráfica trabalha em dois eixos espaciais, o eixo narrativo, sequencial e horizontal; e o eixo emotivo, que é perpendicular ao primeiro e se projeta em direção ao receptor. Este segundo eixo é formado por sobreposições na superfície da página. Tanto um quanto outro pode ser habitado por textos e imagens, indiferentemente. No narrativo conta-se algo (mais uma vez, por textos ou imagens, não importa). No emotivo, interrompe-se o tempo do primeiro, aquilo que se conta. No eixo emotivo, textos ou imagens, aumentando de tamanho e se sobrepondo uns aos outros, projetam-se em direção ao receptor. Criam pausas, paradas, ralentando a narrativa do eixo horizontal e a ela se impondo.

O tempo e a manipulação de suas pausas é o que a novela gráfica tem de interessante, e é também o que ameaça tolhê-la para sempre em um nível pouco sofisticado de qualidade literária.

A linguagem da novela gráfica terá esses dois eixos - um horizontal e sequencial, outro vertical e eventual - mesmo em sua forma mais básica: um retângulo (de papel) sobre o qual são desenhados outros retângulos menores. Ou seja, ainda que não haja outras sobreposições - além desta primeira e indispensável para sua definição de novela gráfica - e ainda que o primeiro retângulo, o da página de papel, seja usado apenas como suporte dos retângulos menores, os “quadrinhos”, ainda assim haverá os dois eixos. 1) O eixo narrativo que se segue até o(s) quadrado(s) seguinte(s); 2) e o eixo que interrompe o caminho do primeiro, em aproximações isoladas até o receptor.


O retângulo da página como primeira camada do eixo emotivo. (Eisner, 2005EISNER, Will (2005). Narrativas gráficas. São Paulo: Devir.)

A novela gráfica, além de dois eixos, tem também duas linguagens: a do texto e a da imagem. Uso aqui a palavra linguagem em seu sentido mais popular. Haveria margem para protesto em considerarmos imagens como sintagmas de uma linguagem. Não o são. Não exatamente. Ou não sempre. Minha justificativa para o emprego pouco rigoroso do termo se baseia no fato de que, na novela gráfica mais do que em outros casos, há um uso exaustivo de estereótipos visuais. Então, poderíamos, sim, falar de “sintagmas”, empregados que são, em não importa qual “frase”, com um mesmo sentido geral.

Texto e imagem estarão presentes tanto num quanto noutro dos dois eixos citados. O uso combinado destes quatro elementos - dois eixos e duas linguagens - é o que vai determinar o tempo e o ritmo da sua recepção. É a partir do tempo e de suas possibilidades de manipulação que podemos analisar uma novela gráfica em seu valor de inovação ou, ao contrário, em sua repetição acomodada e reconfortante de mero entretenimento.

O tempo na novela gráfica é bem específico. Não é o tempo fixo de um audiovisual (que terá tantos minutos ou horas de duração, não mais, não menos), nem o tempo livre de uma obra literária, ainda que ilustrada. Pois neste último caso, as imagens serão mera intrusão ou adendo em um texto que não depende delas para sua compreensão. Assim, o texto literário, ainda que ilustrado, será lido em um tempo aberto, não controlável e interior, do receptor. Em vez de uma comparação com os audiovisuais ou com a literatura ilustrada, podemos pensar em uma visita ao museu. Você anda pelos corredores, parando em imagens, lendo os textos das etiquetas e da curadoria pelo tempo que quiser. Ou assim você supõe. Nos museus, percurso e tempo utilizados frente a cada elemento apresentado são cuidadosamente pensados. Mas, claro, no museu, quem anda é você. Aqui, quem “anda” são as imagens e os textos, atrelados aos dois eixos já citados. E esta “andada” é passível de uma manipulação muito maior do que uma andada no museu.

Vamos ver como.

A escolha do que vai em texto, do que vai em imagem

Uma regra geral: você leva mais tempo para ler do que para ver. É claro que você sempre precisará ler e ver. Digo, não só em uma novela gráfica. Ainda que o que você tenha na sua frente seja só um texto ou só uma imagem. Não há texto sem imagens. Não há imagens sem texto. Ainda que esta verdade não esteja explicitada pela dupla presença concreta de ambos. O que quero dizer é que não há percurso gerativo de significação oriundo de texto que não provoque visualizações de eventos, impactos. Não há percurso gerativo de significação oriundo de imagem que não contenha subtextos prévios. Do contrário não entenderíamos nem textos nem imagens.

Na história da arte, subtextos de imagens com muita frequência não são só prévios ou supostos. Textos prévios ou supostos de uma imagem vêm do acervo pessoal de experiências do receptor; do acervo de seus conhecimentos, determinados pela sua posição cultural e social; e do acervo de seus desejos e fobias em relação aos dois primeiros. Mas, mais sim do que não, textos podem estar presentes dentro da própria imagem, e serão uma tentativa do produtor de impor os seus acervos sobre os do receptor. A história da arte é cheia de exemplos. No caso estudado aqui, a novela gráfica, esta inserção do texto dentro da própria imagem, em vez de ficar em um campo próprio, separado, também acontece. O texto inserido na imagem (ou vice-versa) e o texto que fica à parte da imagem serão objeto de comentários na seção seguinte deste artigo, “A escolha do local do texto e da imagem”.

Por enquanto, vamos ver como pode se dar a escolha entre o que vai em texto e o que vai em imagem.

São três níveis crescentes de complexidade observados nas práticas atuais de integração das duas linguagens nas novelas gráficas.

O nível mais básico é o que apresenta as duas linguagens em paralelo. Não há, a bem dizer, tentativa alguma de integração intersemiótica. O que está escrito é o que está mostrado e vice-versa. É o nível de maior redundância e o que menos brechas oferece a uma relação dialógica com o receptor, com tudo o que isto quer dizer em termos de qualidade artística da obra. Mas é também o nível que menos margem oferece a uma manipulação do tempo de recepção, já que as imagens estarão sempre “esperando” que a leitura se faça, independente da situação apresentada. É, além disso, o nível em que menos se verá o uso extensivo do eixo emotivo. Podem ocorrer um ou outro zoom em detalhes de imagens, mas estas se manterão sempre dentro dos quadrinhos. Páginas e páginas sem utilização outra de seu retângulo inicial, o do papel, além de servir de suporte ao primeiro degrau de aproximação, o dos quadrinhos sobre elas desenhados. Os quadrinhos também tendem a ser uniformes, variando bem pouco em formato ou tamanho. A novela gráfica que segue esta linha de linguagens paralelas raramente apresenta um terceiro degrau de aproximação até o receptor, seja em textos ou em imagens. Fica a página atrás, em branco, como suporte de quadrinhos. E, sobre ela, os quadrinhos sequenciais que não são sobrepujados por uma nova camada que os interrompa.

Um nível intermediário de complexidade seria o de uma complementaridade entre texto e imagem. Neste caso, uma linguagem não se referirá à outra. Ambas estarão integradas em um mesmo movimento de comunicação. Aqui vale um parêntesis. Aliás, dois. Primeiro: figuras precisam de texto para se tornarem específicas. Cenas de batalhas são cenas de batalhas. Você só saberá qual é aquela batalha se isto estiver escrito em algum lugar. Mulheres nuas são todas muito parecidas. Dizer por que ela está nua é o que a transformará, ou não, em uma figura erótica para o público masculino. Dei esses dois exemplos por serem dos mais comuns. As novelas gráficas se apoiam na cultura de massa e seus estereótipos. Depois falarei mais sobre isso.

Então, em um nível intermediário de complexidade, a novela gráfica usa o texto como complemento necessário à informação generalista oferecida pela imagem. A imagem dá o tipo, o texto dá o indivíduo. A imagem dá o evento genérico, o texto o transforma em específico. Há uma situação particular em que é a imagem, à primeira vista, que oferece o complemento que falta ao texto, ou que seria mais trabalhoso de se dar no texto. É o caso do detalhe emblemático. Mas emblemas são imagens em função-texto. Textos e imagens, a depender da circunstância, simplesmente trocam seus papéis. Vou me referir a isso explicitando a função que cada um deles está exercendo a cada momento, e que pode ser a do seu contrário. Mas voltemos aos emblemas como exemplo de complementaridade no sentido imagem-texto. Emblema é algum detalhe que determina que aquele personagem é o fulano e não o beltrano. Um boné, um bigode, um tipo físico. É o equivalente ao nome “fulano”. É uma imagem que equivale a uma palavra. Emblemas estiveram muito em voga durante o simbolismo e mesmo antes, na arte sacra da Idade Média, em que todos os santos, sempre com a mesma cara, dependiam de emblemas para que as pessoas soubessem para quem estavam dirigindo sua devoção. Então, quando eu disse que figuras precisam de texto para se tornarem específicas, incluí os emblemas como sendo texto.

Neste segundo nível de complexidade nas relações entre texto e imagem (o nível da complementaridade de linguagens), as possibilidades de manipulação do tempo são maiores do que no primeiro nível discutido, o das linguagens paralelas. Os níveis de sobreposição no eixo emotivo também costumam acompanhar essa maior complexidade e se apresentam em mais camadas além das duas iniciais.


À esquerda, nas “folhinhas”, uma integração de texto e imagem. (Eisner, 2005EISNER, Will (2005). Narrativas gráficas. São Paulo: Devir.)

Agora, o segundo parêntesis. Figuras, acabamos de ver, precisam de texto para adquirirem maior grau de individualização. Pessoas que veem figuras também precisam de texto pelo mesmo motivo, para adquirirem maior grau de individualização. E também desde a Idade Média. A existência de um texto complementando uma imagem provoca uma individualização no receptor que tem, por causa mesmo de sua situação como receptor de imagem, sua individualização desvanecida. Qualquer um vai entender uma imagem, embora, como já disse, a partir de seus acervos pessoais, culturais e psicológicos. Um texto fará o receptor imediatamente se reconhecer como individualizado por pertencer a um grupo determinado. Quer ele entenda ou não a língua em que o texto está, o fato de existir um texto o fará se ver como pertencente a uma categoria, seja ela a dos que entendem ou a dos que não entendem. Portanto, ele se verá igual a uns tantos indivíduos, e diferente de outros tantos. E mesmo que entenda a língua utilizada, ele não precisará ler efetivamente o texto para recuperar desta maneira a identidade ameaçada pela universalidade da imagem. Ele, antes de ler, reconhecerá a língua a partir de umas tantas regras básicas: se tal letra costuma vir dobrada ou não, se existe tal acento ou não, se os caracteres são romanos, se a linha é horizontal e da esquerda para a direita etc. O texto preserva essa sua qualidade de qualquer modo, mesmo ininteligível ou mesmo antes de ser lido.

Outro ponto a ser considerado dentro deste mesmo segundo parêntesis e ainda em referência à utilidade de textos individualizarem os receptores de imagens - esta individualização pode ser bem perversa. Textos, ainda que ininteligíveis, serão sempre icônicos de quem detém o poder. Continuamos na Idade Média - e a frase adquire um duplo sentido: vou lembrar mais uma vez o momento histórico já citado anteriormente e vou aventar a hipótese de que continuamos nele, no que concerne o assunto tratado. A imensa maioria da população ocidental (latino-americana) era (é) iletrada. A inserção de palavras em imagens produzidas pelo poder dominante, por exemplo, a Igreja (por exemplo, a cultura americana), não significa que tais palavras estejam lá para serem lidas. Sua presença significa apenas que se trata de algo a ser reverenciado, de alguma maneira “superior” ao receptor que a ela deve, portanto, dedicar respeito. Na nossa contemporaneidade, posso dar o exemplo de Helio Oiticica, que usou bastante este valor hierárquico de textos. Em seu “Homenagem a Cara de Cavalo”, o artista coloca a frase famosa “seja marginal, seja herói”, de forma bem visível. Mas em uma das gavetas de sua caixa-caixão-homenagem, há pedaços de panos com textos impressos que não estão lá para serem lidos. Apenas transmitem a noção de que a obra é fruto de um pensamento superior, elaborado.

E agora, o terceiro nível de complexidade na escolha do que vai em texto e do que vai em imagem dentro de uma novela gráfica. Este terceiro nível é o da alternância de linguagens. Há trechos (vocabulário de quem, como eu, privilegia o texto) ou campos (vocabulário de quem gosta mais de imagens) da novela que irão se apoiar mais nas palavras, seguidos de outros que irão ressaltar os desenhos. É o nível de produção que permite maior controle sobre o tempo de recepção. É o que traz mais degraus de sobreposição do eixo emotivo. Há um antecedente deste uso de alternância de linguagens, muito antigo e bobinho, mas que dá bem a ideia de sua potencialidade. É a “carta-cifrada” de quando eu era criança. Nas linhas de um caderno, o texto tem palavras substituídas por figuras. E aí você pode observar uma inversão preciosa das duas linguagens. O tempo mais valorizado, a linguagem a exigir mais do receptor não é mais o texto, mas os desenhos, cuja admiração consome pausas consideráveis na apreensão sequencial do conteúdo narrativo. Avisei que às vezes o texto troca de lugar com a imagem.

Um exemplo buscado mais uma vez na história da arte - que é para não esquecermos de que novidades da moda, do tipo novelas gráficas, não o são tanto assim: Jackson Pollock. A teoria é de Michel Butor (1980BUTOR, Michel (1980). Les mots dans la peinture. Paris: Flammarion., p. 87). A Action Painting que notabilizou o artista americano seria na verdade uma enorme e repetida assinatura. Como o que é importante em seus quadros não é o resultado, mas o ato mesmo de fazê-los, o que identifica Pollock não é uma visão de mundo, mas um grafismo, sua mão, seu gesto, o jeito só seu de pôr uma marca no papel. O quadro é sua assinatura. Faz sentido, se pensarmos na época em que o artista viveu e na imposição da individualidade americana, o enorme ego vitorioso que se implantava no patrimônio simbólico mundial.

Em tempo: novela gráfica nenhuma terá um só nível de complexidade em toda sua extensão. Ela privilegiará um dos níveis, com a presença dos outros.

A escolha do espaço para o texto e a imagem

Texto e imagem podem ou não compartilhar um mesmo espaço da novela (além e independentemente de estarem, como acabamos de ver, em situação paralela, complementar ou alternada um em relação ao outro). Este espaço pode ser o do grande retângulo da página, o dos retângulos menores dos quadrinhos sobre ela desenhados, ou dos espaços de uma terceira ou quarta camada sobrepostas às duas primeiras, no eixo emotivo.

Ou podem estar, cada um, em um espaço separado. Há pouco o que dizer quando é este o caso. Espaço separado tem uma única possibilidade de manipulação: o texto adquire maior credibilidade. Um texto que venha em seu próprio espaço sem imagem por perto, significa que é um texto “de autor” ou do narrador, alter ego do autor. O espaço próprio é o espaço do deus criador. Além de textos enquadrados, que correm no eixo narrativo da novela, prólogos de apresentação da aventura ou do personagem principal são exemplos típicos desta aposição de valor. Balões de diálogos, que podem ser vistos como uma espécie de separação de espaço, na verdade não o são. Apesar de haver de fato uma linha divisória entre palavras e desenho, balão e personagem falante estarão ambos compartilhando um mesmo espaço, seja a página, um dos quadrinhos dessa página ou qualquer outro.

Agora, vamos ver a situação mais complicada, que é a do compartilhamento de espaço entre as duas linguagens. Vamos ver suas razões e consequências.

Qualquer compartilhamento de espaço fará com que o texto, além de servir como texto, tenha, também, uma função-imagem. Quero dizer: o texto manterá seu conteúdo literal, de texto, com tudo o que já vimos sobre o que isto significa. Ele será recebido mais lentamente, terá uma aposição de valor, manipulará o tempo de recepção etc. Mas, ao estar acompanhado por uma imagem que com ele compartilha o mesmo espaço, este texto terá também uma forma a ser considerada. Além do seu conteúdo literal, há uma informação visual a ser levada em conta. O texto passa a agir como massa tensionante no todo daquela figura presente no espaço. Mais uma vez indo para a história da arte, Paul Klee fez muito isso, escrevendo textos curtos nas suas telas e formando, com as linhas dessa escrita, campos de grafismo, massas em tons neutros, que interagiam com o resto do quadro. Além de dizerem algo, claro. Em alemão - o que para alguns de nós levanta a questão, também já vista, da individualização do receptor, seja por aderência ao grupo que entende, seja por nos sentirmos excluídos (excluídos, mas com numerosa companhia) do que o artista lá diz.

A incidência da dupla função - função-texto e função-imagem - do texto que compartilha um mesmo espaço com a imagem acontece seja qual for o espaço compartilhado. Mas há especificidades a serem observadas, dependendo de qual espaço estamos falando. Se texto e imagem se encontram juntos no primeiro espaço, o da página de papel, a exigência da pausa no eixo narrativo será bem grande. Aquilo que lá está comunicado merecerá um tempo de recepção bem maior do que o que está nos quadradinhos desenhados sobre o retângulo desta página. É uma informação que se inicia com o primeiro olhar sobre a página, se mantém presente mesmo quando o olho estiver dedicado aos quadrinhos desenhados em cima desta página, e continua depois disso em uma “volta” para o retângulo-base, o da página. Se, ao contrário, o texto estiver em um espaço pictórico na camada superior do eixo emotivo, a mais próxima do receptor, sua percepção, como texto, será tênue. Este texto será provavelmente bem curto, talvez apenas uma palavra; estará em um corpo bem maior do que o texto “normal”; receberá tratamento de desenho ou estará em uma fonte diferenciada. Assim, será recebido quase apenas como imagem. E sua exigência de pausa será bem menor. O exemplo mais comum é o das onomatopeias. Você tem o retângulo da página, no qual pode haver um desenho ou um texto inserido lá, diretamente; você tem os quadrinhos que estão desenhados sobre esta página; você tem a onomatopeia, que vem sobre os quadrinhos, em tamanho grande, fonte desenhada, e passando por cima dos limites deles.


O texto em função-imagem. (Eisner, 2005EISNER, Will (2005). Narrativas gráficas. São Paulo: Devir.)

Além da camada do eixo emotivo, há outra variável a modificar o valor do texto que compartilha o espaço da imagem. É o estilo do desenho. Quanto mais realista for o desenho, mais impacto a inserção de um texto no mesmo espaço trará para a temporalidade da recepção. Este poder do texto, exacerbado no caso dos desenhos muito realistas, se mantém até mesmo quando a busca pelo ilusionismo leva o produtor a integrar tais textos na própria imagem que com eles divide o espaço. Nestes casos, o texto não é mais um elemento autônomo, diferenciado, mas indissolúvel ao desenho. Assim, a informação textual estará em algum ponto do cenário: cartazes publicitários, néons de rua, tatuagens em personagens, sinais de trânsito, livros sobre a mesa, envelopes de correspondência. Ou ainda: papiros, mensagens secretas, bilhetes manuscritos, leis divinas inscritas em nuvens etc. Embora sejam agora apenas elementos do desenho, sejam eles próprios desenhados e não mais compostos, os textos assim tratados continuam com sua função-texto exacerbada, continuam obrigando o receptor a fazer uma pausa importante, a valorizar aquele momento. Há uma subdivisão desta subdivisão. Então, voltando: estamos falando de textos e imagens que dividem um mesmo espaço, e o que isto significa em termos de manipulação do tempo de recepção. Aí falamos do caso em que este compartilhamento de espaço se dá em estilos de representação realista, quando o texto pode se tornar apenas um elemento do cenário desenhado e, ainda assim - ou melhor, por causa disso mesmo - manter seu valor de função-texto altamente eficaz. E agora vamos falar da colagem.

É um outro tipo de realismo. Não mais chamado de realismo, aliás. Isso porque não é mais uma representação, mas uma apropriação concreta. Um jornal colado em uma imagem não representa um jornal, é um jornal. Falei em jornal. Podem ser cartões de visita, tíquetes de transporte, invólucros, rótulos etc. É infinita a possibilidade deste tipo de inserção - hiper-realista, vá lá - de palavras e informações coladas dentro de uma imagem. E aqui, é preciso considerar o seguinte: colagens trazem com elas um rastro do campo semântico original do objeto inserido. Assim, colagens se tornam uma espécie de ícone de outra comunicação, diferente em natureza da que está ocorrendo no momento, e anterior no tempo. Se textos e imagens, juntos, já exigiriam uma pausa considerável no fluxo temporal da narrativa; se esta pausa aumenta em se tratando de ambientes realistas, e mais ainda se estão integrados, fazendo parte mesmo, do desenho, agora, com a colagem, a eficácia do uso compartilhado de espaço atinge um grau máximo. A colagem não traz apenas um texto para dentro da imagem, traz um contexto. Colagens em uma novela gráfica fazem o receptor parar completamente sua “andada” no eixo narrativo. Esta parada pode ser adjetivada caso a colagem se encontre tal qual o objeto existe em sua vida anterior, se está rasgada, em pé ou deitada, legível ou não. Qualquer coisa que amplie a presença extra-obra, ou dificulte a leitura, ampliará a pausa do receptor. Lembrando: mesmo quando o texto não tem importância alguma no contexto da narrativa, não é sequer legível, está em língua inventada ou estrangeira, ainda sim a função-texto deste texto estará potencializado; e sua “leitura” se dará a partir dos acervos pessoais, culturais e psicológicos do receptor, unicamente.

Nova visita à história da arte: os retratos de Hans Holbein, o Jovem.

Ele também usava, tal qual um competente autor de novela gráfica, um mesmo espaço para suas imagens e textos. Sobre o fundo, em geral neutro, de suas pinturas renascentistas, Holbein escrevia o nome do retratado e a idade que o retratado tinha na data em que o retrato foi feito. E sobre este fundo contendo palavras, então, ele pintava sua figura. Como no caso dos balões de diálogo, aqui também não há separação real de espaços, pois o fundo em que estão as palavras inscritas é parte de um todo que inclui a figura, e que se chama quadro. Portanto, em relação ao compartilhamento de espaço, Holbein deu a seus textos um tratamento similar ao de personagens e balões de diálogo. Holbein também fez um pequeno eixo emotivo, interno neste único espaço falsamente dividido, já que seu retratado está sempre sobreposto à linha de texto. Com isto, ele se aproxima, em termos de eficácia na manipulação do tempo de recepção, de uma colagem. Escritos ali atrás estão datas e nomes, em uma referência direta a algo extra-obra, à vida real do retratado. Seu quadro é uma carteira de identidade. Seu retrato, um instantâneo fotográfico com seu rastro do real. Holbein usava sempre caixa-alta em seus textos de fundo de quadro. E aqui entramos em outra maneira de manipular o tempo na novela gráfica, a que é feita através da escolha da fonte dos textos.

A escolha da fonte e corpo do(s) texto(s)

Pode ser que os textos de uma novela gráfica estejam todos em uma mesma fonte, ou em várias. Quanto ao corpo do texto, este sempre varia, aumentando de tamanho à medida que as palavras se inserem nas camadas do eixo emotivo mais próximas ao receptor. Pode ser que diminua de tamanho para obter o mesmo resultado: ao dificultar a leitura, um corpo menor valoriza e aumenta o tempo dedicado ao texto.

Já vimos que a aproximação do texto no eixo emotivo provoca em geral sua transformação em imagem: seja porque a fonte empregada é um tipo “fantasia”, desenhada, seja porque o texto sobreposto ao resto todo vem desenhado mesmo, com tratamento igual ao da imagem que ele corta com sua existência. Há aqui uma renúncia na recepção literal do conteúdo. Estes textos, em fonte especial ou desenhados, são tratados exatamente da mesma maneira que os objetos que os acompanham. Enfeitados, desenhados ou em fonte inesperada, estes textos têm a função de imagem, e mais a terão quanto mais a fonte sair da escolhida como padrão. São imagens, efetivamente.

(O contrário também existe. Quando figuras obedecem a uma linha horizontal, sequencial, narrativa, e são representadas sem “pulos” em seu lento modificar-se, elas serão “lidas” como texto, ou seja, devagar. São imagens-texto. São texto. Descrevem uma ação, e não têm o impacto de um evento.)

Há outras possibilidades de utilização consciente, manipulativa, da fonte e do corpo de um texto.

E aqui voltamos a Holbein. A caixa-alta para Holbein não é a mesma caixa-alta para nós, hoje e aqui. Holbein escrevia em latim. O que ele pretendia era se beneficiar das propriedades icônicas de poder social presentes na palavra escrita de seu tempo, e de todos os tempos. Usava latim, e caixa-alta. Não podia ser mais explícito. A linha escrita de Holbein tinha um valor hierático que de todo perdemos no vernáculo que se nos apresenta. Pelo contrário, caixa-alta, hoje, traz uma referência de analfabetismo, ou de récem-alfabetizados. Quem aprende a ler, aprende em caixa-alta. A caixa-alta na novela gráfica é um dos fatores a perpetuar o conceito de que se trata de uma espécie de obra que ameaça e dilui o literário, que é algo raso, para consumo por camadas não intelectualizadas da sociedade. No entanto perdura mesmo neste seu estágio de grandes ambições literárias. Esta insistência mereceria ser revista em reflexões de viés mais socioeconômico do que as deste artigo. Arrisco, no entanto, um palpite. Da mesma forma que novas levas da população se inserem na classe média mantendo por algum tempo as especificidades de sua origem, talvez a novela gráfica, tendo nascido na cultura de massa repudiada pela academia e elite, mantenha teimosamente rastros de sua identificação primeira, à guisa de desafio. Pode ser também que a qualificação de público “inferior” seja mantida, com a escolha da caixa-alta, com o intuito de oprimir a quem da novela gráfica lança mão em uma primeira inserção ao literário. Haveria, neste caso, uma estratégia do dominante em dar ao dominado uma imagem inferiorizada - e perenemente assim - de si mesmo. Não sei.

Sei que, seja qual for o uso manipulativo atual da manutenção da caixa alta, ela não é o único vestígio de uma origem não intelectualizada a se manter mesmo em um momento de ascensão ao que seria uma qualidade literária mais típica de extratos poderosos da sociedade. A novela gráfica tem, nas suas narrativas, traços de oralidade.

(Daí o título de meu artigo ser “os sons das imagens” e não “os textos das imagens”.)

Não só, nem sequer principalmente, pela presença grande dos diálogos. Vejo a oralidade na novela gráfica como um eco de epopeias, um contar recontado, e modificado a cada recontar. O que só pode acontecer antes da fixação na palavra escrita. Ou da aceitação da palavra escrita como lei, o que vem a dar no mesmo. Parecem um pouco contos populares, contos de fada. Têm um pé no mito. Há aqui - e eis o pensamento que eu estava devendo a respeito da repetição de temas, da presença de tipos e estereótipos nesta forma híbrida de ... literatura?, arte?, entretenimento? - uma nostalgia de grandes histórias. Grandes indagações. Grandes temas. Há aqui uma necessidade de recuperar uma grandiosidade. Quando digo grandiosidade, incluo seu antônimo e sinônimo, a falta de. Ao lado de heróis e histórias de salvar e destruir mundos, há o niilismo dos marginais e perdedores. Mas pode ser que, nesta nostalgia do grandioso (ainda que em sua forma negativa), haja simplesmente a necessidade de recuperar a sensação de fazer sentido, de algo que explique. Sentidos costumam ficar mais tênues nas viradas dos séculos e, a se acreditar em Eric Hobsbawm (1997HOBSBAWM, Eric (1997). Age of extremes. Londres: Abacus., p. 558), o século XX acabou antes do seu fim, e mais ou menos na época em que a novela gráfica iniciou sua ascensão. A reforçar esta hipótese há o fato de a oralidade a que me refiro ir além da recuperação de epopeias e heroismos (ou não histórias e anti-heróis) de outras épocas e fogueiras. Inclui um fantástico maneirista (também típico de viradas de séculos), que se contrapõe ao realismo das imagens. Ou melhor, que é compensado, legitimado, por ele. Assim, seres fantásticos, híbridos, maneiristas, serão desenhados realisticamente, em uma compensação cruzada: o realismo torna possível haver o fantástico, e vice-versa.

A oralidade vai encontrar sua expressão não só no conteúdo dos textos, mas também em sua aparência. Não me refiro aqui, já explicitei, à presença dos balões de diálogo. Falo da fonte cursiva. Façamos mais um pulo para a arte brasileira contemporânea, Mira Schendel. Seus enormes quadros são cobertos de textos em letra cursiva. O cursivo implica uma certa rapidez. Ninguém lê o que está escrito nos quadros de Schendel. O olho escorrega em cima das palavras, é quase tátil. Na novela gráfica, a continuidade do traço de uma letra cursiva (cuja linha - e o olho com ela - não se afasta do papel até que o texto acabe) parece dizer que sim, trata-se de um texto. Portanto algo de recepção mais lenta do que uma imagem, mas é algo que não se deseja tão lento assim, só um pouco. É um meiotermo em relação ao tempo característico dos textos. Há o texto narrativo, em seu espaço próprio ou misturado à imagem, e há o texto cursivo. Não tão rápido quanto a imagem, nem tão lento quanto seu companheiro ali, no outro espaço - aquele sim, um texto-texto.

A oralidade, assim, também é este texto ligeirinho. Pode precisar de algo, aqui ou ali, que a faça recuperar seu valor de texto-texto. E agora, sim, entramos nos balões.

O “normal” é que o personagem que fala esteja à esquerda ou logo abaixo do balão em que está o que ele fala. Isto porque ele fala, e sua fala será escutada depois que ele a profere. Como nós, ocidentais, temos nossa linha de apreensão de sentido marcada indelevelmente da esquerda para a direita porque é assim que escrevemos, o personagem falante estará antes daquilo que fala. E o que ele fala estará antes de quem o escuta, que, possivelmente, encontra-se no quadradinho seguinte, à direita.

Sempre lembrando. Ler demora mais do que ver. Ter um balão, provavelmente à sua direita ou sobre a cabeça, como um chapéu nobiliárquico, significa que aquela figura se manterá por mais tempo na atenção do receptor. A figura ficará lá, esperando que o receptor acabe de ler o que está escrito no balão referente a ela. Ou seja, um texto de diálogo, ainda que na deslizante fonte cursiva, ainda que não sendo exatamente um texto com função-texto plena, ainda assim, estará valorizando - como todo texto - a figura que a ele estiver ligada.

Mas atenção, os balões não vêm por trás das figuras que falam. Vêm na frente. Antes (ou em cima) e ligeiramente na frente delas. Há uma ligeira sobreposição. É um tipo de eixo emotivo interno de um mesmo espaço, igual ao que me referi quando falei do Holbein e suas linhas de texto interrompidas pelas figuras dos retratados. Aqui também trata-se de um pequeno eixo emotivo interno (pois o espaço da figura e do balão é, em última instância, em que pese a linha divisória que desenha o balão, um só e mesmo espaço). Só que aqui, a sobreposição no eixo emotivo interno é ao contrário do de Holbein. Ele punha as figuras na frente. A novela gráfica põe o texto. E por causa disso, dessa prevalência, embora mínima, do diálogo sobre a figura que o profere, é comum não haver diálogos em momentos que o produtor deseja ressaltar como de grande tensão emocional. Os textos, quando inseridos no jogo do eixo emotivo perdem, quanto mais se aproximam do receptor, a sua função de texto, a sua função de provocar pausas. Por causa disso, se o produtor estiver trabalhando em uma camada mais próxima do receptor, ele substituirá os textos por outra coisa mais eficaz, caso o desejado seja uma pausa no eixo narrativo. Em vez de textos, haverá então zooms da imagem ou de detalhes dela, repetidos em vários ângulos, em uma manutenção por quadros e quadros de um mesmo momento cristalizado. É a imagem - repetida ou aumentada - exercendo uma função-texto.

Há outros truques para compensar a perda eventual do poder de pausa do texto oral. Por exemplo, pôr o balão de diálogo à esquerda de quem fala. À esquerda, e o receptor entenderá o que está sendo dito como já tendo sido dito. O personagem já acabou a sua fala. E está lá, após a fala, em geral olhando ou virado para a esquerda. E aí, por mais atenuantes que haja em sua função-texto, por mais ingredientes a fazê-lo exercer uma função-imagem, este texto recupera sua potência de pausa. As palavras à esquerda têm um valor de “verdade”, de reflexão, meditação, por parte do personagem que as proferiu. E, portanto, pelo receptor que com ele se identifica.

Assim, além da fonte e do corpo escolhidos para o texto, também há que se considerar sua localização no espaço - próprio ou compartilhado. Porque há lugares “normais” e há as transgressões.

Linhas tortas ou que se entortem, linhas em pé à direita (em uma referência-homenagem a outra das vertentes originais da novela gráfica, os mangás japoneses), passagens de uma página para a outra, tudo que dificultar - ou, ao contrário, ressaltar - uma leitura é uma manipulação do tempo de recepção.

Conclusão: as possibilidades e os limites da novela gráfica

Ter um eixo emotivo, fórico - no uso que faz do termo o semiólogo Luiz Tatit (2001TATIT, Luiz (2001). Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial., p. 17) a partir de A. J. Greimas -, e outro narrativo, lógico e sequencial; usar percursos gerativos de significação por impacto, imagéticos, junto a percursos gerativos contextuais, situados, de significação, nada disso é exclusivo da novela gráfica. Qualquer literatura terá os quatro elementos. Qualquer arte também. O que a novela gráfica traz de específico é a explicitação e autonomia dadas a eles. É sua atratividade (pelo menos para mim). E é também o seu limite quanto a ser um instrumento de resistência às estruturas de poder, função de qualquer arte.

Não é só por ter origem na cultura de massa - brasileira, americana ou japonesa, tanto faz - com o que isto equivale de risco de aceitação passiva de estruturas em curso, e de reforço delas. O próprio fato de manter separadamente seus quatro elementos fundadores significa, como vimos, um maior poder de manipulação por parte do produtor. Um maior poder de sedução imediata.

É claro que tal poder de controle sempre estará apto a se voltar contra o que controla. Talvez com a entrada de grupos marginalizados do e no seu campo de atuação, a coisa mude. Mulheres, gays, negros ou qualquer outro grupo que receba valoração negativa na cultura dominante (Dalcastagnè, 2010DALCASTAGNÈ, Regina (2010). “Representações restritas: a mulher no romance brasileiro contemporâneo”. In: DALCASTAGNÈ, Regina e LEAL, Maria Virgínia (Orgs.). Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo: Editora Horizonte., p. 42) talvez criem novelas gráficas que ataquem de algum modo os quatro pilares de sustentação e sedução descritos neste artigo. Não me refiro aqui à representação de tais grupos não detentores do poder, quando feita pelos detentores do poder (social ou literário). Ainda que tal representação visasse à denúncia, o que não é aqui o caso, ela seria mais uma imposição da voz do outro (id., ibid.). A representação desses grupos dentro de novelas gráficas, aliás, é muito pequena, quando não inexistente, além de frequentemente caricata e desrespeitosa. Principalmente no caso das mulheres, seu papel de objeto em jogos eróticos ou como subserviente ao homem é acentuado mais ainda do que já é o caso na literatura brasileira contemporânea, como observado por Regina Dalcastagnè na sua pesquisa já citada. Minha esperança é que a entrada desses grupos como produtores - se acontecer - mude alguma coisa. Digo que talvez assim haja um questionamento, um balançar dos próprios procedimentos e processos de feitura da novela gráfica, como um eco da atitude política desses grupos em suas tentativas de balançar a estrutura maior, a social.

Algo na linha do Magritte (voltando à história da arte) que, aliás, não podia ser mais integrado ao capitalismo que o fez rico. Seu “Ceci n’est pas une pipe”, com a frase escrita sobre a figura de um cachimbo, foi recebido, por seus contemporâneos até nós, como uma brincadeira da poética surrealista. Daí, provavelmente, seu sucesso comercial. Se fosse recebido através de outra leitura, como uma confissão de que imagens e textos deixam sempre uma brecha, um vácuo desestabilizador, se fosse recebido como um apontamento de que a recepção da arte não pode e não deve ser apaziguadora, aí teríamos talvez um exemplo de uso de texto e imagem apto a ser seguido pelas novelas gráficas. Aliás, é bom lembrar que Magritte, em que pese sua proximidade com as camadas detentoras do poder, inclusive nazistas, deu outro título a seu quadro famoso. O quadro não se chama “Ceci n’est pas une pipe”. Faz parte de uma série chamada “La trahison des images.”

Quando disse acima que a cultura de massa em que nasceu a novela gráfica poderia ser brasileira, americana ou japonesa, e que isso não faria diferença, quis dizer que não faz diferença quanto ao seu risco de permanecer como um entretenimento não perturbador do status quo. Para nós, brasileiros, faz uma diferença. Nossa cultura não contém epopeias. Mesmo heróis mais modestos, mais temporários, não têm uma vida fácil entre nós. Então haveria que se pensar como isso fica. Talvez bem. Talvez quem tenha que se preocupar é o herói e seu culto.

A prevalência esperada dos meios eletrônicos como suporte do que antes era um livro ameaça a sobrevivência da novela gráfica tal como a conhecemos. A relação entre imagens e textos como está analisada aqui supõe tamanhos grandes de página. Sua adaptação para telas, um suporte de tamanho menor, irá mudar substancialmente o jogo de tensões. Resta saber se, atropelada por esta mudança, a novela gráfica poderá seguir o caminho a que se propôs, o do uso desestabilizador - como sinônimo de literário e artístico - de suas potencialidades.


Ausência de texto em momentos de tensão. (Eisner, 2005EISNER, Will (2005). Narrativas gráficas. São Paulo: Devir.)

Referências bibliográficas

  • BOURDIEU, Pierre (1996). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras.
  • BUTOR, Michel (1980). Les mots dans la peinture. Paris: Flammarion.
  • DALCASTAGNÈ, Regina (2010). “Representações restritas: a mulher no romance brasileiro contemporâneo”. In: DALCASTAGNÈ, Regina e LEAL, Maria Virgínia (Orgs.). Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea. São Paulo: Editora Horizonte.
  • DEYSON, Gilbert (2009). “Arte, política e crítica como fetiche”. In: Tatuí. Recife: Secretaria de Educação de Pernambuco. n. 6, p. 8-11.
  • EISNER, Will (2005). Narrativas gráficas. São Paulo: Devir.
  • HOBSBAWM, Eric (1997). Age of extremes. Londres: Abacus.
  • SALZSTEIN, Sonia (2010). “Historicidade e arte contemporânea”. Palestra proferida na abertura do evento do mesmo nome, no campus Maria Antônia, da USP.
  • TATIT, Luiz (2001). Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2011

Histórico

  • Recebido
    Mar 2011
  • Aceito
    Abr 2011
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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