resumo
Este artigo tem como objetivo abordar enquanto objeto literário a fala poética de Stela do Patrocínio, diagnosticada como esquizofrênica e mantida em clausura institucional entre 1962 e 1992. Para isto, temos como base o livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, no qual a filósofa Viviane Mosé transcreve em versos as falas de Stela, gravadas por sua resistência em lidar com tintas e papéis em um projeto desenvolvido pela artista plástica Neli Gutmacher. O artigo se divide em duas seções. A primeira se dedica à biografia de Stela e à própria condição da clausura como origem das falas poéticas. A segunda se detém em abordar as falas como textos e a refletir sobre o encontro entre loucura e poesia. Essa poesia que emerge de uma voz marginalizada pela instituição surpreende e nos desafia pela forma como organiza esteticamente a percepção que a poeta tem de si como objeto dentro do discurso médico.
Palavras-chave:
Stela do Patrocínio; poesia; clausura
abstract
This article reads the poetic speech of Stela do Patrocínio, diagnosed as a schizophrenic and kept in institutional confinement between 1962 and 1992, as a literary object. We base our study on the book Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, in which the philosopher Viviane Mosé transcribes the speeches of Stela into verses. Stela’s speeches were recorded because of her resistance to dealing with paint and paper in a project developed by the visual artist Neli Gutmacher. The article is divided into two sections. The first is devoted to the biography of Stela and her confinement as the origin of her poetic speech. The second section approaches Stela’s speeches as texts so as to reflect on the encounter between madness and poetry. The poetry that emerges from a voice marginalized by the institution surprises and challenges us in how it aesthetically organizes the poet’s perception of herself as an object within medical discourse.
Keywords:
Stela do Patrocínio; poetry; confinement
resumen
Este artículo tiene como objetivo abordar como objeto literario el habla poética de Stela del Patrocinio, diagnosticada como esquizofrénica y mantenida en clausura institucional entre 1962 y 1992. Para esto, tenemos como base el libro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, en el que la filósofa Viviane Mosé transcribe en versos las palabras de Stela, grabadas en función de su resistencia a lidiar con tintas y papeles, en un proyecto desarrollado por la artista plástica Neli Gutmacher. El artículo se divide en dos secciones. La primera se dedica a la biografía de Stela y a la propia condición de la clausura como origen de las palabras poéticas. La segunda se detiene a abordar las palabras como textos y reflexionar sobre el encuentro entre locura y poesía. Esta poesía que emerge de una voz marginada por la institución sorprende y nos desafía por la forma en que organiza estéticamente la percepción que la poeta tiene de sí como objeto dentro del discurso médico.
Palabras clave:
Stela do Patrocínio; poesía; clausura
Clausura e falatório
Em 1962, através do encaminhamento da quarta Delegacia de Polícia da cidade do Rio de Janeiro, Stela do Patrocínio, mulher negra, de 21 anos, foi internada no Centro Psiquiátrico Pedro II. Diagnosticada como esquizofrênica, Stela passou cerca de três anos nesse local. Em 1966, foi transferida para a Colônia Juliano Moreira, onde ficou até 1992, ano de sua morte. Pouco se sabe sobre Stela. Nascida em 9 de janeiro de 1941, na cidade do Rio de Janeiro, filha de Zilda Xavier do Patrocínio e de Manoel do Patrocínio, Stela era solteira, gostava de óculos de sol, caixa de fósforo, cigarro, Coca-Cola, leite condensado e biscoito de chocolate (Mosé, 2009MOSÉ, Viviane (2009). Stela do Patrocínio: uma trajetóriapoética em uma isntituição psiquiátrica. In: PATROCINIO, Stela. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue., p. 14-15).
Tinha instrução secundária e trabalhou como empregada doméstica na mesma casa em que também trabalhou sua mãe, que, assim como Stela, foi internada no núcleo Teixeira Brandão da Colônia Juliano Moreira. Stela conta, porém, que não chegou a encontrar com sua mãe no hospital (Mosé, 2009MOSÉ, Viviane (2009). Stela do Patrocínio: uma trajetóriapoética em uma isntituição psiquiátrica. In: PATROCINIO, Stela. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue., p. 14-15). A colônia em que Stela permaneceu por cerca de 30 anos chegou a um número de 7.700 pacientes e, durante os anos 1980, passou pelo processo denominado de Reforma Psiquiátrica, que consistiu numa transformação em relação ao tratamento dado ao interno (Mosé, 2009MOSÉ, Viviane (2009). Stela do Patrocínio: uma trajetóriapoética em uma isntituição psiquiátrica. In: PATROCINIO, Stela. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue., p. 10).
Com o intuito de resgatar a cidadania do paciente, aboliram-se os castigos, o eletrochoque, as celas fortes. Stela do Patrocínio vivenciou o processo de mutilação das individualidades e da subjetividade, inerentes às estruturas psiquiátricas arcaicas e tradicionais em atividade no Brasil durante a década de 1970. Em 1986, a convite da psicóloga Denise Correia, a artista plástica Neli Gutmacher, professora na Escola de Artes Visuais do Parque da Lage, no Rio de Janeiro, iniciou, juntamente com seus alunos, a montagem de um ateliê na Colônia Juliano Moreira.
O projeto durou cerca de dois anos e tinha por objetivo propiciar o contato entre pacientes e artistas. Stela do Patrocínio destacou-se entre os demais pacientes por sua singularidade e por sua fala desconcertante. Tinha o porte de uma rainha, não se comportava como as outras internas, que se aglomeravam, sempre pedindo. Sua maneira de se colocar no espaço caracterizava-se por um silêncio agudo. Impossível não percebê-la, negra, alta, com muita dignidade no porte, às vezes enrolada em um cobertor com os braços e o rosto pintados de branco (Mosé, 2009MOSÉ, Viviane (2009). Stela do Patrocínio: uma trajetóriapoética em uma isntituição psiquiátrica. In: PATROCINIO, Stela. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue., p. 13-14).
Durante o período de desenvolvimento do projeto, Neli Gutmacher, Stela do Patrocínio e a estagiária Carla Gaguilard aproximaram-se, o que resultou no registro da fala poética de Stela. No ano de 1988, as artistas plásticas responsáveis pelo desenvolvimento do projeto na Colônia Juliano Moreira montaram a exposição “Ar Subterrâneo”, no Paço Imperial, com os trabalhos realizados durante as oficinas. Entre as obras expostas estavam, transcritas em pequenos quadros, algumas falas de Stela. Pela primeira vez o falatório de Stela ultrapassou a muralha da instituição psiquiátrica (Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 13).
Em 1991, Mônica Ribeiro de Souza, estagiária de psicologia, registrou e transcreveu, organizando em um pequeno livro datilografado, os atendimentos que realizava com Stela. Os pequenos textos que Stela costumava escrever em papelão não foram encontrados. Em 1992, após 30 anos de clausura, Stela do Patrocínio teve a perna amputada em decorrência de uma hiperglicemia. Esse acontecimento a entristeceu muito. Ela deixou de falar e comer. E por não se recuperar da cirurgia à qual foi submetida, morreu de infecção generalizada (Mosé, 2009MOSÉ, Viviane (2009). Stela do Patrocínio: uma trajetóriapoética em uma isntituição psiquiátrica. In: PATROCINIO, Stela. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue., p. 15).
Em 2001, a psicanalista e doutora em filosofia Viviane Mosé publicou o livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, pela Azougue Editorial, em parceria com o Museu Bispo do Rosário. O livro resultou de seu trabalho de organização do falatório de Stela do Patrocínio e contém as falas de Stela transpostas em versos. Viviane Mosé havia entrado em contato com a Colônia Juliano Moreira com o intuito de desenvolver com os internos um projeto no qual realizaria oficinas literárias para, posteriormente, publicar o material escrito pelos pacientes.
Porém, quando teve acesso aos textos de Stela, o rumo de sua pesquisa mudou. Mosé percebeu que a fala de Stela era singular, organizava a tensão gerada entre ordem e ausência de ordem de forma delirante, móvel, fundada na afirmação de sua fragmentação (Mosé, 2009MOSÉ, Viviane (2009). Stela do Patrocínio: uma trajetóriapoética em uma isntituição psiquiátrica. In: PATROCINIO, Stela. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue., p. 17-18). Mosé reparou também que Stela do Patrocínio usava intimamente a palavra, não a palavra da comunicação, mas a palavra deslocada da interioridade e da subjetividade cotidiana. Stela falava de sua condição como quem se vê de fora, se desdobra. Mais do que isso, ela falava sobre o seu falar, uma operação ainda mais elaborada.
Viviane Mosé iniciou, então, a organização das falas de Stela, gravadas entre os anos de 1986 e 1988 por Neli Gutmacher e Carla Guagliard, bem como os textos transcritos pela estagiária de psicologia Mônica Ribeiro em 1991. A organização consistiu na seleção e reestruturação temática do material. Além disso, houve um trabalho de distribuição/disposição dos versos conforme o próprio ritmo já existente na fala de Stela. Ao iniciar a organização do material colhido, a primeira preocupação de Viviane Mosé foi decifrar a sonoridade do texto.
A organizadora aponta, na introdução do livro, que vê seu trabalho como uma transposição. O que era fala vira escrita; logo, dois universos distintos. Os registros em fitas cassete foram fundamentais para a organização do texto, pois, através da escuta deles, Mosé pôde organizar os versos respeitando o ritmo da fala de Stela do Patrocínio. Apesar dos anos de isolamento, Stela quase não cometia erros gramaticais, o que poupou Viviane de realizar correções. Os poucos erros cometidos, como se pode perceber, estão presentes no texto.
O texto foi organizado sem cortes internos, sem a introdução de partes soltas. A autora apresenta em sua publicação falas inteiras, ditas num só fôlego, sem cortes internos nos textos ou fragmentos de conversas que Viviane Mosé retirasse de um contexto. Nas palavras de Mosé, o falatório de Stela se concebe como olhar, como espacialidade, como configuração. Esse foi o fio tecido na concepção do texto escrito como exegese, como obra artística que pretendeu revelar o universo particular de Stela do Patrocínio.
O discurso poético de Stela do Patrocínio vem a público, portanto, em Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. A voz de Stela emerge de sua experiência trágica de clausura. Interna durante 30 anos, Stela é espectadora do aprisionamento do seu corpo, que se dá através do discurso da razão:
Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo
portão
Maria do Socorro não deixa eu passar pelo portão
Seu Nelson também não deixa eu passar lá no
portão
Eu estou aqui há vinte e cinco anos ou mais
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 47).
Esse mesmo discurso que se apossa da loucura por se considerar detentor do saber a respeito da cura da doença mental é incorporado por Stela:
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas você também não pode ficar
Pelo espaço vazio também não vai poder ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 44).
Essas palavras permitem somente a percepção indireta do desejo de estar fora da cabeça e do corpo ou de anular suas fronteiras. A sensação de não pertencimento se expressa plenamente na operação anafórica em que as palavras transitam e expressam a recorrência da resposta proibitiva do espaço institucional. Como em uma intervenção mágica, Stela retira da reiteração da proibição a força de sua poética através de uma rítmica cuja dimensão lúdica se afirma como transgressão das próprias normas que incorpora.
Os limites dados ao corpo de Stela ultrapassam o espaço físico. Uma vez que ela os incorpora, acatando a lógica institucional, eles ganham uma nova dimensão. De maneira muito lúcida, Stela percebe que o discurso do saber a vence e lhe impõe não apenas restrições físicas. Sua poética denota a degradação à qual o poder psiquiátrico a submete, levando-a à experiência-limite. Sua fala impressionantemente lúcida questiona a oposição loucura/razão propagada ao longo dos séculos pelo discurso científico.
Ao excluir a loucura do domínio do discurso, a racionalidade justifica suas práticas de dominação e isolamento, que culminam na exclusão de tudo o que não pode ser explicado pela razão. É através desse mesmo discurso, desconcertantemente lúcido, que Stela relata sua vivência como interna, como corpo subjugado pelo poder institucional. Imersa num universo dramático, Stela expressa através da sua voz as tensões em relação ao mundo que ela enxerga, sua subjetividade, sob uma perspectiva particular.
É no discurso voltado para o internato e para a exclusão que se dá o encontro de conflitos existentes entre poder psiquiátrico e loucura. O texto de Stela a aproxima do âmbito da razão e evidencia sua subjetividade e humanidade. A sua autorrepresentação, em um contexto em que a fala do louco é interditada, descortina o véu da loucura e faz perceber que ela também está presente no discurso e na prática institucional.
A fala poética de Stela é organizada por Viviane Mosé em sete capítulos, separados por eixos temáticos distintos. No primeiro capítulo, intitulado “Um homem chamado cavalo é o meu nome”, Stela fala da sua vivência sob o poder institucional. No segundo capítulo, “Eu sou Stela do Patrocínio, muito bem patrocinada”, ela discorre sobre sua visão a respeito de seus colegas, fala de sua suposta origem familiar, toma por familiares seus colegas e os funcionários do hospício, reflete sobre sua loucura e fala de suas perspectivas para o futuro.
Em “Nos gases eu me formei, eu tomei cor”, terceiro capítulo, Stela se volta para questões existenciais. E também aborda os temas da maternidade e do sexo. No quarto capítulo, “Eu enxergo o mundo”, Stela questiona mais uma vez a origem de seu olhar sobre o mundo e constata a quais grupos ela não pertence dentro da estrutura social e biológica. No quinto capítulo, “A parede ainda não era pintada de azul”, Stela fala de Deus, do sentimento de aprisionamento, de sexo e de maternidade.
No sexto capítulo, “Reino dos bichos e dos animais é meu nome”, ela resigna-se diante do poder científico que lhe é imposto, volta-se para o hospital psiquiátrico, lança algumas perspectivas a respeito do que é realidade, associa sua condição à morte, à vida, a uma pertencente ao reino dos animais. No sétimo capítulo, “Botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo nenhum”, num primeiro momento, Stela fala de sua tristeza profunda, de sua condição de miséria extrema, depois retoma temas já tratados em capítulos anteriores: família, sexo, sua vontade de ser má com a família de cientistas e colegas de internato. O poder que os outros exercem sobre seu corpo lhes proporciona gozo. Entretanto, ela não tira disso gozo nenhum; está cansada, triste.
No último capítulo, “Procurando falatório”, ela reflete sobre seu falatório. Ao final do livro, há uma entrevista realizada com a autora. A fala de Stela evidencia o olhar de quem se vê de fora, se desdobra. Ela é capaz de refletir sobre sua condição de corpo institucionalizado e questionar o saber científico que a aprisiona. Para além disso, Stela mostra a fragilidade do discurso científico. Na estrofe abaixo, o sentido tradicional dado aos pares oponentes loucura/razão e saúde/doença inverte-se. Nessa capacidade de transgredir a ordem posta, reside a força poética de Stela:
Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Estava com muita saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 43).
Para Stela, o internamento a torna doente, o diagnóstico de esquizofrênica é o que a reduz a uma única palavra: doente. O que para o saber científico é tratamento, para Stela é doença. Seu discurso denuncia que a cura para a doença mental, que nada mais é do que uma prática de disciplinamento, isolamento e exclusão, a conduz para a pior doença. Essa afirmação também acaba por questionar o sentido de loucura e razão uma vez que o discurso científico é visto pelo louco como menos lógico, o tratamento é doença.
Em “A casa dos loucos”, Foucault afirma que a produção de verdade, transposta para o contexto médico, também desenvolve seus instrumentos próprios para atuar. O hospital, supõe-se, deveria ser o espaço em que doenças pudessem ser classificadas umas em relação às outras, comparadas, distinguidas, reorganizadas em grupos de doenças. Cada uma delas deveria ser observada em sua especificidade, seguida em seu desenvolvimento, balizada no que há de essencial ou acidental.
No hospital, há um espaço de observação fácil em que não se consegue esconder a verdade das doenças. Por outro lado, ele também exerce uma ação direta sobre ela e isso consiste não apenas na possibilidade de sua revelação, mas, tal como no âmbito judiciário, num meio de produzir a doença. O hospital, nesse sentido, torna-se o local de eclosão da verdadeira doença (Foucault, 1996FOUCAULT, Michel (1996). Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal., p. 118).
O doente deixado em estado livre, em seu meio, com seus parentes, seus próximos, com sua alimentação, com sua rotina, seus hábitos, suas ilusões, só poderia de fato ser vitimado por uma doença indefinida, complexa, que poderia ser a mistura de muitas doenças, resultando no impedimento para que a verdadeira doença se produzisse na autenticidade da sua natureza.
A função do hospital é, no entanto, ao afastar esse estado de liberdade em que o doente se encontra, não somente enxergar a doença tal como ela é, mas produzi-la na sua verdade até então desconhecida. A natureza da doença, suas características, seu desenvolvimento específico, a partir do efeito da hospitalização, tornam-se realidade. E a fala de Stela testemunha o que se faz com seu corpo dentro do espaço hospitalar:
Fiz várias operações
sou toda operada
Operei o cérebro, principalmente
Eu pensei que ia acusar
Se eu tenho alguma coisa no cérebro
Não, acusou que eu tenho cérebro
Um aparelho que pensa bem pensado
Que pensa positivo
E que é ligado a outro que não pensa
Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar
Eles arrancaram o que está pensando
E o que está sem pensar
E foram examinar esse aparelho de pensar e não
pensar
Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu
cérebro
Estudar fora da cabeça
Funcionar em cima da mesa
Eles estudando fora da minha cabeça
Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 61).
De um lado, há a constatação de que doença é o modo como Stela se sente durante a condução do seu tratamento. De outro, a imposição de um discurso científico que se pauta no saber, na detenção de um conhecimento específico aplicado à cura da doença. Com sua sorte já definida pelo saber científico que a classifica, reduz e isola, resta a Stela curvar-se diante do poder que se impõe sobre o seu corpo: “A vida a gente tem que aceitar como a vida é / E não como a gente quer” (Mosé, 2009MOSÉ, Viviane (2009). Stela do Patrocínio: uma trajetóriapoética em uma isntituição psiquiátrica. In: PATROCINIO, Stela. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue., p. 101). Stela observa que, nessa prática de disciplinamento e exclusão do doente mental, de poder exercido sobre o corpo subjugado, há um gozo que não lhe resulta em qualquer gozo, mas, ao contrário, culmina na perda da sua felicidade:
Em mar de Copacabana
Cachoeira de Paulo Afonso
Bem dentro da Lagoa Rodrigo de Freitas
No Rio de Janeiro
O futuro eu queria
Ser feliz
E encontrar a felicidade sempre
E não perder nunca o gosto de estar gostando
O que eu penso em fazer da minha vida
É encontrar a felicidade, ser feliz
Ficar gostando e não perder o gosto
Ser feliz
Encontrar a felicidade
E não perder o gosto de estar gostando
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 65).
Mas a leveza que se dá com a simples repetição das palavras na segunda e na terceira estrofe, em especial “gosto de estar gostando”, em que gostando ganha a uma dimensão anterior, também evidencia que o “gosto de estar gostando” é algo para o futuro, não está no presente. O presente é marcado não somente pela perda do gosto, mas pela perda do gosto de gostar. No capítulo “Botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo nenhum”, essa questão ganha um tom mais amargo, sua poética denota um sentimento de total perda de perspectivas em relação à vida:
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 113).
Eu tenho que enfrentar a violência
A brutalidade e a grosseria
E ir à luta pelo pão de cada dia (Patrocínio, 2009, p. 114).
Eu sou mundial podre
Tudo pra mim é merda durinha à vontade
Até ser contaminada e contaminada até ser merda pura
E é merda fezes excremento bosta cocô
Bicha lombriga vermes pus ferida vômito escarro
porra
Diarreia disenteria água de bosta e caganeira
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 115).
O corpo enclausurado tem sua ação limitada pelo discurso científico que, protegido pela verdade, também silencia a voz do louco por considerá-la o aspecto negativo dentro da oposição razão/loucura. Stela sabe disso e resigna-se diante do poderoso discurso racional. Ela perde o gosto de gostar, perde a coragem de lutar contra a brutalidade e a grosseria da prática institucional. E constata que sua condição é de uma miséria profunda, de uma podridão. Para representar esse estado, a autora usa um repertório de palavras que, em sua maioria, expressam o pior, a sujeira repelida pelo corpo, o resto do corpo. Essa combinação de palavras que se repetem ganha um tom lúdico; entretanto, fala do pior estágio a que chega Stela.
Falar, falar, romper o silêncio que lhe impõe o seu destino institucional. Falar da sua vivência dramática para encontrar na sua voz o gozo. Mas para Stela quem goza são os outros. Em “Procurando falatório”, Stela se declara cansada, pois fala muito e em nada resulta:
Porque já falei tudo o que tinha pra falar
Falo, falo, falo, falo o tempo todo
E é como se eu não tivesse falado nada
Eu sinto fome e matam minha fome
Eu sinto sede e matam a minha sede
Fico cansada falo que tô cansada
Matam meu cansaço
Eu fico com preguiça matam minha preguiça
Fico com sono
Quando eu reclamo
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 134).
Num homem feio
Mas tão feio
Que não me aguento mais de tanta feiura
Porque quem vence o belo é o belo
Quem vence a saúde é a outra saúde
Quem vence o normal é o outro normal
Quem vence um cientista é outro cientista
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 135).
A consciência de que seu discurso ocupa a margem da sociedade faz com que Stela julgue seu falatório desnecessário, incapaz de vencer o cientista. Mas de certa forma ele o vence. A voz do louco, interditada pelo discurso da razão, rompe a muralha do hospital psiquiátrico para mostrar que essas duas instâncias não apenas se comunicam, mas são componentes de um mesmo binômio. A poética de Stela questiona os limites entre loucura e razão, loucura e literatura.
Dito isso, seria possível reclamar para Stela uma posição dentro do cânone literário. Entretanto, parece mais interessante considerar a proposição de Tereza Virginia de Almeida (2012), quando diz que a palavra de Stela é performance. Admiti-la no cânone seria, mais uma vez, subjugá-la a outra instituição, a literária. É a performance de Stela que vence o cientista e revela a loucura contida nas práticas institucionais.
Loucura e poesia
O pianista Lincoln Antonio compôs temas musicais relacionados a alguns dos registros das falas de Stela e criou o espetáculo Entrevista com Stela do Patrocínio, em que os discursos, mais que poemas, convertem-se em canções e exibem a característica mais impressionante na palavra de Stela: o ritmo que se apresenta a si mesmo a partir da própria circularidade de seu discurso delirante.
É possível afirmar que tanto o trabalho musical de Lincoln Antonio quanto o livro publicado por Viviane Mosé são somente vestígios de performances que em sua origem implicam a unicidade do corpo e da voz da Stela. Porém, o mais impressionante nesses vestígios é que o discurso de Stela nasce da própriada clausura: sua lírica trata de gênese do corpo, de seu destino institucional e da própria palavra como ação. Desse modo, a palavra de Stela se faz lúcida, dobrando-se sobre si mesma e convertendo-se em matéria sobre a matéria corporal.
Quando compreendida como rastro, como vestígio da palavra de Stela, a escrita que se registra no livro produzido por Viviane Mosé exibe algo que não é possível ver, mas apenas inferir: a presença de um corpo capaz de produzir um timbre que se oferece como singularidade. O ritmo que os escritos apresentam nos fazem inferir a imponência corporal com que Stela falou de coisas aparentemente simples, mas que tocam a experiência do limite. Quando perguntada se não teria desejo de produzir algo, Stela dizia que não. Mas produzia. Stela produzia palavra, voz, discursos - uma expressividade performática registrada em virtude da atenção que chamou.
As palavras do discurso delirante de Stela tematizam a própria experiência de seu corpo institucionalizado e que vive por conseguinte em um estado de circularidade que se reproduz em seu discurso através de reiterações. No fragmento abaixo, é o tempo que se apresenta no processo enumerativo o que possibilita a denúncia do sentimento de contínua ameaça que é vivido pelo seu corpo:
Minuto segundo toda hora
Dia tarde a noite inteira
Querem me matar
Só querem me matar
Porque dizem que eu tenho vida fácil
Tenho vida difícil
Então porque tenho
vida fácil tenho vida difícil
Eles querem saber como é que eu posso ficar nascendo
Sem facilidade sem dificuldade
Por isso eles querem me matar
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 56).
As palavras de Stela apresentam o confronto que se estabelece entre o limite da percepção de si e do outro sobre si através dos pares antitéticos difícil/fácil, facilidade/dificuldade. Na medida em que a dificuldade, ou seja, a ameaça de morte, é indissociável da facilidade que o outro vê na vida da Stela, a oposição se transforma em oximoro. Nesse sentido, é possível dizer que Stela encontra no oximoro a forma de expressar o sentimento de institucionalização, em que o sujeito se encontra subjugado à lógica do poder do qual não pode dissociar-se.
A filósofa italiana Adriana Cavarero apresenta uma importante contribuição acerca da voz em sua relação com o pensamento. Cavarero (2011CAVARERO, Adriana (2011). Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução de Flavio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG.) rastreia um processo geral de apagamento da voz na tradição filosófica ocidental em que uma abstração como a do sujeito se delineia à custa da eliminação da unicidade que é própria da voz e do corpo. A questão crucial para a filósofa é o confronto da tradição logocêntrica que separa a palavra dos falantes e, portanto, de seus corpos, para colocá-la no pensamento. Cavarero resgata a relação da voz com a cena materna, com sua origem corporal e também a dimensão semântica presente nos contornos musicais inerentes aos modos de dizer elementos que são próprios do discurso poético, que se define por uma operação em que o ritmo e a materialidade da palavra são inseparáveis do dizer.
A performance vocal de Stela provém de uma total proximidade entre palavra e corpo, como se a palavra fosse produzida somente através do ritmo de sua respiração, ao contrário da racionalidade. Esse discurso do corpo fala do próprio corpo, do corpo que transita entre a clausura e a libertação, entre a instituição e a existência de uma subjetividade que se reconhece além dos limites do corpo, em conjunção com o espaço vazio que é também vazio de pensamento:
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente
Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 74).
Cavarero (2011CAVARERO, Adriana (2011). Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução de Flavio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG.) retoma a presença das musas e das sereias na tradição literária com o objetivo de tratar do caráter material e musical da voz em contraste com a dimensão semântica da linguagem. Na transformação das imagens de musas e sereias há um processo pelo qual o feminino se separa da palavra. Em sua origem, as musas eram figuras detentoras da verdade e a transmitiam aos poetas, únicos seres capazes de ouvi-las. A mesma capacidade de narrar, agora através do canto, está presente nas sereias da Odisseia. Não obstante, com o passar do tempo, as sereias tornaram-se seres detentores de um canto letal e animalesco, vazio de palavras: pura sonoridade plena de sedução e poder.
As imagens da musa e da sereia permitem que se compreenda as palavras poéticas do discurso de Stela do Patrocínio como provenientes de um lugar intermediário entre os arquétipos. Por sua condição de esquizofrênica, Stela é detentora de um discurso transcendente em que ocupa uma posição de saber: o saber acerca de sua origem, o saber acerca do que é desconhecido. Mas, ao contrário de outras pessoas em sua condição, na maior parte do tempo, Stela não utiliza o discurso místico. Ela fala de um estado anterior ao seu nascimento como se tivesse o poder de ver além de sua própria existência e, nesse sentido, ocupa ao mesmo tempo as posições de musa e de poeta.
Porém, por sua condição, Stela se aproxima da sereia. Se toda a voz pressupõe outra vez ser proferida por aquele que escuta, a voz do indivíduo diagnosticado encontra outro destino. O ouvinte não a reconhece plenamente como linguagem, não permite que transite dentro do campo semântico. Plena de significação para si mesma, a voz do esquizofrênico encontra uma escuta incrédula que não reconhece sua referencialidade e a transforma em pura materialidade, como o canto animalesco das sereias. Como rastrear o princípio de identidade que move essas palavras de Stela?
Não queria nascer
Não queria tomar forma humana
Carne humana e matéria humana
Não queria saber de viver
Não queria saber da vida
Eu não tive querer
Nem vontade pra essas coisas
E até hoje eu não tenho querer
Nem vontade pra essas coisas
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 69).
A identidade com o indiferenciado, anterior a seu próprio nascimento, apresenta-se como parte de uma mitologia recorrente no discurso de Stela do Patrocínio, que é constantemente atravessado por imagens de metamorfoses. Stela fala de um “eu” que provém dos gases, do vazio, e cujo corpo é resultado de um processo de transformação em que é central a ideia de movimento. O passado é para ela ampliado pela diversidade de identidades e pela circularidade da experiência:
Eu não existia
Não tinha existência
Não tinha uma matéria
Comecei a existir com quinhentos milhões
e quinhentos mil anos
Logo de uma vez, já velha
Eu não nasci criança, nasci já velha
Depois é que eu virei criança
E agora continuei velha
Me transformei novamente numa velha
Voltei ao que eu era, uma velha
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 69).
As palavras de Stela se movem em uma esfera especulativa cuja singularidade reside na forma lúcida com que indaga acerca dos objetos que investiga. Se, por um lado, Stela se aproxima do corpo como um objeto misterioso, detentor de mecanismos de origens desconhecidas, por outro, suas indagações sobre os mistérios da vida são dirigidas a seu interlocutor de forma rítmica, lúdica, que faz graciosa uma temática que outras palavras poderiam fazer angustiosa:
Cheirar pagar cantar pesar ter cabelos
Ter pele ter carne ter ossos
Ter altura ter largura
Ter o interior ter o exterior
Ter um lado o outro a frente os fundos
Em cima embaixo
Enxergar
Como é que você consegue enxergar
E ouvir vozes?
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 79).
A materialidade presente nas palavras de Stela certamente aproxima sua manifestação das palavras típicas do imaginário infantil. Nesse sentido, é importante recordar as relações que o poeta Julio Cortázar faz entre a poesia, a linguagem infantil e a atividade mágica. Para Cortázar (1974CORTÁZAR, Julio (1974). Valise de cronópio. Tradução de David Arrigucci e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva.), o poeta, o menino e o mágico encontram na direção analógica a forma do conhecimento do mundo. A condição de Stela possibilita uma vida em um estado de interrogação diante do mundo, muito próximo do que é experimentado na infância, especialmente porque ela parece perguntar sempre acerca das coisas mais concretas e tangíveis, mas, pouco a pouco, à medida que as palavras se impregnam do ritmo original de sua fala, vão revelando-se como parte de um universo invisível e oculto.
Não sei o que tem aqui dentro
Não sei o que tem aqui dentro
Não sei o que tem aqui dentro
Eu sei que tem olho
Mas olho para fazer enxergar como?
Quem bota para enxergar?
Se não sou eu que boto para enxergar?
Eu acho que é ninguém
Enxerga sozinho
Ele se enxerga sozinho
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 81).
É possível relacionar o universo de palavras de Stela com o inventário de Arthur Bispo do Rosário, outro interno na mesma instituição que se dedicou a confeccionar tecidos, com bordados e imagens e palavras em um exaustivo registro das experiências vividas. Assim como Stela, Bispo obtinha efeitos estéticos dos materiais de seu cotidiano, utilizando materiais encontrados no lixo da instituição e outros objetos banais que organizava através de elementos de sua biografia. Mas o projeto de Arthur Bispo do Rosário era grandioso, expansivo, interminável (Nino, 2007NINO, Maria do Carmo (2007). O colecionador do inatingível. In: COUTINHO, Fernanda; CARVALHO, Marília; MOREIRA, Renata (Org.). A vida ao rés-do-chão. Rio de Janeiro: 7 Letras., p. 53-59). O gesto de bordar palavras denuncia o desejo de perpetuação das formas criadas, confirmadas pelo fato de que Bispo tinha a intenção de se apresentar com um dos seus tecidos no momento do juízo final.
Lucia Castello Branco tem chamado a atenção para o bordado da letra no trabalho de Bispo. Para ela, é importante perceber que a inscrição da letra pressupõe também a inscrição do orifício no tecido, um orifício análogo ao que é necessário a toda a construção simbólica marcada pela diferença entre a palavra e a coisa (Branco, 1998BRANCO, Lucia Castello (1998). Palavra em ponto de P. In: BRANCO, Lucia Castello (Org.). Coisadelouco. Belo Horizonte: SCE., p. 388).
Stela do Patrocínio opera com outra matéria: a voz. O que é aparentemente apenas uma diferença de procedimento é na verdade a configuração de outra materialidade, de outra forma de projeção no espaço circundante. Nesse sentido, as especulações de Stela sobre o que é dentro e fora do corpo, acerca da forma e do que é anterior à forma, encontram na voz um objeto privilegiado, como algo que vem de dentro do corpo, forma o som das palavras, se projeta no espaço e desaparece. A qualidade da voz não pode ser dividida em traços distintivos.
Assim, Stela produz as palavras muitas vezes a partir da mera descrição do que se apresenta no espaço. Porém, no próprio ato da fala, surgem o ritmo, as assonâncias, que dão a dimensão estética do dito.
Este banco esta árvore
Esta terra
É este prédio de dois andares
Estas roupas estendidas na muralha
(Patrocínio 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 104).
Stela podia também alcançar o caráter poético ao explorar o uso cotidiano da analogia, como nesse fragmento:
Que eu já não tenho de onde tirar força
Para te alimentar
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 119).
Não obstante, a analogia pode surgir na circularidade, sem oferecer a chave de sua referencialidade e impor-se como imagem da experiência sensível:
Eu estava tomando claridade e luz
Quando a luz apagou
A claridade apagou
Tudo ficou nas trevas
Na madrugada mundial
Sem luz
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 116).
Toda performance, segundo Paul Zumthor (2005ZUMTHOR, Paul (2005). Escritura e nomadismo. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Sonia Queiroz. São Paulo: Ateliê.), está ligada às circunstâncias de sua ocorrência, a uma situação específica de escuta e às condições de produção. O caráter performático das palavras que dão origem a esses vestígios faz da própria instituição psiquiátrica a interlocutora central de Stela; aquela que, ao mesmo tempo que é detentora da verdade sobre sua loucura, modela as condições de seu discurso. Bispo tecia para apresentar-se a Deus. Stela se expressa para manter-se viva, falando para e sobre o espaço institucional em que se encontra. Stela fala de sua palavra, vencida diante do poder:
Num homem feio
Mas tão feio
Que não me aguento mais de tanta feiura
Porque quem vence o belo é o belo
Quem vence a saúde é outra saúde
Quem vence o normal é outro normal
Quem vence um cientista é outro cientista
(Patrocínio, 2009PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue . , p. 135).
Com isso, é possível perceber que Stela incorpora não somente o vocabulário institucional mas também suas representações excludentes: de uma pessoa que não pode vencer por não ser bela, não ter saúde, não ser normal e por sua relação assimétrica com a ciência. Ao mesmo tempo, Stela percebe sua fealdade como consequência da própria instituição. Assim, Stela expressa o sentimento diante do poder que o discurso da ciência impõe sobre o seu corpo.
Seria possível reivindicar para Stela uma posição no cânone literário com base na originalidade de suas palavras. Não obstante, Stela estaria assim subjugada a outra instituição: a instituição literária que, ao configurar um lugar específico para o imaginário, encontra uma forma privilegiada e detentora de dispositivos próprios para exercitar o poder sobre os discursos. Escritora, poeta, canonizada seriam somente rótulos como aqueles ligados à definição de sua loucura.
Por isso, sem me dedicar ao discurso da psicanálise acerca da esquizofrenia, escolho chamar a palavra de Stela de performática: uma performance que provém de um corpo aprisionado. É a performance que ultrapassa a instituição para encontrar outra interlocução, que veio de uma forma lúcida de provocação. Sim, o mais impressionante é a lucidez de Stela ao falar de sua condição, de sua experiência do limite. Por permanecer sem medicação, ela vivia em uma fronteira na qual a palavra era uma opção de vida, e essa vida provoca a reflexão acerca da própria loucura de nossas instituições.
Referências
- BRANCO, Lucia Castello (1998). Palavra em ponto de P. In: BRANCO, Lucia Castello (Org.). Coisadelouco. Belo Horizonte: SCE.
- CAVARERO, Adriana (2011). Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução de Flavio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: Editora da UFMG.
- CORTÁZAR, Julio (1974). Valise de cronópio. Tradução de David Arrigucci e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva.
- NINO, Maria do Carmo (2007). O colecionador do inatingível. In: COUTINHO, Fernanda; CARVALHO, Marília; MOREIRA, Renata (Org.). A vida ao rés-do-chão. Rio de Janeiro: 7 Letras.
- FOUCAULT, Michel (1996). Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal.
- MOSÉ, Viviane (2009). Stela do Patrocínio: uma trajetóriapoética em uma isntituição psiquiátrica. In: PATROCINIO, Stela. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue.
- PATROCINIO, Stela (2009). Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue .
- ZUMTHOR, Paul (2005). Escritura e nomadismo. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Sonia Queiroz. São Paulo: Ateliê.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Ago 2018
Histórico
-
Recebido
28 Maio 2017 -
Aceito
07 Jan 2018