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O filósofo errante* * Artigo publicado no Correio da Manhã. Rio de Janeiro, ano 09, N. 3.091, 02 de Janeiro de 1910, p.01.

Resumos

Artigo publicado em 1910, no Correio da Manhã. Na qualidade de correspondente do diário na Europa, o autor relata as novidades da França, dentre elas, o aparecimento da biografia de Nietzsche empreendida por Daniel Halévy.

Nietzsche; Daniel Halévy; França


Article published in 1910, in the Correio da Manhã. As a correspondant for the daily newspaper in Europe, the author describes the news in France and within them, the publication of Nietzshce's biography undertaken by Daniel Halévy.

Nietzsche; Daniel Halévy; France


Há um mês que vem invadindo as livrarias, onde o verão murchará as brochuras esquecidas da estação passada, a renovada palpitada e gentil dos livros novos. Estamos nesse período interessante do ano, em que os prelos se esvaziam e as estantes se abarrotam. Todos os anos, cada vez mais, isso sucede, como se ao outono, que barbeia as arvores e amarelece a terra, quisesse o espírito opor a sua primavera vitoriosa.

As folhas vegetais que morrem nesse indizível recanto íntimo dos dias que minguam, contrapõem-se as páginas literárias e arremeter de todos os lados o público curioso. Certamente que em todos não mora essa força vital que faz com que as folhas morram para criar e renascer, mas em muitas esse poder sereno, essa persuasiva instigação, que nos convidam a demorar à banca, a fazer, num cadeirão cômodo, horas infindáveis, saboreando o gosto das frases alheias, a dança das alheias ideias, enquanto o frio é, lá fora, na imagem forte de um empedernido leito, amigo de hipérboles, como uma faca a abrir as páginas da noite.

O inverno é mais estudioso do que o estio, travesso como um estudante. Ele anda, bom sábio idealista, com a sua rede de água e vento, a caçar leitores por essas ruas, ao passo que o verão, com os seu guizos de sol, vai, aos mais cerrados gabinetes, roubar aos livros os devotos, colocando-lhes ante os olhos míopes do esforço, essa magica sedução da campinas em flor, contra a qual poucos de pouquíssimas obras levarão a vitória. O inverno é todo intelectualidade, o homem concentra-se e o espírito manda; o verão é de sensualidade, faz-nos desdobrar, expandir, malbaratar-nos, a carne vence.

Pois que o tempo nos manda ler, leitor amigo, que odeias, talvez, os livros, leiamos as últimas novidades da novidade França, tua predileta gozando o conselho doce daquela antiquada divisa, que Eduardo Prado ainda usou: In angelle cum libello.

Num dos mais recentes volumes de Calmann-Lévy, Daniel Halévy, escrevendo uma Vida de Frederico Nietzsche, muito aconselhável pela sua clareza e amenidade, com lapidar exatidão, o filósofo errante, palavra que, melhor que outras, lhe vão, pela sua vida atribulada, inquietíssima, desfixada, de nômade doente, de solitário revoltado, vida que, das altitudes puríssimas da Engadina aos harmoniosos encantos de Veneza, da sedução azul da Riviera ao delirante colorido de Nápoles e Sorrento, das pacíficas sombras da Floresta Negra à calma deliciosa dos lagos italianos, é uma carreira porfiada em busca de um repouso nunca encontrado, uma ânsia de afadigado, que detesta as paragens mais desejadas, logo que as alcança, e torna a almejar por mais quietos recanto, sonhando hoje com o Japão para residência, premeditando amanhã estabelecer-se na Córsega, em Corte, a pátria de Napoleão.

Não se lê a vida de Nietzsche, ainda naqueles autores que a desfiguraram e o antipatizam, sem uma surda animadversão contra o fato cruel que o levou do berço ao manicômio, antes de deitá-lo ao túmulo, a 25 de agosto de 1900, sem funda piedade para essa delicadíssima alma, que a doença tornou amarga e a ciência ainda mais acidulou, constante exilado da amizade, essa amizade de que ele foi capaz até aos últimos arrebatamentos, talvez sem ânimo de perseverança, mais com o mais quente dos entusiasmos.

Nietzsche foi a maior das contradições vivas. A sua existência é um conflito permanente e irredutível contra tudo e contra todos, contra a pátria, contra a família, contra os amigos, contra a ciência, contra o passado, contra presente, contra o futuro, contra os seus livros, contra si próprio. Poucos homens terão nascido com um tão assombroso poder de negação, com uma tão invencível sina de infelicidade. Em toda a cruciante latitude, no diário tormento que o vocábulo designa, ele foi um mártir, resignado e iludido, mártir do seu próprio eu, cujo maior bem foi a loucura, e é, como homem, uma das mais confrangedoras e amarguradas da desgraça humana.

O pai, esse infeliz pastor luterano, lega-lhe ao nascer, na pobre aldeia de Röcken, em 15 de outubro de 1844, a terrível herança mórbida, e, após um desastre, morre doido, como que anunciando ao filho o final que o esperava. O pequeno Frederico, o primogênito, quis, por sua vez, ser um humilde pastor, como seu pai, mas os estudos dissuadem-no da religião, e ele, pela filologia, entra na ciência, a fogueira que havia de queimar o seu belíssimo espírito, namorado dos gregos do período dionisíaco, esses gregos da violência e da sinceridade, que tanto celebrou nas Origens da Tragédia.

É fácil julgar de uma vida em conjunto; creio, porém, que seria impossível torcer certos destinos impetuosos como esse de Nietzsche, que trazem em si o gérmen, talvez a arte da desdita. Não me atrevo, por isso, a afirmar, sem reservas, que Nietzsche tenha sido um frisante e contristador exemplo de vocação contrariada, de vida transviada; ao seguir, porém, com atenção, suas pisadas, ao meditar as lutas titânicas que entre vários Nietzsches houve em Frederico Nietzsche, se travaram, há mais do que a suspeita, a evidência, quase a certeza de que ele foi um poeta imolado nos altares do saber, um dos maiores poeta que a Alemanha deu a luz.

Realmente, toda a sua obra, que é uma série de apontamentos tumultuosos e baralhados, dificilmente agrupáveis num corpo de doutrinas, forma quase todo um gripe sufocado desse poeta escravizado à ciência, desse sonhador algemado ao raciocínio. Nietzsche lembra, muitas vezes, uma lira suavíssima e harmoniosa querendo vibrar ainda sob uma colossal montanha de conhecimentos que abafa, que lhe veda o som e lhe prende as cordas.

Com exceção dessas Origens da Tragédia, que são o único livro que ele verdadeiramente conclui, a sua obra, fragmentária, contraditora, incompleta, só marcará legitimamente no tempo com o seu formidável Zaratustra, esse mesmo inacabado e desigual, que, expurgado das vãs complicações filosóficas que o prejudicam e o obscurecem, é, em toda a sua agreste e máscula beleza, revolucionária virilidade, um poema de folego genial, em que as inflamadas, inéditas mentiras do poeta, suplantam as vacilantes verdades do filósofo.

Nietzsche, pela carreira que adotou - e Wagner tinha razão quando escrevia: "Que satã fez vós um pedagogo?" - tentou sempre andar em paz da verdade, quando todo o seu instinto, todo o seu temperamento teimavam para o lado da beleza, e basta ler as suas cartas para nos convencermos do artista que ele era. Foi um equívoco trágico, a sua vida. A sabida história do caso Wagner o confirma plenamente.

Enquanto Nietzsche escuta o seu coração e o seu sentimento, corre para Wagner, defende-o, adapta a sua causa e acolhe-se amoravelmente à sombra do hercúleo batalhador.

É então feliz. As horas de Triebschen, nunca o negou, foram das melhores da sua vida. Quando, porém, o destrutivo raciocínio do filósofo, "o mais alto superlativo da dinamite", para empregar uma sua frase, se desperta para analisar o grande amigo e a sua obra, começa a dúvida, surge a crítica, vêm os dissentimentos, que, violentando lhe desumanamente os dizeres do coração, o hão de levar a essa dolorosa hostilidade, cada vez mais acentuada, com o seu deus antigo, e na qual, após a morte de Wagner, em Veneza, a sua loucura há de achar pasto para criar essa miragem horrorosa de ciúme, que o fez ver em Wagner, Teseu desprezível; em Cosima Liszt, Ariana enjeitada, e em si, Baco, apaixonado e salvador.

Foi todo esse ruidoso e artificial poder de filosofar, sufocando a sua esplendida e amorosa natureza de poeta, que o faz preferir a Carmem ao Parsifal, que o incompatibiliza como todos os amigos, que o leva a renegar os seus livros, pouco depois de publicados, que o torna, enfim, esse poder louco que, em Turim, se deleita com tudo quanto vê se diverte com as operetas gaiatas, escrevendo a um amigo, a propósito de Judic e Milly Meyer: "Para os nossos corpos e para as nossas almas, uma leve intoxicação parisiense é a salvação".

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A Cosima Wagner, essa valorosa mulher que corajosamente abandonou o marido, Hans Bulow, para ir ser, ao lado do autor do Siegfried, o herói que Nietzsche preferia, a mais venerável das musas, escrevendo este, já dentro da demência, estas loucas palavras: Amo-te, Ariana.

É, indubitavelmente, um grito sem nexo da sua loucura, mas há talvez nelas indício de uma dessas crudelíssimas sedes da alma sufocadas toda uma vida. É possível que Nietzsche amasse a viúva de Wagner. Falei, há pouco, numa crise de ciúmes; não é a palavra. De inveja, sim; porque nada custa a crer que Nietzsche, sentindo, ao prever a catástrofe irremediável, o vazio amoroso de toda a sua vida, o vácuo feminino que sempre se lhe fizera em torno, invejasse sincera, desesperadamente, na musa lealíssima de Wagner, a mulher, a musa, que a vida lhe não dera.

Não é um insulto àquela exclamação, é um remorso do que no foi. Nietzsche não teve nunca, realmente, uma alma de mulher a ampará-lo, porque podem considerar-se tais nem a inexplicável Lou Salomé, nem misteriosa madame V.P.

Talvez, na soleira da loucura, ele, o filósofo errante, sentisse saudades do amor que não tivera...

Lisboa, 1909, Novembro, 29.

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    Artigo publicado no Correio da Manhã. Rio de Janeiro, ano 09, N. 3.091, 02 de Janeiro de 1910, p.01.
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    Manoel de Sousa Pinto (1880-1934). Jornalista, contista e crítico de arte, nasceu no Brasil mas erradicou-se em Portugal, onde estudou Direito na Universidade de Coimbra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014
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