Resumo:
Segundo a mitologia grega, quem beber ou tocar nas águas do Lete, um rio do Hades, esquece a existência anterior. O que pode ser, segundo Nietzsche (VM/OS 401, KSA.532), uma receita para o sofredor livrar-se do fardo de seu sofrimento, mas também um ato heroico de afirmação da vida. Assim, tanto a decisão de tocar - ou não - nas águas do Lete quanto os motivos para fazê-lo envolve a ambiguidade que é característica do termo “esquecimento” nos escritos do filósofo. Uma característica do conceito que diz respeito ao diálogo constante do filósofo com suas fontes, com as nascentes do conceito, e aos diferentes usos que faz dele, os meandros que produz. Dois campos de investigação, o da origem e o da forma, que têm em comum a possibilidade de interpretação, conforme veremos, a partir das ideias de assimilação e digestão.
Palavras-chave:
Esquecimento; Memória; Mnemotécnica; Consciência; Digestão
Abstract:
According to Greek mythology, whoever drinks or touches the waters of Lethe, a river of Hades, forgets his previous existence. What can be, according to Nietzsche (VM/OS 401, KSA.532), a recipe for the sufferer to get rid of the burden of his suffering, but also a heroic act of affirmation of life. Thus, both the decision to touch - or not - the waters of Lethe and the reasons for doing so involve the ambiguity that is characteristic of the term “forgetfulness” in the philosopher’s writings. A characteristic of the concept that concerns the philosopher’s constant dialogue with his sources, with the nascent of the concept, and the different uses he makes of it, the meanders he produces. Two fields of investigation, that of origin and that of form, have in common the possibility of interpretation, as we will see, from the ideas of assimilation and digestion.
Keywords:
Forgetfulness; Memory; Mnemotechnic; Conscience; Digestion
1. Considerações iniciais
A palavra “esquecer” faz parte do cotidiano de Nietzsche. Um professor que esquece seu guarda-chuva,1 1 NF/FP 1881, 12[62], KSA 9.587. suas galochas;2 2 Carta a Franziska e Elisabeth Nietzsche de 12/01/1866. KSB 2.104. que é notório pelos pedidos aos seus familiares e amigos para que não o deixem esquecer compromissos corriqueiros; que se desculpa constantemente por seus pequenos lapsos de memória;3 3 Carta a Paul Deussen de fevereiro de 1870, KSB 3.99. que reconhece o poder terapêutico de certas leituras, capazes de fazê-lo esquecer a dor causada por suas enfermidades;4 4 Carta a Erwin Rohde de 3 de abril de 1868, KSB2.262. que recomenda o esquecimento de fatos e pessoas desagradáveis;5 5 Carta a Franziska e Elisabeth Nietzsche de 27/10/1869. KSB 3.70. ou que, por fim, declara: “Divina é a arte do esquecimento”.6 6 NF/FP 1888, 20[46], KSA 13.557.
Com efeito, o termo “esquecer”, em suas mais variadas formas e conotações, aparece inúmeras vezes nos escritos do filósofo, ocupando um lugar de destaque em suas cartas, em seus apontamentos pessoais e também na sua obra publicada, nos quais predomina o que podemos designar como um uso não demarcado do termo. Em especial nas cartas, a palavra “esquecimento” aparece constantemente associada à perda de certos compromissos, sendo utilizada, então, para expressar um desgaste das impressões passadas que parece se contrapor ao esforço do filósofo por mantê-las na memória. No geral, na correspondência, mesmo a eventual menção ao propósito de promover o esquecimento de algo ou de impedir que ele ocorra não implica em uma avaliação mais cuidadosa das possibilidades de se conseguir os efeitos anunciados. Esse uso não demarcado predomina igualmente nos apontamentos do filósofo e também na sua obra publicada, por exemplo, na menção a coisas que não se pode esquecer;7 7 Por exemplo, os traços deixados pela música da ópera e pela música erudita Bach e Beethoven. (NF/FP 1871, 9[135], KSA 7.324). ou outras cujo esquecimento é necessário.8 8 Esquecer um mestre (MA I/HH I 172, KSA 2.159), um amigo (MA I/HH I 197, KSA 2.166), um dia ruim (MA I/HH I 474, KSA 2.308), ou mesmo vivências, pensamentos e fatos (MA I/HH I 526. KSA 2.325; M/A 381, KSA 3.247). Via de regra, são menções que indicam o interesse pelos benefícios do esquecimento ou denotam seus perigos, independentemente de uma avaliação mais precisa se ele poderia ser alcançado voluntariamente ou não.9 9 Nietzsche faz referência ao esquecimento como algo intencional, por exemplo, em VM/OS 37, KSA 2.397 e à impossibilidade de se ter esse controle sobre o esquecimento, por exemplo, em WS/AS 202, KSA 2.641 e 327, KSA 2.696. Predomina, assim, no conjunto dos escritos do filósofo, a ideia geral e corriqueira do esquecimento entendido como uma disputa do indivíduo com uma força inercial que parece insistir em apagar de sua memória os traços deixados pelos acontecimentos passados.
Ao certo, porém, mesmo nesse uso não demarcado, que é corrente nos escritos de Nietzsche, associado à ideia de um desgaste de impressões passadas, é possível identificar algumas implicações filosóficas. Esse é o caso, por exemplo, da relação estabelecida por ele entre o esquecimento e uma certa atenção sobre si. Um tema que ocupa um lugar central em diferentes textos do filósofo, como é o caso, por exemplo, de Sobre o futuro de nossas instituições de ensino (quarta conferência), em que ele critica o esquecimento de si quando isso é feito para “desfrutar a juventude eterna em um sistema solar de temas intemporais e impessoais”, (FE conferência 4) e também em Ecce homo, quando afirma que não se perdoaria o nivelar-se a qualquer um, o que equivaleria, no caso, ao “esquecimento da distância própria” (EH/EH Por que sou tão esperto, 3).10 10 Para uma análise desse ponto, que deverá ser retomado oportunamente, não se pode deixar de considerar que Nietzsche em outras passagens fala do necessário esquecimento de si, como se tem, por exemplo, em Schopenhauer Educador (final da seção 4) e também em Ecce homo, quando o conhecimento de si é associado ao esquecimento de si (EH/EH Por que sou tão esperto 9, KSA 6.293).
Tais implicações, considerando-se ainda aquele uso não demarcado da palavra esquecimento, podem ser observadas também em outros textos, como é o caso de Sobre Verdade e Mentira no sentido extramoral (1), onde o termo é utilizado para explicar o aparecimento de conceitos e verdades, o que ocorreria, segundo o filósofo, a partir do esquecimento das metáforas primitivas. O mesmo esquecimento que permitiria ao homem viver “com alguma tranquilidade, segurança e consequência” (WL/VM 1, KSA 1.883). Elas aparecem também quando o filósofo trata da “origem da justiça”, ao afirmar, em Humano, demasiado humano, que “(...) os homens, levados por seu hábito intelectual, esqueceram a finalidade original das ações denominadas justas e equitativas” (MA I/HH I 92, KSA2.90), ou ainda ao sustentar que na origem de algumas ações denominadas como morais encontra-se o esquecimento do motivo fundamental pelo qual essas ações foram louvadas inicialmente, ou seja, pela utilidade social de tais ações. 11 11 Acerca do papel do esquecimento no campo das impressões morais e da sua relação com a ideia de utilidade, conferir WS/AS 40, KSA 2.570-571. Uma correlação entre utilidade e esquecimento, que o filósofo retoma, na primeira dissertação da Genealogia da moral, seção 1 e 2, como um contraponto para apresentar a sua nova hipótese sobre a origem dos juízos de valor moral, que tem lugar a partir da seção 4.12 12 A correlação entre utilidade e esquecimento e o modo como Nietzsche parece mudar sua posição nos diferentes textos citados demandam um estudo à parte.
Para além dessas ocorrências em que o esquecimento é tomado como uma fatalidade à qual o homem está submetido, tem-se também nos escritos de Nietzsche o debate sobre o quanto podemos ou não interferir no esquecimento. Um debate no qual o filosofo coloca em relevo os limites da consciência e o caráter involuntário do esquecimento, embora evidencie, no geral, seu interesse pelos benefícios do esquecimento. 13 13 Outras passagens poderiam ser observadas para corroborar o interesse de Nietzsche pelos benefícios do esquecimento, entre elas, por exemplo, a seção 24 de O nascimento da tragédia, bem como a seção sobre as três metamorfoses, de Assim falou Zaratustra. Assim, mantendo-se ainda a ideia de esquecimento como um desgaste das impressões registradas na memória, torna-se capital a pergunta se tal apagamento poderia ser controlado de algum modo pelo homem. O que Nietzsche discute especialmente em Humano, demasiado humano e em outras obras do período. De fato, nesses textos, predomina a ideia de que mesmo havendo o propósito de se esquecer algo, não haveria um controle consciente do homem sobre aquilo que ele mantém ou não na memória. 14 14 Do mesmo modo como não haveria, segundo Nietzsche, um estudo sobre o esquecimento e nem a sua compreensão como um fenômeno pela ciência (M/A 126, KSA 3,117). O autor do Zaratustra afirma nesse sentido, por exemplo, que “ainda não foi provado que existe o esquecimento; o que sabemos é apenas que a rememoração não está em nosso poder” (M/A 126, KSA 3.117). A mesma ideia que aparece um pouco mais adiante, quando ele faz referências a coisas que o homem não pode dar a si mesmo, no caso, o esquecimento, acrescentando que “não se esquece quando se quer esquecer”, (M/A 167, KSA 3,150) e também em um fragmento do período nos seguintes termos: “que existe um esquecimento, isso nunca foi provado: apenas que algumas coisas não nos ocorrem quando queremos” (NF/FP 1883, 12[1], KSA 10.393)
Neste ponto encontra-se, ao certo, um ponto nevrálgico do problema do esquecimento em Nietzsche, pois se ele é algo totalmente involuntário, como os batimentos cardíacos, não faria muito sentido considerar a sua utilidade para a vida ou esperar que o homem possa, de algum modo, cultivar o esquecimento como um fator terapêutico ou que propicie a felicidade. Contudo, mesmo admitindo que o esquecimento não está sujeito ao domínio voluntário do homem, por meio de sua consciência, Nietzsche analisa o papel central do esquecimento para a vida em dois textos que interessam diretamente a este estudo. Trata-se da Segunda Consideração Extemporânea e da Genealogia da moral, onde o tema encontra sua formulação mais peculiar por parte do filósofo, aquela que passamos a designar com demarcada em seus escritos.
Neste artigo, tendo em vista esses dois textos, o de 1874 e o de 1887, retomaremos algumas nuances, meandros ou curvas do conceito de esquecimento em Nietzsche, destacando seu papel no sentido de desobstruir a consciência para o novo por meio de uma assimilação ou digestão anímica. A mesma ideia - acompanhando a proposta metodológica de Wilson Frezzatti Junior, de que Nietzsche assimila e digere suas leituras, (Frezzatti JR., 2018FREZZATTI JR. Wilson. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018., p. 97) - que será utilizada para sopesar o modo como o filósofo se apropria daquilo que é oferecido a ele por seu tempo, tanto em termos amplos quanto em termos mais específicos, a partir de algumas estudos das fontes remotas e próximas do filósofo sobre a ideia de esquecimento. Tal análise, ao certo, não eliminará a ambiguidade que característica do conceito de esquecimento em Nietzsche, mas permitirá aproximar essa ambiguidade de uma outra relação controversa que é aquela que se estabelece entre o corpo, as vivências do filósofo e o seu corpus.
2. Curvas do esquecimento em Nietzsche
Esta retomada do conceito de esquecimento em Nietzsche mormente, como uma “força plástica com que o homem se apodera do passado em nome da ação e da vida” (ITAPARICA, 2017, p. 19), concentra-se na Segunda Consideração Extemporânea e na Genealogia da moral. 15 15 Vale notar que a fluidez do conceito de esquecimento nos escritos de Nietzsche não perfaz uma linha progressiva, por exemplo, rumo a uma formulação mais peculiar do filósofo, que se encontraria, quiçá, na Genealogia da moral, em 1887. Ao contrário, o esquecimento é um conceito que se amolda, como as curvas de um rio, aos diferentes contextos e necessidades do filósofo, o que permite a aproximação entre o seu uso em 1874 e 1887. No primeiro texto, de 1874, quando o filósofo retoma e desenvolve sua crítica ao acúmulo de passado no homem e à educação como aquilo que “simplesmente instrui”, (HL/Co. Ext. II Prefácio, KSA 1.245), o esquecimento é utilizado como um balizador para dimensionar a utilidade e desvantagem daquele acúmulo de informações e de impressões pelo homem. De início, no intuito de mostrar os benefícios do esquecimento, o filósofo apresenta um tipo de felicidade que só os animais podem conhecer e que é propiciada pelo fato de eles viverem exclusivamente o momento presente. Em tom de lamento, Nietzsche afirma, nesse sentido, que o homem “inveja o animal que imediatamente esquece e vê todo instante realmente morrer imerso em nevoa e noite e extinguir-se para sempre” (HL/Co. Ext. II 1), ao passo que o ser humano, que “se lembra”, carrega consigo os grilhões do passado.
Não há como deixar de notar, neste ponto, que o esquecimento em questão corresponde a uma força involuntária do animal que apaga da memória os traços do que se passou. A despeito dessa peculiaridade, contudo, que parece ainda manter traços de uma ideia geral e não demarcada do esquecimento, o fato é que ele, ou o “poder esquecer” é apresentado, já nesse momento, como uma “faculdade (...) ou, dito de maneira mais erudita, a faculdade de sentir a-historicamente durante a sua duração” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.250). Para o homem, tal “força do esquecer” seria imprescindível, visto que para ele “é possível viver quase sem lembrança, sim, e viver feliz, como mostra o animal; porém, é absolutamente impossível viver sem esquecimento” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.250).
Desse modo, além da importância conferida ao esquecimento, merece atenção que, já nesse momento, em 1874, o conceito é apresentado em associação com a ideia de uma “força plástica” (HL/Co. Ext. II 1, KSA1.251) - ponto capital para o estudo do conceito em Nietzsche. Uma força que cresce a partir de si mesma num homem, num povo ou em uma cultura e “transforma e incorpora” 16 16 Nietzsche volta a utilizar o verbo “einverleiben” bem como o substantivo “Einverleibung” especialmente a partir de 1881, por exemplo, em NF/FP 1881,11[141], KSA 9.494-495. Termo do qual irá derivar o neologismo “Einverseelung” cunhado por ele e utilizado em sua Genealogia da moral (GM/GM II 1, KSA 5.291), conforme veremos, para referir-se à “assimilação pela alma”. o que foi passado, “curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo a partir de si mesmas as formas partidas” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.251). Neste ponto, em que o filósofo refere-se ao esquecimento por sua capacidade de transformar e incorporar o passado, merece destaque justamente o uso do termo “incorporar” (einverleiben), que traduz a ideia de uma assimilação pelo corpo, como se tem com os alimentos.
Nesses termos, e em especial quando diz respeito ao homem em particular, essa força, esse poder de esquecer, essa força, pode ser considerada em termos fisiológicos, podendo mesmo ser utilizada como um critério para distinguir os homens entre si, uma vez que, segundo o filósofo,
há homens que possuem tão pouco esta força que, em uma única vivência, em uma única dor (...) se esvaem incuravelmente em pequenas feridas que sangram; por outro lado, há homens nos quais os mais terríveis e horripilantes acontecimentos da vida e até mesmo os atos de sua própria maldade afetam tão pouco que eles no meio deles ou logo em seguida são conduzidos a um tolerável bem-estar e a uma espécie de consciência tranquila. (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.251)
Também em termos fisiológicos, já neste momento, em 1874, o esquecimento é descrito, ainda, por meio da capacidade regenerativa do sono (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.250). Particularmente importante nesse sentido, contudo, é a ideia de uma capacidade ou faculdade (Vermögen), que é associada ao esquecimento e não à lembrança, e que permite ao homem levar as vivências para o seu interior e assimilá-las. Essa faculdade, que permite a saúde e a felicidade para o homem se traduz, já na Segunda Consideração extemporânea, por meio da ideia de digestão. Uma ideia que aparece, ao certo sem um desenvolvimento mais detalhado e de forma indireta nesse momento, por exemplo, quando o filósofo se refere ao perigo de uma cultura “perecer por indigestão” (Unverdaulichkeit zu Grunde gehe - HL/Co. Ext. II 1, KSA 1,273) ou ainda, à possibilidade de se “sofrer de indigestão da vida” (HL/Co. Ext. II 9, KSA 1.314) ou mesmo quando afirma que o homem moderno “arrasta consigo uma quantidade imensa de pedras indigeríveis, que em algumas ocasiões podem ser ouvidas rolando ordenadamente no interior do corpo” (HL/Co. Ext. II 4, KSA 1.272). Em todo caso, algo da ordem dos instintos, do corpo e sem o qual o homem não poderia viver. 17 17 Na Segunda Consideração Extemporânea, Nietzsche já faz a associação entre o esquecimento e o aparelho digestivo, embora de forma inversa, considerando a possibilidade de uma indigestão (Unverdeutlichkeit) ainda preliminar, indicando a possibilidade de uma cultura “perecer por indigestão” HL/Co. Ext. II 4, KSA 1.273 e também que a sua falta constitui uma “indigestão da vida”. (e 9, KSA 1.314)
Ainda em termos fisiológicos, a relação do homem - mas também de uma época ou de uma cultura - com a história (com o passado), deve ser pautada por sua “fome, regulada pelo grau de suas necessidades” e “mantida pela força plástica que lhe é inerente” (HL/Co. Ext. II 4, KSA 1.271). Por sua vez, o passado seria tomado, nesse contexto, como um “alimento poderoso” (HL/Co. Ext. II 10, KSA 1.329), um alimento que deve ser usado em prol da vida e que, em excesso, pode afetar a própria “força plástica” daquele homem, cultura, época ou sociedade, numa relação circular entre o alimento e a saúde do corpo.
Alguns anos mais tarde, em 1885, Nietzsche faz uma observação que é elucidativa para a compreensão daquele uso demarcado do termo esquecimento ao referir-se à “memória no instinto”, quando afirma que também a memória funciona como “uma espécie de simplificação comparável com o processo lógico”. Nessa passagem, ele afirma ainda que no reino orgânico, “mesmo os traços mais fracos permanecem”. Ali, porém, onde a rigor “não há esquecimento”, o filósofo refere-se a uma outra força: “uma espécie de digestão do que foi vivenciado.” (NF/FP 1885, 34[167], KSA 11.476-477). Observe-se que nessa passagem ganha evidência uma dissociação entre o esquecimento, tomado como um apagamento das impressões deixadas na memória - o que, nesse contexto, o filósofo afirma que não ocorre, e a ideia de uma digestão do que foi vivenciado pelo homem - o que não implica que traços daquelas vivências não possam permanecer na memória. Tal dissociação, como se pode observar, se mantém nos textos do filósofo, permitindo entender o uso demarcado do esquecimento em Nietzsche num patamar em que se diferencia uma força plástica inibidora de uma simples “vis inertiae” (GM/GM II 1, KSA 5.291) ou desgaste das impressões passadas. Ela permite, ainda, diferenciar a ideia de um simples apagar as impressões passadas da ideia de digerir - com todas as implicações que esse termo possui, desde a assimilação das vivências no sentido de nutrição até a excreção de parte do que foi ingerido. Como se o esquecimento tivesse relação com o aparelho digestivo, com a sua liberação, e não com a consciência, com a memória enquanto parte do intelecto.
De fato, como já foi mencionado anteriormente, na Genealogia, o leitor encontra diferentes usos e significados do termo esquecimento. Entendida enquanto uma força ativa, ela aparece na primeira dissertação, quando o filósofo faz uma contraposição entre o homem do ressentimento, que entende do “não esquecimento” (GM/GM I 10, KSA 5.272) e as “naturezas fortes e plenas”, caracterizadas como aquelas “em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento”. Nessa passagem, o filósofo aponta “Mirabeau” como um exemplo dessa força plástica. Um exemplo do esquecimento entendido como uma forma de limpar o aparelho digestivo para novas experiências. Assim, enquanto uma desintoxicação, Mirabeau se livra das vivências ruins sem que elas dominem seu mundo interior, ao ponto de o filósofo poder afirmar que ele “não tinha memória para os insultos e baixezas que sofria, e não podia desculpar, simplesmente porque - esquecia”. (GM/GM I 10, KSA 5.273).
O texto, contudo, em que a relação entre esquecimento e digestão fica mais evidenciada é a segunda dissertação da Genealogia, quando o filósofo delineia sua ideia e o papel que atribui ao esquecimento ao contrapô-lo à noção de uma “simples vis inertiae” e correlacionar o seu funcionamento a uma força ativa. Neste momento, tem-se claro que o esquecimento corresponde a “uma força inibidora, ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar ‘assimilação psíquica’), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou ‘assimilação física’”. (GM/GM II 1, KSA 5.291). O esquecimento é o que impede que o que é vivenciado ocupe espaço demais naquele processo. Desse modo, enquanto parte do processo digestivo, ele seria o que permite a assimilação do passado pela alma. Ele seria, então, a “força inibidora” que faz a triagem do que foi vivenciado impedindo que aquele material - quando ingerido em excesso - danifique o aparelho digestivo. O esquecimento traduz, assim, em oposição à memória entendida como um “não-mais-poder-livrar-se” (GM/GM II 1, KSA 5.292) de algo, a força plástica que permite que aquilo que foi ingerido siga seu caminho, no aparelho de passagem que é o aparelho digestivo.
O esquecimento corresponde, assim, à digestão como o necessário esvaziamento do estômago. Ele é o que permitiria a “tábula rasa da consciência”. Permitiria “o novo (...) a felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente” (GM/GM II 1, KSA 5.291). Retomando os termos utilizados na Segunda Consideração Extemporânea, ele corresponderia, a uma faculdade, do mesmo modo como a memória é considerada neste momento como uma faculdade oposta a ele. Tal faculdade, como foi visto nos textos anteriores do filósofo, tem seu funcionamento regulado pelos instintos e não é controlada voluntariamente. Assim como não se pode ordenar ao estômago que inicie ou pare de transformar aquilo que é inserido nele. O que permite retomar, num patamar acima, a discussão sobre o caráter involuntário do esquecimento, pois, se é certo que o homem não pode controlar voluntariamente o funcionamento do aparelho digestivo, é certo também que ele pode conhecer o “tamanho de seu estômago” e, tendo em vista esse conhecimento, pode controlar o que ingere na medida das forças e necessidades do corpo.
Esse tema, o da medida de um estômago, é explorado por Nietzsche em 1888, em Ecce homo, 18 18 A dificuldade de assimilação de certos sentimentos, como é o caso do sentimento de vingança, que resulta em uma incapacidade de digestão, em um “de nada dar conta”, encontra-se em EH/EH, Por que sou tão sábio, 6, KSA 6.272-273, ao passo que a preocupação com o que ingerir para alcançar um máximo de força, tem lugar em EH/EH Por que sou tão esperto 1, KSA 6.278-281. é também anunciado de forma clara em 1882, quando o filósofo toma o epicúrio e o estoico como exemplos para mostrar que existem diferentes formas de assimilar situações e eventos.19 19 Nas palavras do filósofo, “o epicúrio escolhe a situação, as pessoas e até mesmo os eventos que são adequados à sua constituição intelectual altamente suscetível, renunciando ao resto - ou seja, à maior parte -, porque seria um alimento forte e pesado demais para ele. Já o estoico, ao contrário, se exercita em engolir pedras e vermes, estilhaços de vidro e escorpiões, e não sentir nojo; seu estômago deve se tornar indiferente a tudo o que o acaso da existência despeja nele”. (FW/GC 306, KSA 3.544) O perigo, no caso, seria a falta de conhecimento do próprio estômago, ou a falta de um cuidado com o seu bom funcionamento. Nesse sentido, contudo, Nietzsche mantém clara a perspectiva de que, mesmo podendo ser desejado conscientemente, o esquecimento não é algo promovido ou executado pela consciência. 20 20 Como sugere Descartes sobre a tarefa de se desfazer das opiniões recebidas ao longo do tempo (2004, p. 21) ou de apartar o espírito das “coisas sensíveis e imagináveis” (p. 111). Mesmo se for admitido que bem antes de Nietzsche já eram conhecidas técnicas voltadas para facilitar o esquecimento de algo, 21 21 Predomina, ao certo, na cultura ocidental, a busca por técnicas de memorização e não de esquecimento. Contudo o esquecer também já foi objeto de atenção, como se tem, por exemplo, com as técnicas disseminadas por Ovídio para o esquecimento de um amor com traços de enfermidade. (Cf.: WEINRICH, 2001, p. 40-41). deve-se reiterar que na sua perspectiva, o funcionamento de tal faculdade diz respeito à saúde do organismo, em especial ao estômago e ao que e introduzido nele, e o cuidado a se tomar é no sentido de uma dispepsia. Um quadro de indigestão crônica.
3. Sobre as fontes distantes, as nascentes do Lete em Nietzsche
O estudo de um conceito em um filósofo não pode deixar de considerar a tradição na qual ele se insere, o momento em que ele vive e, em especial, suas fontes. Não pode ignorar que um conceito tem “uma longa história e transformações de formas atrás de si” (GM/GM II 3, KSA 5.294) a qual precisa ser considerada tendo em vista as formas que o conceito recebe nos escritos de um filósofo. Do mesmo modo, a compreensão das variações de um conceito no interior dessa obra deve considerar o modo como, a cada momento ele explora suas conexões “com o mundo exterior” (MONTINARI, p. 78MONTINARI, Mazzino. Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos Ídolos. In: Cadernos Nietzsche, 3, p. 77-91, 1997.) a partir de interesses, de necessidades próprias e também da força de seu pensamento.
De fato, o uso do termo “esquecimento” por Nietzsche remete a uma longa tradição 22 22 No geral, os intérpretes de Nietzsche valorizam as contribuições do filósofo às pesquisas sobre a memória e o esquecimento e o modo como ele se contrapõe a essa tradição (Cf., por exemplo, Ottmann, 2000, p. 349 e Thüring, 2014, p. 184). Na interpretação que se desdobra neste artigo, contudo, há uma preferência pela ideia de que Nietzsche faz parte de uma tradição que, em seu tempo, já dá sinais de uma valorização do esquecimento e do seu papel para o homem e, ao certo, contribui com ela. na qual o termo é apresentado, em grande parte, em oposição à memória, numa contraposição no âmbito da qual se valorizou mais a memória e se conferiu ao esquecimento uma conotação negativa, de perda, desgaste ou apagamento de impressões. Uma acepção à qual Nietzsche se contrapõe, conforme vimos, na Genealogia, compreendendo que nela o esquecimento é tomado como uma força inercial. Nessa mesma tradição, contudo, é possível encontrar também momentos em que se atribui um caráter positivo ao esquecimento, em especial nos anos mais próximos ao filósofo.
De fato, nos primórdios dessa tradição, considerando seu tronco judaico e tomando como material de trabalho o texto bíblico, é possível notar a importância dos termos contrapostos “memória” e “esquecimento” e a conotação mais positiva conferida ao primeiro. Isso pode ser observado, por exemplo, na ideia de que o criador se lembra de sua criação (Gênesis 8:1), o que corresponde a uma espécie de benção, por um lado, e nas recomendações para que o homem não se esqueça da aliança feita com o seu criador (Eclesiastes 12:1-7), o que corresponde a um perigo para ele, por outro. Também no mundo grego antigo, o contraponto entre lembrar e esquecer é capital, assim como é possível notar, no geral, que se confere uma conotação mais positiva ao lembrar do que ao esquecer. É ilustrativo, nesse sentido, que a construção do termo verdade, aletheia, seja feita pela junção do prefixo de negação (a) ao radical leth, que designa algo oculto, com a conotação que se tem para Lethe como o rio do esquecimento. O que permite entender a aletheia, a “verdade”, em oposição ao esquecimento, designando algo “‘inesquecido’ ou ‘inesquecível’”. (Weinrich, 2001WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 21).
No campo da filosofia, o primeiro a conferir um papel importante para o esquecimento no seu pensamento foi, ao certo, Platão, com sua teria das reminiscências. 23 23 Conferir, por exemplo, os argumentos de Sócrates em Mênon 81c e seguintes. (Platão, 2020, p.73). O mesmo filósofo que estabelece um debate sobre as vantagens ou desvantagens da escrita para a memória em confronto com a importância da tradição oral.24 24 Conferir, por exemplo, o relato feito por Sócrates em Fedro, 274 e 275. (Platão, 2000, p. 120-121). Merece destaque também nesse campo, para mencionar apenas mais um autor conhecido por Nietzsche, o papel atribuído por Agostinho à memória e ao esquecimento na relação entre Deus e os homens. 25 25 Tal jogo é expresso em especial a partir da seção 8 do capítulo intitulado “O encontro com Deus” do livro Confissões. (Agostinho, 2015, p. 258ss).
Em seu estudo intitulado Lete. Arte e crítica do esquecimento, Harald Weinrich cita vários exemplos neste sentido, de que por um longo tempo predominou uma conotação negativa em relação ao esquecimento e, em contrapartida, uma valorização da memória e das técnicas da mnemotécnica. Contudo, o autor mostra que também o contrário pode ser observado, e que a valorização do esquecimento ganha relevo em especial a partir de um certo momento desse percurso. Um exemplo nesse sentido seria Miguel de Cervantes que, em 1605, caracteriza o personagem Sancho Pança por sua memória e Dom Quixote pelo esquecimento, estabelecendo como um correlato dessa característica, no cavaleiro da triste figura, a engenhosidade e a espirituosidade. 26 26 Conferir Weinrich, 2001, p. 77ss. Embora não se pode deixar de mencionar que o esquecimento é parte da loucura do Cavaleiro da Triste Figura. De fato, essa correlação entre o esquecimento e a engenhosidade e a criação torna-se marcante na cultura ocidental, segundo Weinrich. Uma ideia que aparece também nos textos de Nietzsche, não apenas pela citação de Dom Quixote, no capítulo cinco de sua Segunda Consideração Extemporânea, mas em especial ao referir-se ao homem de ação (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.254) e à contraposição entre conservar e criar (HL/Co. Ext. II 3, KSA 1.365ss), quando considera a necessidade do esquecimento para a produção do novo, para novos feitos e novos começos.
Também no sentido de uma valorização do esquecimento, não se pode desconsiderar o modo como Descartes rejeita os conteúdos presentes na memória a favor de um uso da razão na construção de sua filosofia, 27 27 Cf.: Descartes, 1991, p. 46 e 2004, p. 21. embora considere ainda que o ato de eliminar algo da memoria estaria submetido à sua vontade. 28 28 O caráter voluntário do esquecimento em Descartes é colocado em relevo por WEINRICH, 2001, p. 95. Pontos capitais para Nietzsche se for considerada a necessidade do esquecimento, mas, também a sua crítica à possibilidade de que o esquecimento seja controlado pela consciência. Um olhar para essa valorização do esquecimento poderia incluir ainda a relativização da memória, estabelecida por Montaigne em favor do espírito, ou da engenhosidade, 29 29 Conferir Weinrich, 2001, p. 74-76. do mesmo modo como a valorização do esquecimento que se tem em Voltaire, Rousseau e Kant, entre outros.30 30 Conferir Weinrich, 2001, p. 98ss. Kant em especial produz uma gradação que parte da “memória mecânica”, passando pela “memória engenhosa” e a “memória judiciosa”, esta última mais próxima da atividade crítica (WEINRICH, 2001, p. 109ss).
Entendido por sua potencialidade terapêutica, o esquecimento aparece na cultura alemã já século XVIII, como exemplifica o poema de Frederico II, da Prússia, de 1737, em que o esquecimento tem lugar, ao menos na última estrofe, associado à possibilidade de o homem livrar-se de males e dores.31 31 Weinrich, 2001, p. 132. Um exemplo bem mais significativo nesse sentido, em que o esquecimento é considerado por suas propriedades terapêuticas é encontrado em Johan Wolfgang von Goethe, em seu FaustoGOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. Trad. Antonio Feliciano Castilho. Versão para eBook: eBooksBrasil.com, 2003.. De fato, Goethe é um autor não apenas célebre, mas capital para Nietzsche, sendo mencionado por ele inúmeras vezes, inclusive em sua Segunda Consideração Extemporânea, na qual se tem uma citação direta do Fausto, no capítulo 5.
No Fausto, o esquecimento, associado ao demônio Mefistófeles, é evocado em ligação com o bem estar, permitindo associar a ele traços curativos e regenerativos, bem como o alívio do sofrimento. Como se observa, por exemplo, na Cena I do Quadro IV
vendo rir-me o candeeiro,
gozo o bem de estar sozinho,
e esquecer o mundo inteiro.
O esquecimento aparece, ainda, no poema dramático de Goethe, como um “sono curativo”, com uma conotação medicinal, que arranca o homem do desespero, como se observa na cena V, do Quadro dois em que dormir tem uma função letárgica e, no seu extremo, encontra-se a morte (p. 39). Algo que é notado também no texto já mencionado de Nietzsche, onde o sono é mencionado por suas capacidades regenerativas, do mesmo modo como a morte traz, “finalmente, o ansiado esquecer” (HL/Co. Ext. II 1, KSA 1.249).
4. Dois estudos de fontes sobre o uso demarcado do termo “esquecimento” por Nietzsche
A despeito da grande variedade de fontes do conceito de esquecimento em Nietzsche, 32 32 Além da possibilidade de contato de Nietzsche com os autores já mencionados anteriormente, não se pode deixar de considerar também os filósofos ingleses, como é o caso de David Hume e Stuart Mill, (Conferir, por exemplo, Leiter & Sinhababu, 2007), além de John Locke, citado por Stegmaier (Stegmaier, 1994, p. 134). Mais ainda, quando se trata da associação entre esquecimento e saúde psíquica, não se pode perder de vista a leitura cuidadosa que Nietzsche fez de Dostoiévski, com especial à figura do “Camundongo de consciência hipertrofiada” (Dostoiévski, 2017, p. 23), caracterizado justamente por não conseguir impedir que certas impressões invadam sua consciência e ocupem todo o seu mundo interior. (Conferir, por exemplo, Paschoal, 2014, p. 111ss). selecionamos neste artigo dois estudos que se concentram em contribuições possíveis para o uso aqui denominado como “demarcado” do termo esquecimento pelo filósofo. O primeiro, de Werner Stegmaier, tem lugar em seu livro Nietzsches Genealogia der Moral, de 1994, e o segundo, mais recente, de 2018, de Wilson Frezzatti Junior, tem lugar em seu livro Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX.
Ocupando-se especificamente da ideia de esquecimento que se tem na Genealogia da moral, Stegmaier apresenta algumas conclusões provisórias sobre o tema, enquanto aguarda por estudos mais conclusivos que permitam distinguir de forma mais precisa o que pertence às fontes de Nietzsche e o que seria especificamente dele no conceito de esquecimento utilizado por ele.33 33 Conferir Stegmaier, 1994, p. 133, nota de rodapé 2. Stegmaier parte da contraposição entre a ideia de esquecimento desenvolvida pelo filósofo na Genealogia e o esquecimento entendido como uma vis inertiae ou como uma força mecânica que atuaria sobre os registros feitos na memória, desgastando-os. Para o intérprete, o ponto que mais chama a atenção em Nietzsche é o papel do esquecimento como “uma instância em um processo seletivo” (Stegmaier, 1994STEGMAIER, Werner. Nietzsches ‘Genealogie der Moral’. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994., p. 133). Uma acepção que afastaria o filósofo de outros estudiosos que desenvolviam trabalhos sobre o tema na Alemanha no mesmo período, como é o caso de Hermann Ebbinghaus, cujo livro Über das Gedächtnis (Sobre a memória), de 1885,34 34 Ebbinghaus, Hermann. Über das Gedächtnis. Leipzig: Duncker & Humblot, 1885. é apontado por Stegmaier como uma provável fonte de Nietzsche, em especial porque Ebbinghaus tem como um interlocutor em seu livro Eduard von Hartmann, 35 35 Em um livro de 1873, Ebbinghaus debate diretamente com Hartmann o tema da “filosofia do inconsciente”. Cf.: Ebbinghaus, H. Über die Hartmannsche Philosophie des Unbewussten. Dusseldorf: F. Dietz, 1873. um autor que desperta grande interesse por parte de Nietzsche, como adversário, em especial pelo modo como valoriza o recordar histórico, o que é, segundo Nietzsche, um dos males do qual padece o homem moderno.36 36 Thüring, 2014, p. 186.
A importância de Ebbinghaus, segundo Stegmaier, consiste no fato de ele sintetizar a pesquisa experimental sobre o esquecimento, uma pesquisa que teria começado, segundo o professor de Greifswald, na época de Nietzsche. Nas palavras do intérprete, “Hermann Ebbinghaus esboçara de forma sintética os resultados inovadores que obteve nesse campo pouco antes da época em que a Genealogia da moral foi redigida” (Stegmaier, 1994STEGMAIER, Werner. Nietzsches ‘Genealogie der Moral’. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994., p. 134). Contudo, segundo o comentador, Ebbinghaus aceita a concepção de esquecimento como um desgaste de impressões recebidas, mantendo-se, assim, numa tradição que considera o esquecimento como um esgotamento, um desvanecimento de recordações ou das marcas deixadas na memória. Uma perspectiva que se manteria no horizonte dos “psicólogos ingleses”, como é o caso de John Locke que, como lembra Stegmaier, “concebia consciência como uma “tabula rasa” que é “arranhada” por uma impressão, ou ainda como um “papel em branco” sobre o qual um sinal é inscrito e que, com o tempo, poderia se apagar novamente” (Stegmaier, 1994STEGMAIER, Werner. Nietzsches ‘Genealogie der Moral’. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994., p. 134). 37 37 Em nota, Stegmaier faz referência a John Locke, An Essay Concerning Human Understanding (1690), II, 1.2. Ele também lembra, contudo, que a ideia de um campo vazio é mais antigo, remontando a Platão, Teeteto, 197d, 200b e a Aristóteles, De anima, III, 4 (430a1).
Nietzsche, por sua vez, segundo Stegmaier, seguiria um caminho próprio ao considerar a relação entre esquecimento e vida e, em especial, entre o homem e “o mundo exterior”, tendo em vista que o desenvolvimento da sua consciência seria um produto de suas relações e, assim, “voltada para fora”38 38 Stegmaier cita: NF/FP1887-1888, VIII 11[145], KSA13.67-68. . No âmbito dessa perspectiva, a da “relação”, o papel do cérebro não poderia ser simplesmente o de amontoar as informações apresentadas a ele, mas atuar de forma seletiva, permitindo que algumas impressões adentrassem nele e impedindo que outras fizessem o mesmo caminho.39 39 A recusa de Nietzsche da consciência ou da memória como um simples acúmulo passivo de impressões passadas pode ser avaliada, por exemplo, nos esforços do Sacerdote Ascético, por exemplo, para “introduzir na consciência dos felizes” o sentimento de culpa, ou ainda, para impedir que o “sentimento de obstrução fisiológica” penetre “como tal na consciência” de suas ovelhas. Nesse sentido, vale considerar o papel do entorpecimento para desviar a consciência de uma “dor torturante” (GM/GM III 17, KSA 5.381). Nesse sentido, ganha relevo a ideia do esquecimento como um “aparelho inibidor” que não tem por pressuposto uma tábula rasa da consciência, mas que a produz.
Para Stegmaier, é importante ter no horizonte ainda a crítica de Nietzsche a uma suposta atemporalidade da memória, construída a partir da ideia de que, para o filósofo, “o vivenciado continua vivendo ‘na memória’”. Esse fato, contudo, não significa que o homem possa determinar que algo venha à memória. “A vontade é para tanto inativa (...)”. Não se tem claramente quem chama algo na memória ou o desperta. (NF/FP 1885, 40[29], KSA 11.644). Pautada, portanto, pelos instintos e não pela vontade consciente, a memória atuaria, assim, de certo modo, filtrando e organizando as impressões e não apenas reproduzindo fielmente o que se passou. Ela atuaria simplificando, organizando, de tal forma que, como argumenta Nietzsche, em oposição à tese do desgaste das impressões passadas, “as formas mais antigas e incorporadas há mais tempo são replicadas com maior frequência do que as últimas vividas” (NF/FP 1885, 40[34], KSA 11.645)
Embora Stegmaier coloque em relevo as peculiaridades de Nietzsche no que se refere ao tema do esquecimento, ele reconhece que a associação entre a memória e um “ativo não-mais-querer-livrar-se” de uma impressão uma vez recebida é anterior ao filósofo de Weimar. A fonte citada nesse sentido, contudo, é Johann Friedrich Herbat 40 40 Trata-se do livro intitulado Lehrbuch zur Psychologie, de 1816. Stegmaier remonta tal informação a Marco Brusotti, Die “Selbstverkleinerung des Menschen’, p. 90, que teria chamado a atenção para o fato de essa obra ter chegado a Nietzsche por meio de Johan Julius Baumann, Handbuch der Moral nebst Abriss der Rechtsphilosophie. Leipzig: Hirzel, 1879. Nietzsche teria estudado minuciosamente Baumann, conforme se observa nos excertos encontrados no fragmento póstumo da primavera e verão de 1883 (NF/FP 1883, VII 7[248]), KSA10.319). que “teria descrito a alma no seu conjunto como um aparelho inibidor” (Stegmaier, 1994STEGMAIER, Werner. Nietzsches ‘Genealogie der Moral’. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994., p. 135) no qual não atuaria uma “vontade livre” no sentido kantiano. Para Herbart, porém, as próprias representações disputariam entre si a manutenção delas na consciência. “Empurradas para baixo do limiar da consciência, as representações convertem-se em pulsões que voltam a fazer pressão sobre a consciência, o que esclarece o caráter ativo, intencional da memória” (Stegmaier, 1994STEGMAIER, Werner. Nietzsches ‘Genealogie der Moral’. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994., p. 135). O que vivenciamos em nossa memória corresponderia, assim, às representações mais fortes. O fato, porém, é que tais conclusões remetem a uma acepção na qual o aparecimento de algo na memória dependeria mais das representações mesmas e das relações entre elas do que da “grande razão do corpo” (Za/ZA I, Dos desprezadores do corpo, KSA 4.39), ou dos instintos reguladores, como quer Nietzsche que, assim, não teria levado a sério as “veleidades herbartianas” (NF/FP 1888 16[29], KSA 13.489). 41 41 Além do fragmento citado, Herbart aparece outras duas vezes nos escritos de Nietzsche. Em uma carta a Erwin Rohde, de 4 de fevereiro de 1872, KSB 3.287 e em Schopenhauer como Educador, SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.421; CE III, 8. Em tais ocorrências Nietsche se mostra irônico em relação ao psicólogo.
O segundo estudo que apresenta contribuições significativas sobre fontes às quais Nietzsche (provavelmente) teve acesso na construção do seu conceito demarcado de esquecimento, com foco também no modo como o conceito aparece na Genealogia da moral é o de Wilson Antonio Frezzatti Junior, que toma como material de trabalho os trabalhos sobre o tema que se desenvolveram na França no final do século XIX, complementando as pesquisas voltadas para uma avaliação sobre o que pertence a Nietzsche e o que já está associado ao conceito antes de sua utilização.
O propósito de Frezzatti Junior é mostrar certas semelhanças entre o pensamento de Nietzsche e o de Ribot, (2018, p. 131) e a importância que a leitura dos textos concernentes à psicofisiologia francesa no geral e de Ribot em particular certamente tiveram para a construção do pensamento de Nietzsche, 42 42 Cf.: Frezzatti Jr, 2018, p. 39. com destaque para o fato de que, para ambos, o esquecimento não como sinônimo de fraqueza ou de incapacidade, mas uma condição para a vida e para o seu bom funcionamento.
Sobre o trabalho de Frezzatti Junior, a observação preliminar de alguns aspectos pode ser oportuna. A primeira O primeiro é que a pesquisa desenvolvida por ele, no que se refere à correlação entre Ribot e Nietzsche, está inserida em um campo já considerado anteriormente na pesquisa Nietzsche.43 43 Conferir, por exemplo, Lampl, 1989 e Campioni, 2009. Frezzatti Jr. aponta outros exemplos nesse sentido. (2018, p. 74). Do mesmo modo, pesquisas anteriores já apontavam a convergência temática de ambos no que se refere ao tema do esquecimento.44 44 Embora não se tenha um trabalho mais elaborado sobre essa correlação, como faz Frezzatti Junior, ela aparece, por exemplo, no verbete “esquecimento”, escrito por Hubert Thüring para o Léxico de Nietzsche, organizado por Christian Niemeyer, cuja primeira edição é de 2009. Também em trabalhos mais recentes ela aparece, novamente, como uma rápida menção. Cf., por exemplo, o trabalho de Andreas Urs Sommer em seu conhecido comentário sobre a Genealogia da moral. (Sommer, 2019, p. 249). Contudo, como ressalta o intérprete, trata-se de uma correlação “não muito estudada” (Frezzatti Jr., 2018FREZZATTI JR. Wilson. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018., p. 73), devendo-se acrescentar que na literatura secundária sobre Nietzsche, não existem estudos sobre tal correlação, desenvolvidos de forma tão detalhada como o de Frezzatti, em especial entre os alemães.
Um segundo aspecto a ser observado é que, no geral, as pesquisas sobre o conceito demarcado de esquecimento em Nietzsche, incluindo a de Stegmaier e a de Frezzatti, concentram-se no uso do termo que se tem na Genealogia da moral. Dessa forma, são colocadas em destaque leituras de Nietzsche feitas imediatamente antes de 1887. de textos de Ribot que teriam vindo a público alguns anos antes da publicação desse livro. Nesse sentido, Frezzatti lembra, por exemplo, que o periódico Revue Philosophique de la France e de l’Étranger foi fundado por Ribot apenas em 1876, além de acrescentar que as citações de Ribot feitas por Nietzsche aparecem apenas em cartas de 1877. (Cf. Frezzatti Jr, 2018FREZZATTI JR. Wilson. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018., p. 75). 45 45 Outras pesquisas também indicam o contato do filósofo com as obras de Ribot anos antes da escrita da Genealogia da moral. Conferir, por exemplo, Campioni, 2009, p. 42 e Thühring, 2014, p. 185. No estudo de Stegmaier, igualmente as fontes citadas por Stegmaier, no caso, de Hermann Ebbinghaus, é de 1885, e o livro de Johann Julius Baumann, que teria direcionado Nietzsche para Herbat, é de 1879 e teria sido estudado por Nietzsche em 1883. Ou seja, ambos têm no horizonte o aparecimento do conceito na Genealogia da moral sem fazer uma correlação desse aparecimento com aquele que se tem na Segunda Consideração extemporânea, de 1874. Um texto no qual, conforme foi exposto anteriormente, Nietzsche já considera o papel ativo do esquecimento para a vida, chegando mesmo a mencionar as ideias de seleção e de digestão, centrais para ambos os intérpretes.
Neste ponto, contudo, Frezzatti Junior introduz uma importante observação que é a “a possibilidade de uma proposta de um método para leitura dos próprios textos nietzschianos” (2018, p. 134). Nesse sentido, recusando a ideia de influência ou de que Nietzsche teria tomado o conceito de esquecimento da psicofisiologia francesa do século XIX, mas, aplicando a Nietzsche a ideia de digestão a partir de necessidades de um organismo, o intérprete ressalta que Nietzsche se serve do que lê para seus propósitos, também como um alimento. O que permite retomar a ideia de que a demarcação do conceito de esquecimento pelo filósofo é um trabalho que se faz por anos e que nesse meio de tempo, ele busca aquilo que é útil para seu propósito.
De fato, avaliar a hipótese de uma influência de Ribot sobre Nietzsche é algo impossível, segundo o intérprete, 46 46 Não se pode perder de vista que se trata ainda que ambos, Ribot e Nietzsche, partilham um solo comum, além de que também Ribot mobiliza outros teóricos na construção de seu pensamento, numa complexa malha de interlocutores que dificilmente poderia ser desenleada. que procura, antes, evidenciar modos possíveis como Nietzsche se serve do material disponibilizado pela ciência de seu tempo, reinterpretando e assimilando esse material e utilizando-o em seu trabalho. Nas palavras do professor da UNIOESTE, Nietzsche faz uma “digestão do que lê, transformando-o em elementos de sua filosofia” (Frezzatti Jr, 2018FREZZATTI JR. Wilson. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018., p. 212). 47 47 Uma ideia ao lado da qual não se pode deixar de considerar a possibilidade de que Nietzsche toma muito do que encontra na ciência de sua época também como meio de expressão, fazendo ele mesmo aquilo que afirma em relação a Schopenhauer que teria “somente uma tarefa e cem mil meios para resolvê-la: um sentido e inúmeros hieróglifos para exprimi-lo.” (SE/Co. Ext. III 7, KSA 1.411) Nesses termos, ao desconsiderar a ideia de que Nietzsche tomaria certas ideias de Ribot e enfatizar a premissa de que o filósofo se dirige a textos que permitem a ele refinar e aprofundar teses que já possui, Frezzatti Junior amplia o debate sobre fontes, evidenciando a dinamicidade da relação do filósofo com o material que busca nas ciências de seu tempo. 48 48 É importante salientar, neste ponto, que apresentar a gênese de um conceito não esgota um estudo de fontes que deve considerar ainda o modo como o filósofo se apropria dele e as transformações que impõe a ele. Além disso, é importante evidenciar que a própria pesquisa de fontes, embora elucidativa, como toda pesquisa genealógica, persegue fios que tendem a se perder no escuro do passado.
É a partir dessas necessidades próprias que permite ainda observar a possível correlação entre Ribot e Nietzsche, mesmo havendo fortes diferenças entre eles, como é o caso da crença de Ribot em ideias duramente criticadas por Nietzsche, como é o caso da ideia de verdade, do ideal de cientificidade, 49 49 CF.: Wotling, 2018, p. 28. A essa afirmação, deve-se acrescentar que o “caráter científico (positivista)” é característico do método de trabalho de Ribot (Frezzatti Jr, 2018, 121). Sobre o modo como Nietzsche seleciona o material que encontra em suas fontes, é elucidativo o exemplo de seu uso de Dostoiévski, a quem admira e se serve, embora sejam evidentes as diferenças teóricas entre ambos. (CF.: Paschoal, 2014, p. 111ss). ou ainda da ideia de progresso (Frezzatti Jr, 2018FREZZATTI JR. Wilson. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018., p. 162). Isso sem deixar de mencionar o modo como Ribot separa os planos psicológico e fisiológico, algo que não é feito por Nietzsche que toma ambos como características ou modos de expressão de uma realidade complexa que não pode ser considerada senão em sua totalidade.50 50 CF.: Wotling, 2018, p. 31.
Além dessas divergências amplas entre ambos, e considerando que uma acepção positiva do esquecimento para o homem já está presente na cultua europeia antes de Nietzsche e de Ribot, é possível também mencionar algumas diferenças sutis entre ambos também no que se refere ao tema do esquecimento - tendo em vista os elementos apresentados no estudo de Frezzatti Junior. Nesse sentido, vale observar que Ribot considera o papel do esquecimento diretamente vinculado à memória, afirmando, à vista disso, que “sem o esquecimento, não poderíamos lembrar” (Frezzatti Jr, 2018FREZZATTI JR. Wilson. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018., p. 107). Desse modo, mesmo sendo condição para a vida e para o seu bom funcionamento, o papel do esquecimento é mais pontual no psicólogo do que no filósofo que enfatiza a ideia de assimilação pelo corpo, regulada pelos instintos, tendo em vista a grande razão do corpo. O que é um ponto que afastava Nietzsche também das teses de Herbart.
5. Últimas considerações sobre a digestão das vivências e leituras passadas
Sobre aquele meandro do Lete em Nietzsche, designado como um uso demarcado do conceito pelo filósofo, no qual se tem sua maior contribuição para os debates sobre o tema, é interessante observar, em síntese: a associação entre esquecimento e vida ou o que poderia ser chamado de uma saúde anímica; o papel do esquecimento no processo de digestão do passado, daquilo que constitui o homem, mas que, em excesso ou em descompasso com as medidas do próprio estômago, pode causar uma dispepsia; por fim, a ideia de que tal força plástica atua no homem não por uma determinação consciente, mas é movida por seus instintos, pela grande razão do corpo. Tendo em vista tais traços, é possível observar ainda que tal conceito aparece apenas em contextos muito determinados, quando o filósofo pondera justamente sobre a necessidade de que o passado deve ser assimilado ou eliminado pelo homem - ou pela cultura, ou por uma sociedade - sem ocupar, no seu mundo interior, um espaço maior do que aquele que é ocupado pelos alimentos no processo digestivo.
Ao certo, esse não é apenas o principal meandro do esquecimento em Nietzsche, a principal curva do Lete em seu pensamento, mas envolve uma ideia que pode ser tomada como um princípio metodológico, tendo em vista o modo como o filósofo “se apropria das teorias e dos conceitos científicos, digerindo-os, misturando-os, incorporando-os e contrapondo-os entre si” (Frezzatti Jr, 2018FREZZATTI JR. Wilson. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018., p. 213). O que ocorre a partir das necessidades do filósofo, que determinam a busca por interlocutores e o modo como se da a sua relação com o seu tempo.
A partir dessa observação metodológica, o estudo de fontes não consiste apenas em evitar aquele problema mencionado por Mazzino Montinari, de se atribuir um certo ineditismo equivocado ao filósofo como se ele conhecesse pouco de outros filósofos e da ciência de seu tempo, mas, em evitar também a ideia de uma influência que consideraria o filósofo como um leitor passivo da literatura e da ciência de seu tempo. Assim, a ideia de que Nietzsche “digere” aquilo que lê se mostra como uma expressão para uma relação profícua do filósofo com o seu tempo, sem perder de vista, ao certo, que também ele - seu corpus, no caso - é igualmente alimento para esse tempo.
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1
NF/FP 1881, 12[62], KSA 9.587.
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2
Carta a Franziska e Elisabeth Nietzsche de 12/01/1866. KSB 2.104.
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3
Carta a Paul Deussen de fevereiro de 1870, KSB 3.99.
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4
Carta a Erwin Rohde de 3 de abril de 1868, KSB2.262.
-
5
Carta a Franziska e Elisabeth Nietzsche de 27/10/1869. KSB 3.70.
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6
NF/FP 1888, 20[46], KSA 13.557.
-
7
Por exemplo, os traços deixados pela música da ópera e pela música erudita Bach e Beethoven. (NF/FP 1871, 9[135], KSA 7.324).
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8
Esquecer um mestre (MA I/HH I 172, KSA 2.159), um amigo (MA I/HH I 197, KSA 2.166), um dia ruim (MA I/HH I 474, KSA 2.308), ou mesmo vivências, pensamentos e fatos (MA I/HH I 526. KSA 2.325; M/A 381, KSA 3.247).
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9
Nietzsche faz referência ao esquecimento como algo intencional, por exemplo, em VM/OS 37, KSA 2.397 e à impossibilidade de se ter esse controle sobre o esquecimento, por exemplo, em WS/AS 202, KSA 2.641 e 327, KSA 2.696.
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10
Para uma análise desse ponto, que deverá ser retomado oportunamente, não se pode deixar de considerar que Nietzsche em outras passagens fala do necessário esquecimento de si, como se tem, por exemplo, em Schopenhauer Educador (final da seção 4) e também em Ecce homo, quando o conhecimento de si é associado ao esquecimento de si (EH/EH Por que sou tão esperto 9, KSA 6.293).
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11
Acerca do papel do esquecimento no campo das impressões morais e da sua relação com a ideia de utilidade, conferir WS/AS 40, KSA 2.570-571.
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12
A correlação entre utilidade e esquecimento e o modo como Nietzsche parece mudar sua posição nos diferentes textos citados demandam um estudo à parte.
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13
Outras passagens poderiam ser observadas para corroborar o interesse de Nietzsche pelos benefícios do esquecimento, entre elas, por exemplo, a seção 24 de O nascimento da tragédia, bem como a seção sobre as três metamorfoses, de Assim falou Zaratustra.
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Do mesmo modo como não haveria, segundo Nietzsche, um estudo sobre o esquecimento e nem a sua compreensão como um fenômeno pela ciência (M/A 126, KSA 3,117).
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Vale notar que a fluidez do conceito de esquecimento nos escritos de Nietzsche não perfaz uma linha progressiva, por exemplo, rumo a uma formulação mais peculiar do filósofo, que se encontraria, quiçá, na Genealogia da moral, em 1887. Ao contrário, o esquecimento é um conceito que se amolda, como as curvas de um rio, aos diferentes contextos e necessidades do filósofo, o que permite a aproximação entre o seu uso em 1874 e 1887.
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Nietzsche volta a utilizar o verbo “einverleiben” bem como o substantivo “Einverleibung” especialmente a partir de 1881, por exemplo, em NF/FP 1881,11[141], KSA 9.494-495. Termo do qual irá derivar o neologismo “Einverseelung” cunhado por ele e utilizado em sua Genealogia da moral (GM/GM II 1, KSA 5.291), conforme veremos, para referir-se à “assimilação pela alma”.
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Na Segunda Consideração Extemporânea, Nietzsche já faz a associação entre o esquecimento e o aparelho digestivo, embora de forma inversa, considerando a possibilidade de uma indigestão (Unverdeutlichkeit) ainda preliminar, indicando a possibilidade de uma cultura “perecer por indigestão” HL/Co. Ext. II 4, KSA 1.273 e também que a sua falta constitui uma “indigestão da vida”. (e 9, KSA 1.314)
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A dificuldade de assimilação de certos sentimentos, como é o caso do sentimento de vingança, que resulta em uma incapacidade de digestão, em um “de nada dar conta”, encontra-se em EH/EH, Por que sou tão sábio, 6, KSA 6.272-273, ao passo que a preocupação com o que ingerir para alcançar um máximo de força, tem lugar em EH/EH Por que sou tão esperto 1, KSA 6.278-281.
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Nas palavras do filósofo, “o epicúrio escolhe a situação, as pessoas e até mesmo os eventos que são adequados à sua constituição intelectual altamente suscetível, renunciando ao resto - ou seja, à maior parte -, porque seria um alimento forte e pesado demais para ele. Já o estoico, ao contrário, se exercita em engolir pedras e vermes, estilhaços de vidro e escorpiões, e não sentir nojo; seu estômago deve se tornar indiferente a tudo o que o acaso da existência despeja nele”. (FW/GC 306, KSA 3.544)
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20
Como sugere Descartes sobre a tarefa de se desfazer das opiniões recebidas ao longo do tempo (2004, p. 21) ou de apartar o espírito das “coisas sensíveis e imagináveis” (p. 111).
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21
Predomina, ao certo, na cultura ocidental, a busca por técnicas de memorização e não de esquecimento. Contudo o esquecer também já foi objeto de atenção, como se tem, por exemplo, com as técnicas disseminadas por Ovídio para o esquecimento de um amor com traços de enfermidade. (Cf.: WEINRICH, 2001WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 40-41).
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22
No geral, os intérpretes de Nietzsche valorizam as contribuições do filósofo às pesquisas sobre a memória e o esquecimento e o modo como ele se contrapõe a essa tradição (Cf., por exemplo, Ottmann, 2000OTTMAN, Henning (Org.) Nietzsche-Handbuch. Stuttgart: J. B. Metzler, 2000., p. 349 e Thüring, 2014THÜRING, Hubert. Esquecimento. In:. NIEMEYER, Christian (Org.) Léxico de Nietzsche. Trad. André Garcia, Ernani Chaves, Fernando Barros, Jorge Viesenteiner e William Matiolli. São Paulo: Ed. Loyola, 2014., p. 184). Na interpretação que se desdobra neste artigo, contudo, há uma preferência pela ideia de que Nietzsche faz parte de uma tradição que, em seu tempo, já dá sinais de uma valorização do esquecimento e do seu papel para o homem e, ao certo, contribui com ela.
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23
Conferir, por exemplo, os argumentos de Sócrates em Mênon 81c e seguintes. (Platão, 2020PLATÃO. Mênon. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, Ed. UFPA, 2020., p.73).
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24
Conferir, por exemplo, o relato feito por Sócrates em Fedro, 274 e 275. (Platão, 2000PLATÃO. Fedro ou Da Beleza. Trad. Pinharanda Gomes. 6. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000., p. 120-121).
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25
Tal jogo é expresso em especial a partir da seção 8 do capítulo intitulado “O encontro com Deus” do livro Confissões. (Agostinho, 2015AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira e A. Ambrósio de Pina. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2015., p. 258ss).
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26
Conferir Weinrich, 2001WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 77ss. Embora não se pode deixar de mencionar que o esquecimento é parte da loucura do Cavaleiro da Triste Figura.
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27
Cf.: Descartes, 1991DESCARTES. Discurso do Método. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Junior. São Paulo: Nova Cultural, 1991., p. 46 e 2004DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira. Trad. Fausto Castilho. Ed. Bilingue. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004., p. 21.
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28
O caráter voluntário do esquecimento em Descartes é colocado em relevo por WEINRICH, 2001WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 95.
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29
Conferir Weinrich, 2001WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 74-76.
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30
Conferir Weinrich, 2001WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 98ss. Kant em especial produz uma gradação que parte da “memória mecânica”, passando pela “memória engenhosa” e a “memória judiciosa”, esta última mais próxima da atividade crítica (WEINRICH, 2001WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 109ss).
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31
Weinrich, 2001WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Trad. Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001., p. 132.
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32
Além da possibilidade de contato de Nietzsche com os autores já mencionados anteriormente, não se pode deixar de considerar também os filósofos ingleses, como é o caso de David Hume e Stuart Mill, (Conferir, por exemplo, Leiter & Sinhababu, 2007LEITER, Brian & SINHABABU, Neil. Nietzsche and Morality. Oxford: Clarendon Press, 2007.), além de John Locke, citado por Stegmaier (Stegmaier, 1994STEGMAIER, Werner. Nietzsches ‘Genealogie der Moral’. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994., p. 134). Mais ainda, quando se trata da associação entre esquecimento e saúde psíquica, não se pode perder de vista a leitura cuidadosa que Nietzsche fez de Dostoiévski, com especial à figura do “Camundongo de consciência hipertrofiada” (Dostoiévski, 2017DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do subsolo. Trad. de Boris Schneiderman. 6. ed., 3. reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2017., p. 23), caracterizado justamente por não conseguir impedir que certas impressões invadam sua consciência e ocupem todo o seu mundo interior. (Conferir, por exemplo, Paschoal, 2014PASCHOAL, Antonio E. Nietzsche e o ressentimento. São Paulo: Humanitas, 2014., p. 111ss).
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33
Conferir Stegmaier, 1994STEGMAIER, Werner. Nietzsches ‘Genealogie der Moral’. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994., p. 133, nota de rodapé 2.
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34
Ebbinghaus, Hermann. Über das Gedächtnis. Leipzig: Duncker & Humblot, 1885.
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35
Em um livro de 1873, Ebbinghaus debate diretamente com Hartmann o tema da “filosofia do inconsciente”. Cf.: Ebbinghaus, H. Über die Hartmannsche Philosophie des Unbewussten. Dusseldorf: F. Dietz, 1873.
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36
Thüring, 2014THÜRING, Hubert. Esquecimento. In:. NIEMEYER, Christian (Org.) Léxico de Nietzsche. Trad. André Garcia, Ernani Chaves, Fernando Barros, Jorge Viesenteiner e William Matiolli. São Paulo: Ed. Loyola, 2014., p. 186.
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37
Em nota, Stegmaier faz referência a John Locke, An Essay Concerning Human Understanding (1690), II, 1.2. Ele também lembra, contudo, que a ideia de um campo vazio é mais antigo, remontando a Platão, Teeteto, 197d, 200b e a Aristóteles, De anima, III, 4 (430a1).
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38
Stegmaier cita: NF/FP1887-1888, VIII 11[145], KSA13.67-68.
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39
A recusa de Nietzsche da consciência ou da memória como um simples acúmulo passivo de impressões passadas pode ser avaliada, por exemplo, nos esforços do Sacerdote Ascético, por exemplo, para “introduzir na consciência dos felizes” o sentimento de culpa, ou ainda, para impedir que o “sentimento de obstrução fisiológica” penetre “como tal na consciência” de suas ovelhas. Nesse sentido, vale considerar o papel do entorpecimento para desviar a consciência de uma “dor torturante” (GM/GM III 17, KSA 5.381).
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40
Trata-se do livro intitulado Lehrbuch zur Psychologie, de 1816. Stegmaier remonta tal informação a Marco Brusotti, Die “Selbstverkleinerung des Menschen’, p. 90, que teria chamado a atenção para o fato de essa obra ter chegado a Nietzsche por meio de Johan Julius Baumann, Handbuch der Moral nebst Abriss der Rechtsphilosophie. Leipzig: Hirzel, 1879. Nietzsche teria estudado minuciosamente Baumann, conforme se observa nos excertos encontrados no fragmento póstumo da primavera e verão de 1883 (NF/FP 1883, VII 7[248]), KSA10.319).
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41
Além do fragmento citado, Herbart aparece outras duas vezes nos escritos de Nietzsche. Em uma carta a Erwin Rohde, de 4 de fevereiro de 1872, KSB 3.287 e em Schopenhauer como Educador, SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.421; CE III, 8. Em tais ocorrências Nietsche se mostra irônico em relação ao psicólogo.
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42
Cf.: Frezzatti Jr, 2018FREZZATTI JR. Wilson. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018., p. 39.
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43
Conferir, por exemplo, Lampl, 1989LAMPL, Hans Erich. Flair du Livre. Friedrich Nietzsche und Théodule Ribot. Nietzsche Studien, 18, 1989, p. 573-586. e Campioni, 2009CAMPIONI, Giuliano. Der französische Nietzsche. Trad. Renate Muller-Buck e Leonie Schröder. Belin - New York: Walter de Gruyter, 2009.. Frezzatti Jr. aponta outros exemplos nesse sentido. (2018, p. 74).
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44
Embora não se tenha um trabalho mais elaborado sobre essa correlação, como faz Frezzatti Junior, ela aparece, por exemplo, no verbete “esquecimento”, escrito por Hubert Thüring para o Léxico de Nietzsche, organizado por Christian Niemeyer, cuja primeira edição é de 2009. Também em trabalhos mais recentes ela aparece, novamente, como uma rápida menção. Cf., por exemplo, o trabalho de Andreas Urs Sommer em seu conhecido comentário sobre a Genealogia da moral. (Sommer, 2019SOMMER, Andreas Urs. Kommentar zu Nietzsches Zur Genealogie der Moral. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2019., p. 249).
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45
Outras pesquisas também indicam o contato do filósofo com as obras de Ribot anos antes da escrita da Genealogia da moral. Conferir, por exemplo, Campioni, 2009CAMPIONI, Giuliano. Der französische Nietzsche. Trad. Renate Muller-Buck e Leonie Schröder. Belin - New York: Walter de Gruyter, 2009., p. 42 e Thühring, 2014, p. 185.
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46
Não se pode perder de vista que se trata ainda que ambos, Ribot e Nietzsche, partilham um solo comum, além de que também Ribot mobiliza outros teóricos na construção de seu pensamento, numa complexa malha de interlocutores que dificilmente poderia ser desenleada.
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47
Uma ideia ao lado da qual não se pode deixar de considerar a possibilidade de que Nietzsche toma muito do que encontra na ciência de sua época também como meio de expressão, fazendo ele mesmo aquilo que afirma em relação a Schopenhauer que teria “somente uma tarefa e cem mil meios para resolvê-la: um sentido e inúmeros hieróglifos para exprimi-lo.” (SE/Co. Ext. III 7, KSA 1.411)
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48
É importante salientar, neste ponto, que apresentar a gênese de um conceito não esgota um estudo de fontes que deve considerar ainda o modo como o filósofo se apropria dele e as transformações que impõe a ele. Além disso, é importante evidenciar que a própria pesquisa de fontes, embora elucidativa, como toda pesquisa genealógica, persegue fios que tendem a se perder no escuro do passado.
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49
CF.: Wotling, 2018WOTLING, Patrick. A invenção da psico-fisiologia. In: FREZZATTI JR., Antonio. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018, p. 13-32., p. 28. A essa afirmação, deve-se acrescentar que o “caráter científico (positivista)” é característico do método de trabalho de Ribot (Frezzatti Jr, 2018FREZZATTI JR. Wilson. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018., 121). Sobre o modo como Nietzsche seleciona o material que encontra em suas fontes, é elucidativo o exemplo de seu uso de Dostoiévski, a quem admira e se serve, embora sejam evidentes as diferenças teóricas entre ambos. (CF.: Paschoal, 2014PASCHOAL, Antonio E. Nietzsche e o ressentimento. São Paulo: Humanitas, 2014., p. 111ss).
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50
CF.: Wotling, 2018WOTLING, Patrick. A invenção da psico-fisiologia. In: FREZZATTI JR., Antonio. Nietzsche e a psicofisiologia francesa do século XIX. São Paulo: Humanitas, 2018, p. 13-32., p. 31.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Abr 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
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Recebido
10 Out 2021 -
Aceito
12 Nov 2021