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O niilismo em Parsifal

The nihilism in Parsifal

Resumo:

Este artigo procura entender, a partir do pensamento tardio de Nietzsche, as razões pelas quais pode-se observar aspectos do niilismo na ópera Parsifal, de Wagner. Dadas as copiosas considerações de Nietzsche a respeito de Parsifal, é possível identificá-la ao niilismo, sobretudo ao incompleto. Além do que, se a negação do mundo está identificada à moral, ao ascetismo, à fé cristã, à castidade e à compaixão, são esses os elementos que norteiam a obra wagneriana de 1882 e que, por seu turno, caracterizam-na como uma espécie de niilismo estético.

Palavras-chave:
Nietzsche; Niilismo; Wagner; Parsifal.

Abstract:

This paper aims to understand from Nietzsche’s late thinking the reasons why we can observe aspects of nihilism in the opera Parsifal, by Wagner. Given the several considerations by Nietzsche regarding Parsifal, it is possible to identify it with nihilism, especially with the incomplete one. Besides that, if the denial of world is identified to moral, to asceticism, to Christian faith, to chastity and to compassion, these are the elements that guide the Wagnerian work from 1882 and which, in turn, characterize it as a kind of aesthetical nihilism.

Keywords:
Nietzsche; Nihilism; Wagner; Parsifal

Introdução

O problema do niilismo, “esse hóspede de todos os mais sinistro” (NF/FP 2[127] 1885-86, KSA 12.125), cobre uma notável fração das reflexões nietzschianas. Desenvolvida mormente no período maduro de Nietzsche, a interpretação do niilismo pode ser apresentada, suscintamente, da seguinte maneira: niilismo incompleto, niilismo completo e niilismo radical.1 1 Na interpretação do filósofo francês Gilles Deleuze, o niilismo, na obra de Nietzsche, está dividido em quatro partes, a saber, niilismo negativo, passivo, reativo e ativo. Cf. Deleuze 2018. Logo, reconhecendo que temos como horizonte analisar especialmente a presença de aspectos do niilismo incompleto na ópera Parsifal2 2 Quando da referência à ópera, o título se encontrará em itálico. Quando nos referirmos ao personagem principal da obra homônima, seu nome será escrito normalmente, sem destaque. (1882), de Richard Wagner, não nos deteremos extensamente sobre a problematização do niilismo completo e do niilismo radical. Contudo, para que fique suficientemente clara a disparidade entre a proposta nietzschiana do niilismo radical e do niilismo incompleto, que buscaremos averiguar na obra de Wagner, convém mencionar fase em que o niilismo se radicaliza. Além do que, é-nos conveniente percorrer detidamente a referida ópera, ressaltando cenas e falas de personagens, a fim de atender ao objetivo que nos impusemos, que é compreender, embasados no pensamento tardio de Nietzsche, as causas pelas quais é possível depreender o niilismo na última obra wagneriana.

Sabe-se que foi muito em razão de ter travado contato com Parsifal que Nietzsche decidiu, de uma vez por todas, apartar-se de tudo relacionado a Wagner. Não que, entre os comentadores, este episódio esteja depurado de altercações. Para Granier, por exemplo, é admissível endossar que foi no período intermediário de Nietzsche que, por conta de sua reflexão crítica, o filósofo alemão foi conduzido à justificação de sua ruptura com o wagnerianismo e, identicamente, de forma contumaz, com as noções schopenhauerianas3 3 Granier, 2013, p. 27. - as quais, vale ressaltar, eram de grande valia para o músico. Já para Kaufmann, Nietzsche estava evidentemente revoltado com Parsifal. Sobre isso, assevera o comentador que o rompimento com Wagner foi, então, apenas selado dessa forma, porque já tinha ocorrido bem antes de o filósofo receber o libreto da alegada ópera. Kaufmann atesta também que o dissabor no tocante a tudo isso acentuava-se gradualmente enquanto Nietzsche adquiria cada vez mais consciência de que não seria capaz de servir a Richard Wagner e ao seu próprio chamamento por um pensamento independente4 4 Kaufmann, 1974, p. 37. . Esta independência de pensamento encerrava afirmações cada vez mais inexoráveis ao cristianismo, inclusive por ver seus anseios adotados e continuados por uma modernidade laica, já não mais balizada pelos dogmas cristãos. Em suma: na controvérsia relação que se instalou entre o filósofo e o músico, assomou também a assimetria entre Dionísio e o Salvador, porquanto são esses dois nomes, para Marton, que caracterizam duas formas contrastantes de observar o mundo5 5 Marton, 2014, p. 272. . Assim sendo, na medida em que Nietzsche ansiava pelo dionisíaco, Wagner, contrapondo-se ao filósofo, lançava-se ao cristianismo e continuava a perpetuar seus valores e seu aferrado anseio pela verdade.

Na ocasião em que Nietzsche remete o livro Humano, Demasiado Humano a Bayreuth, local em que Wagner se encontrava, o filósofo anota: “Por um milagre de sentido no acaso, chegava-me simultaneamente um belo exemplar do texto do Parsifal, com dedicatória de Wagner a mim”. Nele, o músico registrou: “‘a meu caro amigo Friedrich Nietzsche, Richard Wagner, conselheiro eclesiástico’” (EH/EH, Humano, Demasiado Humano 5, KSA 6.327). O abalo, a despeito de questões outras6 6 Interessante notar que, como escreve Holub, a ideia de que foi com Parsifal que Wagner se demonstrou cristão é imprecisa, e mesmo estranha, pois tal ópera já vinha sendo elaborada desde 1850. Nisso reside a dificuldade de se pensar que, na frutífera relação que Nietzsche teve com Wagner, o filósofo não chegou a ter contato com a ópera, ou seu esboço, antes de sua primeira apresentação, que só ocorreu em 1882. Nietzsche, ainda segundo Holub, chegou a revisar a autobiografia de Wagner, que incluía a relação de Parsifal com a Sexta-Feira Santa. Cosima Wagner anotou em seu diário que, no Natal de 1869, ela teve a oportunidade de ler Parsifal em companhia de Nietzsche. Holub ressalta que a mudança que Nietzsche identifica em Wagner vinha desde o início de sua relação com o compositor, quando o filósofo já percebia que uma degeneração acometia Wagner. Donde o comentador afirmar: “It seems much more likely that Nietzsche’s account of Wagner, his degeneration, and his own “discovery” of his friend’s piety, asceticism, and decadence are a subsequent invention of Nietzsche, a narrative account that in his later writings and thought fit in with the worldview that dominated his texts in the 1880s” (2018, p. 435). , o filósofo retratou como sendo atroz. Por isso, traduz seu sentimento nas palavras que se seguem: “Esse cruzamento dos dois livros - a mim me pareceu ouvir nele um ruído ominoso. Não soava como se duas espadas se cruzassem?...” E complementa: “De qualquer modo nós o sentimos ambos assim: pois ambos silenciamos.” Daí, no instante em que “apareceram as primeiras Folhas de Bayreuth”, Nietzsche afirma “para o que havia chegado a hora. - Incrível! Wagner havia se tornado devoto...” (EH/EH, Humano, Demasiado Humano 5, KSA 6.327)7 7 Todas as traduções das obras publicadas de Nietzsche são de Paulo César de Souza, editadas pela Companhia das Letras/Companhia de Bolso, conforme apresentadas nas referências. . Tempos depois, em 1888, um registro póstumo nos evidencia um pouco mais acerca de tal rompimento: Nietzsche assegura que se distanciara de Wagner também porque ele, o músico, havia regressado ao Deus alemão e à Igreja alemã (NF/FP 16[42] 1888, KSA 13.500)8 8 As traduções dos fragmentos póstumos aqui utilizados são de Marco Antônio Casanova, publicados pela Forense Universitária, conforme constam nas referências. .

O devotamento que se manifestava em Wagner em sua velhice, e, em especial, em sua derradeira ópera, conduzem-nos à algumas falas de Zaratustra, que brotam no ano posterior à inaugural apresentação de Parsifal. Em determinada parte do livro dedicado a esse célebre personagem, lê-se: “Como se agitou de prazer e maldade o coração de cada um de vós, porque enfim vos tornastes novamente como as criancinhas, ou seja, devotos”. Devotos, aqui, “porque enfim fizestes novamente como as crianças, ou seja, rezastes, juntastes as mãos e dissestes ‘meu bom Deus’!” (Za/ZA IV, A festa do asno 2, KSA 4.393). Desnecessário dizer que Nietzsche assistiu o mesmo fenômeno ocorrer com Wagner.

Niilismo: incompleto, completo e radical

Tendo em conta que o presente texto se esforçará em evidenciar fundamentalmente elementos do niilismo incompleto na ópera wagneriana de 1882 e, assim, marcar os motivos internos à obra que levaram à ojeriza estética - e fisiológica9 9 Uma afirmação bastante categórica, em Nietzsche contra Wagner, dá conta de que as objeções de Nietzsche à música de Wagner eram fisiológicas. Em razão disso, pergunta: “por que disfarçá-las em fórmulas estéticas? Afinal, a estética não passa de fisiologia aplicada [angewandte Physiologie]” (NW/NW, No que faço objeções, KSA 6.418). Sobre isso, Müller-Lauter comenta que “não se refuta o niilismo por meios princípios de razão [...]. Pois mesmo que a razão ‘declare guerra’ à décadence, não consegue desvencilhar-se dela.” (Müller-Lauter, 2009, p. 125). - de Nietzsche, é mister que, antes de nos debruçarmos sobre a obra em questão, nos situemos acerca do termo e de sua divisão.

Após uma extensa investigação genealógica acerca da moral, essa sendo uma consequência das saúdes frágeis, vulneráveis, décadentes10 10 Em diversos escritos, Nietzsche refere-se à degeneração, ou décadence. Para Müller-Lauter, ainda que Nietzsche tenha escrito antes a respeito da mesma questão, é somente no ano de 1888 - último ano em que Nietzsche exerceu atividade filosófica até perder a sanidade - que o problema da décadence surge como fulcral em seu pensamento. 1999. p. 12. Além disso, foi a obra Essais de psychologie contemporaine, de Paul Bourget, que inspirou a utilização desse termo, conforme aponta Charles Andler (1931, p. 418-424. (vol 3)). Cf. Bourget, 1883. , o filósofo alemão entende que a história ocidental é toda transpassada pela moralização, por valores tidos por superiores. E parte de sua história é constituída pelo niilismo ainda incompleto. Portanto, por uma doença que desde há muito acometeu o ocidente. Dentre suas aparições, encontra-se a má-consciência, resultante da interiorização das forças antes externalizadas e agora reprimidas pela vida em sociedade (GM/GM II 16, KSA 5.375-77). Antes, a liberdade; posteriormente, sua repressão. As forças do instinto desafogando-se apenas dentro do próprio sujeito e suscitando a má consciência (GM/GM II 17, KSA 5.325).

Há também o ressentimento, que nasce da revolta dos escravos contra os senhores (GM/GM I 7, KSA 5.267). Aqui estamos diante da moral dos senhores [Herren-Moral] e da moral dos escravos [Sklaven-Moral]. Essa revolta deriva das forças que, subvertendo os valores aristocráticos, nobres, empreenderam o que Nietzsche chama de rebelião dos escravos (GM/GM I 10, KSA 5.270-71). Desde os judeus, esses gênios morais entre os povos (FW/GC III 136, KSA 3.487), é que o ódio ao mundo e ao que é superior começa a moldar o comportamento do ocidente.

Em Além do Bem e do Mal, descobrimos que esse povo, considerado por todo o mundo antigo como um “povo nascido para a escravidão”, empreendeu uma inversão de valores sem precedentes. Foram seus profetas que, na pena do filósofo, “fundiram ‘rico’, ‘ateu’, ‘mau’, ‘violento’ e ‘sensual’ numa só definição, e pela primeira vez deram cunho vergonhoso à palavra ‘mundo’”. E “Nessa inversão de valores (onde cabe utilizar a palavra ‘pobre’ como sinônimo de ‘santo’ e ‘amigo’) reside a importância do povo judeu: com ele começa a rebelião escrava na moral” (JGB/BM 195, KSA 5.117). Mediante sua rebelião, esse povo alçou a moral a patamares nunca vistos na história.

Como efeito de tal doença, tem-se também o ideal ascético, com todos os seus princípios, dogmas e invenções, que exerce efeito anestésico diante do horror vacui (GM/GM III 1, KSA 5.339), doa ao sujeito um sentido e promove a castidade - que, como veremos, são manifestações do niilismo fortemente marcadas na ópera Parsifal. Além disso, o cristianismo, admitido como o princípio basilar dos fracos, doou ao ser humano um valor total, mitigando sua pequenez e efemeridade. Vendo-se como importantes a Deus, e seguindo seus mandamentos, os seres humanos foram elevados às alturas, a uma importância ímpar e, por conseguinte, impedindo-lhe de tomar “partido contra a vida”. Consequentemente, a moral foi, como escreve o filósofo, “o grande antídoto contra o niilismo prático e teórico” (NF/FP 5[71] 1887, KSA 12.211). Como resultado, “a porta se fechava para todo niilismo suicida” (GM/GM III 28, KSA 5.411).

Esse ideal ascético, além ser um dos meios pelos quais o espírito fraco, décadent, expande a moral - bem como já havia feito o platonismo, intensamente reprovado por Nietzsche, dado que Platão, ainda em Genealogia da Moral, é cognominado como o maior caluniador da vida (GM/GM III 25, KSA 5.403) -, aloca os valores superiores em um mundo outro e o afirma, de modo que nega a vida, a imanência. Vejamos: se o platônico se refere ao Bem, o cristão menciona Deus, discernido como sumo Bem. Para afirmar o valor, a moral, que descenderia apenas de outro mundo, é capital que seja empreendido o processo de negativação do valor deste mundo, atividade que o sacerdote ascético desempenha com brilhantismo. A complexidade e a contingência são negadas em favor de uma existência suprassensível na qual acredita-se que todas as contradições estarão solucionadas.

A fé derivada do ideal ascético é o que favorece o fanatismo reprovado pelo filósofo alemão como rebento de uma época durante a qual a vontade tornou-se frouxa. Por causa disso, essa fé ofertou “a muitos um apoio, uma nova possibilidade de querer, um deleite no querer”, conquanto nega-se a vida terrena. Ao mesmo tempo, a vontade, “enquanto afeto de comando”, representando “o decisivo da soberania e da força”, também se enfraqueceu. O fraco não pode comandar. Diferentemente disso, ele carece de comando, seja por parte de um deus, de um governante, de uma classe, de um médico e/ou de um dogma instituído (FW/GC V 347, KSA 3.582). Esses sujeitos são reputados por Nietzsche como “os que mais corroem a vida entre os homens, os que mais perigosamente envenenam e questionam nossa confiança na vida, no homem, em nós” (GM/GM III 14, KSA 5.368). Niilistas que são, abominam o mundo e têm aversão àquilo que lhe é mais natural. Quer dizer, formam o grupo dos “grandes odiadores” (GM/GM I 7, KSA 5.267) do mundo.

Lemos em O Anticristo: “A ‘fé’ - já a chamei a característica sagacidade cristã -, sempre se falou de ‘fé’, agiu-se sempre por instinto” (AC/AC 39, KSA 6.212). Aqui Nietzsche se refere, evidentemente, àquele instinto dos fracos, décadents. Uma vez que “O homem religioso, tal como a Igreja o quer, é um típico décadent”, sua natureza enfraquecida, dessa forma, está determinada ao que há de mais doente e fraco. No mesmo livro, temos a conclusão de que ninguém é livre para tornar-se cristão, posto que, para deixar-se guiar mesmo cristianismo, para converter-se, é preciso, previamente, ser bastante doente (AC/AC 51, KSA 6.231). É esta uma compleição enfermiça, que conduz à negação da vida mesma e que reúne semelhantes sob o amparo do mesmo dogma: “O cristianismo, essa negação da vontade de viver tornada religião” (EH/EH, O Caso Wagner 2, KSA 6.359). A expressão “tornada religião” significando a institucionalização da décadence e do niilismo.

A noção de Deus, de um mundo duplicado que dá origem à uma ideia de um plano suprassensível, categorizado como nobre diante de um mundo terreno rejeitado, assalta o sujeito e o contamina, porque “O conceito ‘Deus’ foi, até agora, a maior objeção à existência...” (GD/CI VII 8, KSA 6.97). Esse conceito não tem outro significado que não a derrocada, a “mistura de zero, conceito e contradição, no qual todos os instintos de décadence, todas as fadigas e covardias da alma têm sua sanção!” (AC/AC 19, KSA 6.185). As presentes críticas, acrescidas à várias outras, formam o corpus que levam à hostilidade de Nietzsche àqueles que reputa como negadores do mundo, caluniadores do que é terreno. Desse jeito, o cristianismo, religião predominante no ocidente e sobretudo como sintoma da fase obscura11 11 Para uma discussão mais atenta sobre essas diferentes fases do niilismo, ver: Araldi, 2004. do niilismo incompleto, tem lugar de destaque em suas críticas.

Por conta da viva e intensa busca do cristianismo pela verdade, uma vez que o ser humano enfraquecido não é capaz de suportar uma vida desprovida de sentido, as bases de sua própria fé são solapadas. Tem-se uma tão voraz perseguição pela verdade última que seu produto é a morte do próprio Deus, o qual acaba por deixar um espaço vazio, antes plenamente preenchido. O niilismo incompleto, porém, em seu período de claridade, como salienta Araldi (2004, p. 112)ARALDI, C. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. - São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2004., não está aberto a uma transvaloração dos valores. E o lugar deixado por Deus é ocupado por crenças outras, tais como pela política - que, com suas ações para “melhorar a humanidade”, com o socialismo, busca alcançar um ideal de felicidade, de moralidade (GD/CI VI 8, KSA 6.96) -, pela história, e pelo progresso das ciências. Isso com o objetivo de vencer o niilismo e tudo explorar com fins à verdade, de sorte que seguem preservando esse mesmo niilismo. Afinal, os valores permanecem, em especial o valor da “verdade”. Disso deriva a razão pela qual Nietzsche enuncia, por exemplo, que “Uma avaliação do ideal ascético conduz inevitavelmente a uma avaliação da ciência”. Então, se se quer entender a crítica ao niilismo tanto do ideal ascético quanto da ciência, é necessário “combatê-los e questioná-los em conjunto” (GM/GM III 25, KSA 5.402).

Deus está morto. Todavia, inexiste ciência ou razão que ceda ao sujeito um propósito. Sendo assim, quaisquer metas outrora fomentadas são vislumbradas como impróprias; nelas, não há mais nenhuma crença (NF/FP 9[35] 1887, KSA12.351). Deus está morto. E diante da perda da fonte divina dos valores que doavam um sentido ao mundo e face a tal abalo cósmico (ARALDI, 2004, p. 69)ARALDI, C. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. - São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2004., mesmo as potencialidades da razão e/ou da ciência foram insuficientes para suplantar o desespero humano.

O devir, a aparência, não basta ao homem de ciência. Igualmente, no ateísmo mais honesto, completo, tem-se a velha devoção à verdade. A ciência continua a propagar o valor da moralidade, o valor da verdade. Nesse sentido, Nietzsche aponta que esse medo antigo e prolongado acaba por se tornar sutil, intelectual e espiritual, o que o filósofo entende estar representado na ciência (Za/Za IV, Da ciência, KSA 4.377). Para a ciência, com seu medo do vazio, é necessário tudo desvelar para que a existência retome o sentido antes atribuído ao mundo e a vida por Deus, que agora jaz no túmulo da modernidade, período histórico em que Nietzsche percebe a intensificação do niilismo e quando, como aponta Araldi, o processo do niilismo torna-se mais radical e manifesta “suas formas mais acabadas”, também porque é nesse período que a modernidade demonstra o “declínio do poder e da disciplina do espírito” (2004, p. 63-64).

Ainda que queiramos marcar os aspectos do niilismo incompleto na última obra wagneriana, é conveniente darmos alguma atenção, mesmo que brevemente, ao que se entende por niilismo completo e, mais adiante, apor niilismo radical. Isso porque discernir o niilismo completo e, principalmente, o niilismo radical, permite uma melhor consciência da férrea oposição que Nietzsche faz a Wagner por ocasião de Parsifal. Vejamos.

Quando do niilismo completo, a duplicação do mundo, severamente criticada por Nietzsche como uma das consequências da degeneração processada desde a Antiguidade, é extinta. O ser humano passa a ter consciência de estar abandonado, por conta própria, no mundo. Os valores superiores perdem valor. Nesse instante, o niilismo atinge sua completude. Entretanto, o ser humano, perplexo com sua presente situação, não está preparado para enveredar na seara da afirmação desse vazio, como o fará Zaratustra.

Decorrente do niilismo completo, há, então, duas outras distinções do niilismo, a saber, o ativo e o passivo. No primeiro caso, encontra-se um ser humano angustiado, mas percebe-se um fortalecimento do espírito, inclinado a destruir, mas não a destruir no intuito de criar valores para si - que valorize acima de tudo o seu “Si-mesmo” [Selbst], como poderá ser feito apenas por intermédio do niilismo radical. No segundo, isto é, no niilismo passivo, tem-se a percepção de que a humanidade tentou superar o vazio deixado por Deus, mas seu propósito malogrou. Se o niilismo incompleto levava o sujeito a preferir o nada a nada querer (GM/GM III 28, KSA 5.412) - porque ainda aspirava a algo, como à verdade -, no niilismo passivo acha-se o nada de vontade - a completa passividade - a ter mesmo a vontade de nada do asceta e mesmo do homem de ciência, que buscava pela verdade à sua maneira. É nesse ponto da história que a humanidade é assaltada pela compaixão e pelo desprezo, como frisa Araldi (2004, p. 114)ARALDI, C. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. - São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2004..

Cumpre mencionar que, nessa altura, a humanidade acha-se, pela primeira vez na história, defronte a um mar aberto (FW/GC V 343, KSA 3.574); ela encara a oportunidade de afirmar o devir, de afirmar-se como sujeito. Donde a vantagem de poder se contrapor ao niilismo prevalecente no decurso de toda a história do ocidente12 12 Para Heidegger: “Enquanto procedimento fundamental da história ocidental, o niilismo é imediatamente e antes de tudo o princípio normativo dessa história. Por isso, também em suas considerações sobre o niilismo, o decisivo não está tanto para Nietzsche na descrição do decurso do evento da desvalorização dos valores supremos e na contabilização final oriunda daí do declínio do ocidente. Ao contrário, Nietzsche pensa o niilismo enquanto a ‘lógica interna’ da história ocidental.” (2003. p. 485). , que foi o próprio acontecer e desenvolver deste fenômeno completado na modernidade.

É aí que Nietzsche irá conceber o niilismo radical, que se afigura como a única chance13 13 Vattimo, 1998, p. 27. do ser humano para ultrapassar os niilismos anteriores14 14 “Pois por que a ascensão do niilismo é a partir de agora necessária? Porque os nossos próprios valores é que retiram nele a sua derradeira consequência; porque o niilismo é a lógica pensada até o fim de nossos grandes valores e ideais” (NF/FP 11[411] 1887-88, KSA 13.190). . Zaratustra é o proclamador dessa espécie de niilismo, porquanto o assume e o afirma incondicionalmente. É apenas no fim desse processo levado até as últimas consequências, via niilismo radical, que a superação [überwinden ] do homem, pela afirmação daquilo que aí está, permite que o niilismo incompleto e mesmo o completo seja também sobrepujado. Estribada no niilismo radical é que a criação de valores a partir da destruição é instaurada. Quer dizer, como corolário desse tipo radical de niilismo, vislumbra-se a oportunidade de transvaloração de todos os valores.

Deve-se acentuar que tal transvaloração não é tarefa simples. Nietzsche mesmo reconhece a dificuldade de se chegar a tais alturas. Por isso, vê essa ação como dependente do homem do futuro [Mensch der Zukunft]. Mas, com a transvaloração em curso, aí sim será possível ao ser humano criar suas leis, seu imperativo categórico (AC/AC 11, KSA 6.177). Há de ser apenas esse sujeito vindouro

que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo, esse toque de sino do meio-dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada - ele tem que vir um dia (GM/GM II 24, KSA 5.336).

E, como vemos em seus escritos tardios, Nietzsche se esforçava para viabilizar o nascimento desse novo homem.

Se podemos dizer que o filósofo, tempos antes, via em Wagner um artista disposto a colaborar com essa enérgica afirmação e, por isso, era admitido como um revolucionário, posteriormente o compositor torna-se alvo de inflexíveis críticas, particularmente a contar do instante em que o filósofo toma conhecimento da ópera Parsifal, quando suas censuras ao músico e à sua obra sobem de tom.

Em Ecce Homo, se lê: “Wagner era um revolucionário” (EH/EH, Por que sou tão inteligente 5, KSA 6.288). O “era”, aqui, é deveras sugestivo. Era um revolucionário porque, até determinado estágio, o músico constituía a esperança de renovação da cultura alemã15 15 Löwith, 1996, p. 22. . Ou, em outros termos, o renascimento do trágico para a modernidade. Junto ao seu próprio empenho, em Wagner o filósofo depositava a esperança da transformação do sujeito e da cultura moderna. Por esse motivo, inicialmente, Nietzsche aliou-se e apoiou-se criador de Bayreuth. Todavia, mais tarde, quando de seu desapontamento, tem lugar o rompimento entre ambos, tal fato fica marcado como um episódio assaz memorável e determinante para o resto de sua vida. Nietzsche, a propósito, nunca o venceu, conforme escreve Löwith. Logo, se a dedicatória de O Nascimento da Tragédia, sua primeira obra, publicada em 1872, estabelece a relação entre o músico e o filósofo, o texto Nietzsche Contra Wagner, de 1889, indica seu término16 16 Löwith, 1996, p. 22. , como aponta o mesmo comentador alemão. Este ocorrido também se dá porque, se nos distantes anos de 1870 Nietzsche não acreditava que o admirado compositor se transformaria em um homem “piedoso”, em um cristão de fato, conforme acentua Winteler, mais tarde Wagner despontaria como um propagandista do ideal ascético17 17 Winteler, 2001, p. 271. , algo que Nietzsche, como um pensador doravante independente, passou a criticar rigorosamente.

Niilismo em Parsifal

A monta de críticas sobre a moral fez do impacto que Nietzsche sentiu ao ler Parsifal algo agudamente incômodo. Esse sentimento é percebido quando o filósofo o coloca em palavras: “o Parsifal é uma obra de perfídia, de vingança, de secreto envenenamento dos pressupostos da vida, uma obra ruim” (NW/NW, Wagner como apóstolo da castidade 3, KSA 6.431). Por corromper os pressupostos da vida - característica negadora e primária do niilismo incompleto encontrado desde a Antiguidade -, ela, inevitavelmente, prega de forma radical a castidade, e isso, como pensava Nietzsche, serve de “estímulo à antinatureza”. Pois a castidade é a tentativa de livrar-se de uma tortura (GM/GM III, KSA 5.349), sintomático dos que sofrem da insuficiência, e não de abundância de vida. Desta forma, almejando o livramento dessa tortura, o compositor, com sua ópera derradeira, e “Com um elogio à castidade retirou-se do mundo depravado! - E nós acreditamos...” (WA/CW, Prólogo, KSA 6.16). A última frase, julgando-a por seu tom, indica ironia. E isso pode ser reforçado por um trecho de Assim Falou Zaratustra, encontrado no capítulo O convalescente: “... em todos os que chamam a si próprios de ‘pecadores’, ‘portadores da cruz’ e ‘penitentes’, não deixeis de ouvir a volúpia que há nesse lamento e acusação!” (Za/ZA III, O convalescente 2, KSA 4.273).

Nietzsche declara: “eu desprezo todo aquele que não percebe o Parsifal como um atentado aos costumes [Sittlichkeit]” (NW/NW, Wagner como apóstolo da castidade 3, KSA 6.431). E em O Anticristo, quando redige sua “Lei contra o cristianismo”, exatamente no artigo quarto, o filósofo salienta algo que se aproxima daquilo que, em Parsifal, é, em contrapartida, exaltado. Em sua Lei, enuncia que fazer pregação da castidade é fazer uma apologia pública à antinatureza. E afirma também: “Todo desprezo pela vida sexual, toda impurificação da mesma através do conceito de ‘impuro’ é o autêntico pecado contra o sagrado espírito da vida” (AC/AC, Lei contra o cristianismo, KSA 6.254). É sabido que a castidade é um princípio básico para os que anseiam pela santidade, buscada no interior do niilismo desde os tempos antigos. É um caráter ascético, um ideal particular daqueles que são “míopes por natureza” (WA/CW 3, KSA 6.19). E se assim o são, é porque são incapazes de ver algo além dos limites do cárcere imposto pelo ascetismo; não veem valor em si mesmos; também porque não é atípico, a todos aqueles chafurdados nesse ideal, ter sua própria decadência ou, se quisermos, potencialidades, ceifadas pelo ideal ascético, negador, e, à vista disso, castrador da vida. Parsifal, inevitavelmente, reverbera a miopia natural que Nietzsche deduz. Ele quer-se santo.

E o que pode ser a busca pela santidade, senão a imitação de Cristo? Concernente a isso, Nietzsche é bastante categórico. Em Crepúsculo dos Ídolos, acentua que a Imitatio Christi - e aqui ele provavelmente alude ao monge alemão Tomás de Kempis (1380 - 1471)18 18 Tomás de Kempis foi um monge alemão, membro da Devotio Moderna, que, além de ter escrito a Imitatio Christi, escreveu sermões, um livro sobre a vida de Santa Liduína (1380-1433), dentre outros escritos. - é um escrito que não consegue ter em suas mãos sem se sentir fisiologicamente incomodado, porque o livro desse monge, para ele, “exala um aroma de eterno-feminino, para o qual é preciso ser francês - ou wagneriano...” (GD/CI IX 4, KSA 6.113, grifo nosso). Aqui, divisa-se claramente a equiparação entre Wagner e o livro devocional ao qual se refere. Com efeito, se o músico é identificado ao livro Imitatio Christi, no qual se glorificam características que, em Cristo, o santo supremo, são, pelos cristãos, consideradas qualidades - humildade, pobreza, castidade, pureza etc. -, Wagner, por meio de sua ópera cristã, é alguém que prejudica a vida, porque “humildade, castidade, pobreza - numa palavra: santidade”, foram qualidades que “até agora [prejudicaram] mais indizivelmente a vida do que quaisquer horrores e vícios...” (AC/AC 8, KSA 6.175). O próprio Parsifal poderia ser aqui apontado como a encarnação da Imitatio Christi, porque, ao final da ópera, vemos o protagonista tendo seus pés sendo lavados e limpos por Kundry - neste trecho já feita quase santa - com um bálsamo, ou um perfume19 19 Wagner, 191-?, p. 56. , exatamente como ocorre com Cristo. Ele também tem seus pés secos por pela mesma mulher, que usa seus cabelos para fazer sua boa ação, o que nos remete, por sua vez, ao livro de Lucas, em que a mulher pecadora lava e seca os pés de Cristo20 20 Bíblia, Lucas, 7:38. .

Essa última obra wagneriana, apresentada no dia 13 de janeiro de 1882, quase precisamente um ano antes da morte de Wagner, aparece, dessa forma, literalmente, como o fim de Wagner. Ante o exposto, nos é importante acentuar um trecho de Genealogia da Moral, que diz: “o que significa, por exemplo, um artista como Richard Wagner render homenagem à castidade em sua velhice? É verdade que num certo sentido ele sempre o fez; mas apenas bem no final em um sentido ascético.” Outra questão é colocada: “O que significa esta mudança de ‘senso’, esta radical reviravolta do senso? - pois isto é o que foi: Wagner virou seu oposto [Gegensatz]” (GM/GM III 2, KSA 5.340). Tal consideração pode ser explicitada da seguinte forma: Nietzsche, muito antes, em 1876, via em Wagner não apenas um revolucionário, conforme anteriormente exposto, mas como alguém que tinha a capacidade de ligar, de reunir o que se encontra separado, enfraquecido e descuidado, posto que tinha no músico alguém que possuía uma “força adstringente” [adstringirende Kraft]. Daí sua capacidade de plasmar o que foi reunido e concede vida àquilo que toca, pois era “um simplificador do mundo” [vereinfacher der Welt] (WB/Co. Ext. IV 4, KSA 1.447). Porém, Nietzsche atribui essa metamorfose negativa à velhice de Wagner, que o tornava progressivamente fraco não apenas como homem, mas também como artista - Wagner estava próximo dos setenta anos quando de sua primeira apresentação de Parsifal. Via ali uma “desagregação dos instintos” (GD/CI IX 35, KSA 6.133-34); um processo da décadence que, a propósito, conduz inevitavelmente à deterioração da própria arte de autoria daquele que foi afetado pela desagregação de seus instintos, de sua vitalidade. Mesmo porque, somado ao pessimismo, adotado por Wagner, mas que é um movimento que exprime uma decadência fisiológica (KSA 13.529), esse enfraquecimento, que o filósofo vê apossar-se do compositor, é ele mesmo um sintoma de negativas ações fisiológicas. Então, se, como comenta Barros, a produção musical é indicadora da saúde daquele que a compõe, que a cria, é necessária uma correspondência entre o que se encontra na música e o que se dá no corpo do artista.21 21 Barros, 2007, p. 103.

O corolário disso, como assegura Nietzsche, foi Wagner sucumbir aos ideais ascéticos - à negação dos instintos para a conservação de uma vida empobrecida. É uma vida contra a vida [Leben gegen Leben] (GM/GM III 13, KSA 5.365). Assim, por sua submissão e resultante criação de Parsifal, o filósofo assinala que o compositor pagou um preço muito caro, que lhe custou, aliás, uma parte valiosa de suas relações. Assim, indaga: “quem não desejaria, em consideração ao próprio Wagner, que ele houvesse se despedido de nós e de sua arte de outro modo, não com um Parsifal, e sim mais vitorioso, mais seguro de si, mais wagneriano” e, portanto, “menos enganador, menos schopenhaueriano, menos niilista?...” (GM/GM III 4, KSA 5.344). Quando lemos “menos niilista”, podemos ler, no lugar, “menos cristão”. Porque Parsifal representa a fé cristã de Wagner feita ópera e seu assentimento ao niilismo tanto vislumbrado na Antiguidade como na modernidade. E assim o fez por obra de uma desagregação de seus instintos.22 22 Barros ressalta a importância de observar as críticas estéticas de Nietzsche em íntima relação com suas considerações acerca dos instintos que colaboram para a intensificação da vitalidade, da vida, e dos que contribuem para sua decomposição. Ou seja, a psicofisiologia do criador refletirá necessariamente em sua criação. Assim, “Às considerações acerca dos elementos constitutivos da música de Wagner, seja no nível de seu repertório de sons, seja no âmbito dos recursos dramáticos por ela utilizados, somar-se-á, não por acaso, um diagnóstico patrocinado pela idéia de que o drama musical wagneriano representa a encarnação estética da desagregação instintiva.” (Barros, 2007. p. 103).

Tal característica cristã de sua peça, vale ressaltar, é endossada pelo próprio Wagner em uma carta enviada ao rei Ludwig II. Em suas palavras: “‘Meu Parsifal será o coroamento de minha obra: a mais cristã que concebi’ (allerchristlichste Werk)”23 23 Wagner apudDias, 2009, p. 152. -possivelmente porque Wagner não transformou em ópera um drama de cinco atos nomeado Jesus von Nazareth, já de 184924 24 Coelho, 2000, p. 225. , que, como tudo indica, seria mais devocional. Ou seja, Wagner enfatiza o cristianismo e reforça toda a história do niilismo ocidental agravado na modernidade. Como sequela, o filósofo acentua que “Através de Wagner, a modernidade fala sua linguagem mais íntima”, visto que ele “resume a modernidade”. Disso se conclui que “teremos feito quase um balanço sobre o valor do moderno, se ganharmos clareza sobre o bem e o mal, em Wagner” (WA/CW, Prólogo, KSA 6.12).

Quando Nietzsche trata do que chamou de “hemiplegia da virtude”, suas críticas às sequelas negativas do cristianismo sobre os sujeitos são ferozes. Em determinado trecho nomeado “Crítica do ‘homem bom’, do santo etc.”, o autor aproxima “O homem bom” à “hemiplegia da virtude”, fazendo notar que, desde o advento do cristianismo, em especial nos tempos em que a religião cristã gozou de mais influência, houve um enorme empenho para diminuir o homem àquilo que entende por ser uma “capacidade hemiplégica” e ao que se chama “bem”. Porém, mesmo em sua época - uma espécie de posto avançado do niilismo na história do ocidente -, e não apenas no passado, havia muitos sujeitos desgraçados pela Igreja. Disso deriva sua compreensão de que tal debilitação vital acaba por coincidir com o que Deus deseja e com a “humanização” do ser humano. Ora, exige-se de cada pessoa que nada faça de mau; que, em nenhuma ocasião, alguém seja prejudicado. Sua crítica volta-se contra, por causa disso, a simplificação de que é obrigatório a todos que se deva estar sempre ao lado do que é designado como “bom”. Isso porque compreender o mundo e as relações dessa forma é simplificar em demasia a vida e negá-la; com isso nega-se o mundo inteiro, pois a existência em si é formada tanto por aquilo que é visto e entendido como mal e como bem.

Fica claro, dessarte, que rejeitar um desses dois aspectos do mundo é rejeitar também a vida, a própria realidade terrena. Nietzsche conclui, assim, que Parsifal é vitimado por essa hemiplegia da virtude, que leva à recusa de um dos estados demasiadamente humanos e terrenos. Esse personagem, como percebemos ao longo da ópera homônima, busca unicamente o que é bom, o que considera e quer verdadeiro. Ele é ingênuo, santo, contrito. E isso é uma característica que nos remete uma vez mais àquela moral escrava dantes citada.

Num fragmento póstumo de 1888, do mês de outubro, uma dura nota esclarece mais a opinião de Nietzsche a respeito desse último personagem wagneriano. Quando se dedica a anotar considerações acerca do que classificou por “doentes crônicos e neurastênicos de terceiro grau”, realça que, no caso desses sujeitos,

gerar uma criança seria um crime [...] O que se tem de fazer aí? Pode-se tentar, de qualquer modo, incentivar tais homens à castidade, por exemplo, com o auxílio da música de Parsifal: o próprio Parsifal, esse idiota típico, tinha pouquíssimas razões para procriar. O terrível é que certa incapacidade de se “dominar” (- de não reagir a estímulos, a estímulos sexuais, por menores que eles sejam) faz parte precisamente das consequências regulares do esgotamento conjunto (NF/FP 23[1] 1888, KSA 13.599).

Em seguida a uma afirmação tão dura, temos muito claro que a figura principal da ópera de Wagner é tida, por Nietzsche, além de casta, ou talvez por isso mesmo, como doente, esgotada. Consequentemente, é razoável presumir que uma ópera a ela dedicada só poderia ser uma ode ao niilismo, de caráter incompleto, e que se recolhe do mundo aparente distinguido como insuficiente.

Acentuemos também que Wagner, amparado na filosofia schopenhaueriana, louvou categoricamente a “falta de vontade de viver” e o “não-ser absoluto”25 25 Em carta ao futuro sogro Liszt, Wagner, fortemente influenciado por Schopenhauer, ressalta que “a negação da vontade final da vontade de viver, é terrivelmente grave, mas só ela traz libertação”. E mais: “É a nostalgia da morte, um desejo profundo do fundo do coração: a morte, a inconsciência total, o não-ser absoluto, o desaparecimento de todos os sonhos: a libertação única definitiva” (Wagner apudDias, 2009, p. 146). como uma libertação do sofrimento, da Vontade, do desejo, e destilou seus juízos na ópera de 1882. Cientes disso, é inevitável evocar a pergunta de Nietzsche sobre os artistas: “foi o ódio à vida ou o excesso de vida que aí se fez criativo?” (NW/NW, Nós, antípodas, KSA 6.426). No caso de Wagner, e de sua carta a Liszt, evidente está se foi o excesso de vida ou o ódio a ela que se fez criativo.

Pois, Parsifal, casto herói26 26 Em O Caso Wagner, Nietzsche escreve de forma irônica: “Por fim, um fato que nos desconcerta: Parsifal é o pai de Lohengrin. Como é que ele fez isso? Devemos lembrar-nos de que a ‘castidade opera milagres’?... Wagnerus dixit princeps in castitate auctoritas [Dito por Wagner, a autoridade maior em castidade].” (WA/CW 9, KSA 6.34-35). Em carta enviada a Peter Gast, no dia 17 de julho de 1888, o filósofo se refere mais uma vez a isso. Após indagar ao amigo acerca da disponibilidade das obras completas de Richard Wagner, registra: “3) em um de seus últimos escritos, Wagner afirmou, e até enfatizou, se bem me lembro, que ‘a castidade faz milagres.’ Eu gostaria de ter as palavras exatas.” (KGB III, Vol 7/3 1, p. 344)). de Wagner, quando do segundo ato, é beijado por Kundry, até aquele instante, ainda feiticeira, comportar-se-á de modo “puro”, com ódio dos instintos, da vida e não reage aos estímulos. Vendo-a deitada sobre si, Parsifal se compadece dela, vislumbrando, em tudo aquilo, apenas o pecado. Logo que se apercebe do beijo, o personagem “é, de repente, levado ao horror”. Ato contínuo, “sua postura expressa uma terrível mudança”27 27 Wagner, 191-?, p. 43 [tradução nossa]. . Em seguida, Parsifal coloca suas mãos sobre o coração, como se estivesse sendo acometido por uma dor intensa. Depois, amaldiçoa o desejo e, com sua voz de tenor, lamenta-se: “O desejo, o terrível desejo / que agarra e constrange todos os meus sentidos!” Na sequência, diz ser o amor um tormento, uma agonia, e enuncia que tudo em seu ser se agita em função daquilo que classifica por “desejos pecaminosos [in sündigem Verlangen]!”28 28 Wagner, 191-?. p. 44 [tradução nossa].

Em Genealogia da Moral, vê-se que, sempre que houve filósofos, por tudo houve uma “peculiar irritação e rancor” contrária à sexualidade (GM/GM III 7, KSA 5.350). É evidente que Parsifal não é filósofo. Não obstante, ele é produto de um músico que, por seu turno, foi agudamente influenciado por Schopenhauer, sendo este último concebido por Nietzsche precisamente como um negador dos instintos humanos, malquistos por aqueles que se afligem não por conterem em si um excesso de vida, mas uma falta dela. Assim sendo, Parsifal é uma ópera que reflete essa perspectiva negativa que está longe de qualquer afirmação. Figura, por isso, como uma criação distintamente cristã, ascética, e, assim, niilista. Distancia-se severamente da afirmação nietzschiana desenvolvida em seu período maduro.

A já referida Kundry, que chega a beijar o herói de Wagner, é uma mulher sob os auspícios de Klingsor. Ela é mandada pelo mago para tentar perverter Parsifal. No entanto, quando acaba deixando-se beijar por ela, o herói da última ópera de Wagner, após consentir com a aproximação da mulher, resolve afastar-se e chama-a de corruptora [Verderberin].29 29 Wagner, 191-?, p. 45. Mas Kundry persevera. E Parsifal, furioso e esforçando-se para reprimir seus desejos, exclama: “Vá embora, mulher maldita!”30 30 Wagner, 191-?, p. 48. É razoável, aqui, recordarmo-nos da personagem bíblica Eva, do livro de Gênesis. Posto que, ao comer a maçã proibida, o fruto do pecado - o conhecimento, a lascividade -, leva Adão à perversidade, à corrupção. Tem-se, pois, um Parsifal sob o controle do sacerdote, o qual “domina mediante a invenção do pecado” (AC/AC 49, KSA 6.229), manifestado no desejo que Parsifal, o “puro”, é incapaz consumar.

Amfortas é outro personagem que aparece ferido. Sua ferida é efeito de um desejo não controlado, de um pecado cometido. E o mago Klingsor tem sua salvação pelo Graal negada, porque ele mesmo não foi capaz de conter seus desejos “pecaminosos”. Despeitado, o mago cria um jardim com o seguinte objetivo: corromper a pureza dos homens que por lá passassem, uma vez que suas flores, buscando a todos seduzir, tinham o objetivo de romper os votos de castidade de suas presas. Com seus votos de castidades vencidos, tais homens se tornariam seus escravos. Neste momento, abre-se a seguinte possibilidade de leitura: enquanto castos, esses homens permanecem resistentes, fortes e insubordinados. Mas, tendo seus votos rompidos, tornar-se-iam fracos, de modo que submeter-se-iam ao governo do mago. Ocorre que Parsifal, o santo, é o único que tem sucesso em rechaçar todas aquelas tentações. Donde sua força, sua insubordinação a Klingsor31 31 Wagner, 191-?, p. 35. . Quando encontramos Parsifal chegando ao jardim e sendo tentado por uma das flores, ele responde, seguro de si, que não quer ter com elas32 32 Wagner, 191-?, p. 36. . Nesse momento, o coro de donzelas pergunta-lhe sobre sua postura, indagando-lhe se seria ele covarde com as mulheres [Bist du feige vor Frauen?]33 33 Wagner, 191-?, p. 39. . Eis uma vez mais a negação do desejo, do que é físico, a “hemiplegia da virtude”. De novo, a tentativa de conservar uma vida empobrecida via negação dos instintos.

Interpretando esse problema sob a ótica nietzschiana de crítica ao wagnerianismo, pode-se afirmar que a importância do herói se dá por conta de sua fraqueza. Wagner, dessa forma, glorifica um personagem que nega a vida e que se entrega às concepções cristãs em prejuízo do que é imanente, do mundo, o qual é visto, claramente, como “um xingamento [Schimpfwort] cristão” (WA/CW, Epílogo, KSA 6.431). Em função disso, a ópera afirma o contrário de Zaratustra34 34 Cf. Busellato, 2017, pp. 84-105. -, que aconselha aqueles que o ouvem para serem sempre fiéis à terra (Za/ZA I, Prólogo 3, KSA 4.15) - tendo em conta que o tenor Parsifal assevera, aliás, que, porque é Sexta-feira da Paixão, “o dia de maior dor”, crê que aquilo que “floresce, o que respira, vive e vive novamente, deveria apenas entristecer-se”35 35 Wagner, 191-?, p. 57 [tradução nossa]. e, assim, chorar. É o descontentamento intrínseco ao niilismo que não autoriza nenhuma afirmação, seja da dos instintos, seja da terra.

Buscando a pureza, e considerando-se, por conta disso, melhor,36 36 Em Crepúsculo dos Ídolos, vê-se: “toda moral do aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido” (GD/CI I 11, KSA 6.73). superior, quando do trecho em que é beijado por Kundry, de acordo com o que já foi acima citado, Parsifal nega toda sensualidade. Mais do que isso: ele sente compaixão pela mulher. E essa compaixão é um estado que Nietzsche identifica como sendo uma virtude própria aos décadents (WA/CW 7, KSA 6.29), sendo enaltecida exclusivamente por e entre eles (EH/EH, Por que sou tão sábio, 5, KSA 6.270). Logo, se “Wagner era algo perfeito, um típico décadent, no qual não há ‘livre-arbítrio’”, e “cada feição tem sua necessidade” (WA/CW 7, KSA 6.27), essa compaixão, que marca parte de sua obra, não é apenas casual, mas necessária. O baixo-barítono Amfortas, a título de exemplo, correlaciona a compaixão com a sabedoria, declarando que sua sabedoria provirá da compaixão37 37 Mitleid, na obra de Wagner, é o mesmo que Nietzsche usa ao desenvolver suas críticas à compaixão. Em lugar de Erbarmen ­­- que poder-se-ia verter para “misericórdia” -, ou mesmo Barmherzigkeit, Mitgefühl, seu termo é o mesmo que observamos no libreto de Parsifal. [Durch Mitleid wissend]38 38 Wagner, 191-?, p. 10. . Mas, “a compaixão persuade ao nada” (AC/AC 7, KSA 6.173), como Nietzsche registra em O Anticristo. E sua prática é precisamente a prática do niilismo (AC/AC 39, KSA 6.173).

O protagonista da ópera wagneriana procura, então, evoluir mediante a compaixão. É sustido nela que Parsifal crê abandonar a ingenuidade e conquistar a sabedoria cristã39 39 Coelho, 2000, p. 240. . Negando o ser humano, atribuindo-lhe o pecado e carente de Deus, Parsifal nos traz a lembrança de uma hipótese que Nietzsche escreve em Genealogia da Moral. Nela, ao versar sobre o “nojo ao homem”, sobre a “compaixão pelo homem”, o filósofo alemão escreve: “Supondo que esses dois um dia se casassem, inevitavelmente algo de monstruoso viria ao mundo, a ‘última vontade’ do homem, sua vontade do nada, o niilismo” (GM/GM III 14, KSA 5.368). Observando as objeções nietzschianas à obra de Wagner, o que se vê no principal personagem é justamente essa união, haja vista que Parsifal tem aversão ao que é próprio ao homem e estima pela compaixão por esse mesmo homem.

Se a moralidade essencial ao cristianismo, que incluem a castidade, o amor, a pureza de espírito, negam o que é terreno, sua promessa de redenção baliza-se pelos mesmos princípios. Sua redenção está manifesta em sua negação. Há a promessa de uma existência em um mundo outro no qual não haverá dor, sofrimento, tristeza. É com o intuito de alcançar essa promessa que Parsifal busca o Redentor. No instante do fatídico ósculo de Kundry, como se não bastasse toda a sua ojeriza àquela mulher, ele clama: “Redentor [Erlöser]! Salvador [Heiland]! Senhor da graça! Como faço para expiar os meus pecados?”40 40 Wagner, 191-?, p. 44 [tradução nossa]. - Parsifal estava negando, aqui, tudo aquilo que Nietzsche colocaria na boca de seu Zaratustra apenas um ano após a apresentação da ópera em Bayreuth. Parsifal quer agarrar-se a Deus e, com ele, conservar sua vida, embora suas ações demonstrem que o que ele procura resguardar seja uma vida despossuída de força.

Ocorre que, no livro dedicado a Zaratustra, temos que também esta criação nietzschiana anseia pela redenção. Não obstante, o que se entende, em Zaratustra, por “redenção”, está deveras distante do que é cobiçado por Parsifal. Nas palavras do primeiro: “Redimir o que passou e transmutar todo ‘Foi’ em ‘Assim eu quis! - apenas isso seria para mim a redenção!” (Za/ZA II, Da redenção, KSA 4.179). Dito de outra forma, a redenção, para Zaratustra, tomado pelo niilismo radical, é a afirmação da vida, com tudo o que ela abarca, e não sua rejeição. Enquanto que, em Parsifal, a redenção é exatamente a negação da vida, com tudo o que ela compreende, e jamais sua afirmação.

Visto por outro ângulo, Zaratustra, como vê-se em um fragmento póstumo de 1883, ensina às pessoas a redenção de todos os redentores (NF/FP 9[36] 1883, KSA 10.357). Daí ser Parsifal seu antípoda. No lugar de dizer “Sim”, de redimir aquilo que lhe ocorrera pelo pensamento de que “Assim eu quis”, como chega a dizer Zaratustra, ele busca pelo Redentor com o objetivo de poder expiar todos os pecados por ele cometidos. Não pode ter, em hipótese alguma, como fórmula, o amor-fati (FW/GC IV 276, KSA 3.521). Diz “não” à sua sina, à vida. Como sequela, sua fórmula, poder-se-ia dizer, é o odium fati. Ao nos depararmos com tais questões, a última ópera de Richard Wagner se nos apresenta como um testemunho da negação. Deste modo, no trecho em que Nietzsche marca que a ópera de Wagner “é a ópera da redenção” (WA/CW 3, KSA 6.16) - mesmo porque Parsifal, no terceiro ato, batiza a feiticeira Kundry e a estimula a acreditar no Redentor41 41 Wagner, 191-?, p. 57. - vimos com clareza a conotação que esse pensamento possui na supradita ópera.

Se em sua maturidade Nietzsche desenvolveu uma filosofia sobretudo afirmadora, a ópera Parsifal conservou, na redenção metafísica, uma negação do mundo, própria de sua mensagem. A redenção do sofrimento, que significa negação do mundo real, tangível, em prol de outro mundo, passa a não mais ser respondida por Wagner segundo a condição trágica-dionisíaca privilegiada por Nietzsche. Ao contrário, Wagner adquire um espírito completamente cristão42 42 Baumeister, 1989, p. 304. , de acordo com Baumeister. Desta forma, é impossível haver qualquer paralelismo entre Zaratustra, o supremo afirmador, e Parsifal, o sumo negador. Onde os mais fortes, por isso afirmadores, divisam felicidade, os mais fracos, por isso negadores, divisam sua infelicidade, sua própria ruína (AC/AC 57, KSA 6.243). Parsifal está identificado à segunda espécie. Destarte, se nos idos de 1876 - quando Wagner era considerado um “revolucionário” -, na ópera Siegfried43 43 Retrospectivamente, seria possível aproximar o personagem Siegfried do niilismo radical. Isso porque sua destruição é ativa, os valores e imperativos são seus. , o protagonista, face a Brünnhilde, vê felicidade, Parsifal, perto de Kundry, vê apenas queda, corrupção. Isto é, sua própria ruína.

A redenção procurada por Parsifal, ou sua necessidade, é aquela “quintessência de todas as necessidades cristãs” e “é a mais honesta expressão da décadence, é a mais decidida e dolorosa afirmação dela”. O cristão, quando se bate pela redenção, procura “desvencilhar-se de si mesmo”, porque “Le moi est toujours haïssable [O eu é sempre odioso]” (WA/CW, Epílogo, KSA 6.52). Diferentemente da moral dos senhores, a nobre moral, que permite o “Sim” à vida, como Nietzsche via em Siegfried44 44 Cf. Wagner, 1914. , que afirmava a si mesmo, glorificava a si mesmo, Parsifal nega a si, busca livrar-se da autoglorificação a fim de honrar os céus, de modo que, mesmo ao final do século XIX - a obra é de 1882 - os valores antigos da fase obscura do niilismo incompleto permanecem sendo patrocinados.

Em uma anotação do começo de 1888, Nietzsche aponta o seguinte: “O quanto de satisfação insincera e mesmo incompreendida de toda necessidade religiosa não se encontra ainda na música de Wagner!” E continua: “O quanto de oração, de virtude, de unção, de ‘virgindade’, redenção ainda fala aí concomitantemente!...” E, por fim, neste mesmo fragmento: “Cristandade pérfida: o tipo da música do ‘último Wagner’” (NF/FP 14[42], 1888, KSA 13.239). Ou seja, Parsifal é a representação de uma necessidade religiosa, é uma oração, uma criação preenchida por virtudes cristãs, por unção. Isso além de ser amplamente marcada pela castidade do personagem principal, que almeja a redenção prometida pelo cristianismo. Dessa maneira, temos ainda mais claro o porquê de o filósofo alemão ter assegurado ser essa ópera uma obra ruim e que servia como envenenamento da vida (NW/NW, Wagner como apóstolo da castidade, KSA 6.431). Há, nisso tudo, a aspiração à verdade, aos valores, mesmo que Wagner fosse filho de um tempo não mais assombrado pela concepção de Deus.

Outrossim, o que lemos em seu libreto, levando em conta as ácidas críticas a ele direcionadas por Nietzsche, lembra-nos também aquele “platonismo para o povo”, ao qual Nietzsche se refere em 1886 (JGB/BM, Prólogo, KSA 5.12). Sobre Wagner, o filósofo afirma que ele

incensa todo instinto niilista (- budista), e o transveste em música, ele incensa todo cristianismo, toda forma de expressão religiosa da décadence. Abram seus olhos: tudo o que jamais cresceu no solo da vida empobrecida, toda a falsificação que é transcendência e o Além tem na arte de Wagner o seu mais sublime advogado - não por fórmulas: Wagner é muito sagaz para se exprimir em fórmulas -, mas por uma persuasão da sensualidade, que por sua vez torna o espírito cansado e gasto (WA/CW, Pós-escrito, KSA 6.43).

A reprovação do filósofo continua nos seguintes termos: “Schopenhaueriana é a tentativa de Wagner de aprender o cristianismo como um grão de budismo transportado pelo vento, e de preparar para a Europa uma época budista”45 45 A despeito de Nietzsche não mencionar, Richard Wagner, no ano de 1856, preparava uma ópera influenciada pelo budismo e que se intitularia Die Sieger [Os Vencedores]. Todavia, essa obra não foi finalizada (Coelho, 2000, p. 226). , tentativa que acabaria por levá-la a se avizinhar “temporariamente de fórmulas e sentimentos católicos-cristãos” (FW/GC 99, KSA 3.456). Ou, também, de sentimentos niilistas. Pois “Niilista e cristão” são “duas coisas que rimam, e não apenas rimam...” (AC/AC 58, KSA 6.247), porque são perfeitamente equivalentes.

No ato segundo de Parsifal, no momento em que o principal personagem é acometido por uma fraqueza, depois de Kundry fazê-lo recordar que ele, ainda muito novo, tinha seguido seu rumo e abandonado sua mãe, nós a ouvimos dizer que a confissão seria a melhor forma de Parsifal eliminar sua culpa e arrependimento. Aqui a palavra usada por Kundry46 46 Wagner, 191-?, p. 43. é “Bekenntnis”. Essa palavra serve exatamente ao preceito católico, reforçando a crítica nietzschiana a respeito da vontade de Wagner que redundaria em transmitir à Europa aqueles “sentimentos católicos”. Essa ópera, ecoando o catolicismo romano de Wagner (KSA 11.592), coloca-se como uma expressão do niilismo. Mas não do niilismo completo, e muito menos do niilismo radical. O que Wagner faz, para Nietzsche, é retroagir às raízes do niilismo incompleto da Antiguidade de agonia em busca desenfreada da verdade - nesse caso por meio da religião - e da propagação dos valores concebidos como superiores.

Nietzsche entende que foi através de Parsifal que seu autor, “um décadent desesperado e fenecido, sucumbiu de repente, desamparado e alquebrado, ante a cruz cristã...” (NW/NW, Como me libertei de Wagner 1, KSA 6.431-32). Isso não se dá, entretanto, apenas com o protagonista. Kundry, antes feiticeira, ao final da ópera, acorda. É Sexta-Feira Santa. Nesse instante, ela mostra-se servil e é batizada por Parsifal.

Por fim, quando do desfecho do terceiro ato, ela cai morta diante do Graal. Kundry é redimida por Parsifal, o santo, que obtém sua superioridade e poder porque casto e compassivo. Morta, Kundry encontra a paz eterna, liberta-se da forma humana, terrena, e entrega-se àquele “não-ser absoluto” elogiado por Wagner em carta a Liszt. Só dessa maneira, por se nos apresentar como uma décadente, é que ela encontra liberdade, posto que livre do sofrimento humano, conforme escreve Acampora47 47 Acampora, 2018, p. 231. .

Antes do baixar das cortinas, a cena final mostra diversos cavaleiros, Amfortas e o sacerdote Gurnemanz de joelhos diante de Parsifal, que, em sua posição privilegiada, exibe o Graal e, com o sinal da cruz, abençoa a todos que ali se encontram48 48 Wagner, 191-?, p. 63. . Pensando com Nietzsche, o que vemos ali são as cortinas se fechando para a vida, o endossamento dos valores morais, o revelador testemunho das personagens de sua pretensão de unção, de redenção, de verdade. Enfim, sumariada por um rito religioso, toda a ambição moderna está ali, conquanto destituída de Deus, mas com o mesmo apetite pela redenção e pela verdade que a máxima entidade divina já não mias pode conceder por achar-se morto.

As apresentações de Parsifal são sintomáticas. Por isso, faz-se necessária uma última palavra sobre tais eventos.

Concernente à sacralidade do cristianismo observada em Parsifal, vale ressaltar que, quando Wagner a apresentou, ele não a classificou por “drama lírico”, mas por “festival sagrado” [Bühnenweihfestspiel]. Ademais, o músico fazia questão de exigir de seu público uma postura solene. Isso é bastante sugestivo. Porque o público não estava assistindo a uma apresentação artística, mas também a uma espécie de culto religioso. Consequentemente, Wagner não aceitava que os fruidores de sua obra aplaudissem ao fim de cada um dos três atos. Essa condição ampara-se no princípio de que não deve haver aplausos durante uma celebração sagrada. Além do mais, até 1913, quando a ópera Parsifal passou a ser de domínio público, ela não tinha sido apresentada uma vez sequer fora do Teatro de Bayreuth49 49 Coelho, 2000, p. 240. . Certamente porque sua allerchristlichste Werk estava tão dotada de sacralidade que se assemelhava a um rito eucarístico digna de ser apenas celebrada nos limites de um templo.

Por conta de diversas questões, como fizemos notar até o presente momento, Nietzsche declarou ser necessária travar uma “guerra de morte” ao cristianismo.50 50 Quando escrevia O Anticristo, essa “guerra de morte” aparece duas vezes. Em sua Lei contra o cristianismo, Nietzsche escreve: “Guerra mortal ao vício: o vício é o cristianismo”. Além disso, em um fragmento póstumo de 1888, lê-se: “Não pode haver aqui nenhum contrato: aqui é preciso exterminar, aniquilar, guerrear - é preciso extrair por toda parte ainda o critério valorativo da medida cristão-niilista e combatê-lo sob toda e qualquer máscara... Extraí-lo da sociologia atual, por exemplo, da música atual, por exemplo, do pessimismo atual (- tudo isso são formas do ideal valorativo cristão -) (NF/FP 14[6] 1888, KSA 13.220). Isso porque o cristianismo, por seu turno, travou também uma guerra de morte. Mas sua guerra tinha como alvo tudo o que era considerado melhor, superior, inclusive àquele tipo “mais elevado de homem” (AC/AC 5, KSA 6.171). Ora, então o cristianismo também estendeu seu ataque e atingiu inclusive a arte. Por isso, se a vida é “instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de poder”, e a arte serve como propulsora desse instinto, é necessário que as investidas do cristianismo pela corrupção do instinto, das forças e do poder sejam impedidas. Se levarmos em conta a declaração de Nietzsche, de que a arte age “como a única força contrária superior em relação a toda vontade de negação da vida, como o elemento, anticristão, antibudista, antiniilista par excellence” (NF/FP 17[3] 1888, KSA 13.521), o que se nota, no último Wagner, com seu Parsifal, é um movimento oposto. Sua afirmação é a negação.

Se a concepção filosófica de Nietzsche, concernente às atividades da cultura - sendo a música uma delas -, como que manifestam uma “vontade de poder”, ou até “um sintoma dos instintos vitais”, não será unicamente a obra de arte, mas também o conhecimento e a moral que irão se expressar as forças ou fraquezas daquele que pensa, como verificamos na avaliação de Dufour51 51 Dufour, 2001, p. 245 [tradução nossa]. . Parsifal, para Nietzsche, foi, por certo, o ocaso de Wagner, compositor em que passou a congregar todo o niilismo de seu tempo. Portanto, assente no pensamento nietzschiano, Parsifal só pode ser a expressão das forças e/ou fraquezas de Wagner, pessoa na qual o filósofo alemão alegou ter utilizado como uma “forte lente de aumento com que se pode tornar visível um estado de miséria geral porém dissimulado, pouco palpável” (EH/EH, Por que sou tão sábio 7, KSA 6.275). Se assim o é, talvez seja razoável compreender o wagnerianismo tardio, sintomático de sua época, como uma espécie de niilismo estético.

Referências

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  • WINTELER, Reto. “Nietzsches Bruch Mit Wagner. Zur Plausibilität Seiner Späteren Stilisierung.” Nietzsche-Studien, 40(1). Berlin/Nova York, Walter de Gruyter, 2011.
  • 1
    Na interpretação do filósofo francês Gilles Deleuze, o niilismo, na obra de Nietzsche, está dividido em quatro partes, a saber, niilismo negativo, passivo, reativo e ativo. Cf. Deleuze 2018DELEUZE, G. Nietzsche e a Filosofia; traduzido por Mariana de Toledo Barbosa, Ovídio de Abreu Filho. - São Paulo: n-1 edições, 2018..
  • 2
    Quando da referência à ópera, o título se encontrará em itálico. Quando nos referirmos ao personagem principal da obra homônima, seu nome será escrito normalmente, sem destaque.
  • 3
    Granier, 2013GRANIER, J. Nietzsche; tradução Denise Bottmann. - Porto Alegre, RS: L&PM, 2013., p. 27.
  • 4
    Kaufmann, 1974KAUFMANN, W. A. Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist. Princeton, New Jersey. Fourth Edition. Princeton University Press, 1974., p. 37.
  • 5
    Marton, 2014MARTON, S. Nietzsche e a arte de decifrar enigmas. - Treze conferências europeias. - 1. Ed. - São Paulo: Edições Loyola, 2014. - (Coleção Sendas & Veredas). , p. 272.
  • 6
    Interessante notar que, como escreve Holub, a ideia de que foi com Parsifal que Wagner se demonstrou cristão é imprecisa, e mesmo estranha, pois tal ópera já vinha sendo elaborada desde 1850. Nisso reside a dificuldade de se pensar que, na frutífera relação que Nietzsche teve com Wagner, o filósofo não chegou a ter contato com a ópera, ou seu esboço, antes de sua primeira apresentação, que só ocorreu em 1882. Nietzsche, ainda segundo Holub, chegou a revisar a autobiografia de Wagner, que incluía a relação de Parsifal com a Sexta-Feira Santa. Cosima Wagner anotou em seu diário que, no Natal de 1869, ela teve a oportunidade de ler Parsifal em companhia de Nietzsche. Holub ressalta que a mudança que Nietzsche identifica em Wagner vinha desde o início de sua relação com o compositor, quando o filósofo já percebia que uma degeneração acometia Wagner. Donde o comentador afirmar: “It seems much more likely that Nietzsche’s account of Wagner, his degeneration, and his own “discovery” of his friend’s piety, asceticism, and decadence are a subsequent invention of Nietzsche, a narrative account that in his later writings and thought fit in with the worldview that dominated his texts in the 1880s” (2018, p. 435).
  • 7
    Todas as traduções das obras publicadas de Nietzsche são de Paulo César de Souza, editadas pela Companhia das Letras/Companhia de Bolso, conforme apresentadas nas referências.
  • 8
    As traduções dos fragmentos póstumos aqui utilizados são de Marco Antônio Casanova, publicados pela Forense Universitária, conforme constam nas referências.
  • 9
    Uma afirmação bastante categórica, em Nietzsche contra Wagner, dá conta de que as objeções de Nietzsche à música de Wagner eram fisiológicas. Em razão disso, pergunta: “por que disfarçá-las em fórmulas estéticas? Afinal, a estética não passa de fisiologia aplicada [angewandte Physiologie]” (NW/NW, No que faço objeções, KSA 6.418). Sobre isso, Müller-Lauter comenta que “não se refuta o niilismo por meios princípios de razão [...]. Pois mesmo que a razão ‘declare guerra’ à décadence, não consegue desvencilhar-se dela.” (Müller-Lauter, 2009______. Nietzsche: sua Filosofia dos Antagonismos e os Antagonismos de sua Filosofia; tradução de Clademir Araldi. - São Paulo: Editora Unifesp, 2009., p. 125).
  • 10
    Em diversos escritos, Nietzsche refere-se à degeneração, ou décadence. Para Müller-Lauter, ainda que Nietzsche tenha escrito antes a respeito da mesma questão, é somente no ano de 1888 - último ano em que Nietzsche exerceu atividade filosófica até perder a sanidade - que o problema da décadence surge como fulcral em seu pensamento. 1999. p. 12. Além disso, foi a obra Essais de psychologie contemporaine, de Paul Bourget, que inspirou a utilização desse termo, conforme aponta Charles Andler (1931, p. 418-424. (vol 3))ANDLER, C. Nietzsche: sa vie et sa pensée. Paris, Collection Bibliothèque des Idées, 1931, 6 vols. p. 418-424. (vol 3).. Cf. Bourget, 1883.
  • 11
    Para uma discussão mais atenta sobre essas diferentes fases do niilismo, ver: Araldi, 2004ARALDI, C. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. - São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2004..
  • 12
    Para Heidegger: “Enquanto procedimento fundamental da história ocidental, o niilismo é imediatamente e antes de tudo o princípio normativo dessa história. Por isso, também em suas considerações sobre o niilismo, o decisivo não está tanto para Nietzsche na descrição do decurso do evento da desvalorização dos valores supremos e na contabilização final oriunda daí do declínio do ocidente. Ao contrário, Nietzsche pensa o niilismo enquanto a ‘lógica interna’ da história ocidental.” (2003. p. 485).
  • 13
    Vattimo, 1998VATTIMO, G. La fine della Modernità. 2. ed. Milano: Garzanti, 1998., p. 27.
  • 14
    “Pois por que a ascensão do niilismo é a partir de agora necessária? Porque os nossos próprios valores é que retiram nele a sua derradeira consequência; porque o niilismo é a lógica pensada até o fim de nossos grandes valores e ideais” (NF/FP 11[411] 1887-88, KSA 13.190).
  • 15
    Löwith, 1996LÖWITH, K. Nietzsche’s Philosophy of the Eternal Recurrence of the Same. Translated by J. Harvey Lomax. Foreword by Bernd Magnus. University of California Press, 1996., p. 22.
  • 16
    Löwith, 1996LÖWITH, K. Nietzsche’s Philosophy of the Eternal Recurrence of the Same. Translated by J. Harvey Lomax. Foreword by Bernd Magnus. University of California Press, 1996., p. 22.
  • 17
    Winteler, 2001, p. 271.
  • 18
    Tomás de Kempis foi um monge alemão, membro da Devotio Moderna, que, além de ter escrito a Imitatio Christi, escreveu sermões, um livro sobre a vida de Santa Liduína (1380-1433), dentre outros escritos.
  • 19
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 56.
  • 20
    Bíblia, Lucas, 7:38.
  • 21
    Barros, 2007BARROS, F. R. M. “O drama da redenção: a crítica de Nietzsche ao Parsifal de Wagner.” Artefilosofia, Ouro Preto, n. 3, p. 102-110, jul. 2007., p. 103.
  • 22
    Barros ressalta a importância de observar as críticas estéticas de Nietzsche em íntima relação com suas considerações acerca dos instintos que colaboram para a intensificação da vitalidade, da vida, e dos que contribuem para sua decomposição. Ou seja, a psicofisiologia do criador refletirá necessariamente em sua criação. Assim, “Às considerações acerca dos elementos constitutivos da música de Wagner, seja no nível de seu repertório de sons, seja no âmbito dos recursos dramáticos por ela utilizados, somar-se-á, não por acaso, um diagnóstico patrocinado pela idéia de que o drama musical wagneriano representa a encarnação estética da desagregação instintiva.” (Barros, 2007BARROS, F. R. M. “O drama da redenção: a crítica de Nietzsche ao Parsifal de Wagner.” Artefilosofia, Ouro Preto, n. 3, p. 102-110, jul. 2007.. p. 103).
  • 23
    Wagner apudDias, 2009DIAS, R. M. Amizade estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche - Rio de Janeiro: Imago, 2009., p. 152.
  • 24
    Coelho, 2000COELHO, L. M. A Ópera Alemã. - São Paulo: Perspectiva, 2000. - História da Ópera., p. 225.
  • 25
    Em carta ao futuro sogro Liszt, Wagner, fortemente influenciado por Schopenhauer, ressalta que “a negação da vontade final da vontade de viver, é terrivelmente grave, mas só ela traz libertação”. E mais: “É a nostalgia da morte, um desejo profundo do fundo do coração: a morte, a inconsciência total, o não-ser absoluto, o desaparecimento de todos os sonhos: a libertação única definitiva” (Wagner apudDias, 2009DIAS, R. M. Amizade estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche - Rio de Janeiro: Imago, 2009., p. 146).
  • 26
    Em O Caso Wagner, Nietzsche escreve de forma irônica: “Por fim, um fato que nos desconcerta: Parsifal é o pai de Lohengrin. Como é que ele fez isso? Devemos lembrar-nos de que a ‘castidade opera milagres’?... Wagnerus dixit princeps in castitate auctoritas [Dito por Wagner, a autoridade maior em castidade].” (WA/CW 9, KSA 6.34-35). Em carta enviada a Peter Gast, no dia 17 de julho de 1888, o filósofo se refere mais uma vez a isso. Após indagar ao amigo acerca da disponibilidade das obras completas de Richard Wagner, registra: “3) em um de seus últimos escritos, Wagner afirmou, e até enfatizou, se bem me lembro, que ‘a castidade faz milagres.’ Eu gostaria de ter as palavras exatas.” (KGB III, Vol 7/3 1, p. 344)).
  • 27
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 43 [tradução nossa].
  • 28
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?.. p. 44 [tradução nossa].
  • 29
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 45.
  • 30
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 48.
  • 31
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 35.
  • 32
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 36.
  • 33
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 39.
  • 34
    Cf. Busellato, 2017BUSELLATO, Stefano. “Zaratustra versus Parsifal.” Cad. Nietzsche, Guarulhos/Porto Seguro, v. 38, n. 1, janeiro/abril, 2017., pp. 84-105.
  • 35
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 57 [tradução nossa].
  • 36
    Em Crepúsculo dos Ídolos, vê-se: “toda moral do aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido” (GD/CI I 11, KSA 6.73).
  • 37
    Mitleid, na obra de Wagner, é o mesmo que Nietzsche usa ao desenvolver suas críticas à compaixão. Em lugar de Erbarmen ­­- que poder-se-ia verter para “misericórdia” -, ou mesmo Barmherzigkeit, Mitgefühl, seu termo é o mesmo que observamos no libreto de Parsifal.
  • 38
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 10.
  • 39
    Coelho, 2000COELHO, L. M. A Ópera Alemã. - São Paulo: Perspectiva, 2000. - História da Ópera., p. 240.
  • 40
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 44 [tradução nossa].
  • 41
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 57.
  • 42
    Baumeister, 1989, p. 304.
  • 43
    Retrospectivamente, seria possível aproximar o personagem Siegfried do niilismo radical. Isso porque sua destruição é ativa, os valores e imperativos são seus.
  • 44
    Cf. Wagner, 1914______. Siegfried. Zweiter Tag des Bühnenfestspiels Der Ring des Nibelungen. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 1914..
  • 45
    A despeito de Nietzsche não mencionar, Richard Wagner, no ano de 1856, preparava uma ópera influenciada pelo budismo e que se intitularia Die Sieger [Os Vencedores]. Todavia, essa obra não foi finalizada (Coelho, 2000COELHO, L. M. A Ópera Alemã. - São Paulo: Perspectiva, 2000. - História da Ópera., p. 226).
  • 46
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 43.
  • 47
    Acampora, 2018ACAMPORA, C. D. As disputas de Nietzsche. Tradução Peterson Roberto da Silva; revisão técnica e organização Jean Gabriel Castro da Costa. - Florianópolis: Editora da UFSC, 2018., p. 231.
  • 48
    Wagner, 191-?WAGNER, R. Parsifal. Ein Bühnenweihfestspiel. Leipzig, Breitkopf & Härtel, 191-?., p. 63.
  • 49
    Coelho, 2000COELHO, L. M. A Ópera Alemã. - São Paulo: Perspectiva, 2000. - História da Ópera., p. 240.
  • 50
    Quando escrevia O Anticristo, essa “guerra de morte” aparece duas vezes. Em sua Lei contra o cristianismo, Nietzsche escreve: “Guerra mortal ao vício: o vício é o cristianismo”. Além disso, em um fragmento póstumo de 1888, lê-se: “Não pode haver aqui nenhum contrato: aqui é preciso exterminar, aniquilar, guerrear - é preciso extrair por toda parte ainda o critério valorativo da medida cristão-niilista e combatê-lo sob toda e qualquer máscara... Extraí-lo da sociologia atual, por exemplo, da música atual, por exemplo, do pessimismo atual (- tudo isso são formas do ideal valorativo cristão -) (NF/FP 14[6] 1888, KSA 13.220).
  • 51
    Dufour, 2001DUFOUR, É. “La physiologie de la musique de Nietzsche.” Nietzsche-Studien, 30, Berlin/Nova York, Walter de Gruyter, 2001., p. 245 [tradução nossa].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2021
  • Aceito
    24 Nov 2021
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