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A recepção de Nietzsche: diferentes leituras

AZEREDO, Vânia Dutra de; FREZZATTI, JR.; Antonio, Wilson. (orgs.). Nietzsche e seus intérpretes . Curitiba: CRV, 2020. 182 p.

A coletânea Nietzsche e seus intérpretes, além do brilhante prefácio de autoria de Olímpio Pimenta e da muito bem escrita introdução feita por Vânia Dutra de Azeredo, traz dez ensaios de autores especialistas em Nietzsche, integrantes do GEN (Grupo de Estudos Nietzsche). Esses dez ensaios versam sobre diferentes leituras filosóficas da obra de Nietzsche feitas por autores que tiveram influência na interpretação dos autores brasileiros.

Em “Filosofia, Literatura e vida: o esteticismo em Nietzsche e Nehamas”, André Itaparica comenta a repercussão de Nietzsche: Life as Literature, de Alexander Nehamas, obra de reconhecida “engenhosidade” e “elegância” na qual o autor aponta a multiplicidade estilística como chave interpretativa da filosofia nietzschiana, em contraposição à ideia difundida de que que o aforismo seria a principal forma expressiva de Nietzsche. Na época da publicação dessa obra, Nietzsche não tinha impacto na filosofia anglo-saxônica e, como indica Itaparica, o sucesso da obra de Nehamas se deve justamente ao diálogo que ele faz “com a tradição continental, com sua atenção à metáfora e ao estilo, ao mesmo tempo que faz uso das ferramentas da filosofia analítica” (p. 22). É nesse diálogo que Nehamas procura compreender questões como a autorrefutação e o relativismo suscitadas pela tradição analítica relativamente à filosofia de Nietzsche e que afetariam as noções de perspectivismo e interpretação. Nehamas não se associa nem à tradição continental nem à filosofia analítica, mas desenvolve uma filosofia própria que absorve o melhor das duas tradições e se ampara na filosofia nietzschiana. Conforme Itaparica, a filosofia de Nehamas é uma lição encontrada já em Platão: “a ideia de que a filosofia, por mais teórica que pareça, sempre diz respeito, no fim das contas, a uma dimensão prática, existencial, e por isso não pode ser entendida sem a referência a uma forma de vida” (p. 23). No livro de Nehamas, o autor apresenta todo o esteticismo de Nietzsche, em que o interesse pela filosofia e pela ética não podem ser dissociados da literatura e da estética, mostrando a qualidade literária dos escritos de Nietzsche e a expressividade de suas ideias, bem como a centralidade da palavra escritas para a concepção de mundo nietzschiana. É a partir da concepção esteticista que Nehamas articula o perspectivismo e o pluralismo estilístico. Por um lado, a diversidade de interpretações irredutíveis pela qual o mundo pode ser visto e, de outro, a singularização das ideias de Nietzsche como suas ideias, dependentes de uma forma de vida particular inimitável e a consequente defesa de que cada um pode engendrar sua própria forma de vida e desenvolver sua singularidade. Nietzsche utiliza uma diversidade de estilos - tratado acadêmico, ensaio, aforismo, paródia, polêmica, panfleto, autobiografia, monólogo - como vetor de sua singularização, e faz uma espécie de convite para que os leitores interlocutores adotem uma forma de vida própria. Para Nehamas, diz Itaparica, o esteticismo de Nietzsche consiste numa visão do mundo como obra de arte e a própria individualidade como uma criação artística e a visão de que a escrita é a expressão literária de uma individualidade, além da visão de que a ética aconselha a adoção de uma forma de vida potencializadora da autocriação. Itaparica, entretanto, aponta que Nehamas não foi bem aceito em todos os casos. André Itaparica aceita que não se encontram nos textos de Nietzsche elementos que justifiquem a tese de que Nietzsche tem uma visão do indivíduo e do mundo como obra literária, como indicou Brian Leiter, mas argumenta que Nehamas não é apenas um comentador de Nietzsche, mas “um autor que tem preocupações próprias e se utiliza de outros autores para criar seu próprio pensamento” (p. 30). Talvez tenha faltado a Nehamas a ousadia de atribuir a tese do esteticismo literário a si mesmo é em vez de atribuí-la a Nietzsche. De qualquer forma, escreve Itaparica, “Nehamas, apresentando seu livro como um comentário sobre Nietzsche, fornece-nos uma interpretação forte, pessoal e criativa do filósofo alemão” (p.31).

Claudemir Araldi traz “W. Müller-Lauter: os antagonismos e o niilismo na filosofia de Nietzsche”. Müller-Lauter teve acesso tardio à filosofia de Nietzsche: somente nos anos sessenta, ao interessar-se pela problemática do niilismo, ele prepara uma apresentação sobre Nietzsche, utilizando-se de Nietzsche, de Heidegger. A interpretação de Müller-Lauter, aparece na década de 1970 e se trata, conforme explica Araldi, tanto de “uma leitura crítico-imanente da obra de Nietzsche quanto uma crítica à interpretação heideggeriana de Nietzsche” (p. 34). Müller-Lauter, aponta Araldi, tematiza os antagonismos para abordar questões fundamentais da obra de Nietzsche, como a vontade de potência, o eterno retorno, o niilismo, o além-do-homem, a história, a crítica da linguagem e da lógica. Os antagonismos são vistos a partir da doutrina da vontade de potência e, por isso, são intrínsecos ao mundo. A luta entre os antagonismos é caracterizadora do que é o mundo. Os antagonismos somente podem ser superados pelo além-do-homem, a forma mais elevada de vontade de potência. Segundo Araldi, “[o] grande mérito da abordagem de Müller-Lauter foi o de afastar definitivamente a suspeita de que a vontade de potência nietzschiana seria um princípio metafísico, principalmente no sentido defendido por Heidegger” (p. 36). Paralelamente aos antagonismos, encontra-se engendrada a “vontade de nada” como desmoronamento da vontade de potência. O niilismo de Nietzsche se expressa através de uma decadência dos processos fisiológicos entendidos domo desencadeamentos de forças, que, por vezes, tem caráter destrutivo. Araldi chama atenção ao fato de que Müller-Lauter faz uma abordagem da decadência fisiológica a partir da arte wagneriana, ao passo que Nietzsche fez uma abordagem a partir da natureza dos impulsos proposta por Paul Bourget e é assim que uma série de temas passam a fazer parte da filosofia de Nietzsche: declínio, decadência, esgotamento, desagregação dos instintos, degeneração. A conclusão disso é que o niilismo é engendrado pela desagregação dos instintos, a vitória dos fracos sobre os fortes, numa moralidade que faz transparecer “um tempo doentio de declínio” (p. 39). Para Müller-Lauter a superação do niilismo se dará pelo além-do-homem, na sua apoteótica experiência do eterno retorno, o que, para Araldi, é surpreendente uma vez que a concepção de além-do-homem de Nietzsche é anterior a uma elaboração sofisticada de niilismo. Mas Müller-Lauter enfatiza que a superação do niilismo, em Nietzsche, não é conclusiva, mas “tem caráter aberto e problemático” (p. 42). Assim, Araldi retoma o confronto entre a interpretação de Müller-Lauter e a de Heidegger. Müller-Lauter não concorda com a interpretação da vontade de potência como unidade metafísica, que fez com que Heidegger considerasse o niilismo como um problema do Ser, mas valoriza em Heidegger, como escreve Araldi, “o prognóstico do domínio da essência da vontade enquanto tecnologia, algo que está presente de modo muito embrionário em Nietzsche” (p. 43). Contra Heidegger, Araldi endossa Müller-Lauter ao não concordar que a história do ser seja essência do niilismo, mas considera que a proposta heideggeriana permite “uma reflexão sobre a herança de dois milênios de cultura ocidental, para pensar o futuro do ser humano, em meio à aceleração crescente dos processos técnicos” (p. 43-4).

“Nietzsche sob Heidegger” é a contribuição de Fernando R. de Moraes Barros à coletânea. Segundo Moraes Barros, Heidegger não deve ser considerado simplesmente como intérprete de Nietzsche, mas como “aquele que levou Nietzsche a sério como filósofo” (p.47). A leitura de Heidegger se tornou a mais influente e exitosa e, talvez por isso, “jactou-se em redimensionar, enquadrar, suspender e, em boa medida, conter o sentido e o alcance que Nietzsche entreviu para si e se filosofar” (p. 48). Mas a leitura de Heidegger não foi a mais popular, justamente devido à sobriedade e profundidade das reflexões heideggerianas, que não remetem à festividade poética da filosofia da vida vista em Nietzsche. Heidegger teria optado por tomar como decisivo o aspecto mais austero de Nietzsche, desconsiderando as outras facetas, como o chiste, a ironia e o sarcasmo, que constituem, em Nietzsche, um “singular vetor de ideais” (p. 49). A “tradução metabólica” que Heidegger fez dos textos de Nietzsche se torna incompleta e restrita, uma tradução que não capta exatamente o tempo do estilo nietzschiano. Heidegger não teria considerado satisfatoriamente “o pano de fundo afetivo e subjetivo, prenhe de comunhão e convergência sensitivas” que é próprio da troca elementar que caracteriza o exercício da tradução (p. 51). Moraes Barros observa o distanciamento que Heidegger assume em relação a Nietzsche de dele ter-se aproximado e questiona se isso se deve ao empenho de Heidegger em deixar o próprio Nietzsche se revelar, o que não consistiria um distanciamento efetivo, mas um “exemplo ímpar da tardia análise heideggeriana acerca da coisa (Das Ding) - segundo a qual ‘aproximar é a essência do que é próximo’” (p. 53). Por outro lado, continua Moraes Barros, poderia ser que o distanciamento de Heidegger manifestasse exatamente uma rivalidade, já que “a pergunta fundamental pelo Ser requer, como condição de compreensibilidade, um outro início (...) distinto daquele que, tradicionalmente, designa o ideal retrospectivo do ‘despertar’ da filosofia” (p. 53). As ideias de Nietzsche são vistas por Heidegger como uma submissão “à última verdade metafísica sobre o ente enquanto tal”, como transcreve Moraes Barros (p. 55), o “derradeiro vetor metafísico da subjetividade modernamente alcançada”, tal que o que é buscado na confrontação heideggeriana é aquilo que é dito através do que Nietzsche diz, a “coisa” do pensamento de Nietzsche. A busca dessa “coisa” pressupõe a distinção entre Ser e ente, que requer dois expedientes linguísticos distintos: ao dizer que o ente é e o Ser essencializa, o ato essencializador é verbal, embora a palavra “essência” seja habitualmente utilizada como substantivo. Mas também tem-se a nominalização, indicando que o Ser que essencializa é um substantivo, o próprio agir essencial. O Ser “não pode ser e não é”, já que não é ente, mas é, ao mesmo tempo, distinto do Nada. Essa é uma distinção que Nietzsche não teria reconhecido e, por isso, considera que o ser não é ser. Assim, Heidegger mantém Nietzsche no interior da ontologia metafísica, não porque Nietzsche se preocupasse com a interpretação de uma realidade efetiva ou em estabelecer uma hipótese transcendente de dois mundos, mas porque a vontade de potência teria sido “vitimada pela remissão ôntica do Ser” (p. 57). Nietzsche teria feito uma inversão do platonismo, mas não o superou positivamente, “permanecendo dentro dos limites confinantes do dualismo por ele mesmo combatido” (p. 57). Heidegger, então, extrairá as consequências dessa inversão, com base em cinco expressões fundamentais: a vontade de poder, o niilismo, o eterno retorno do mesmo, o além-do-homem e a justiça (p. 57-8).

Ivo da Silva Júnior apresenta a interpretação de Domenico Losurdo, recebida com muita cautela pelos estudiosos de Nietzsche. No capítulo “Falsa polêmica por falso enquadramento: questão de método na leitura da filosofia nietzschiana feita por Losurdo”, Silva Júnior, contra a visão de vários estudiosos que desqualificam a obra de Losurdo como não filosófica, sustenta que se trata de uma obra de história da filosofia, uma vez que se encontram estabelecidos com precisão os objetos de análise e a metodologia utilizada. A obra de Losurdo deve, segundo Silva Júnior, analisar o percurso da interpretação oferecida através da metodologia empregada e fazer um exame das estratégias utilizadas pelos críticos de Losurdo para retirar-lhe o embasamento da leitura produzida. É o fato de Losurdo adotar um método em desuso na filosofia que motiva os críticos a desqualificarem a interpretação daquele autor. Losurdo adota o método dialético, alinhado ao pensamento de esquerda do autor, ao passo que as interpretações costumeiras de Nietzsche tendem a utilizar o método estruturalista. Assim, a questão a ser posta é por que Losurdo adotou esse método e não o estruturalista. No método dialético, o ponto de partida da pesquisa é o texto de um autor, de modo que as causas, a origem, do pensamento que o texto apresenta ou mesmo a biografia de seu autor se colocam apenas de modo secundário para a compreensão daquele pensamento. O elemento que impacta uma obra é uma “visão do mundo”, o comportamento de um grupo social, que não necessariamente se espelha na vida concreta de um autor. Essa “visão de mundo” oferece o aparato conceitual que servirá de norte ao filósofo na produção de sua filosofia, ou, como escreve Silva Júnior, “[u]ma visão de mundo é precisamente esse conjunto de aspirações, de sentimentos e ideias que reúne frequentemente os membros de um grupo (mais frequentemente, de uma classe social) e os opõe aos outros grupos” (p. 75). É essa visão do mundo que Losurdo busca identificar na obra de Nietzsche, mostrando o descompasso entre a condição social pessoal e a visão de mundo em que Nietzsche se situa, a situação política, econômica e social da Alemanha na época, o que transforma Nietzsche num rebelde, termo que aparece no título da obra de Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata. Assim, Losurdo busca a compreensão do texto de Nietzsche a partir do texto mesmo para depois tentar explicá-lo, empreendimento em que a estrutura é histórica, uma estrutura “plena de significado, em que Nietzsche é tido como porta-voz de seu tempo, falando pelo todo a partir de sua “visão de mundo”. O objetivo dessa metodologia dialética é chegar à compreensão de todo texto, através da articulação de suas partes, em que cada parte é inserida numa parte maior. Aqui está o contraste entre as interpretações acadêmicas, que tratam Nietzsche como um filósofo inovador em questões epistêmicas e crítico em questões morais, negligenciando as questões políticas, realçadas por Losurdo que, por sua vez, propõe que as vertentes epistêmicas e morais sejam subsumidas à vertente política. Ao contrário de uma “hermenêutica da inocência” que anula a base epistêmica da filosofia nietzschiana e ameniza a crítica moral por não integrar a interpretação numa totalidade, Losurdo encontra o elã totalizante nessa “visão de mundo” de Nietzsche. Conclui Ivo da Silva Junior que a não aceitação da interpretação de Losurdo se deve a um “enquadramento equivocado” que não levou em conta a metodologia adotada por esse autor.

João Evangelista de Melo Neto apresenta “Os reflexos do pensamento nietzschiano na Dialética do Esclarecimento” em que o autor indica que o Excurso II do livro de Adorno e Horkheimer faz uso do pensamento nietzschiano e deverá ser compreendido à luz do fracasso iluminista (Adorno; Horkheimer, 1985ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.). O iluminismo depositava confiança total no poder da razão esclarecedora, liberta de toda forma de doutrinação religiosa, metafísica ou política. Direcionada exclusivamente “pelo cálculo, o experimento, a investigação rigorosa, a discussão racional e o exame crítico”, a razão encontra sua liberdade e se emancipa, e “o exercício e o desenvolvimento progressivo desta razão emancipada conduziriam a humanidade, forçosamente, a um avanço de condições sociais, políticas, morais e materiais (p. 84)”. O otimismo iluminista é apagado por Adorno e Horkheimer que apontam que, em vez de o século XX constituir a apoteose das Luzes, “é caracterizado pelo avanço da direção heteronômica dos seres humanos e pela degradação da própria humanidade”, como escreve Melo Neto (p. 85). A que se deve esse fracasso? Essa é a pergunta que os filósofos de Frankfurt buscam responder a partir da atenção a uma problema terminológico-conceitual: esclarecimento é mais amplo que iluminismo: esclarecimento é o uso da razão em confronto com as forças da natureza na totalidade do processo histórico da humanidade e que possui origem no mito, se segue com o aparecimento da filosofia, com a revolução científica, com o iluminismo e culmina no positivismo dos séculos XIX e XX. O Iluminismo, portanto, á apenas parte de todo o processo e corresponde ao movimento intelectual do século XVIII. O mito é a narrativa que quer dominar, dizer a origem, explicar, e cuja motivação é o medo da natureza, do desconhecido. Há, portanto, na origem do esclarecimento o “‘desejo racional’ de dominar e fixar o mundo, através de artifícios e categorias racionais que pudessem tornar a natureza manipulável” (p. 87). O iluminismo é a fase que supera esse caráter puramente “pragmatizante e instrumental da razão” subjacente ao mito, uma vez que requer o exercício da autorreflexão. Melo Neto indica que os filósofos de Frankfurt denunciaram que o fracasso do iluminismo se deve justamente à “fé irredutível dos filósofos das luzes nos poderes emancipatórios e exclusivamente ‘benéficos’ da razão; o que, consequentemente, impediu a percepção da potência autodestrutiva desta” (p. 87). Assim, no Excurso II de A Dialética do Esclarecimento Adorno e Horkheimer interpretam a filosofia nietzschiana como o “apocalipse moral”, “a radicalização autodestrutiva do projeto ético do iluminismo” (p. 88). Nietzsche teria mostrado que o compromisso do esclarecimento com suas próprias metodologias e suas contradições internas demonstraram que não era possível uma fundamentação racional para a ação moral. Nietzsche não tentou harmonizar o caráter autodestrutivo do esclarecimento e escancarou a contradição dos iluministas que tentavam preservar a universalidade da moralidade e, ao mesmo tempo, pretendiam libertá-la do dogmatismo religioso. A filosofia “imoralista” de Nietzsche (assim como a de Sade) corrói o caráter transcendente e absoluto dos valores e mostra que valores opostos podem ser admitidos plenamente pela razão pura. A filosofia de Nietzsche desperta o esclarecimento de seu sono dogmático e denuncia o fracasso da racionalidade ética do iluminismo. A importância do anúncio dessa catástrofe, na interpretação dos frankfutianos, como apresenta Melo Neto, está em possibilitar a sua superação e em propor uma alavanca para salvar o esclarecimento. Melo Neto traz também a questão da morte de Deus em Nietzsche, sempre na ótica de A Dialética do Esclarecimento. Não se trata de uma questão metafísica sobre a existência ou não existência de Deus: “o pensamento nietzschiano já seria esclarecido o bastante a ponto de não mais se importar com debates metafísicos” (p. 91). A humanidade esclarecida, entregue à ciência, não poderia mais aceitar Deus sem ferir “a exigência moral de honestidade intelectual imposta pela consciência científica” (p. 91). O resultado é a destruição dos alicerces da moral. Mostra Melo Neto que “Nietzsche teria, portanto, levado a inflexibilidade antidogmática da razão esclarecida às últimas consequências e, com isso, se voltado contra a tentativa iluminista de preservar o caráter absoluto da moral” (p. 92). Mas o homem esclarecido, o homem de ciência, não se deu conta das consequências do colapso da moral. A morte de Deus foi o anúncio de Nietzsche a respeito do perigo do niilismo que “só poderia ser superado se o projeto de transvaloração dos valores também se ocupasse em erigir bases que viessem legitimar os novos valores” (p. 94). Melo Neto concede a apropriação conceitual aos filósofos de Frankfurt, tendo em vista que o objetivo deles era compreender as contradições da Aufklärung, mas sugere que o uso instrumental dos textos de Nietzsche não contribui para a compreensão da filosofia desse importante filósofo.

Outra contribuição para essa coletânea Nietzsche e seus intérpretes tem autoria de Márcio José Silveira Lima e é intitulada “Peter Sloterdijk e o protagonismo de Apolo na tragédia de Nietzsche”. Silveira Lima se propõe a apresentar as questões dos cinco capítulos do livro em que Sloterdijk oferece sua interpretação, O pensador em cena. O materialismno de Nietzsche. A interpretação de Sloterdijk, escreve Silveira Lima, que pretendia constituir um comentário a respeito de O nascimento da tragédia, se transforma numa análise do Esclarecimento: “[o] desafio de pensar conjuntamente essa relação entre Esclarecimento e drama se encontra entre os estratos de significação que Sloterdijk vai dando, como se a leitura fosse um exercício de escavação contínua” (p.99). Já não se lêem os clássicos com o objetivo de esgotar o sentido original, e isso porque a crença de que há um sentido atemporal dos textos clássicos foi simplesmente abandonada em favor de um “interesse subjetivo baseado em ambições críticas que pretende se elevar às custas desse material ou quando, por causa de um interesse atual, se utiliza de uma citação útil tirada das fontes históricas” (p. 100). A atualidade de Nietzsche, é a proposta de Sloterdijk apontada por Silveira Lima, se deve ao fato de que encontramos nos textos de Nietzsche a nossa própria causa e porque a obra de Nietzsche é “incômoda”, “deslumbrante”, “estimulante” e “teatral”, que contém uma violenta crítica cultural, psicológica e filosófica. Nietzsche é visto como o filósofo precursor do direcionamento daqueles que estão insatisfeitos com a investigação científica desinteressada, opondo-se à erudição devotada ao “trabalho de uma razão técnica e instrumental”, não se pretendendo especialista de um único saber, já que “nunca se permitiu estar contente em fazer algo de uma maneira que fosse apenas correto profissionalmente” (p. 101). Há linguagens e forças imbricadas nos textos nietzschianos de modo que tomá-los literalmente conduz a más interpretações e más compreensões. Nietzsche é visto como aquele que denuncia a insuficiência dos esquemas da filosofia moderna para alcançar a verdade através de deduções discursivas, insistindo que qualquer equívoco sobre si mesmo deve ser encarado como os antigos heróis: vivenciando-os.

Saulo Krieger escreve “Nietzsche e Butler: do moto interpretante ao Outro da filosofia”, em que apresenta, no início, o relato de Judith Butler sobre sua primeira aproximação a Nietzsche: “um misto de atração e repulsa”, em que se perde o chão por ver-se destruído o padrão de rigor e clareza lógica sempre tão prezado pela filosofia. Segundo Krieger, Butler aponta Nietzsche “como um moto interpretante porque o próprio Nietzsche, afinal, teria desvelado o ato de pensar como moto interpretante” (p. 118). Afirma-se que Nietzsche, como filósofo, não tem seguidores ou discípulos, mas é um filósofo “de intérpretes e apropriações”, uma vez que a reflexão nietzschiana faz emergir um outro lado da própria filosofia ou, como reporta Krieger, “acaba por engendrar uma outra filosofia, de modo que ela, a filosofia, estaria involuntariamente produzindo um duplo de si mesma” (p. 118), um “Outro” que o próprio Nietzsche faz falar. É justamente a fala desse Outro que gera incômodo, porque se vê a filosofia deslegitimar-se e, ao mesmo tempo, permite que se a leve aos próprios confins. A filosofia feminista e a teoria da performatividade de gênero de Butler é exatamente isso, uma reflexão sobre questões que a filosofia institucionalizada não fazia e não pretendia fazer e não legitimaria e, portanto, resistia a receber. Butler recebe a interpretação de de Man, que apresenta Nietzsche como um filósofo que decompõe a linguagem e provoca uma demolição, através de elementos retóricos, da metafísica e, em consequência, do conhecimento que se tem do mundo. Nessa linha, Nietzsche coloca as figuras de linguagem como paradigma linguístico, e não como linguagem derivada, de modo que não existe uma linguagem referencial: “a natureza da linguagem seria muito mais retórica do que representacional, e mais expressiva do que referencial” (p.121), caso contrário, a linguagem encontraria sua força nos elementos intralinguísticos das figuras da linguagem e não nas referências extralinguísticas. Assim, as propaladas precisão e clareza linguísticas, que fundamentariam os conceitos e os argumentos, são postas em discussão para concluir que “[p]or um caminho tortuoso, que é sobretudo de criação artística, a linguagem de acesso na verdade se constrói a golpes de metonímia (...), de metáfora (...), de sinédoque (...) e dos demais tropos linguísticos” (p. 121). A filosofia, à medida que ignora essas estruturas retóricas e figurativas da linguagem, serve-se de um falso literalismo, tomando em sentido literal aquilo que é metafórico, transformando-se em reflexão sobre sua própria destruição. Butler, escreve Krieger, desenvolve a questão de gênero e de performatividade a partir das insuficiências interpretativas encontradas no debate feminista e, por isso, faz uso de estratégias textuais oriundas de “dispositivo Nietzsche” como moto interpretante. Não se trata de adotar teorias nietzschianas, mas de proporcionar reflexão contínua tanto de maneira negativa, pela reformulação da teoria de gênero de Butler, como de maneira positiva, pela postulação do gênero como performatividade. Nessa teoria propositiva, gênero se torna objeto natural da filosofia e é sobre ele que a filosofia de Butler se debruça.

A interpretação de Giorgio Colli e Mazzino Montinari, editores da celebrada Kritische Gesamtausgabe, é objeto de “Giorgio Colli e Mazzino Montinari intérpretes de Nietzsche”, de autoria de Stefano Buselato. A edição de Colli e Montinari, de estrondosa repercussão na segunda metade do século XX, é instrumento obrigatório para quem pretende se dedicar aos estudos sobre Nietzsche. Foi levada a termo “em virtude das particularidades características, das convicções intelectuais, das personalidades específicas” dos dois autores que, conforme escreve Buselato (p. 139), embora sejam personalidades autônomas, diferentes, independentes, apresentam uma sinergia que as torna conciliáveis e, nessa homogeneidade, os autores são vistos como exegetas de Nietzsche. Colli, o professor, considera Nietzsche como o filósofo que resgata as condições originais do pensamento grego e, por isso, cabe-lhe um lugar de importância na história da filosofia. Colli admira Nietzsche particularmente pela “união entre conhecimento e vida, pensamento e indivíduo” (p. 140), o que permite a liberação de um poder emancipatório que produziria uma renovação cultural. Montinari, aluno, se engaja no projeto de Colli da tradução das obras completas de Nietzsche. Colli e Montinari divergiam na concepção e importância da história. Para Montinari, a história é essencial e Nietzsche é relevante à medida que denuncia a falta de sentido histórico dos filósofos, que desacredita a filosofia metafísica em favor de uma filosofia história, que propõe a historização radical da moral. Para Colli, a história é relativa e o Nietzsche mais valorizado é o Nietzsche do Zaratustra e dos fragmentos póstumos que “oferecem um Nietzsche diferente daquele das obras escritas para o público” (p. 143), uma vez que “escreve para si mesmo, longe das poses e posições que contentem os leitores, revela-se filosoficamente muito mais coerente, e até mesmo mais audaz” (p. 143). Buselato ressalta que a avaliação do elemento histórico levou os dois autores a metodologias e interpretações divergentes. Para Montinari, o estudo das fontes era imprescindível para evitar exegese infundada e para reconstruir a tessitura contemporânea de Nietzsche, com a qual ele se confrontava e discutia. Por outro lado, para Colli, as fontes e leituras de Nietzsche serviam para evitar que, através de uma leitura imediata, se atribuísse a Nietzsche o que não lhe pertencia, mas o “elemento precioso” da pesquisa não eram as ligações de Nietzsche com o seu tempo, mas aquilo que é “extemporâneo”, “inatual”, que transpassa os nossos problemas. Outra divergência que Buselato aponta entre os dois autores é relativa ao aparato a ser utilizado na tradução das obras de Nietzsche. Colli preferia o mínimo indispensável; Montinari, o máximo possível. Essa divergência paradigmática influenciaria o limite da exegese dos textos nietzschianos: o limite aquém, no qual “a exegese é sem fundamento, carente de conhecimento, puro arbítrio, separado da efetiva realidade do significado nietzschiano” (p. 147), e o limite além, que incorre no “pedantismo do particular, tão fútil quanto danoso para a compreensão exegética, a qual se desfaz sobre os pequenos detalhes, tornando-se cega ao geral e ao complexivo” (p. 146). Stefano Buselato aponta que, apesar das diferenças, o trabalho dos dois autores só pode ser tão elevado em virtude da convicção comum de que o principal efeito da filosofia de Nietzsche e a principal contribuição de sua filosofia está na “capacidade de libertação” e na possibilidade de “emancipação cultural, humana, social, que significa a elevação das condições existentes” (p. 148).

Vânia Dutra de Azeredo escreve “Michel Foucault intérprete de Nietzsche”, no qual mostra que Foucault, a partir de suas leituras e interpretações, se apropria do pensamento nietzschiano para tornar-se um genealogista da moral: “a leitura foucaultiana é mais uma apropriação do que um estudo minucioso e elucidativo de conceitos presentes na obra de Nietzsche” (p. 151). Foucault toma para si o pensamento de Nietzsche e o aplica tanto às suas leituras de literatura, história e política, como na concepção da loucura e da sexualidade. Foucault considera Nietzsche, ao lado de Freud e Marx, introdutor de uma nova hermenêutica, distante da semântica tradicional, ao formular a ideia de que os signos linguísticos são destituídos de unicidade e fixidez, de modo que a linguagem esconde muito do que diz, ao mesmo tempo que ultrapassa a sua forma verbal, requerendo, por isso, uma nova atitude interpretativa: “recusa peremptória de uma interpretação instituinte a partir do signo, pois os signos, antes mesmo de ser oferecidos como elementos para uma interpretação, são eles mesmos já interpretação” (p. 154). Vânia Dutra esclarece que há um inacabamento constitutivo à interpretação, uma vez que tudo é constante interpretação e, por isso, a semiologia e a hermenêutica não podem ser conciliadas. Vânia Dutra apresenta, também, a investigação que Foucault, a partir da análise dos termos “origem”, “proveniência”, “ascendência”, “nascimento” e “surgimento”, faz da genealogia nietzschiana relativamente à história, o que remete à distinção entre os atos de “escutar” e de “crer”. “Escutar” deixa o passado humano falar, abre-se ao que é diverso, descontínuo, inusitado, ao passo que “crer” fixa o que é dado, submete-se ao previamente estipulado, sem interrogações. A originalidade da leitura de Foucault, como escreve Vânia Dutra, além de explicitar os sentidos dos temos referidos acima, está em explicitar os usos opositores do sentido histórico em Nietzsche: o paródico, que se opõe à história como reminiscência, o dissociativo, que rejeita a história como tradição, e o sacrificial, que recusa a neutralidade do sujeito de conhecimento. Foucault, embora não escreva sobre Nietzsche, é o mais nietzschiano dos intérpretes de Nietzsche, afirma a Profª. Vânia. Nietzsche é, para Foucault, “instrumento de pensamento”, um autor com o qual “pensa e trabalha”: “Foucault vale-se de Nietzsche para pensar as próprias questões filosóficas dele e, com isso, passa a realizar uma genealogia da moral” (p. 157). Nietzsche nunca pretendeu ter seguidores e se recusava a ser tomado como um novo ideal que viesse a substituir a tradição e é nesse sentido que Foucault fala “com e como Nietzsche” em vez de falar sobre ele. A partir daí, a Profª. Vânia explica a genealogia de Foucault, cujo aspecto fundamental é a identificação de uma vontade de saber, que alude à repressão do sexo para situá-la nos discursos sobre o sexo na modernidade para “proceder à revisão ou à ressignificação da hipótese da repressão” (p. 159) (ver Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1. Vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2014. ). Nessa “decifração hieroglífica”, Foucault, assim como Nietzsche, sempre é balizado pelo documento registrado, pelo “longo texto difícil de decifrar do passado moral humano” (p. 159). Conforme diz a Profª. Vânia, “Foucault torna-se nietzschiano de modo eminente, perdendo Nietzsche para poder encontrá-lo” (p. 159).

Finalizando o compêndio, Wilson Antonio Frezzatti Jr. Escreve “O significado da teoria das forças no pensamento nietzschiano: a interpretação de Scarlett Marton”, cujo objetivo, já depreendido do título, é apresentar a originalidade da leitura de Marton. A vontade de potência, escreve Frezzatti Jr., é “axial” na maturidade do pensamento nietzschiano, e essa noção está articulada, pela teoria das forças proposta por Marton, com outras que Nietzsche postula no mesmo período: eterno retorno, genealogia, perspectivismo, experimentalismo e amor fati. Há uma gama ampla de interpretações de Nietzsche, algumas grosseiras que merecem ser descartadas, outras que apresentam refinamento e são imprescindíveis para quem estuda Nietzsche, e nesse refinamento se encaixa a interpretação de Marton, “que frequentemente nos leva à terceira margem das leituras mais comuns” (p. 164) (ver Marton, 2000MARTON, Scarlett. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo, Ijuí (RS): Discurso, UNIJUÌ, 2000.). O eterno retorno é paradigmático, nesse sentido, interpretado como o fardo mais pesado, mas que, na interpretação de Marton, não é fator psicológico ou existencial, mas “um experimento de pensamento, ou seja, uma opção filosófica, resultante do perspectivismo, de tratar uma questão de vários pontos de vista”. Marton também interpreta o eterno retorno como “imperativo ético”, cuja máxima é “vive de tal forma que devas querer viver outra vez a mesma vida”, indicativa de como se deve agir (p. 164). Mas, em Nietzsche, não há razão universal e incondicional, mas circunstâncias específicas e contingentes, promotoras dos sentimentos elevados variáveis de cada pessoa. O eterno retorno era considerado por Nietzsche a teoria mais científica possível. Daí a importância da noção de força na filosofia dele: “tudo o que existe, seja orgânico ou inorgânico, é constituído por forças, isto é, por quanta de potência” (p. 166). Segundo a teoria das forças, um centro de forças é o resultado de um embate no interior de uma configuração de forças. Tem-se, então, que a vontade de potência é “impulso de dominação e de apropriação”, ao passo que a interpretação do mundo é uma tentativa de dominá-lo e dele apropriar-se. Frezzati Jr. indica que, conforma alerta Marton, Nietzsche oferece uma interpretações do mundo sem que com suas interpretações pretenda apresentar verdades sobre o mundo e, por isso, a perspectiva nietzschiana é superior às outras por mostrar-se simplesmente como uma perspectiva, mais abrangente e que incorpora perspectivas científicas que admitem o vir-a-ser. Todavia, de acordo com a interpretação de Marton, ou terceira margem de leitura, o eterno retorno vai além de um imperativo ético e de uma tese cosmológica, pois “[o] eterno retorno integra um projeto filosófico que desloca o homem de um sujeito diante de uma realidade para parte do mundo” (p. 169). Assim, a teoria das forças é instrumental interpretativo que possibilita perceber a coerência dessa interpretação com aquilo que a própria filosofia nietzschiana propõe, superando dicotomias metafísicas e lançando-se para além dos opostos do pensamento tradicional.

Por fim, cabe considerar que esta coletânea, sem dúvida, é um trabalho de alta relevância acadêmica e se destina tanto a estudantes que porventura se interessem pela filosofia de Nietzsche como a já iniciados nos estudos desse importante filósofo alemão.

Referências

  • ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
  • AZEREDO, Vânia Dutra de; FREZZATTI JR., Wilson Antonio (orgs.). Nietzsche e seus intérpretes Curitiba: CRV, 2020. 182 p. (Coleção Nietzsche em Perspectiva - vol. 3).
  • FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1 Vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
  • MARTON, Scarlett. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo, Ijuí (RS): Discurso, UNIJUÌ, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2022
  • Aceito
    24 Abr 2022
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