Acessibilidade / Reportar erro

Nietzsche contra a domesticação das instituições de ensino

Nietzsche against the domestication of educational institutions

Resumo:

A filosofia nietzschiana se desdobra, a todo tempo, em denunciar que as escolas e universidades da Alemanha moderna serviam, majoritariamente, para domesticar as forças humanas em prol dos valores administrados pelo Estado. Considerando tal horizonte, este artigo investiga o fundo analítico da crítica nietzschiana à educação (Ersiehung) de seu tempo para mostrar a tensão necessária que a formação humana (Bildung) emerge no arcabouço de sua filosofia como cultivo de novos valores. Para tanto, será preciso mostrar que outro nível de disciplina, ao mesmo tempo causa e efeito de uma experiência formativa singular e própria, há de ser deflagrada como potência criativa de e para outros valores existenciais.

Palavras-chave:
Estado; Bildung; educação (Ersiehung); disciplina; domesticação

Abstract:

Nietzsche's philosophy unfolds, at all times, in denouncing that the schools and universities in Germany serve, mostly, to domesticate as a modern force in favor of the values administered by the State. Considering this horizon, this article investigates the analytical background of the Nietzschean critique of education (Ersiehung) of his time to show the necessary tension that human formation (Bildung) emerges in the framework of his philosophy as the cultivation of new values. For that, it will be necessary to show that another level of discipline, at the same time cause and effect of a unique and proper formative experience, must be triggered as a creative power of and for other existential values.

Keywords:
State; Bildung; Education (Ersiehung); discipline; domestication

Questões preliminares

Educação e formação perpassam o pensamento de Nietzsche em uma dupla concertação. De um lado, trata-se de considerá-las sob o umbral da intrusão moderna da decadência dos valores, atravessadas pelo niilismo planificador, eivado por um tecnicismo que foi se consolidando na medida da imposição de um grande projeto de domesticação do ser humano, princípio básico da constituição das grandes massas. A Cultura, no sentido da BildungBRITTO, Fabiano de Lemos. “Nietzsche, Bildung e a tradição magisterial da filologia alemã”. In: Analytica, vol. 12, n. 1, 2008., vulgariza-se envernizando as justificativas do Estado a teologizar a própria cultura (Cultur) para a decadência. O enfrentamento de tal condição encontra-se, por outro lado, em seu experimentalismo filosófico cuja aposta na criação de valores e na afirmação da singularidade potente da vida possibilitam que a cultura (Bildung) seja corpo vivo a descontinuar as modelizações existenciais devotadas aos condicionantes da intrusão moderna. A crítica à educação é, desse ponto de vista, sinonímia de crítica à política do Estado e seus derivativos. Mann (1940MANN, Heirich. Pensamento vivo de Nietzsche. Tradução de Sérgio Millet. São Paulo: Livraria Martins, 1940. , p. 95) estaria coberto de razão: “A Cultura e o Estado são dois antagonistas. Todas as grandes épocas de cultura são épocas de decadência política [notadamente a modernidade]: o que foi grande, grande no sentido da cultura, foi apolítico e mesmo anti-político” (acréscimos nossos).

Como se vê, a educação e a formação delineiam-se como temas importantes, a bem da verdade, desde o jovem Nietzsche. De 1872, são sobejamente conhecidas as cinco conferências intituladas Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino - título anotado quase três anos antes (Nachlass/FP 3[22], KSA 7.66). Atento às inclinações imperiais da Alemanha de Bismarck, Nietzsche já pressupunha um tipo de leitor específico, contrafeito ao centro de gravidade da performance formativa adequada ao engrandecimento da Nação. Ele almejava ser lido por alguém que não tivesse pressa, que não esperasse resultados conforme a lógica produtivista da modernidade e, sobretudo, que não privilegiasse a si mesmo sob o esquadro do servilismo dos conhecimentos e da praxiologia prêt-à-porter. “A terceira e a mais importante de nossas exigências é enfim que, num caso, à maneira dos homens de hoje, ele não coloque, a si e a sua cultura (Bildung), como medida e critério seguro de todas as coisas” (BA/EE Vorrede, KSA 1.649). Desferia-se, assim, um duro golpe às pretensões de grandeza germânica, invadindo-a, sem se pedir licença, para se desfazer da sobreposição da vontade de valores unificados. Com isso, Nietzsche faz valer tanto a multiplicidade cultural quanto a atitude sóbria perante o conhecimento que exige de si a máxima socrática, não sem ascese própria: “somente por não-saber e saber de seu não-saber” (BA/EE Vorrede, KSA 1.650).

Essa exigência não condizia, porém, com a realidade dos estabelecimentos de ensino modernos, cuja compreensão de Nietzsche não provinha apenas de sua experimentação docente, mas, também, de sua história como discente. Como Figl sustenta em Nietzsche und Religionen, os livros escolares eram permeados de um “olhar eurocêntrico” (2007, p. 40). A formação humana daí demandada arraigava-se numa planificação moral e intelectual, mas também na de costumes e de eficiência da energia corporal. Os domínios da vida intelectual e espiritual deveriam ser convenientes à civilização (Civilisation) estabelecida. Esta reenviaria, por sua vez, seus sujeitos às mesmas condições materiais e práticas de uma vida em sociedade. Aliás, é nessa mesma ótica que se localiza o desvelo destruidor de Nietzsche quanto ao papel que a filosofia aí desempenhava. Em um aforismo de abril-junho de 1885 dos Fragmentos do espólio, o filósofo da transvaloração dos valores ressaltava: “o modo mecanista de pensar é uma filosofia de fachada. Ela educa para a fixação de fórmulas, ela traz consigo uma grande facilitação” (Nachlass/FP 31[8], KSA 11.361)

Entretanto, ao proceder com a ideia de que à civilização devém uma perspectiva específica de Cultur (Wotling, 1995WOTLING, Patrick. Nietzsche et le problème de la civilisation. Paris: PUF, 1995.), Nietzsche faz dos casos específicos da precariedade da educação os sintomas incontornáveis de uma civilização sem grandeza e norteada pela pequenez da sobriedade comedida da funcionalidade adaptativa, requerida como senha de entrada às necessidades da vida, da subsistência e da pressão material, conforme sublinha Langellotti (2001LANGELLOTTI, Osvaldo. “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos educacionais”. Tradução de Alberto Marcos Onate. Cadernos Nietzsche, n° 11, 2001, p. 121-126. ). Por exemplo, Nietzsche enxergava nos conteúdos de geografia e de história representações discriminatórias que induziam os alunos a crerem-se como “superiores” devido ao seu modo de vida e à sua econômica. Ensinava-se, assim, um pensamento racista, colonizador e hegemônico, que acreditava na superioridade de seus valores - sobretudo os cristãos e metafísicos.

Ora, as instituições de ensino frequentadas pelo jovem Nietzsche generalizavam as culturas e as classificavam como “inferiores”. Segundo Figl, declarações racistas contra os Hunos e os Mongóis compunham os livros de história (2007FIGL, Johann. Nietzsche und die Religionen: Transkulturelle Perspektiven seines Bildungs- und Denkweges. Berlin/Nova York: Walter de Gruyter, 2007., pp. 49-50); classificações como “povos selvagens” estavam presentes no cotidiano escolar a fim de ensinar os “arcaicos” modos de vida relacionados à caça, à pesca e ao nomadismo; essa concepção de “selvageria” era compreendida também na nudez das populações negras e indígenas de acordo com as interpretações etnográficas propagadas em Pforta, escola onde Nietzsche foi aluno (Figl, 2007FIGL, Johann. Nietzsche und die Religionen: Transkulturelle Perspektiven seines Bildungs- und Denkweges. Berlin/Nova York: Walter de Gruyter, 2007., pp. 53-57).

Figl demonstra ainda o esforço inicial do jovem Nietzsche, em 1858, para se adequar aos ensinamentos de seus professores e dos pensadores de sua época, tentando rejeitar que tais culturas “inferiores” fossem agradáveis e crendo que uma vida “selvagem” sufocaria os instintos mais nobres do coração (2007, p. 56). Todavia, paulatinamente, o filósofo percebe que essa perspectiva é regida por dogmatismo e unilateralismo, que perpassam toda a cultura europeia. Dá-se conta que tal consideração almeja aniquilar a multiplicidade moral que a rodeia e que não se submete ao seu eurocentrismo, armação necessária para uma política de inversão de valores cujo paradigma a ser seguido é o da moral de rebanho, por sua vez, fundamental ao apaziguamento das pulsões intempestivas e criadoras. A propagação desses ideais pelos estabelecimentos de ensino significa para Nietzsche, já em 1872, “aspectos falhos e errâncias em relação à tendência sublime que originalmente presidiu sua fundação” (BA/EE Einleitung, KSA 1.645). Por conseguinte, a crítica de Nietzsche destaca o distanciamento educacional de um antigo caráter de formação cultural para se aliar aos ideais tecnicistas da modernidade, visando ao incansável acúmulo de dinheiro e à pretensa eudemonia do bom servilismo do sistema produtivista do Estado. Tais valores adornam um substrato ainda mais fundamental que Nietzsche, com distintas tintas e tônicas, irá expressar na extensão de toda a sua obra: “o que as ‘escolas superiores’ da Alemanha realmente alcançam é um brutal adestramento, a fim de, com a menor perda possível de tempo, tornar útil, utilizável para o Estado um grande número de homens jovens ” (GD/CI, O que falta aos alemães, 5, KSA 6.106).

A filosofia nietzschiana se desdobra, a todo tempo, em denunciar que as escolas e universidades da Alemanha moderna serviam, majoritariamente, para domesticar as forças humanas em prol dos valores administrados pelo Estado. Em Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, Nietzsche compreende as instituições educacionais de modo bastante amplo: “é o futuro destas instituições alemãs que nos deve reter, quer dizer, o futuro da escola primária alemã, da escola técnica alemã, do ginásio alemão, da universidade alemã” (BA/EE Vorrede, KSA 1.650). Posteriormente, em Crepúsculo dos ídolos, o filósofo se atém aos problemas específicos e gerais relacionados ao ginásio e ao sistema universitário (GD/CI, O que falta aos alemães, 5, KSA 6.106). Isso significa que todos os níveis da educação alemã estão comprometidos com os valores e a racionalidade burocrática medíocres de seu tempo.

Os objetivos da civilização gregária na modernidade são o de fundar, conduzir e reforçar as instituições de formação humana a se reduzirem à reduplicação convergente de uma mesma moral e finalização humana. Que se entenda por instituições, neste caso, a disposição geral do atravessamento das estratégias de modelização moral amplamente difundidas no seio de tudo que espelha a Civilisation em causa: família, igrejas, hospitais, exércitos, partidos políticos etc. A chave de compreensão das instituições estaria bem próxima dos termos de Marton: “a educação - familiar, cívica, política ou religiosa - apareceria como um processo para tornar o educando semelhante ao educador” (1998, p. 113). As instituições de ensino garantiriam, assim, que, “em toda nova criatura” (JGB/BM 194, KSA 5.115), se repetisse continuamente a domesticação que seus pais e professores foram submetidos, ou melhor dizendo, institucionalizados.

Considerando tal horizonte, este artigo investiga o fundo analítico da crítica nietzschiana à educação (Ersiehung) de seu tempo para mostrar a tensão necessária que a formação humana (Bildung) emerge no arcabouço de sua filosofia como cultivo de novos valores. Desde aí, pensam-se as consequências atinentes para o tipo de educador que Nietzsche supõe, fora dos circuitos disciplinadores da civilização decadente moderna. Para tanto, será preciso mostrar que outro nível de disciplina, ao mesmo tempo causa e efeito de uma experiência formativa singular e própria, há de ser deflagrada como potência criativa de e para outros valores existenciais.

A hipótese geral do texto é a de que se podem tomar as avaliações de Nietzsche acerca da educação como um jogo telescópico em um lance de duas apostas. Na primeira, desde o século XXI, inverteríamos as funções das lentes do telescópio para, ao vermos com certa distância o contexto das circunstâncias da fundamentação crítica do filósofo, distanciarmos de suas especificidades. Não obstante, nada obsta que seus conceitos sejam válidos como ferramentas de aproximação crítica de conjuntura atual. Quer dizer, quando invertemos o distanciamento telescópico, passamos a enxergar, com grandes proximidades e precisões, o quão o cenário da educação brasileira se expande à conveniência dos mesmos efeitos da crítica de Nietzsche. Nas considerações finais, pretendemos ressaltar tais aspectos, notadamente no âmbito político, social e econômico de educação que nos circunscreve como locus civilizatório.

Erziehung: entre filosofia legisladora e cultivo de novos valores

“Educação” e “escola” não se confundem, como também não são sinônimas de formação/cultivo [Bildung]. A Erziehung [educação] possui uma longa trajetória de análise nos escritos nietzschianos. A primeira aparição desse termo pode ser localizada nos fragmentos póstumos de 1869. Sócrates e Platão são recepcionados como tipos que lutam “contra a Bildung” (Nachlass/FP 3[84], KSA 7.82). O termo Bildung aparece, por sua vez, em complexos debates entre os pensadores modernos da Alemanha. Herbart já o enfatizava como processo global de uma formação especializada pela pedagogia. Mas em Nietzsche, Bildung distancia-se do caráter técnico, padronizado ou quantitativo que a educação pode ou não assumir nas instituições de formação humana. Nos séculos XVIII e XIX, de acordo com WeberWEBER, José Fernandes. “Arte, política e educação: sobre o conceito de Formação, Cultivo (Bildung)”. In: VII Congresso Nacional de Educação - EDUCERE, 2007, Curitiba. Anais do VII Congresso Nacional de Educação - EDUCERE. Curitiba: Champagnat, vol.1, 2007., os alemães já compreendiam que uma peça musical “ou uma peça literária (como Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe) são tão eficientes para apresentar os impasses ou ‘soluções’ dos problemas da formação, quanto um Tratado de Pedagogia” (2007, p. 1536).

Mas Bildung assume nesse amplo contexto um caráter muito mais vasto e contínuo do que toda educação institucionalizada, marcada por prazos e objetivos fundamentados pela vida social ordinária e laboral de um determinado lugar, com suas exigências de regramento temporal. Reside, nessa possibilidade, a afirmação de uma atitude política contrária à economia capitalista que exige uma educação apressada e tecnicista, além do constante produtivismo material e intelectual. Embora Nietzsche não se valesse, com ênfase cristalina, do termo “capitalismo” para deslindar tal atitude política, é possível enxergar em suas críticas aos “procedimentos mecanicistas”, com suas “razões” e “finalidades” urdidas na tapeçaria produtiva do contexto da consolidação capitalista do ordoliberalismo alemão do século XIX, as vísceras pulsantes do capitalismo. Em Para a crítica da alma alemã (Nachlass/FP 36[34], KSA 11.564), isso pode ser inferido. Não bastando, Nietzsche vislumbra na peste dos proprietários (VM/OS 304, KSA 2.503) a sórdida inclinação à demanda justificadora de todo nível planificador de justificativas em torno da busca pela prosperidade superficial, com “o inautêntico e histriônico de seus prazeres de vida”. Não seria de todo equivocado afirmar que a educação se reduzia, assim, na emulação idealizada dos liberais burgueses, com seus mesmos ídolos: “apartamentos, carros, roupas, vitrines, suas exigências da mesa e do paladar, seu [o do proprietário] ruidoso entusiasmo por música e ópera, e enfim suas mulheres, formadas e modeladas, porém de metal não nobre, douradas, mas sem o som do ouro, escolhidas como peças de ostentação, ofertando-se como peças de ostentação” (VM/OS 304, KSA 2.503).

É patente que reificação, instrumentalização, planificação cultural, ou se preferirem, a indústria cultural, obsolescência e, por extensão, frivolidades, modismos, mimeses da vulgaridade estão sob tal cenário. Enquanto a educação corrente transcorria como autovinculação necessária ao sentido dessa “mecânica” civilizatória, Nietzsche vislumbra na Bildung a indissolubilidade entre arte e política, filosofia e filologia, com o intuito de se vislumbrar na formação outra finalidade cujo esgotamento no imediatismo planificados do aqui e agora não é reconhecida, pois a formação é meio transmutacional para o vir a ser cujos valores ainda não ousam dizer o nome.

Seja como uma espécie de formação trágica (Nachlass/FP 5[105], KSA 7.121), seja como um método de conservação gregária (Nachlass/FP 9[139], KSA 12.414), a educação se diferencia conceitualmente da Bildung não apenas por seus espectros temáticos e metodológicos, porém, também pelo caráter variável e mutante, uma vez que se distancia do servilismo vigente e conformador e, ao invés disso, será inventivo porque os novos valores, em pleno vir a ser, não podem estar povoados por aquilo que se reconhece. Nietzsche não romantiza a Erziehung como um ideal para além dos interesses humanos; ao contrário, o filósofo sustenta, a todo o momento, como ela é cooptada, de vários modos, pelas forças seculares de seu tempo, sobretudo pelo Estado.

Por conseguinte, a educação depende, para além de qualquer coisa, do educador. Significa pensar na concepção ascética do educador como descontinuador das modelizações institucionalizadas de suas funções. Situa-se em tal direção a anotação de 1881, que perpassa o seu pensamento: “os primeiros educadores devem educar a si mesmos” (Nachlass/FP 11[145], KSA 9.497). Com outros sinais, Nietzsche persegue esta observação ao criticar o enquadramento por “forças culturais” na relação dos educadores com seus educandos como educação distorção: “Nessa absurda algazarra os pobres mestres e educadores ficaram primeiramente atordoados, depois calados e enfim embotados, tudo suportando e agora deixando que seus alunos tudo suportem. Eles mesmos não são educados: como poderiam educar?” (VM/OS 181, KSA 2.458). Ora, um educador submisso e dominado acriticamente pelos valores vigentes de seu tempo fará de seus alunos seres subservientes; vê-los-á também apenas como moldes que devem ser adequados às condições de sua sociedade.

Comentando Dühring, Nietzsche observa: “a criança é muito mais do que um mero objeto da educação” (Nachlass/FP 9[1], KSA 8.149). No entanto, as instituições de ensino modernas veem seus estudantes como moldes onde serão impressos os valores de seu tempo. Em outros termos, elas não educam para uma vida filosófica, mas, sim, para uma vida que não exige reflexãoARALDI, Clademir Luíz. “O simbolismo das criações apolíneas e dionisíacas. Uma análise crítica da estética do jovem Nietzsche”. In: Reflexão, 34 (96), jul./dez., 2009. e que aceita facilmente o que é ordenado. Assim, quando a filosofia submete-se, por sua vez, ao papel de erudição - “antes de tudo, como conhecimento da história da filosofia” (UB, SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.146) -, ela está não apenas fadada ao fracasso como, sobretudo, está pronta para fazer com que seus alunos se distanciem dela. De modo bastante atual, Nietzsche expõe isso em “Schopenhauer como educador”:

um professor de filosofia, se se ocupa com trabalho dessa espécie [história da filosofia], tem de aceitar que se diga dele, no melhor dos casos: é um competente filólogo, antiquário, conhecedor de línguas, historiador - mas nunca: é um filósofo. E isso apenas no melhor dos casos como foi observado; pois, diante da maioria dos trabalhos de erudição feitos por filósofos universitários, um filólogo tem o sentimento de que são mal feitos, sem rigor científico e o mais das vezes detestavelmente fastidiosos. (UB, SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.145)

Durante toda sua obra, Nietzsche não diferencia teoria filosófica e vida. Todas as grandes filosofias antigas foram formas de existência baseadas em específicos preceitos morais, porém, constituídos por verdadeiras experiências ascéticas. Trata-se da moral no âmbito da experiência modificadora de si mesma, desonerada de leis a priori mas atravessada por uma série de investimento sobre si mesmo como exercícios atentos às potências da transformação que a constituição do sujeito exige para si mesmo. Foucault (2004FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 394) investigou em profundidade tal concepção. Nela, a ascese “será o conjunto, a sucessão regrada, calculada [no sentido de intencional] dos procedimentos que são aptos para que o indivíduo possa formar, fixar definitivamente, reativar periodicamente e reforçar quando necessário a paraskeué”.

Ocorre que paraskeué é a preparação contra as inseguranças e as ameaças do mundo. Mas, na miríade de acepções do termo, paraskeué também se refere à armadura, como aquilo que reveste o indivíduo de proteção, ou seja, supõe o investimento sobre si mesmo como proteção contra os ataques da doxa, das mentiras, das imperfeições do espírito etc. Foi Sêneca que traduziu para a vertente latina paraskeué por instructio. Instruir-se, na virada da filosofia Antiga dos séculos I-II, demandava uma ascese com formação de si mesmo, cujo preparo não prescindia dos lógoi mas tampouco de um “conjunto de práticas necessárias e suficientes para permitir-nos ser mais fortes do que tudo que posso acontecer ao longo de nossa existência”, complementa (Foucault, 2004FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 388). Quando Nietzsche menciona, portanto, que “a plebe... carece de toda educação; é preciso colocar armaduras e se disfarçar para ainda saber algo de si” (Inverno 1884-1885, 31(8)), salta aos olhos a dimensão atualizada da Bildung como paraskeué e o investimento ascético da formação.

Quando a cisão moderna entre teoria e prática se forma na filosofia - sobretudo, a universitária -, Nietzsche percebe uma atuação política sobre ela, mormente impossibilitando a formação desde a visada da transformação de si mesmo. A modernidade lhe brinda com a função, isto é, com a utilidade de esclarecer seus alunos e torná-los críticos instrumentalizados. Nesse caso, Kant (2011KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora Unimep, 2011. ) condensa o sentido das exigências dessa formação em Über Pädagogik. Disciplina e instrução são as abas da pinça de educar, ou seja, para se fazer acostumar o homem a submeter-se aos preceitos da razão, claro está, com todos os arranjos universalizantes e regras estabelecidas desde as funções de suas críticas, donde inclusive os filósofos estariam enredados.

Entretanto, perante os filósofos do futuro “não lhes parece uma afronta pequena à filosofia que se decrete, como hoje se faz com gosto: ‘A filosofia mesma é crítica e ciência crítica - e nada mais!’” (JGB/BM 210, KSA 5.142), porque o crítico é apenas um observador que não se põe a tarefa de criar valores para si mesmo e o experimentalismo necessário para se apropriar de sua vida. A filosofia que assume apenas a pretensão de ser crítica não se percebe como legisladora, isto é, como criadora de valores, além de se sujeitar às visões político-econômicas do utilitarismo e do positivismo que pregam, antes de tudo, a utilidade, o negócio e o bem-estar dos “proprietários”.

Essa valoração da filosofia pode gozar de aplauso de todos os positivistas da França e da Alemanha (- e é possível que agradasse até ao gosto e ao coração de Kant: recordem-se os títulos de suas obras principais -): nossos novos filósofos dirão, porém: os críticos são instrumentos dos filósofos, e por isso, por serem instrumentos, estão longe de ser filósofos! (JGB/BM 210, KSA 5.142).

Portanto, quando a filosofia se isenta de legislar, ao mesmo tempo, deixa de criar, semelhante à Erziehung instituída, valores cujas virtualidades possam trazer promessa de uma cultura superior. São os interesses políticos alheios que a tornam subserviente - e aquele professor de filosofia meramente erudito e historiador se torna apenas uma ferramenta das forças dominantes, longe de ensaiar o novo. Tal professor, cientista, erudito, “homem objetivo”, como diz Nietzsche, “é um instrumento, um precioso, facilmente vulnerável e embaçável instrumento de mediação e jogo de espelhos [...]; mas ele não é uma meta, não é uma conclusão e elevação, um homem complementar em que se justifique a existência restante, um término [...]” (JGB/BM 207, KSA 5.135). Isso aniquila a verdadeira carga explosiva e ameaçadora da filosofia, pois, não ensinando a comandar e a inventar suas próprias regras de modo semelhante às brincadeiras das crianças, apenas reproduz uma série de sistemas e argumentos que já foram experimentados (aprovados ou reprovados); em suma, apenas conserva sua sociedade. Daí as constantes marteladas de Nietzsche nesse mesmo ponto: “Insisto em que finalmente se deixe de confundir com filósofos os trabalhadores filosóficos e, sobretudo, os homens de ciência - em que precisamente aqui se dê ‘a cada um o seu’, e não demasiado a uns e muito pouco a outros” (JGB/BM 211, KSA 5.144-145).

A filosofia exige, segundo Nietzsche, a tarefa de legislar. Parâmetro para uma formação contrafeita à regularidade da civilização escolarizada, converge para a formação no sentido de criar valores individuais e originais - o que diverge de todo ensinamento de uma sociedade gregária que exige, por sua vez, uniformidade, mediocridade e vontade de potência sem resistência, além do culto às formas de vida permitidas. “Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem ‘assim deve ser!’, eles determinam o para onde? e o para quê? do ser humano, e nisso têm a seu dispor o trabalho prévio de todos os trabalhadores filosóficos [...]” (JGB/BM 211, KSA 5.144-145). Apesar de essa passagem parecer autoritária, é paradoxalmente contra o autoritarismo da intrusão moderna na contemporaneidade que ela se posiciona. A valoração em algo diverso ou não disso já é a determinação de alguma vontade de potência que inventa, como fez Platão, toda uma emaranhada justificação teórica para disfarçar suas impositivas ordens. Não sem assombro, Nietzsche é conscientemente paradoxal: semelhante a Platão, ele considera politicamente o filósofo como um governante, alguém capaz de cuidar de si mesmo; de conduzir a si mesmo e para o qual se vive e morre1 1 Resguardadas as proporções, é preciso lembrar, desde o Banquete, que Alcibíades é recriminado por Sócrates por não saber ainda “governar a si mesmo” [epimeloû heatoû], justamente porque também não conhecia a si mesmo [gnôthi seautón]. No entanto, Alcibíades queria aprender da filosofia socrática para, em sua pretensão de riqueza e herança, poder governar os outros. . Por conseguinte, a filosofia assume o carácter de legisladora, abrindo a possibilidade de criação de novas regras não sobre o outro, mas sobre si própria e àquele a tomar sobre si mesmo a potência de sua formação.

Por um educador indisciplinado

A partir dessa problemática, a filosofia nietzschiana percebe que os professores são afetados por essa longa tradição, curvando-se perante diversos ideais que evitam formá-los como criadores de si. A exigência de educadores que, antes de tudo, se eduquem, torna-se mais nítida a partir de uma constatação bifurcada. “Nos grandes Estados a instrução pública será sempre, no melhor dos casos, medíocre, pelo mesmo motivo porque nas grandes cozinhas cozinha-se mediocremente” (MA/HH 467, KSA 2.300). A tônica deve-se concentrar no intensificador “melhor dos casos”. A planificação da racionalidade burocrática da educação é vista por Nietzsche como efeito inescapável da massificação tecnicista de uma formação de massa, logo, à serviço do Estado e do seu aparelhamento capitalista.

Sendo assim, na outra direção e por consequência, Nietzsche enxerga que “a escola não tem a tarefa mais importante do que ensinar o pensamento rigoroso, o julgamento prudente, o raciocínio coerente” (MA/HH 265, KSA 2.220). Não se trata de abolir a escola, mas de desmassificá-la, no sentido de permitir que a hierarquia dos valores faça sentido contra o clientelismo medíocre das equivalências generalizadas da educação. Para tanto, os educadores devem ser educados. “Educar [o] educador! Mas os primeiros devem-se educar a si mesmos! E para esses eu escrevo” (Nachlass/FP 5[25], KSA 2.46-47). Essa educação visa a formação de seres soberanos de si mesmos, isto é, capazes de afirmar e de assumir o governo de si mesmos, que não se submetem aos ordenamentos da pequena política. Como Nietzsche dirá quase uma década depois desse fragmento, enquanto tema de Zaratustra, trata-se da “organização dos homens superiores, educação dos futuros governantes” (Nachlass/FP 27[23], KSA 11.251).

A Erziehung nietzschiana não significa, aqui, educar as elites políticas e econômicas da modernidade. Estas estão ocupadas com a labilidade histriônica dos prazeres de acomodação sistêmica. Necessitam, portanto, de sacerdotes e de professores, praticamente sinônimos, que inculquem nas gerações “a salvação da alma, o serviço do Estado, a promoção da ciência, ou reputação e propriedades como meio de prestar serviço à humanidade, enquanto seria algo desprezível ou indiferente a necessidade do indivíduo, seus grandes e pequenos requisitos nas vinte e quatro horas do dia” (WS/AS, “A fragilidade terrena e sua causa principal”, 6, KSA 2.542).

Ora, é justamente contra essa tradicional política que Nietzsche se distancia a fim de que os futuros governantes não sejam hipócritas, não atuem eliminando a multiplicidade e não imponham sua moral fanaticamente. O “ensinar a mandar” não é a reprodução dos mesmos “poderes” da Europa baseados em dinheiro e violência. “Por meio da educação”, nos diz, inclusive, em Humano, demasiado humano, “deve-se ensinar as crianças de famílias modestas a mandar, e as outras crianças a obedecer” (MA/HH 395, KSA 2.268). A grande formação volta-se, nesse caso, para a finalidade aprendente de depender-se de si mesmo. A potência fisiológica aqui é convocada para que se ensine o mando na forma de cuidar de si mesmo, justamente para se ultrapassar a submissão.

Os educadores devem aprender, desse modo, com os maiores legisladores da história. “Sólon, Licurgo, Moisés, o próprio Platão, apesar de todas as objeções que Nietzsche lhe planteia, se apresentam a seus olhos como grandes educadores” (FERNÁNDEZ, 1999NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe.G. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 1999. 15 Bd., p. 100). Eles são tipos que aprenderam, como artistas e crianças, a criar suas próprias regras, tomando-se a si mesmos como o ponto nec plus ultra dos valores e das perspectivas de condução de vida. Por isso mesmo, tornaram-se filósofos e, por conseguinte, são vistos como representações de coragem contrárias aos ordenamentos dos pequenos governantes de seu tempo. O grande educador necessita, por isso, estar além de quaisquer moralidades que o cercam, ou seja, “além de bem e mal: para a educação das naturezas-governantes, que têm de cumprir os mais altos deveres” (Nachlass/FP 27[56], KSA 11.283). Supondo que o filósofo seja um grande educador, ele pode alcançar alturas solitárias (Nachlass/FP 37[7], KSA 11.581) e, sendo hiperbóreo, pode afirmar, com Nietzsche, quais as condições para ser compreendido:

Nas coisas do espírito é preciso ser honesto até a dureza, para apenas suportar a minha seriedade, a minha paixão. É preciso estar habituado a viver nos montes - a ver abaixo de si a deplorável tagarelice atual da política e do egoísmo de nações. É preciso haver se tornado indiferente, é preciso jamais perguntar se a verdade é útil, se ela vem a ser uma fatalidade para alguém... Uma predileção, própria da força, por perguntas para as quais ninguém hoje tem a coragem; a coragem para o proibido; a predestinação ao labirinto. Uma experiência de sete solidões. Novos ouvidos para nova música. Novos olhos para o mais distante. Uma nova consciência para verdades que até agora permaneceram mudas. (AC/AC, “Prólogo”, KSA 6.167).

Note-se a riqueza de perspectivismo que se coloca para o grande educador sob o escrutínio do parâmetro de seus próprios valores. “Ver abaixo” só é possível àquele que sobre si nenhuma representação existe como valor a ser alcançado. Ao contrário, ele próprio se torna o imã para qual são atraídos, devido à grandeza de sua força, os destinos devotados a aprender a também serem grandes. Nessas proporções, Zaratustra seria o grande professor-filósofo: “E é isto para mim, o conhecimento: tudo o que é profundo deve subir - à minha altura” (Za/ZA, “Do imaculado conhecimento”, KSA 6.159).

Por conseguinte, a educação de si significa, sobretudo, obediência ao rigor do que se aprendeu como distinção à educação da mediocridade funcional. Mas essa perspectiva é propositalmente ambígua e provocativa. Para explicá-la, é necessário compreender a fala de Zaratustra sobre sua concepção de guerreiros: “que vossa nobreza seja obediência! Que até o vosso mandar seja um obedecer!” (Za/ZA, “Da guerra e dos guerreiros”, KSA 6.59). Nietzsche embaralha os horizontes. A obediência é comumente entendida como uma sujeição perante ordens alheias. Mas o filósofo problematiza esse argumento com a interpretação de que obedecer aos outros é, em muitos casos, resultado de uma desobediência primordial a um conjunto específico de forças de sua própria vontade de potência. O indivíduo obediente não possui energia para consumar a tendência comum a toda força humana: dominar e valorar. Incapaz fisiologicamente de enfrentar aqueles que o comandam, submete-se - mesmo que isso seja paradoxalmente uma tática de conservação, ou mesmo de “superação” de seu organismo. A questão é que, novamente, o perspectivismo nietzschiano demonstra como um único ponto pode ter diversas interpretações e valorações. A obediência pode ser submissão ou autonomia - conforme seu contexto e a figura a quem se obedece: a si próprio ou a outro.

Por isso, para se educar, os educadores necessitam obedecer, como todo filósofo, a si mesmos antes de qualquer coisa, desde que, consoante à hierarquia dos valores, delineie-se a superação da atração dos confortos da modelização dor poderes e dos conhecimentos enfeixados pelas finalidades do establishment. A carga pejorativa que foi dada, pela modernidade, à obediência em contraposição à exaltação da “liberdade” faz com que a interpretação nietzschiana seja vista também de modo negativo, como elitismo e aristocratismo. Hipocritamente, as estruturas e valorações das intrusões modernas, que exaltam a “liberdade”, incitam-na, por meio de domesticações e sucessivos amansamentos, para que se conduzam os corpos a uma obediência silenciosa, sutil e funcional. A moral das sociedades que se vangloriam em proteger a “liberdade” teme seres humanos livres, permitindo-os apenas de modo controlado, como era peculiar do ordoliberalismo dos tempos de Nietzsche. Esta própria moral ensina a odiar “a liberdade excessiva, e que implanta a necessidade de horizontes limitados, de tarefas mais imediatas - que ensina o estreitamento das perspectivas, e em determinado sentido também a estupidez, como condição de vida e crescimento” (JGB/BM 188, KSA 5.108). Nesse sentido, o indisciplinado pode expressar, antes de qualquer coisa, um respeito às suas próprias convicções e perspectivas.

Disciplina e educação gregárias

“O que é realmente que eu faço? E o que quero eu precisamente com isso? - eis a questão da verdade, que em nosso atual gênero de educação não é ensinada e, portanto, não é colocada” (M/A, “As mais pessoais questões da verdade”, 197, KSA 3.171-172). Não é sem disciplina que se impõe o fazer como medida daquilo que se é. Mas a disciplina imposta ao vulgo é justamente conveniente ao afastamento das possibilidades de se aprender a ser o que se é fazendo o que se faz. Desse modo, as forças estatais e econômicas e, consequentemente, as instituições educacionais desarticulam o engajamento e a autorresponsabilidade da filosofia e da formação, impondo outras formas de disciplina, como horários e lugares onde ela deve ser aplicada2 2 Nietzsche critica as práticas disciplinares da escola que, apesar de parecerem irrelevantes, formam seus alunos como o tipo de seres humanos desejado. Como o filósofo afirma em relação aos assuntos fundamentais, os pequenos gestos que a modernidade desconsidera são extremamente importantes para a formação ou a domesticação. “O sensato nisso é que os gastos defensivos, por menores que sejam, tornando-se hábito e regra levam a um empobrecimento extraordinário e completamente supérfluo. Nossos grandes gastos são os pequenos e muito frequentes” (EH/EH, Por que sou tão inteligente, 8, KSA 6.292-293). Nesse sentido, todas as atitudes aparentemente sem valor que cercam as instituições de ensino são altamente simbólicas e domesticadoras. E, aqui, podemos registrar a discordância em relação à afirmação de Türcke: “na opinião de Nietzsche, ela não se encontra apenas em César e Napoleão, mas em todos os assalariados que levantam de manhã, todas as pessoas que tomam café e levam a xícara à boca, só que, nesses casos, se manifesta de forma tão banal que as pessoas não se dão conta, e também não vale a pena falar disso” (2001, p. 128-129). Ao contrário, tais coisas não são banais para Nietzsche e valem muito a pena falar disso. Os horários contrários à tendência dos corpos forçando-os a se adequarem a um tempo estimulado representam bem isso, como acordar cedo para ir à escola estudar, ler e escrever. Conforme a afirmação de Nietzsche em relação à leitura: “Cedo, ao romper do dia, no frescor, na alvorada de sua força ler um livro - a isso chamo de vicioso! - -” (EH/EH, Por que sou tão inteligente, 8, KSA 6.292-293). Desse mesmo modo, um pedido para ir ao banheiro requer a autorização para exercer uma função fisiológica que, naturalmente, não pode ser controlada, no limite, pela consciência. Mas tais limitações servem exatamente para isso: tentar aumentar o poder da consciência individual sobre seu corpo a fim de controlá-lo conforme as permissões de sua sociedade. , temas e problemas em currículos pré-determinados, objetivos específicos para a vida cívica e laboral. Desnecessário dizer que o avanço da modernidade apenas recrudesceu tal dimensão. Vattimo (2002VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes , 2002.) evidencia os lugares privilegiados do pensamento da fruição e de contaminação como organização total pela qual o imediatismo das verdades incensadas, conforme as crenças massificadas, horizontalizam a superfluidade das convicções e verdades.

Para enfrentar os filósofos profissionais e professores em geral tais forças não utilizam o confronto aberto; a estratégia é enquadrá-los em sua lógica por meio da impressão de poder e utilidade que lhes “concede”, a fim de manuseá-los conforme seus interesses. “Acontece, com efeito,” de acordo com Nietzsche, “que o Estado tem medo da filosofia em geral, e precisamente, se este é o caso, tentará atrair para si o maior número de filósofos que lhe deem a aparência de ter a filosofia do seu lado - porque tem do seu lado esses homens, que levam o nome dela e no entanto estão tão longe de infundir medo” (UB, SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.144).

Desse modo, a sociedade coopta os educadores e, mais especificamente, os filósofos: eles só têm valor dentro de tais estabelecimentos; do contrário, quebram a lógica político-econômica da modernidade e passam a ser vistos como perigosos, vagabundos, inúteis e, na contemporaneidade, improdutivos e supérfluos. Em sociedades gregárias, é permitida à filosofia apenas uma existência parcial e domesticada. Quando ela aumenta seu poder para além de tais círculos, é comum ver os governantes tentarem afastá-la das instituições de ensino ou cooptá-la ainda mais.

Mas, se aparecer um homem que efetivamente faça menção de ir com a faca da verdade ao corpo de tudo, até mesmo do Estado, então o Estado, porque antes de tudo afirma sua própria existência, estará no direito de excluir de si tal homem e tratá-lo como inimigo seu: assim como exclui e trata como inimiga uma religião que se coloca acima dele e quer ser seu juiz. Se alguém suporta, pois, ser filósofo em função do Estado, tem também de suportar ser considerado por ele como se tivesse renunciado a perseguir a verdade em todos os seus escaninhos. Pelo menos enquanto estiver favorecido e empregado, ele tem de reconhecer ainda, acima da verdade, algo superior, o Estado. E não meramente o Estado, mas ao mesmo tempo tudo o que o Estado exige para seu bem: por exemplo, uma forma determinada de religião, a ordem social, a organização militar - em todas estas coisas está inscrito um noli me tangere. (UB, SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.144 -145)

O que o Estado exige o faz para o bem de “todos”. Com efeito, as escolas e universidades são, dessa forma, o canal por onde o tipo de educação permitida pelo Estado é disseminado. Aqui tudo precisa se convergir para os mesmos feixes finalistas da disciplina bem-vista, como afirma Nietzsche em 1882,

O matrimônio como forma permitida de satisfação sexual.

A guerra como forma permitida de assassínio dos vizinhos.

A escola como forma permitida de educação.

[A] Justiça como forma permitida de vingança.

[A] Religião como forma permitida de impulso ao conhecimento. (Nachlass/FP 1[34], KSA 10.18)

No conjunto, trata-se de permissões a representar a moral institucionalizada, com seus valores de adesão. Educar passa a ser a ação ativa para reduzir às potências à passividade concertada. A ênfase pode ser alcançada no reinado do ensino para o entendimento e não para a formação do homem de ação: “O futuro de nossas instituições educacionais. R. Wagner entendido direito. Schopenhauer entendido direito” (Nachlass/FP 25[276], KSA 11.87). Com isso, as sociedades gregárias, reduplicadas pela intrusão da modernidade, continuam prolongando sua dominação de modo violento, ao mesmo tempo que se julgam educadas, críticas, intelectualmente superiores e construtoras de uma boa sociedade. Contudo, segundo Nietzsche, “a sociedade mata, tortura, priva da liberdade, dos bens: pratica [o] poder por meio da limitação da educação; por meio das escolas” (Nachlass/FP 7[240], KSA 10.317). Nesse caso, sua estratégia é a de se apresentar como defensora do que lhe pode ameaçar para lhe impor “acordos” com a aparência de benefício mútuo. “O Estado forma assim uma espécie de contrafilosofia pela que aspira ser legitimado, aparentando ser um mecenas da cultura” (FERNÁNDEZ, 1999FERNÁNDEZ, Arsenio G. “Política, educación y filosofía en F. Nietzsche”. In: Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), n. 104, abril-junio 1999., p. 114). Nessa troca, os “filósofos” e os educadores são acolhidos como trabalhadores cuja função é, entre outras, disciplinar seus alunos a outras vontades e criar argumentos que legitimem os poderes estatais e econômicos. Também por esse motivo, Nietzsche critica Kant e Hegel inúmeras vezes, vendo-os como funcionários do Estado e não como filósofos propriamente. De acordo com Fernández, ele compreende “a filosofia profundamente implicada no destino político e educativo do mundo moderno. A instrumentalização da educação e da cultura em geral por parte do Poder tinha que afetar assim mesmo a filosofia, que acaba deixando-se domesticar” (1999, p. 114).

Os ganhos do Estado são duplos: por um lado, ele condiciona a filosofia e os educadores; por outro, condiciona os estudantes a se afastarem da educação filosófica, logo, tomar distanciamento dos parâmetros normativos da Cultur e, não sem exagero pode-se dizer: de seus condicionamentos. Um de seus métodos consiste em enfadá-los, a fim de que não adquiram interesses por ela e a considerem como algo inútil. Tornam-se, assim, bloqueados para as possibilidades do governo de si mesmos. Desde então, a autorresponsabilidade se esvai como inteireza da realização do seu Selbst, sem a qual não há espírito livre. Em um fragmento da primavera de 1884 (Nachlass/FP 25[73], KSA 11.27), Nietzsche, propositalmente, delineava a necessidade de uma espécie de educador “fora do mundo habitual”, e devotado à “vida rigorosa” e seus “achados da ascese para o autocontrole”. Em questão: “proteção contra a banalidade dos escravos e o farisaísmo”. A farsesca utilidade da filosofia se reduzia ao comprometimento igualmente bufão do projeto educacional das massas.

Com efeito, os objetivos das instituições de ensino afirmam incessantemente a moral moderna para que os estudantes reponham a mão-de-obra qualificada, sempre conforme o engendramento de adequação da ideologia de sua sociedade, e que o seja o mais rápido possível. “E em toda parte vigora uma pressa indecente, como se algo fosse perdido se o jovem de 23 anos ainda não estivesse ‘pronto’, ainda não tivesse resposta para ‘pergunta-mor’: qual profissão?” (GD/CI, “O que falta aos alemães”, 5, KSA 6.108). A precisão de Nietzsche é tanta que parece visualizar os estudantes de hoje em suas angústias e urgências para se decidir, perante as pressões sociais, sempre coextensivas à sanha produtivista, qual graduação farão, guiados, na maioria das vezes, não pela formação e pelo conhecimento, mas pela quantidade de dinheiro e poder que poderão adquirir por meio da instrumentalização utilitarista do conhecimento.

De certo modo, nesse estágio, as instituições de ensino já cumpriram a sua função ao “formar” um cidadão que reproduzirá a moral vigente de modo maquinal. Todos os ciclos de tal educação, sobretudo na do ensino superior, apresentam-se como uma massificação e um refinamento dos processos de domesticação que afastam a Bildung e solidificam o dever de uma Erziehung conveniente. “‘Qual a tarefa de todo ensino superior?’”, se pergunta Nietzsche, “- Fazer do homem uma máquina. - ‘Qual o meio para isso?’ - Ele tem que aprender a enfadar-se. - ‘Como se consegue isso?’ - Mediante o conceito de dever” (GD/CI, “Incursões de um extemporâneo”, 29, KSA 6.129-131).

Considerações Finais: Aspirações Para Outras Educações?

Para Nietzsche, o tipo de educação almejado pelas forças gregárias não possibilita o cuidado de si de seus alunos, pois não se preocupa com os assuntos fundamentais. Como vimos neste artigo, o cuidado de si está eivado por um preparo do governo de si mesmo. Situar que “a mais comum deficiência de nosso tipo de formação e educação: ninguém aprende, ninguém aspira, ninguém ensina - a suportar a solidão” (M/A, “sobre a educação”, 443, KSA 3.270), implica com o diagnóstico pernicioso da disciplina gregária. A solidão não apenas sintetiza a força da experiência da paraskeué como também culmina a ascese da grande formação como resistência ao alinhavar das acomodações gregárias. A solidão é o vis-à-vis da tentação - Cristo, Descartes, Zaratustra - como substância de enfrentamento da questão-limite da condição humana, quer dizer, suas próprias finitudes.

Ocorre que onde há tentação, há o tentador. Klossowski (2000KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche e o círculo vicioso. Tradução de Hortencia Lencastre. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000. , pp. 148-149) destaca que o termo Versucher emerge nos textos de Nietzsche com duplo sentido: experimentador e tentador. “Todo tentador é, ao mesmo tempo, aquele que tenta o outro e que experimenta (tenta) em si mesmo e no outro alguma coisa para criar aquilo que ainda não existe: um conjunto de forças capazes de agir e de modificar aquilo que existe”. Mas a intrusão moderna, com sua instrução planificada em escalas industriais, não apenas tornou-se futilmente ruidosa, como fez da experiência do tempo consigo mesmo, da reflexão lenta e profunda, do ater-se ao sabor raro dos saberes não negociáveis, a anátema a ser evitada em detrimento dos benefícios urgentes da formação disposta de modo ubíquo por enquadramentos a priori.

Nesse nível, na educação brasileira contemporânea, desde a promulgação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2018), toda formação é condicionada a “competências” e “habilidades” cujos desenhos foram ensejados pelos grandes organismos econômicos globais. Não é sem sentido que o ensino de filosofia passou, inclusive, a ser dissolvido do horizonte da formação no Ensino Médio. A mediocridade presumida pelo telescópio de Nietzsche se aproxima em tempos presentes com gigantismo mais grasso, para além daquele suposto na educação filisteia, ou seja, meramente funcional e burocrática de seus tempos. Pior do que isto, o ensino de filosofia nem se aproxima mais da educação formal minimamente rigorosa com os passos da história da filosofia: ela se reduziu a um projeto de vida. É a senha neoliberal atravessando de ponta a ponta a modelização dos sujeitos para colmatá-los. De modo radical, a educação que se delineia em tempos presentes, funcional e intencionalmente, é para permitir que seus sujeitos se adaptem, o mais rápido possível, à precarização da existência.

Nesse sentido, as instituições de ensino enfraquecem toda e qualquer vitalidade superior, consumindo suas potências: trabalhos, lições, provas, longas jornadas são estratégias para uniformizar suas crianças e seus jovens o quanto antes. De acordo com Nietzsche, “nossas escolas ‘superiores’ são todas direcionadas para a mais ambígua mediocridade, com seus professores, planos de ensino, metas de ensino” (GD/CI, O que falta aos alemães, 5, KSA 6.107). No limite, o que a escola inibe é a condição de criação dos gênios, indivíduos extraordinários cujo pensamento e cuja ação possam extrapolar o instinto gregário de conservação. Amontoados em salas, atentam-se a conteúdos homotópicos, como se suas vidas não prescindissem de singularidade. Certamente se aprimoram as estratégias que podem ser assim tomadas em suma: “Educação: um sistema de meios para arruinar as exceções em favor da regra” (Nachlass/FP 16[6], KSA 13.484). A regra é a mediocridade - o instinto de rebanho que se esforça para conservar sua sociedade. As instituições de ensino trabalham, dessa forma, para educar cada criança, originais e corajosas, em um “homem bom”. Mas o “homem bom é, em todos os níveis de civilização, inofensivo e útil ao mesmo tempo” (Nachlass/FP 9[139], KSA 12.414), ou seja, aquele ser domesticado, que insinua alguma reclamação apenas quando seu conformismo e sua segurança são ameaçados.

Nietzsche não é contrário à educação em geral, mas a esse tipo específico que desdenha os assuntos fundamentais para fazer, de seus alunos, seres submissos e convenientemente moldados à consorte serventia. A educação é para Nietzsche um dos problemas fundamentais da modernidade. Sua concepção radicalmente crítica a ela presume a modificação das formas plásticas pelas quais os valores são instituídos na civilização como se naturais o fossem. Durante toda sua obra, o filósofo demonstrou sua extemporaneidade quanto a isso, tanto que, mais de uma década depois de escrever Schopenhauer como educador e se referindo a tal escrito, ele afirma: “eu desejava fazer algo bem diferente de psicologia - um problema de educação sem equivalente, um novo conceito de cultivo de si, defesa de si até a dureza, um caminho para a grandeza e para tarefas histórico-universais exigia sua primeira expressão” (EH/EH, “As Extemporâneas”, 3, KSA 6.319). A filosofia nietzschiana diagnostica, assim, uma educação que torna os seres humanos inofensivos, acorrentados e utilizáveis pelo Estado, mas propõe também demonstrar que “formação é o fim - e não ‘o Reich’ -, que para esse fim é necessário o educador [...]” (GD/CI, O que falta aos alemães, 5, KSA 6.107). E, sobretudo, o educador indisciplinado à moral de seu tempo, porém, disciplinada no cuidado e no governo de si mesmo, como Versucher de outras e para outras educações.

***

Dedicamos este texto à memória de Otávio Rangel de Souza que teve a vida ceifada na pandemia. Otávio fez parte da primeira turma de Filosofia da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. Estudioso promissor de Nietzsche, foi um dos responsáveis pela criação da Feira do Livro da EFLCH, em que cada editora participante doava exemplares para a biblioteca da EFCLCH/UNINESP.

Referências

  • ARALDI, Clademir Luíz. “O simbolismo das criações apolíneas e dionisíacas. Uma análise crítica da estética do jovem Nietzsche”. In: Reflexão, 34 (96), jul./dez., 2009.
  • BRITTO, Fabiano de Lemos. “Nietzsche, Bildung e a tradição magisterial da filologia alemã”. In: Analytica, vol. 12, n. 1, 2008.
  • FERNÁNDEZ, Arsenio G. “Política, educación y filosofía en F. Nietzsche”. In: Revista de Estudios Políticos (Nueva Época), n. 104, abril-junio 1999.
  • FIGL, Johann. Nietzsche und die Religionen: Transkulturelle Perspektiven seines Bildungs- und Denkweges. Berlin/Nova York: Walter de Gruyter, 2007.
  • FINK, Eugen. La filosofía de Nietzsche Tradução de Andrés Sanches Pascual. Paris: Alianza Editorial, 1984.
  • FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia Tradução de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora Unimep, 2011.
  • KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche e o círculo vicioso Tradução de Hortencia Lencastre. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000.
  • LANGELLOTTI, Osvaldo. “Sobre o futuro de nossos estabelecimentos educacionais”. Tradução de Alberto Marcos Onate. Cadernos Nietzsche, n° 11, 2001, p. 121-126.
  • MANN, Heirich. Pensamento vivo de Nietzsche Tradução de Sérgio Millet. São Paulo: Livraria Martins, 1940.
  • MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
  • MARTON, Scarlett. “O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético?”. In: MARTON, Scarlett. Extravagâncias: ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São Paulo: Editora Barcarolla, 2009.
  • MARTON, Scarlett. Nietzsche: filósofo da suspeita. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; São Paulo: Casa do Saber, 2010.
  • NIETZSCHE, F. Sämtliche Werke. Kritische StudienausgabeG. Colli und M. Montinari (Hg). Berlin: Walter de Gruyter, 1999. 15 Bd.
  • TÜRCKE, Christoph. O louco: Nietzsche e a mania da razão. Trad. de Antônio C. P. de Lima. São Paulo: Vozes, 1993.
  • TÜRCKE, Christoph. “A vida é bela: o amor fati de Nietzsche no cinema”. In: Revista Impulso, nº 28, 2001.
  • WEBER, José Fernandes. “Arte, política e educação: sobre o conceito de Formação, Cultivo (Bildung)”. In: VII Congresso Nacional de Educação - EDUCERE, 2007, Curitiba. Anais do VII Congresso Nacional de Educação - EDUCERE. Curitiba: Champagnat, vol.1, 2007.
  • WOTLING, Patrick. Nietzsche et le problème de la civilisation Paris: PUF, 1995.
  • VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes , 2002.
  • 1
    Resguardadas as proporções, é preciso lembrar, desde o Banquete, que Alcibíades é recriminado por Sócrates por não saber ainda “governar a si mesmo” [epimeloû heatoû], justamente porque também não conhecia a si mesmo [gnôthi seautón]. No entanto, Alcibíades queria aprender da filosofia socrática para, em sua pretensão de riqueza e herança, poder governar os outros.
  • 2
    Nietzsche critica as práticas disciplinares da escola que, apesar de parecerem irrelevantes, formam seus alunos como o tipo de seres humanos desejado. Como o filósofo afirma em relação aos assuntos fundamentais, os pequenos gestos que a modernidade desconsidera são extremamente importantes para a formação ou a domesticação. “O sensato nisso é que os gastos defensivos, por menores que sejam, tornando-se hábito e regra levam a um empobrecimento extraordinário e completamente supérfluo. Nossos grandes gastos são os pequenos e muito frequentes” (EH/EH, Por que sou tão inteligente, 8, KSA 6.292-293). Nesse sentido, todas as atitudes aparentemente sem valor que cercam as instituições de ensino são altamente simbólicas e domesticadoras. E, aqui, podemos registrar a discordância em relação à afirmação de TürckeTÜRCKE, Christoph. “A vida é bela: o amor fati de Nietzsche no cinema”. In: Revista Impulso, nº 28, 2001.: “na opinião de Nietzsche, ela não se encontra apenas em César e Napoleão, mas em todos os assalariados que levantam de manhã, todas as pessoas que tomam café e levam a xícara à boca, só que, nesses casos, se manifesta de forma tão banal que as pessoas não se dão conta, e também não vale a pena falar disso” (2001, p. 128-129). Ao contrário, tais coisas não são banais para Nietzsche e valem muito a pena falar disso. Os horários contrários à tendência dos corpos forçando-os a se adequarem a um tempo estimulado representam bem isso, como acordar cedo para ir à escola estudar, ler e escrever. Conforme a afirmação de Nietzsche em relação à leitura: “Cedo, ao romper do dia, no frescor, na alvorada de sua força ler um livro - a isso chamo de vicioso! - -” (EH/EH, Por que sou tão inteligente, 8, KSA 6.292-293). Desse mesmo modo, um pedido para ir ao banheiro requer a autorização para exercer uma função fisiológica que, naturalmente, não pode ser controlada, no limite, pela consciência. Mas tais limitações servem exatamente para isso: tentar aumentar o poder da consciência individual sobre seu corpo a fim de controlá-lo conforme as permissões de sua sociedade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2022
  • Aceito
    19 Set 2022
Grupo de Estudos Nietzsche Rodovia Porto Seguro - Eunápolis/BA BR367 km10, 45810-000 Porto Seguro - Bahia - Brasil, Tel.: (55 73) 3616 - 3380 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadernosnietzsche@ufsb.edu.br