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Aglomeração produtiva e netchain: contribuições para a criação de valor nos sistemas agroindustriais

Resumo

Considerando a recorrente problemática da cooperação entre agentes em busca de eficiência econômica e competitividade, o presente estudo objetiva discutir as conexões entre as abordagens de aglomerações produtivas, ações coletivas e netchains sobre a criação de valor nos sistemas agroindustriais, com o intuito de demonstrar que essa problemática não pode ser encarada de forma unidimensional. A discussão está focada na complementaridade dessas abordagens. O texto apresenta uma breve revisão dos principais pontos envolvidos e sugere uma aplicação conjunta para análises de sistemas agroindustriais, por evidenciar que o problema central é compartilhado por elas. Ao fim, defende-se que os sistemas agroindustriais só serão bem coordenados e eficientes, com o estabelecimento de vantagens comparativas duradouras, se essa coordenação levar em consideração as interdependências entre os atores e a dimensão regional, com vistas a identificar as principais e potenciais fontes de valor a elas atreladas.

Palavras-chave:
Cooperação; Coordenação; Ações Coletivas; Interdependências

Abstract

Considering the recurrent problem of cooperation between agents in the search for economic efficiency and competitiveness, the present study sets out to discuss the connections between the approaches of productive agglomerations, collective actions and netchains for value creation in agroindustrial systems, seeking to demonstrate that this problematic cannot be treated in a unidimensional manner. The discussion focuses on the complementarity of these approaches and presents a brief review of the main points involved. It is then suggested that they should be applied jointly in order to analyze agroindustrial systems, since evidence has shown that they are all part of the central problem. Lastly, it is argued that agroindustrial systems will only be well-coordinated and efficient, establishing long-term comparative advantages, if this coordination takes into account the interdependencies between the actors and the regional dimension, with a view to identifying the main, potential sources of value linked to them.

Keywords:
Cooperation; Coordination; Collective Actions; Interdependencies

Introdução

Já no final do século XIX, Alfred Marshall considerava que a concentração produtiva abre espaço para muitos avanços rumo à divisão e à especialização da mão de obra, destacando como causas responsáveis dessa concentração as condições físicas e edafoclimáticas, assim como a disposição e o acesso a fatores de produção em determinada região. Esse autor também ressalta as oportunidades, a facilidade para o comércio e o próprio agrupamento, retroalimentando o sistema, como fatores relevantes para a elevação da eficiência, a consolidação e o crescimento das atividades produtivas (MARSHALL, 1982MARSHALL, A. Princípios de Economia: tratado introdutório. São Paulo: Abril Cultural, 1982. v. I, p. 231-238.).

Nesse sentido, Suzigan et al. (2003SUZIGAN, W. et al. Clusters ou sistemas locais de produção: mapeamento, tipologia e sugestões de políticas. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 31., 2003, Porto Seguro. Anais [...]. Porto Seguro: Anpec, 2003.) defendem que as aglomerações de empresas e instituições têm como característica essencial a capacidade de gerar economias externas, incidentais ou deliberadamente criadas, que contribuem para sua competitividade. As ações conjuntas criadas pelos agentes podem elevar sua capacidade competitiva, tornando-os mais eficientes. Desse modo, Rolim (2005ROLIM, C. É possível a existência de sistemas regionais de inovação em países subdesenvolvidos? Revista de Economia, Curitiba, v. 28-29, ano 26-27, p. 275-300, 2005. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/economia/article/view/2003/1664 . Acesso em: 7 jan. 2018.
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) entende que o problema locacional deixa de ser uma questão de relacionamento direto entre fatores, recursos e atividades produtivas e se configura como uma questão mais geral das relações entre as estruturas sociais que permitem a cooperação entre os agentes locais.

A última década do século XX trouxe transformações para o ambiente institucional que provocaram mudanças significativas nas empresas. Isso se deu não apenas na esfera econômica, como também na tecnológica e informacional. No enfrentamento de tais mudanças, adequações organizacionais foram necessárias em busca de estabilidade e/ou de competitividade nos mercados concorrenciais globalizados. Dentre essas adequações estão a adaptação dos processos de produção e gestão e a adoção de distintas formas de atuação apoiadas em diferentes estruturas de governança (SCHMIDT; SAES, 2008SCHMIDT, C. M.; SAES, M. S. M. Ações coletivas: desenvolvimento para arranjos produtivos inseridos no contexto do agronegócio e turismo rural. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 46., 2008, Rio Branco. Anais [...]. Rio Branco: Sober, 2008.).

Nesse cenário, as empresas passaram a desenvolver estruturas de governança baseadas na associação e na colaboração entre os agentes, estruturas complexas de governança por envolverem diversos indivíduos. Alguns autores as denominam ações coletivas, mecanismos que buscam atender a diferentes formas de negociação provenientes, em grande medida, do cenário globalizado. Para Austin (2001AUSTIN, J. E. Parcerias. São Paulo: Futura, 2001.), as firmas deparam com um ambiente de elevada interconexão e interdependência, em que dificilmente agentes isolados conseguem obter sucesso sem cooperação.

É grande a quantidade de ações coletivas presentes no agronegócio, e elas podem ser encontradas nos mais diferentes setores produtivos e sistemas agroindustriais. Dentre os diversos modelos de ações coletivas com ocorrência no agronegócio, destacam-se as cooperativas, os sindicatos, as associações, as redes, supply chain, netchains, clusters, e Arranjos Produtivos Locais (APLs) (SCHMIDT; SAES, 2008SCHMIDT, C. M.; SAES, M. S. M. Ações coletivas: desenvolvimento para arranjos produtivos inseridos no contexto do agronegócio e turismo rural. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 46., 2008, Rio Branco. Anais [...]. Rio Branco: Sober, 2008.; ZYLBERSZTAJN, 2010 ZYLBERSZTAJN, D. From contracts to networks: new directions in the study of governance of agro-food-energy networks. In: EUROPEAN FORUM ON SYSTEMS DYNAMICS AND INNOVATION IN FOOD NETWORKS, 4., 2010, Innsbruck-Igls, Áustria. Anais […]. Innsbruck-Igls: International European Forum, 2010.; WENNINGKAMP; PALOSCHI TOMÉ; SCHMIDT, 2014 WENNINGKAMP, K.; PALOSCHI TOMÉ, L. H.; SCHMIDT, C. M. A teoria da ação coletiva no contexto agroindustrial: uma análise bibliométrica dos congressos da Sober (2004-2013). In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 52., 2014, Goiânia. Anais [...]. Goiânia: Sober, 2014.).

O conceito de netchain foi desenvolvido por Lazzarini, Chaddad e Cook (2001LAZZARINI, S. G.; CHADDAD, F. R.; COOK, M. L. Integrating supply chain and network analysis: the study of netchains. Journal of Chain and Network Science, v. 1, n. 1, p. 7-22, 2001. ), integrando as abordagens de networks (redes) e de Supply Chain Analysis. Trata-se de um conjunto de redes, composto de elos horizontais dentro de um mesmo setor ou grupo (mesma camada) e de laços verticais entre agentes de setores diferentes (diferentes camadas, cadeias). A abordagem mostra como os agentes se relacionam em uma mesma camada e também com agentes de outras camadas. Essa análise considera um emaranhado de relacionamentos e conexões que propicia a criação de valor baseando-se na coordenação das diversas formas de interdependência (SCHMIDT; SAES, 2008SCHMIDT, C. M.; SAES, M. S. M. Ações coletivas: desenvolvimento para arranjos produtivos inseridos no contexto do agronegócio e turismo rural. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 46., 2008, Rio Branco. Anais [...]. Rio Branco: Sober, 2008.).

Apesar dos enfoques distintos e dos caminhos descontínuos, o problema central é compartilhado pelas abordagens apresentadas. Dessa maneira, o objetivo do presente estudo consiste em discutir as conexões entre as abordagens de aglomerações produtivas, ações coletivas e netchains sobre a criação de valor nos sistemas agroindustriais, a fim de demonstrar que essa problemática não pode ser encarada de forma unidimensional. A discussão está focada na complementaridade das abordagens em torno de uma temática bastante recorrente: a cooperação entre os agentes na busca de eficiência econômica e competitividade.

Para tanto, além desta introdução, três seções compõem o artigo. Na primeira seção, é feita uma revisão teórica a respeito das aglomerações produtivas. A segunda é destinada à apresentação da Teoria da Ação Coletiva e, em especial, da abordagem de netchain. Na terceira seção, são feitas as discussões sobre a interligação das abordagens no contexto agroindustrial. Finaliza-se o trabalho com as considerações finais.

1. Aglomerações produtivas

A abertura dos mercados modificou as formas de produção e de comercialização, “reduzindo distâncias” por meio da queda nos custos logísticos. Por isso, o território deixou de ser considerado em razão de seus recursos técnicos e passou a ser encarado como uma matriz de organização e de interações sociais. A competição em nível mundial exige cada vez mais que as empresas produzam com custos reduzidos, elevem a qualidade, tenham variabilidade de produtos e se apresentem aptas a reagir rapidamente às mudanças na demanda e a demonstrar capacidade de inovação (CASSIOLATO; LASTRES, 2001CASSIOLATO, J. E.; LASTRES, M. H. Arranjos e sistemas produtivos locais na indústria brasileira. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, p. 103-136, 2001.; ROLIM, 2005ROLIM, C. É possível a existência de sistemas regionais de inovação em países subdesenvolvidos? Revista de Economia, Curitiba, v. 28-29, ano 26-27, p. 275-300, 2005. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/economia/article/view/2003/1664 . Acesso em: 7 jan. 2018.
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; DIAS; SILVA NETO, 2004DIAS, R. S.; SILVA NETO, R. Uma análise das transformações espaciais decorrentes da passagem do regime fordista para os regimes flexíveis de acumulação. Vértices, v. 6, n. 2, maio-ago. 2004.).

Cada vez mais a tendência é de que as atividades econômicas se organizem de acordo com padrões de produção mais flexíveis, abandonando a organização clássica taylorista em direção a um sistema preocupado com a coordenação entre as tarefas, baseado no toyotismo. O desempenho global/total dependerá crescentemente das interações cooperativas entre os sistemas internos (pesquisas, marketing, produção, finanças, manutenção etc.) e os elementos externos (clientes, fornecedores, centros de pesquisa, concorrentes, indústrias de apoio etc.) (CARLEIAL, 1997CARLEIAL, L. M. F. Sistemas Regionais de Inovação (SRI) e relação entre firmas: as “pistas” para um formato de desenvolvimento regional. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 28, n. esp., p. 143-168, jul. 1997.; ROLIM, 2005ROLIM, C. É possível a existência de sistemas regionais de inovação em países subdesenvolvidos? Revista de Economia, Curitiba, v. 28-29, ano 26-27, p. 275-300, 2005. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/economia/article/view/2003/1664 . Acesso em: 7 jan. 2018.
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).

Os elementos importantes para essa cooperação estão relacionados à geração de economias externas, financeiras e tecnológicas, presentes em estruturas semelhantes às aglomerações apontadas por Marshall (1982MARSHALL, A. Princípios de Economia: tratado introdutório. São Paulo: Abril Cultural, 1982. v. I, p. 231-238.). A atratividade de um território ou de uma região está assim vinculada à capacidade que ela tem de gerar esses elementos, os quais, por sua vez, estão relacionados com complexos fenômenos culturais, em que a interação sistemática entre indivíduos e organizações públicas e privadas proporciona o surgimento de inovações, organizativas e tecnológicas, que se encontram no centro da criação de valor para as empresas e do desenvolvimento das regiões (CASSIOLATO; SZAPIRO, 2002CASSIOLATO, J. E.; SZAPIRO, M. Arranjos e sistemas produtivos e inovativos locais no Brasil. In: Notas técnicas da fase II do Projeto “Proposição de políticas para a promoção de sistemas produtivos e inovativos locais de micro, pequenas e médias empresas brasileiras”. Rio de Janeiro: UFRJ, Redesist, 2002.; ROLIM, 2005ROLIM, C. É possível a existência de sistemas regionais de inovação em países subdesenvolvidos? Revista de Economia, Curitiba, v. 28-29, ano 26-27, p. 275-300, 2005. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/economia/article/view/2003/1664 . Acesso em: 7 jan. 2018.
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).

Sobre as economias externas, elas podem ser inerentes ao próprio sistema por uma questão de evolução histórico-cultural e dotação, decorrentes da i) existência de ampla disponibilidade de mão de obra especializada e com capacidades específicas diante da demanda local; ii) aglomeração e atração de fornecedores especializados; e iii) forte difusão de conhecimentos, habilidades e informações referentes às atividades locais. Ademais, as economias externas podem se dar por meio de ações conjuntas deliberadas, em que os agentes locais potencializam sua capacidade competitiva. Tais ações podem ser compra de matérias-primas, promoção de cursos de formação e capacitação profissional, criação de alianças para exportação, contratação de serviços especializados, investimento em centros de pesquisa para uso coletivo, cooperativas de crédito, entre outras. A união de economias externas inerentes ao sistema com aquelas criadas por ações conjuntas deliberadas contribui para a eficiência coletiva, considerada a principal determinante da capacidade competitiva das empresas locais (SUZIGAN et al., 2003SUZIGAN, W. et al. Clusters ou sistemas locais de produção: mapeamento, tipologia e sugestões de políticas. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 31., 2003, Porto Seguro. Anais [...]. Porto Seguro: Anpec, 2003.).

O Sistema Nacional de Inovação (SNI), por exemplo, caracteriza-se por um conjunto de diferentes instituições que contribuem para o desenvolvimento e a difusão de novas tecnologias, mediante a implementação de políticas para influenciar o processo de inovação. Essas inovações resultam da interação entre empresas, clientes, instituições de pesquisa e de governo, constituindo um ambiente propício ao aprendizado de novas maneiras de produzir e organizar a produção. Isso se torna relevante dada a importância das inovações no tocante aos processos de desenvolvimento econômico dos países (CARLEIAL, 1997CARLEIAL, L. M. F. Sistemas Regionais de Inovação (SRI) e relação entre firmas: as “pistas” para um formato de desenvolvimento regional. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 28, n. esp., p. 143-168, jul. 1997.; ROLIM, 2005ROLIM, C. É possível a existência de sistemas regionais de inovação em países subdesenvolvidos? Revista de Economia, Curitiba, v. 28-29, ano 26-27, p. 275-300, 2005. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/economia/article/view/2003/1664 . Acesso em: 7 jan. 2018.
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).

Nesse sentido, insere-se na discussão a formação de redes de empresas, que buscam com a cooperação elevar a competitividade. Para Britto (1999BRITTO, J. Características estruturais e modus operandi das redes de firmas em condições de diversidade tecnológica. 1999. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.), existem conexões entre as configurações interfirmas em rede e o incremento da competitividade econômica, relacionando os processos internos da rede à geração de vantagens competitivas sustentáveis. Para esse autor, o padrão de estruturação e evolução das redes de firmas ao longo do tempo é resultante de interações estabelecidas entre três níveis distintos: i) a macroestrutura em que a rede está inserida; ii) as especificidades dos processos internos das estruturas em rede; iii) a especificidade do comportamento dos agentes envolvidos nesse tipo de arranjo. As especificidades dos processos internos às redes são particularmente importantes porque estabelecem uma conduta que condiciona sobremaneira a evolução desses arranjos ao longo do tempo.

Destacam-se três impactos distintos associados à consolidação das redes: i) aqueles diretamente associados às transformações produtivas (elevação da eficiência operacional por economias de escala e escopo, redução de custos etc.), ii) aqueles relacionados à consolidação de interesses coletivos nas decisões produtivas e tecnológicas e, por fim, iii) os dinâmicos, associados à estruturação das redes (criação, circulação e difusão de informações e aprofundamento de mecanismos interativos de aprendizado). Outro aspecto importante refere-se à competitividade dos agentes, associando a atuação dos arranjos a determinados resultados que fortalecem a competitividade dos membros. Esses atributos correlacionam-se às propriedades internas das redes, que influenciam a capacidade de absorver e de responder com eficiência às pressões competitivas dos mercados (BRITTO, 1999BRITTO, J. Características estruturais e modus operandi das redes de firmas em condições de diversidade tecnológica. 1999. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.).

Cabe salientar que as redes de firmas são constituídas tanto por agentes como por recursos e múltiplas atividades que criam interdependência funcional entre todos esses elementos. A análise deve abarcar todas as atividades operacionais integradas à rede e à descrição detalhada do sistema produtivo ao qual ela pertence, particularmente no âmbito da complexidade tecnológica das atividades realizadas e dos impactos resultantes, no que tange à organização, às operações e aos fluxos. Analisam-se, assim, o grau de interdependência técnica, as particularidades da logística internas à rede e as conexões técnicas entre as diversas atividades levadas a cabo por seus integrantes (BRITTO, 1999BRITTO, J. Características estruturais e modus operandi das redes de firmas em condições de diversidade tecnológica. 1999. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.).

Dois outros elementos estruturais das redes de firmas estão especificamente associados às características de seus fluxos internos de transações. As transações efetuadas no interior das redes são relativamente sistemáticas, pois envolvem ativos específicos gerados em decorrência da aglomeração de competências organizacionais e tecnológicas dos agentes. Portanto, é importante detalhar as transações internas, identificar o grau de centralização com que ocorrem e o grau de especificidade dos ativos envolvidos. Os fluxos intangíveis de informações e conhecimentos que circulam no interior desses arranjos são especialmente relevantes para as tomadas de decisão e para o estabelecimento de estratégias conjuntas (BRITTO, 1999BRITTO, J. Características estruturais e modus operandi das redes de firmas em condições de diversidade tecnológica. 1999. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.).

Sobre as propriedades internas das redes de firmas, consideram-se aquelas associadas: i) à cooperação técnico-produtiva (aumento da eficiência operacional e ganhos de flexibilidade produtiva); ii) à coordenação interfirma (fortalecimento da eficácia da coordenação e da flexibilidade interfirma por meio de ajustes na forma como os membros da rede se relacionam); e iii) à cooperação tecnológica e ao fortalecimento do potencial inovativo (capacidade de identificar e processar informações, assim como a integração e o fortalecimento de capacitações inovativas). Essas propriedades internas atuam para facilitar a geração de determinados tipos de ganhos competitivos a todo o sistema produtivo (BRITTO, 1999BRITTO, J. Características estruturais e modus operandi das redes de firmas em condições de diversidade tecnológica. 1999. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.).

Finalmente, a análise de redes ainda deve considerar a necessidade de avaliar a evolução das propriedades já citadas durante determinado intervalo de tempo, uma vez que estão inseridas em um ambiente dinâmico que demanda um grau de adaptabilidade não negligenciável. Além disso, existe um trade-off entre as propriedades, que podem ser reforçadas ou amenizadas de acordo com as pressões competitivas e as características dos mercados. A elevação da competitividade das redes de empresas pode ser associada à consistência existente entre a evolução de sua conduta e a evolução dos padrões de concorrência e de consumo dos mercados em que aquelas estão inseridas (BRITTO, 1999BRITTO, J. Características estruturais e modus operandi das redes de firmas em condições de diversidade tecnológica. 1999. Tese (Doutorado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.).

Pelo exposto, as aglomerações produtivas podem ser vistas como fruto de uma evolução histórica de atração de estruturas produtivas em uma região dadas suas características físicas incidentais, mas também podem ser criadas, fomentadas e potencializadas por ações deliberadamente coordenadas entre atores distintos. Essas ações podem elevar a eficiência de um sistema produtivo como um todo, de modo a gerar valor para os envolvidos e melhorar as condições regionais, as quais, por sua vez, se tornarão mais atrativas e contribuirão para a renovação desse ciclo. Como os processos incidentais podem se mostrar muito lentos e bastante desiguais em termos regionais, a coordenação de ações conjuntas entre os agentes talvez seja a principal ferramenta para a criação sustentável de valor. Esse problema é enfocado na próxima seção, em que se aborda a Teoria da Ação Coletiva.

2. Teoria da Ação Coletiva

Ménard e Klein (2004MÉNARD, C.; KLEIN, P. Organizational issues in the agrifood sector: toward a comparative approach. American Journal of Agricultural Economics, v. 86, p. 750-755, ago. 2004.) concordam com os autores anteriores, ao defenderem o surgimento de organizações em rede entre as tendências nos Estados Unidos e ao salientarem que elas também estavam sendo observadas na Europa. Assim, ressalta-se a importância do tema, haja vista que, em diferentes áreas e segmentos econômicos, dentre eles o agronegócio, e em vários países, vem ocorrendo a formação de parcerias entre indivíduos e empresas, mediante alianças estratégicas, redes, cooperações, arranjos produtivos, associações, entre outras ações coletivas frequentemente documentadas em estudos científicos (WENNINGKAMP; PALOSCHI TOMÉ; SCHMIDT, 2014 WENNINGKAMP, K.; PALOSCHI TOMÉ, L. H.; SCHMIDT, C. M. A teoria da ação coletiva no contexto agroindustrial: uma análise bibliométrica dos congressos da Sober (2004-2013). In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 52., 2014, Goiânia. Anais [...]. Goiânia: Sober, 2014.).

Para Sandler (2004SANDLER, T. Global Collective Action. Cambridge: University of Southern California, 2004.), as ações coletivas podem ser definidas como a união dos esforços de dois ou mais agentes, que podem ser indivíduos, empresas, instituições ou países, para obter determinado resultado. Dessa forma, a ação coletiva estabelece interações estratégicas, nas quais as escolhas de um agente e suas consequências dependem tanto de suas próprias ações como das ações dos demais integrantes. A esse respeito, também Nassar (2001NASSAR, A. M. Eficiência das associações de interesse privado nos agronegócios brasileiros. 2001. 234 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001., p. 27) defende que o “[...] alinhamento de interesses em uma ação coletiva não está na equivalência do interesse próprio da pessoa, mas sim no fato de que os indivíduos têm necessidades em comum e que somente podem ser obtidas por meio de ações em conjunto”.

Entretanto, a ação coletiva não ocorre de maneira totalmente natural; há alguns problemas envolvidos. Primeiro, é preciso considerar que existe um senso comum sobre o comportamento em grupo, em que se tem por certo, sobretudo nas discussões neoclássicas, que grupos de indivíduos com interesses comuns usualmente são solidários na promoção desses interesses. Essa ideia surge da premissa de que, na verdade, os membros de um grupo agem por interesse pessoal/individual, gerando um benefício coletivo. Adicionalmente, deduz-se que, se os membros de um grupo têm um interesse ou objetivo que compartilham, e se todos têm consciência de que ficariam em melhor situação se essa meta fosse atingida, é lógico pensar que os integrantes, se forem racionais e focados nos próprios interesses, vão agir para alcançá-lo.

Olson (1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.) discorda desse senso comum e afirma que, com efeito, considerando um grupo de grande porte, os indivíduos racionais e centrados em seus interesses não agirão voluntariamente para promover interesses comuns ou grupais, nem para buscar atingir os objetivos do grupo, a menos que sejam forçados a isso ou que vislumbrem algum incentivo ou benefício adicional. Dessa forma, a não ser que o número de integrantes do grupo seja pequeno ou que existam mecanismos de coerção ou incentivo, não haverá esforço da parte dos agentes que compõem os grupos.

Já os grupos pequenos apresentam características mais complexas. Neles, pode haver alguma ação voluntária em direção ao objetivo comum do grupo, no entanto, na maior parte dos casos, essa ação será interrompida antes que os resultados ótimos para o grupo como um todo sejam atingidos (OLSON, 1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.).

Outra questão diz respeito à racionalidade individual contra a racionalidade coletiva. A esse respeito, Olson (1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.) destaca que os benefícios coletivos não são suficientes para gerar uma contribuição individual voluntária. Mesmo tendo objetivos comuns e sendo racionais e centrados nos próprios interesses, os indivíduos não agirão coletivamente se julgarem que o esforço gasto sozinho será maior do que o benefício a ser obtido como resultado da ação em grupo. Isso pode gerar não participação ou falta de comprometimento.

A solução para esse problema está na inserção de incentivos positivos ou negativos, de caráter econômico, social ou psicológico. Incentivos positivos são aqueles oferecidos à parte e além do ganho a ser obtido com a realização do objetivo comum. Já os incentivos negativos são representados por mecanismos de coerção, punição ou exclusão dos indivíduos que não colaboram para a consecução da ação coletiva (OLSON, 1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.).

Em geral, os incentivos sociais funcionam somente em grupos menores, ou em grupos pequenos o bastante para que cada membro possa ter contato pessoal com os demais. Existem duas razões para essa diferença de atitudes entre grupos grandes e pequenos. Em primeiro lugar, nos grupos grandes cada membro é tão pequeno em relação ao total que suas ações isoladas têm pouco ou nenhum efeito sobre o todo. Também existe a possibilidade de um membro não conhecer todos os outros, de modo que o grupo grande não seja um grupo de conhecidos. Portanto, não se pode supor que incentivos dessa natureza levem os membros a obter um benefício coletivo (OLSON, 1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.).

Em segundo lugar, a presença de free-riders (caroneiros) se configura como outro problema na formação de grupos; nesse caso, agentes que não cooperam para a obtenção do objetivo comum usufruem dos benefícios coletivos, ou seja, são aproveitadores. Sobre a presença dos caroneiros, Olson (1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999., p. 57) destaca um problema: “Quanto maior o grupo, menor a probabilidade de que a contribuição de qualquer membro seja perceptível”. Isso significa que a presença de free-riders é detectada mais facilmente em grupos pequenos, tendo em vista que, quanto menor o grupo, mais fáceis são o controle e o monitoramento das ações de cada um. Nos grupos grandes, os indivíduos tendem a tolerar os aproveitadores, uma vez que é difícil verificar quem não está dando a contribuição esperada.

Conclui-se, portanto, que o tamanho do grupo também é uma variável que influencia a eficiência da ação coletiva. Para Olson (1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.), grupos com menos membros são mais eficientes, em consequência, principalmente, de três motivos: i) os custos de organização de um grupo pequeno são menores; ii) a não contribuição de um membro é logo detectada; iii) a percepção do benefício alcançado coletivamente é maior para cada indivíduo.

Mesmo que um integrante de um grupo grande abandonasse totalmente seus interesses pessoais, ainda assim ele não iria contribuir de maneira racional para a obtenção de nenhum benefício coletivo ou comum, já que sua contribuição pessoal não seria perceptível nem influente (motivo “ii” no parágrafo anterior). Por exemplo, se um fazendeiro colocasse os interesses de outros fazendeiros acima dos seus próprios, sua produção não iria necessariamente diminuir na tentativa de reduzir a oferta de mercado e elevar os preços do produto, pois ele saberia que essa atitude não teria um efeito perceptível para ninguém (OLSON, 1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.).

Ademais, continua Olson (1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.), os ganhos de uma ação coletiva, em que cada indivíduo obtém uma parcela preestabelecida do retorno dos esforços do grupo, são um benefício coletivo. Assim, quando o número de membros do grupo aumenta, o incentivo de cada um para trabalhar pelo sucesso da ação diminui, e isso acaba por inibir a participação e o esforço individual.

Vale destacar, entretanto, que a análise sobre o tamanho do grupo de Olson (1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.) não considera a heterogeneidade dos grupos como variável influente da eficiência da ação coletiva. Sobre isso, Nassar e Zylbersztajn (2004NASSAR, A. M.; ZYLBERSZTAJN, D. Associações de interesse no agronegócio brasileiro: análise de estratégias coletivas. Revista de Administração - RAUSP, v. 39, n. 2, p. 141-152, abr.-maio-jun., 2004.), ao estudarem as associações de interesse privado no agronegócio brasileiro, acrescentaram aos conceitos de grupo grande e grupo pequeno a heterogeneidade de interesses, caracterizando os grupos como homogêneos (com membros com ideias e objetivos comuns e mais facilmente alinhados) ou heterogêneos (com membros cujas ideias e objetivos são mais distintos e dispersos). Segundo os autores, os grupos heterogêneos têm custos de transação maiores do que os homogêneos, o que representa um problema para a eficiência da ação coletiva, justificando, assim, a consideração dessa variável na análise dos grupos.

Outra importante contribuição para a teoria de ações coletivas foi dada por Ostrom (2003OSTROM, E. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.). Essa autora buscou entender os motivos de os indivíduos cooperarem em um dilema social, se eles poderiam ser “caronas” e se aproveitarem dos esforços dos outros indivíduos. Para isso, abordou dois modelos bastante conhecidos na literatura econômica, especialmente na Teoria dos Jogos: a Tragédia dos Comuns e o Dilema dos Prisioneiros.

O primeiro modelo foi apresentado por Garrett Hardin, em 1968, e resume-se ao fato de que, quando pessoas utilizam um recurso em comum, provocam uma espécie de degradação, uma vez que esse recurso é escasso. Dessa forma, o que está à disposição de todos não é valorizado por ninguém, ou seja, pela falta de controle sobre o uso que o outro faz do recurso em questão, ha uma tendência a esbanjar, por medo de não poder usufruir desse bem em outro momento. Ou seja, essa degradação é fruto da impossibilidade que um indivíduo tem de controlar a forma como os demais utilizam aquele recurso, e isso também ocorre com os demais. Um exemplo cotidiano seria a falta de medidores de consumo individual de água e/ou de gás em condomínios residenciais, o que tende a estimular o consumo descomedido e o desperdício, uma vez que a conta será dividida igualmente entre os condôminos (WENNINGKAMP, PALOSCHI TOMÉ; SCHMIDT, 2014 WENNINGKAMP, K.; PALOSCHI TOMÉ, L. H.; SCHMIDT, C. M. A teoria da ação coletiva no contexto agroindustrial: uma análise bibliométrica dos congressos da Sober (2004-2013). In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 52., 2014, Goiânia. Anais [...]. Goiânia: Sober, 2014.).

O Dilema dos Prisioneiros é definido como um jogo não cooperativo, em que não existe comunicação entre os jogadores. Nesse modelo, cada indivíduo toma sua decisão em busca de um resultado que seja satisfatório para ele, numa implicação de que o resultado obtido coletivamente seja subótimo. Olson (1999OLSON, M. A lógica da ação coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP, 1999.) critica esse modelo por acreditar que ele não representa uma verdade absoluta, haja vista que, no mundo real, os agentes podem se comunicar. Entretanto, Nassar (2001NASSAR, A. M. Eficiência das associações de interesse privado nos agronegócios brasileiros. 2001. 234 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001., p. 39) defende que “o dilema dos prisioneiros talvez seja o modelo de jogo mais utilizado para provar falhas coletivas”, uma vez que, pela ótica da ação coletiva, jogos desse tipo tendem a ter resultados subótimos em termos coletivos, apesar de, individualmente, os atores estarem em busca de resultados positivos, passíveis de serem alcançados. Para Ostrom (2003OSTROM, E. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.), tanto a Tragédia dos Comuns como o Dilema dos Prisioneiros são modelos que explicam diversos problemas que os agentes enfrentam ao tentar alcançar benefícios por meio de ações coletivas.

Segundo Sandler (2004SANDLER, T. Global Collective Action. Cambridge: University of Southern California, 2004.), a relação entre o Dilema dos Prisioneiros e as ações coletivas é frequentemente mal compreendida na literatura. Para o autor é incorreto afirmar que ambos têm o mesmo significado ou que todas as falhas de ações coletivas são do mesmo tipo que a do Dilema dos Prisioneiros. Em suma, o que ocorre é que esse modelo dá origem a falhas de ações coletivas. Portanto, há de fato uma relação entre os dois conceitos, mas no sentido de que uma “[...] ação racional individual leva a um resultado indesejável para o grupo. Atividades egoístas não beneficiam o grupo” (SANDLER, 2004SANDLER, T. Global Collective Action. Cambridge: University of Southern California, 2004., p. 25). Ou seja, a ação individual e autointeressada de cada agente não provoca um benefício para o grupo todo.

Será dada atenção especial à abordagem de netchain em razão de se considerar, neste texto, que se trata de uma das mais complexas e abrangentes entre as formas de governança coletivas. Assim, a próxima subseção se destina a discuti-la.

2.1 Netchain

O conceito de netchain foi desenvolvido por Lazzarini, Chaddad e Cook (2001LAZZARINI, S. G.; CHADDAD, F. R.; COOK, M. L. Integrating supply chain and network analysis: the study of netchains. Journal of Chain and Network Science, v. 1, n. 1, p. 7-22, 2001. ), como resultado da integração das abordagens de networks (redes) e de supply chain. Redes são contratos relacionais contínuos (governança bilateral, “minissociedades”, com um canal de negociação contínuo que considera todos os fatores relacionados a uma transação) que abarcam dois ou mais agentes (multifirmas). São definidas como estruturas complexas de governança, destinadas a coordenar transações entre atores, envolvendo coordenação tanto horizontal como vertical, a fim de criar e capturar valor. Para Zylbersztajn e Farina (2006 ZYLBERSZTAJN, D.; FARINA, E. Dynamics of network governance: a contribution to the study of complex forms. São Paulo: FEA-USP, 2006. Série Working Paper, n. 03/026, Disponível em: http://www.ead.fea.usp.br/WPapers/2003/03-026.pdf . Acesso em: 28 dez. 2017.
http://www.ead.fea.usp.br/WPapers/2003/0...
), os aspectos relacionados à confiança e a regras informais são potencialmente relevantes nesse caso. Segundo Schmidt e Saes (2008SCHMIDT, C. M.; SAES, M. S. M. Ações coletivas: desenvolvimento para arranjos produtivos inseridos no contexto do agronegócio e turismo rural. In: CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA, ADMINISTRAÇÃO E SOCIOLOGIA RURAL, 46., 2008, Rio Branco. Anais [...]. Rio Branco: Sober, 2008.), essas estruturas também são inovadoras no que se refere à obtenção de competitividade e à sobrevivência diante de um contexto concorrencial. A Figura 1 representa um exemplo genérico de rede apontado por Fulton (1998) apud Zylbersztajn (2000 ZYLBERSZTAJN, D. Conceitos gerais, evolução e apresentação do sistema agroindustrial. In: ZYLBERSZTAJN, D.; NEVES, M. F. (org.). Economia e gestão dos negócios agroalimentares. São Paulo: Pioneira, 2000. p. 1-21., p. 15).

Figura 1
Representação genérica de uma network ou rede

A abordagem supply chain surge do desdobramento de duas teorias: a Organização Industrial (OI) e a Nova Economia Institucional (NEI), em que se estuda o sistema agroindustrial, ou qualquer outro sistema produtivo, como um todo, por meio de uma visão sistêmica, e não apenas como uma transação específica (ZYLBERSZTAJN; FARINA, 1999 ZYLBERSZTAJN, D.; FARINA, E. Strictly coordinated food-systems: exploring the limits of the Coasian Firm. International Food and Agribusiness Management Review, v. 2, n. 2, p. 249-265, 1999.). Essa abordagem tem seu foco voltado para relações sequenciais organizadas verticalmente e se preocupa com a otimização das transações internas e também entre os agentes que compõem a cadeia, como logística, fluxo de informações e controle de qualidade. De acordo com Lazzarini, Chaddad e Cook (2001LAZZARINI, S. G.; CHADDAD, F. R.; COOK, M. L. Integrating supply chain and network analysis: the study of netchains. Journal of Chain and Network Science, v. 1, n. 1, p. 7-22, 2001. ), existem três principais fontes de valor de um Supply Chain Management: a otimização da produção; a otimização das operações e a redução dos custos de transação.

Quanto ao conceito de netchain, essa linha de pensamento destaca que um ambiente interorganizacional complexo pode congregar simultaneamente três tipos de interdependência: i) de grupo ou conjunta; ii) sequencial; e iii) recíproca. Dessa forma, o netchain pode ser encarado como um nexo de interdependências, cuja representação ilustrativa genérica (Figura 2) é reproduzida a seguir (LAZZARINI; CHADDAD; COOK, 2001LAZZARINI, S. G.; CHADDAD, F. R.; COOK, M. L. Integrating supply chain and network analysis: the study of netchains. Journal of Chain and Network Science, v. 1, n. 1, p. 7-22, 2001. ). Os autores e Saes (2008SAES, M. S. M. Estratégias de diferenciação e apropriação da quase renda na agricultura: a produção de pequena escala. 2008. Tese (Livre-docência em Administração) - Programa de Pós-graduação em Administração, Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de São Paulo, São Paulo, 2008.) discutem esses três diferentes tipos de interdependência entre os agentes, propostos por Thompson (1967THOMPSON, J. D. Organizations in action. New York: McGraw-Hill, 1967.) e esquematizadas na Figura 3.

Figura 2
Representação genérica de um netchain

Figura 3
Tipos de interdependência

A interdependência conjunta (Figura 3a) existe em uma condição em que cada agente de um grupo tem uma contribuição discreta e autônoma bem definida para determinada tarefa. Cada membro contribui discretamente com o grupo, do mesmo modo que recebe apoio; assim, cada parte deve desempenhar suas funções da melhor maneira para que toda a organização seja eficiente. As relações entre os agentes são dispersas e indiretas, os laços sociais entre eles são fracos e há grande diversidade de conhecimento (maior heterogeneidade). Como a relação entre os indivíduos é dispersa, em geral ela é mediada por alguma tecnologia ou forma organizacional com retornos crescentes de adoção (quanto mais agentes, maior a eficiência). Representa um tipo de problema de baixa complexidade. Os preços são suficientes para oferecer os incentivos requeridos. As cooperativas de produtores representam um tipo de solução para lidar com essa interdependência. A padronização, por meio de uma certificação, pode ser uma saída para solucionar problemas de assimetria de informação (LAZZARINI; CHADDAD; COOK, 2001LAZZARINI, S. G.; CHADDAD, F. R.; COOK, M. L. Integrating supply chain and network analysis: the study of netchains. Journal of Chain and Network Science, v. 1, n. 1, p. 7-22, 2001. ; SAES, 2008SAES, M. S. M. Estratégias de diferenciação e apropriação da quase renda na agricultura: a produção de pequena escala. 2008. Tese (Livre-docência em Administração) - Programa de Pós-graduação em Administração, Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de São Paulo, São Paulo, 2008.; SCHMIDT, 2010SCHMIDT, C. M. Criação e apropriação de valor no sistema agroindustrial do vinho do Vale dos Vinhedos. 2010. Tese (Doutorado) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.).

A interdependência sequencial (Figura 3b) acontece quando a estratégia dos agentes está diretamente relacionada ao investimento específico realizado por uma empresa a jusante (à frente, na cadeia), a ela cabendo a determinação das condições da organização da produção, do planejamento e da coordenação da cadeia. Nesse caso, uma atividade precede a outra, sequencialmente, relacionando-se à gestão de uma cadeia, o que envolve relações diretas entre agentes ordenados em série. Representa um tipo de problema de complexidade média. Engloba a gestão de estoques, logística, otimização de processos de produção e mecanismos de governança eficientes na tentativa de reduzir os custos de transação e definir os direitos de propriedade das rendas apropriadas ao longo da cadeia. A autoridade baseada na hierarquia é necessária para evitar que informações estratégicas se percam (LAZZARINI; CHADDAD; COOK, 2001LAZZARINI, S. G.; CHADDAD, F. R.; COOK, M. L. Integrating supply chain and network analysis: the study of netchains. Journal of Chain and Network Science, v. 1, n. 1, p. 7-22, 2001. ; SAES, 2008SAES, M. S. M. Estratégias de diferenciação e apropriação da quase renda na agricultura: a produção de pequena escala. 2008. Tese (Livre-docência em Administração) - Programa de Pós-graduação em Administração, Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de São Paulo, São Paulo, 2008.; SCHMIDT, 2010SCHMIDT, C. M. Criação e apropriação de valor no sistema agroindustrial do vinho do Vale dos Vinhedos. 2010. Tese (Doutorado) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.).

Na interdependência recíproca (Figura 3c), cada agente é mutuamente dependente das decisões e das ações dos demais, ou seja, o conhecimento de um agente depende fortemente do conhecimento dos outros. Existem recorrentes relacionamentos profundos e entrelaçados entre os indivíduos, com fortes laços sociais. É um processo complexo de ser solucionado, uma vez que os direitos de decisão estão distribuídos entre os membros, o que acarreta a necessidade de mecanismos de negociação entre as partes e ajuste mútuo (MÉNARD, 2004MÉNARD, C. The economics of hybrid organizations. Journal of Institutional and Theoretical Economics, v. 160, p. 345-376, 2004.; ZYLBERSZTAJN, 2005 ZYLBERSZTAJN, D. Papel dos contratos na coordenação agroindustrial: um olhar além dos mercados. Revista de Economia e Sociologia Rural (RESR), Rio de Janeiro, v. 43, n. 3, p. 385-420, jul.-set. 2005.). Em vez de um planejamento centralizado, a estrutura de coordenação e adaptação requer aprendizagem por meio de feedback. Em virtude de sua complexidade, os recursos criados por esse mecanismo possibilitam melhor apropriação de valor pelos seus membros. Como se trata de vários agentes, as regras de exclusão precisam ser claras e consensuais e pode haver problemas de free-riders (LAZZARINI; CHADDAD; COOK, 2001LAZZARINI, S. G.; CHADDAD, F. R.; COOK, M. L. Integrating supply chain and network analysis: the study of netchains. Journal of Chain and Network Science, v. 1, n. 1, p. 7-22, 2001. ; SAES, 2008SAES, M. S. M. Estratégias de diferenciação e apropriação da quase renda na agricultura: a produção de pequena escala. 2008. Tese (Livre-docência em Administração) - Programa de Pós-graduação em Administração, Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de São Paulo, São Paulo, 2008.; SCHMIDT, 2010SCHMIDT, C. M. Criação e apropriação de valor no sistema agroindustrial do vinho do Vale dos Vinhedos. 2010. Tese (Doutorado) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.).

Além das interdependências, mas com elas mantendo uma associação, Granovetter (1973 GRANOVETTER, M. S. The strength of weak ties. American Journal of Sociology, v. 78, n. 6, p. 1360-1380, 1973.) aponta que os agentes estão enraizados (ligados, imersos) por laços que formam uma rede de relacionamentos que não pode ser deixada de lado. Para o autor, existem fundamentalmente dois tipos de laços dentro das redes sociais: os laços fortes e os laços fracos. Os do primeiro tipo existem por longo período de tempo, caracterizando-se por uma relação de esforço, confiança e reciprocidade. Em geral, são formados por amigos, familiares, vizinhos, entre outros agentes de um mesmo grupo social, e concentrados geograficamente. O senso comum pode acreditar que essa situação talvez seja a melhor para uma rede de empresas, embora tais laços tendam a acrescentar pouco valor às firmas que estão à procura de novas informações e recursos, tendo em vista que os agentes dispõem das mesmas informações e recursos já existentes na rede, dada a homogeneidade que apresentam. Assim, nesses casos, a possibilidade de inovação é menor (GRANOVETTER, 1973 GRANOVETTER, M. S. The strength of weak ties. American Journal of Sociology, v. 78, n. 6, p. 1360-1380, 1973.).

Quanto aos laços fracos, estão presentes em transações específicas entre os agentes, e questões como confiança e reciprocidade assumem importância reduzida nessas redes. Entretanto, isso não quer dizer que essas relações não sejam importantes - pelo contrário. Schmidt (2010SCHMIDT, C. M. Criação e apropriação de valor no sistema agroindustrial do vinho do Vale dos Vinhedos. 2010. Tese (Doutorado) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.) defende que elas são relevantes justamente por estabelecerem ligações entre agentes dos mais diversos grupos sociais, criando uma rede, em vez de formarem ilhas isoladas, como no caso dos laços fortes. Para Granovetter (1973 GRANOVETTER, M. S. The strength of weak ties. American Journal of Sociology, v. 78, n. 6, p. 1360-1380, 1973.), os laços fracos são mais importantes na sustentação de uma rede social do que os laços fortes porque têm maiores chances de criar e distribuir informações novas e agregar valor ao relacionamento, uma vez que conseguem conectar cada indivíduo da rede a outros agentes, compartilhando diversas fontes de informação (SCHMIDT, 2010SCHMIDT, C. M. Criação e apropriação de valor no sistema agroindustrial do vinho do Vale dos Vinhedos. 2010. Tese (Doutorado) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.).

Granovetter (1985GRANOVETTER, M. S. Economic action and social structure: the problem of embeddedness. American Journal of Sociology , v. 91, n. 3, p. 481-510, 1985., p. 487) defende ainda que “atores não se comportam nem tomam decisões como átomos fora de um contexto social”, pois o comportamento humano é caracterizado por forte enraizamento (embeddedness) com um sistema de laços ou relações sociais, e é diretamente influenciado por isso. Dessa forma, toda ação e/ou comportamento econômico está enraizado em relações sociais. Nesse sentido, Uzzi (1997UZZI, B. Social structure and competition in interfirm networks: the paradox of embeddedness. Administrative Science Quarterly, Ann Harbor, v. 4, p. 35-67. 1997.) evidenciou que a confiança é a principal estrutura de governança nas transações enraizadas, seguida pelo risco calculado, pelos sistemas de monitoramento/controle e pelos arranjos destinados à solução de conflitos. Ademais, para o autor, a informação compartilhada dentro desse sistema é bem mais elaborada e selecionada do que os dados dispersos disponíveis no mercado.

De modo geral, o enraizamento é visto como um recurso estratégico para as empresas. O desempenho e a eficiência são impactados pelos relacionamentos enraizados, por se tratar de um mecanismo que permite a identificação de parceiros complementares e de confiança, diminuindo os riscos das ações conjuntas. Esses riscos de cooperação estão ligados à possibilidade de ações oportunistas de alguns agentes da ação coletiva (GULATI; NOHRIA; ZAHEER, 2000GULATI, R.; NOHRIA, N.; ZAHEER, A. Strategic networks. Strategic Management Journal, v. 21, n. 3, p. 203-215, 2000.).

Resumidamente, o conceito de netchain pode ser compreendido, conforme a definição de Schmidt (2010SCHMIDT, C. M. Criação e apropriação de valor no sistema agroindustrial do vinho do Vale dos Vinhedos. 2010. Tese (Doutorado) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 34), como um “conjunto de relacionamentos e interdependências sociais e econômicas (verticais, horizontais e laterais) entre atores coletivos, que surge com o objetivo de criar valor para os envolvidos”.

Como é possível perceber, os netchains consideram a existência de transações entre atores interdependentes e imersos em um ambiente social complexo; ao se relacionarem, eles tornam-se agentes com ações complementares e coletivas que possibilitam e objetivam a criação de valor para o todo. São vários os tipos de interdependência entre esses agentes, por isso é essencial compreender os diferentes graus de interdependência e as características das ações coletivas existentes, com vistas à coordenação eficiente das ações no que diz respeito à criação, à manutenção e à distribuição de valor entre os indivíduos (SCHMIDT, 2010SCHMIDT, C. M. Criação e apropriação de valor no sistema agroindustrial do vinho do Vale dos Vinhedos. 2010. Tese (Doutorado) - Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.). A problemática da coordenação é discutida na próxima seção sob um enfoque múltiplo dos conceitos apresentados até aqui.

3. Discussões

Para discutir as conexões entre as abordagens de aglomerações produtivas, ações coletivas e netchains sobre a criação de valor nos sistemas agroindustriais e demonstrar que essa problemática não pode ser encarada de forma unidimensional, nesta seção realiza-se uma breve discussão focada na complementaridade de tais abordagens. O enfoque recai na cooperação entre os agentes na busca de eficiência econômica e de competitividade para a criação de valor.

Parte-se da definição de Davis e Goldberg (1957DAVIS, J. H.; GOLDBERG, R. A. A concept of agribusiness. Division of Research. Boston: Graduate School of Business Administration, Harvard University, 1957.) de agronegócio, tomando-o como um sistema interligado de transformação de matérias-primas em produtos finais, englobando desde a fabricação de insumos e implementos, passando pela produção agropecuária, até a industrialização e a distribuição para o consumidor final. Considera-se assim a existência de um complexo sistema de relações que deve ser estudado com base em uma visão ampla das interações entre os agentes.

A noção de sistema agroindustrial está ligada diretamente ao conceito de agronegócio. Tem-se, então, um objeto de análise amplo, em que se deve levar em consideração não apenas a produção agropecuária, mas todo um sistema que envolve fornecedores de insumos, produtores rurais, agroindústrias, armazenamento, logística e demais serviços de apoio, distribuição e consumidores. Essas relações de dependência entre atores envolvem os elos de um sistema agroindustrial com diferentes tipos de transações entre os agentes. Ademais, esse conceito contempla as relações e a interdependência entre os diversos setores que formam os sistemas, assim como os ambientes em que estão inseridos.

Como os sistemas agroindustriais são formados por um encadeamento de agentes, existe clara interdependência sequencial entre estes para que as matérias-primas sejam transformadas em produtos finais e cheguem até os consumidores. Além disso, não basta que esse encadeamento de transformações físicas funcione: é preciso que as necessidades dos mercados sejam atendidas, fornecendo aquilo que é valorizado pelos consumidores. Assim, obviamente, não é suficiente que uma única empresa se volte ao atendimento dessas necessidades, pois o processo de transformação das matérias-primas em bens de consumo, com a criação e a manutenção dos atributos demandados, depende de todos os atores do sistema.

O agronegócio tem se desenvolvido e se adaptado a um ambiente mais complexo, competitivo e globalizado, em que a coordenação é imprescindível para a eficiência dos sistemas agroindustriais. Uma coordenação eficiente e ampla das cadeias de valor é determinante para a entrega de produtos e serviços na quantidade e na qualidade demandadas pelos consumidores (CALEMAN, 2015CALEMAN, S. M. de Q. Contratos e coordenação. In: ZYLBERSZTAJN, D.; NEVES, M. F.; CALEMAN, S. M. de Q. (org.). Gestão de sistemas de agronegócios. São Paulo: Atlas, 2015. p. 71-92.). Um sistema agroindustrial sem coordenação ou com falhas de coordenação se caracteriza por custos de transação elevados e pela dificuldade de resposta às mudanças ambientais (CALEMAN; ZYLBERSZTAJN, 2012CALEMAN, S. M. de Q.; ZYLBERSZTAJN, D. Falta de garantias e falhas de coordenação: evidências do Sistema Agroindustrial da Carne Bovina. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 50, p. 221-240, 2012.).

Essa necessidade de coordenação é reflexo direto da interdependência interna dos sistemas agroindustriais. Por exemplo, para que um alimento orgânico chegue até os consumidores, é necessário que o produtor rural realize adequações em sua propriedade para esse tipo de produção, utilize somente insumos e técnicas permitidos para o cultivo de orgânicos etc. Além disso, a agroindústria de beneficiamento ou transformação desse produto deve cumprir os mesmos requisitos para que não haja contaminação dos alimentos e para que se mantenham as características orgânicas. Por fim, a distribuição precisa acondicionar corretamente os produtos para preservar as propriedades que o qualificam como orgânico. Portanto, para que o sistema agroindustrial seja competitivo e consiga desenvolver vantagens comparativas, os agentes devem ter objetivos comuns e estabelecer ações conjuntas para atender o mercado.

Para Caleman (2015CALEMAN, S. M. de Q. Contratos e coordenação. In: ZYLBERSZTAJN, D.; NEVES, M. F.; CALEMAN, S. M. de Q. (org.). Gestão de sistemas de agronegócios. São Paulo: Atlas, 2015. p. 71-92.), a eficiência de um sistema agroindustrial se resume a sua capacidade de criar, sustentar e distribuir valor entre os agentes. Para que isso aconteça, a coordenação entre os atores é muito importante. A criação de valor relaciona-se com a inovação, seja em processos, seja em produtos, que é o que, com efeito, estabelece um diferencial. A sustentação do valor está associada à manutenção das vantagens comparativas no longo prazo, o que significa ter continuamente um diferencial perante os concorrentes. E a distribuição está atrelada à apropriação do valor criado, que muitas vezes pode ser conflituosa, em decorrência de alguns agentes se apropriarem de parcelas maiores desse valor.

Retomando o que foi apresentado sobre as aglomerações produtivas, vale destacar que, no agronegócio, essa concentração de agentes em torno de determinada atividade é recorrente. De maneira geral, as agroindústrias de transformação localizam-se perto das fontes de sua principal matéria-prima e em regiões que ofereçam infraestrutura satisfatória para o escoamento da produção para os principais mercados-alvo. Por essa razão, pode haver criação, desenvolvimento e fortalecimento de indústrias e serviços de apoio a essa atividade principal, fomentando o crescimento dos mais diversos setores. Uma especificidade do agronegócio reside no fato de que as condições físicas podem ser determinantes para o tipo de atividade desenvolvida em alguns casos, uma vez que as condições edafoclimáticas podem inviabilizar parcial ou totalmente a produção agropecuária.

Assim, é razoável considerar que a análise dos sistemas agroindustriais deve levar em conta a dimensão regional da problemática da coordenação. Essa dimensão com frequência é suprimida na análise agroindustrial, com a atenção dos pesquisadores se voltando principalmente para questões relacionadas à dimensão transacional do problema. O que se defende aqui é que as duas são relevantes, o que justifica a congregação da abordagem de aglomerações produtivas e de ações coletivas. Portanto, as relações entre os agentes devem ser entendidas sob a perspectiva de um netchain localizado geograficamente, preocupado com as transações e as relações entre os agentes, e destes com o local em que estão inseridos.

No que se refere à eficiência do sistema agroindustrial defendida por Caleman (2015CALEMAN, S. M. de Q. Contratos e coordenação. In: ZYLBERSZTAJN, D.; NEVES, M. F.; CALEMAN, S. M. de Q. (org.). Gestão de sistemas de agronegócios. São Paulo: Atlas, 2015. p. 71-92.), a criação de valor está atrelada à inovação. Nesse ponto, tanto a análise de aglomerações produtivas como a análise de netchain concordam com a ideia de que a interação entre indivíduos e organizações públicas e privadas pode gerar inovação como resultado da especialização e da difusão de conhecimentos, da diversidade de aprendizagem, da combinação e do fortalecimento de capacidades inovativas, do investimento em centros de pesquisa para uso coletivo, da formação e capacitação de mão de obra, da formação de alianças estratégicas, fatores que elevarão a capacidade de identificar e processar informações e de absorver e responder de maneira eficiente às pressões competitivas dos mercados. Isso está atrelado à cooperação tecnológica para o fortalecimento do potencial inovativo, que implica uma interdependência recíproca, em que os agentes se relacionam de maneira muito mais próxima, com laços sociais fortes, construídos com base em uma identidade cultural bastante presente. Dados os laços fortes, esses grupos podem se fechar a ponto de não aceitarem ideias de fora, e isso pode prejudicar a ação coletiva, merecendo atenção e reflexão de seus integrantes.

A sustentação do valor por meio da manutenção das vantagens comparativas no longo prazo diz respeito à continuidade das relações e do empenho inovativo, dirimindo conflitos de interesse e avançando em relação aos objetivos conjuntos. Na abordagem de aglomerações produtivas, essa sustentação passa pela consolidação de interesses coletivos nas decisões produtivas e tecnológicas que levam ao fortalecimento da eficácia da coordenação. Atividades como compra de matérias-primas, criação de alianças para exportação, contratação de serviços especializados, cooperativas de crédito, atração de fornecedores e mão de obra especializados tendem a elevar a eficiência operacional por conta das economias de escala e do escopo e redução de custos, o que, por sua vez, dará suporte e sustentação ao valor criado. Isso se relaciona às externalidades de rede da análise de netchain, em que os benefícios se elevam à medida que mais agentes fazem parte da relação, com os chamados retornos crescentes à adoção, o que implica interdependência conjunta, em que os laços sociais em geral são fracos.

A distribuição do valor criado é especialmente importante e problemática por abarcar a definição de direitos de propriedade e, em consequência, sua apropriação pelos agentes envolvidos. Nesse sentido, sob a perspectiva do netchain, é necessário otimizar processos e operações, com interdependência sequencial, em que estruturas de governança eficientes precisam ser definidas para reduzir custos de transação e identificar os direitos de propriedade apropriados de montante a jusante do sistema agroindustrial. Do ponto de vista das aglomerações, a flexibilidade interfirma por meio de ajustes na forma como os membros de determinado grupo se relacionam e de padrões de produção mais flexíveis pode contribuir para a cooperação entre os agentes e a coordenação das atividades.

As interdependências estão claramente presentes entre os agentes de qualquer aglomeração produtiva ou sistema agroindustrial. Em ambos os casos, as ações singulares tendem a se mostrar pouco eficientes, da mesma forma que estruturas de governança rígidas, como a integração vertical, que terão custos de transação elevados. Torna-se relevante, portanto, a aplicação da abordagem de netchain sobre a análise e a formulação de políticas públicas e privadas para o agronegócio em um contexto econômico, sociocultural e regional, em virtude de seu foco voltar-se justamente para todos os tipos de interdependência entre os atores. Assim, antes de se preocupar com as fontes de valor ou com estruturas de governança específicas para um tipo único de interdependência, a abordagem de netchain parte do reconhecimento de todas as interdependências importantes para a cooperação entre as firmas para, valendo-se delas, identificar as fontes potenciais de valor e estruturar e estabelecer mecanismos de coordenação mais eficientes (LAZZARINI; CHADDAD; COOK, 2001LAZZARINI, S. G.; CHADDAD, F. R.; COOK, M. L. Integrating supply chain and network analysis: the study of netchains. Journal of Chain and Network Science, v. 1, n. 1, p. 7-22, 2001. ).

Portanto, baseando-se nas interdependências, podem-se identificar possíveis fontes de valor em um sistema produtivo localizado geograficamente e criar estruturas de governança que permitam explorar esse potencial de modo sustentável no longo prazo, tornando os sistemas eficientes em termos de criação, sustentação e distribuição de valor.

Considerações finais

O objetivo do presente estudo foi discutir as conexões entre as abordagens de aglomerações produtivas, ações coletivas e netchains quanto à criação de valor nos sistemas agroindustriais. Como se trata de uma problemática que não pode ser encarada de forma unidimensional, a discussão se debruçou sobre a complementaridade dessas abordagens em torno da cooperação entre os agentes na busca de eficiência econômica e competitividade.

Considerando as referidas abordagens, observou-se que a eficiência das empresas atuantes nos mais diversos setores, incluindo o agronegócio, a eficiência dos sistemas agroindustriais e, em última análise, a eficiência do agronegócio como um todo estão atreladas não só à administração interna individual das firmas (qualidade, preço, custos, estratégias de atuação etc.), como também, e fortemente, à coordenação entre os agentes que compõem todo o sistema, incluindo nesse contexto os aspectos econômicos, socioculturais e regionais. Um sistema que não reconheça as interdependências e as conexões regionais relevantes não consegue criar mecanismos satisfatórios de coordenação nem sustentar e distribuir valor para os atores de maneira competitiva. Como resultado, não será eficiente nem competitivo no longo prazo, ficando à margem dos mercados. Já em sistemas com mecanismos de coordenação bem elaborados e bem definidos, que reconheçam as interdependências, incluindo as regionais, e explorem todas as potenciais fontes de valor, os agentes aproveitam a aprendizagem, os conhecimentos compartilhados, as informações obtidas junto ao mercado, as repassam para todo o sistema e estabelecem objetivos comuns para atender às necessidades dos consumidores, de modo a explorar as necessidades de mercados específicos, agregando valor aos seus produtos, com margens maiores etc.

Portanto, defende-se que os sistemas agroindustriais só serão bem coordenados e eficientes, estabelecendo vantagens comparativas duradouras, se forem levadas em consideração as interdependências entre os atores e a dimensão regional, a fim de identificar as principais e potenciais fontes de valor a elas atreladas. Nesse sentido, as abordagens de aglomerações produtivas e de netchain podem ser usadas em conjunto na análise de problemas agroindustriais com o intuito de contribuir para a formulação de estratégias de cooperação e de coordenação interfirmas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2020
  • Aceito
    05 Out 2020
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