Acessibilidade / Reportar erro

As classes médias e as transformações socioespaciais das metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo: 2000-2010 1 1 Este artigo é o resultado de uma cooperação entre o Centre de Recherche sur les Inégalités Sociales (CRIS) da Sciences Po, Paris, e o Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi apoiado por um acordo CNRS-CNPq, e por um acordo Capes-COFECUB. A UERJ também apoiou convidando Edmond Préteceille como professor visitante no IESP-UERJ; o CNPq concedeu bolsa para Investigador Principal Estrangeiro a Adalberto Cardoso e uma bolsa de seis meses no CRIS no segundo semestre de 2018; a Capes concedeu bolsa Capes-Print a Adalberto Cardoso para uma estadia de quatro meses no CRIS no primeiro semestre de 2019; e a FAPERJ financiou o projeto com uma bolsa Cientista do Nosso Estado (CNE) a Adalberto Cardoso.

Resumo

A primeira década do século XXI foi marcada, no Brasil, por importantes mudanças econômicas, sociais e políticas: redução significativa das desigualdades de rendimento; diminuição relevante do desemprego e crescimento do emprego formal; saída da miséria de parcela expressiva da população em decorrência de políticas sociais; aumento do investimento em educação, saúde, habitação, infraestrutura urbana, cultura, dentre outros, que resultaram na redução das desigualdades em múltiplas dimensões. Contra esse pano de fundo, e tendo em vista o histórico caráter dual da cidade brasileira, a pergunta a que o artigo procura responder é: a redução multidimensional das desigualdades diminuiu a segregação e as desigualdades urbanas? Diante das mudanças mencionadas, nossa hipótese é de que a resposta é positiva. Para demonstrá-lo, o artigo lança mão dos dados dos censos demográficos de 2000 e 2010 e compara as regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo, utilizando como base inovações metodológicas importantes na forma de construção das categorias de análise, vis-à-vis os estudos existentes sobre o tema.

Palavras-chave:
Classes Médias; Segregação Urbana; Desigualdades Urbanas; Rio de Janeiro; São Paulo

Abstract

The first decade of the 21st century was marked in Brazil by important economic, social and political changes: a significant reduction in income inequalities; important decrease in unemployment and the growth of formal employment; a fair portion of the population got out of poverty through social policies; the increase in investment in education, health, housing, urban infrastructure, culture, among others, which resulted in the reduction of inequalities in multiple dimensions. Against this background, and in view of the historical dual character of the Brazilian city, the question that the article seeks to answer is: has the multidimensional reduction of inequalities resulted in a reduction in segregation and urban inequalities? In view of the aforementioned changes, our hypothesis is that the answer is positive. To demonstrate this, the article makes use of data from the 2000 and 2010 demographic censuses, and compares the metropolitan regions of Rio de Janeiro and São Paulo, based on important methodological innovations in the way it constructs the categories of analysis, comparing to the existing studies on the subject.

Keywords:
Middle Classes; Urban Segregation; Urban Inequalities; Rio de Janeiro; São Paulo

1. Introdução

As metrópoles brasileiras há muito são consideradas cidades duais, onde os espaços das classes altas e das classes baixas se opõem, reproduzindo a histórica oposição entre casa-grande e senzala no espaço urbano capitalista. São cidades segregadas pela exclusividade social daqueles dois tipos de espaço; cidades profundamente desiguais em razão das enormes diferenças na qualidade da habitação e de seu ambiente urbano. Esse dualismo urbano “clássico”, reflexo das desigualdades sociais no espaço urbano, foi reforçado, na prática e na análise teórica, pelo modelo da cidade global (SASSEN, 1991SASSEN, S. The global city. New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University Press, 1991.), que destacou o crescimento das desigualdades econômicas resultantes da globalização financeira, de um lado, e, de outro, o crescimento das formas exclusivas de produção e apropriação da cidade, opostas à precariedade crescente das condições de vida urbana das classes mais baixas.

A análise da acentuação das desigualdades de renda e riqueza como resultado da globalização financeira e das políticas neoliberais foi aprofundada e sistematizada desde então. Piketty (2013PIKETTY, T. Le capital au XXIe siècle. Paris : Éditions du Seuil, 2013.) e os pesquisadores de sua rede internacional têm mostrado com precisão essa tendência geral do mundo capitalista nas últimas décadas, ainda que com desigualdades consideráveis entre os países. Contudo, outros aspectos das análises de Sassen (1991SASSEN, S. The global city. New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University Press, 1991.) não se confirmaram. Sua tese da dualização social por declínio das classes médias - que teriam sido o produto do modo de regulação fordista e estariam condenadas a desaparecer com ele - não se efetivou em muitas metrópoles, incluindo Londres (HAMNETT, 1994HAMNETT, C. Social polarisation in global cities: theory and evidence. Urban Studies, v. 33, n. 8, p. 401-424, 1994.) e Paris (PRÉTECEILLE, 1995 PRÉTECEILLE, E. Division sociale de l’espace et globalisation. Le cas de la métropole parisienne. Sociétés Contemporaines, v. 22-23, p. 33-67, 1995.). A dualidade urbana tampouco revelou-se tendência geral sistemática, principalmente por causa da importância que ainda adquirem, em vários países, as políticas públicas de bem-estar urbano, que regulam a produção capitalista da cidade e garantem oferta de habitação social e de serviços públicos e infraestrutura em bairros populares, como tem sido demonstrado em vários trabalhos que oferecem análises comparativas da evolução da segregação urbana (KAZEPOV, 2005KAZEPOV, Y. (org.). Cities of Europe. Changing contexts, local arrangements, and the challenge to urban cohesion. Oxford: Blackwell, 2005.; MARCUSE; VAN KEMPEN, 2000MARCUSE, P.; VAN KEMPEN, R. (org.). Globalizing cities. A new spatial order? Oxford: Basil Blackwell, 2000.; MALOUTAS; FUJITA, 2012MALOUTAS, T.; FUJITA, K. (org.). Residential segregation around the world: Why context matters. Farnham: Ashgate, 2012.).

A primeira década do século XXI foi marcada, no Brasil, por importantes mudanças econômicas, sociais e políticas. Ressaltamos a redução significativa das desigualdades de rendimento (DEDECCA, 2015DEDECCA, C. S. A redução da desigualdade e seus desafios. Rio de Janeiro: IPEA, 2015. (Texto para discussão, n. 2031).); a diminuição relevante do desemprego e o crescimento do emprego formal (KREIN; MANZANO, 2014KREIN, J. D.; MANZANO, M. Notas sobre formalización. Estudios de caso: Brasil. Santiago: OIT, 2014. Disponível em: http://ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/documents/publication/wcms_248256.pdf. Acesso em: ago. 2022.
http://ilo.org/wcmsp5/groups/public/---a...
; CARDOSO, 2015CARDOSO, A. Informality and public policies to overcome it. The case of Brazil. Sociologia & Antropologia, v. 6, p.321-349, 2015.); a saída da miséria de parcela expressiva da população em decorrência de políticas sociais (MEDEIROS et al., 2014MEDEIROS, M.; SOARES, S.; SOUZA, P.; OSORIO, R. Inequality, poverty and the Brazilian social protection system. In: PIETERSE, J. N.; CARDOSO, A. (org.). Brazil emerging. Inequality and emancipation. New York; London: Routledge, 2014. p. 32-49.); o aumento do investimento em educação, saúde, habitação, infraestrutura urbana, cultura, entre outros, que resultaram na redução das desigualdades em múltiplas dimensões (CAMPELLO et al., 2018CAMPELLO, T. et al. Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 3, p. 54-66, 2018.). Contra esse pano de fundo, e tendo em vista a histórica dualização da cidade brasileira, a pergunta a que procuraremos responder é: a redução multidimensional das desigualdades diminuiu a segregação e as desigualdades urbanas? Diante da profundidade das mudanças ao longo da década, nossa hipótese é de que a resposta é positiva. Para investigá-la, lançaremos mão dos dados dos censos demográficos de 2000 e 2010 (IBGE, 2002IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Documentação do Censo 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2002.; 2012IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE , 2012.), e compararemos as regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo.

2. Categorias

O modelo da cidade global destaca o crescimento das principais categorias profissionais ligadas às finanças e à gestão das multinacionais, de renda muito alta; e dos trabalhadores precários e de baixa renda que oferecem os serviços consumidos pelos primeiros. Esse desenvolvimento marcaria, segundo aquele modelo, a maioria das grandes metrópoles do mundo capitalista desenvolvido, com intensidade variável conforme a maior ou menor centralidade de cada metrópole na globalização financeira. Contudo, mesmo no caso das mais centrais, como Londres e Nova York, a quantidade de pessoas nas categorias superiores representa apenas pequena parte da população ocupada. Ademais, se nessas metrópoles os empregos diretamente relacionados à produção industrial de fato caíram de maneira acentuada, as transferências industriais para outras regiões ou países foram acompanhadas por forte crescimento em empregos altamente qualificados ou de média qualificação nas atividades a montante da produção (pesquisa e desenvolvimento, design, marketing); nas de monitoramento e governança da produção (organização de cadeias produtivas complexas entre diferentes locais, ligações com muitos subcontratantes - atividades ainda mais importantes à medida que a produção é ao mesmo tempo dispersa e governada pelos princípios de just in time, redução de estoques intermediários e busca por rápida adaptação dos produtos às inovações); e, a jusante, nas atividades de publicidade, transporte, distribuição, entrega. Essas transformações econômicas das cidades foram trazidas à luz por muitos autores, com vários sotaques, desde a “economia do aprendizado” (STORPER, 1997STORPER, M. The regional world. Territorial development in a global economy. New York: Guilford, 1997.) até a sociedade “hiperindustrial” (VELTZ, 2017VELTZ, P. La Société hyper-industrielle. Le nouveau capitalisme productif. Paris: Seuil, 2017. (La République des Idées).), passando pela “cidade criativa” (FLORIDA, 2005FLORIDA, R. Cities and the creative class. New York: Routledge, 2005.).

Todas essas atividades se desenvolvem em interação com redes de comunicação e informática, com centros de pesquisa e universidades, com indústrias culturais, e levam ao crescimento de empregos altamente qualificados ou de média qualificação que também contribuem para o crescimento de novas classes médias. Os serviços de educação, saúde, cultura, assim como os de recreação para a população, também estão se desenvolvendo e contribuem igualmente para o crescimento das classes médias assalariadas, muitas vezes com forte componente do setor público, não raro subestimado pelos autores mencionados.

São Paulo e Rio de Janeiro também sofreram substancial redução do emprego industrial e de crescimento dos serviços a montante e a jusante da produção. Para apreender os efeitos dessas transformações econômicas sobre a estrutura social e espacial das cidades, é necessário dispor de categorizações sociais capazes de detectar as categorias profissionais novas ou em expansão. Para isso, escolhemos, para este programa de pesquisa, adequar ao caso brasileiro as Categorias Socioprofissionais (CS) definidas na França pelo Institut National de la Statistique et des Études Économiques (Insee). As CS têm a vantagem, essencial para os nossos objetivos, de oferecer uma representação bastante detalhada da parte “intermediária” da estrutura social, bem como de seus limites, isto é, a fronteira entre as classes médias e as classes mais altas e entre as classes médias e as classes baixas.2 2 Para discussão detalhada dos aspectos teóricos e metodológicos dessas categorias e sua adaptação, remetemos o leitor a Cardoso e Préteceille (2017), Préteceille e Cardoso (2019), Cardoso e Préteceille (2021) Page Pereira (2021) realizou meticuloso trabalho de construção do fluxograma de nossa classificação, que ele comparou com outras classificações brasileiras, prestando grande serviço aos estudiosos da estrutura social brasileira. PRÉTECEILLE, E.; CARDOSO Comparer les structures sociales de Paris, Rio de Janeiro et São Paulo In: AUTHIER, J-Y. et al (org.) D’une ville à l’autre La comparaison internationale en sociologie urbaine. Paris: La Découverte, 2019, p. 247-264; PAGE PEREIRA, L. Anamorphose sociale Classes sociales et inégalités sociales au Brésil au cours des années 2000. Thèse de Doctorat en Sociologie, Université Paris-Saclay, Gif-sur-Yvette, 2021.

Dois esforços de pesquisa propuseram abordagens semelhantes sobre as metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo. O primeiro é o trabalho de Eduardo Marques e sua equipe do Centro de Estudos da Metrópole, da Universidade de São Paulo (CEM-USP), que utiliza a categorização Erikson-Goldthorpe-Portocarero (EGP) (ERIKSON; GOLDTHORPE, 1992ERIKSON, R.; GOLDTHORPE, J. H. The constant flux: a study of class mobility in industrial societies. Oxford: Oxford University Press, 1992.) para construir as classes sociais. A EGP é amplamente utilizada em análises comparativas internacionais sobre mobilidade social. Contudo, por motivos teóricos relativos aos princípios de sua construção, e por razões práticas relacionadas com as pequenas amostras disponíveis aos pesquisadores da mobilidade social, as categorias EGP que apreendem as classes médias são muito menos detalhadas do que as da CS, o que leva a diferenças significativas nos resultados.3 3 Por exemplo, com base na EGP, Scalon e Salata (2012) concluíram que não houve crescimento das classes médias entre 2000 e 2010 no Brasil Mas em Cardoso e Préteceille (2017), com base na CS, mostrou-se que houve crescimento significativo em todos os segmentos médios Mais informações serão apresentadas adiante. SCALON, C.; SALATA, A. Uma nova classe média no Brasil da última década? O debate a partir da perspectiva sociológica Revista Sociedade e Estado, v. 27, n. 2, p. 387-407, 2012.

O segundo esforço de pesquisa é coordenado por Luiz C. de Queiroz Ribeiro (2015RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015.) no Observatório das Metrópoles, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur-UFRJ). A empreitada está mais próxima da nossa porque também utiliza uma adaptação da CS francesa, por eles denominada “categorias socio-ocupacionais” (CATs). Essa proximidade não é surpreendente, uma vez que o desenvolvimento das CATs resultou, inicialmente, do trabalho conjunto entre Préteceille e Ribeiro (PRÉTECEILLE, 2002 PRÉTECEILLE, E. Antropofagia acadêmica, categorização social e dualização urbana. 2002. Disponível em: https://hal-sciencespo.archives-ouvertes.fr/hal-03575998/document. Acesso em: 12 fev. 2022.
https://hal-sciencespo.archives-ouvertes...
).

O projeto de comparar as duas metrópoles pôde ser retomado pelos dois autores deste artigo, que, em contraposição à experiência anterior, puderam trabalhar diretamente com os microdados do IBGE, o que nos permitiu adaptar a CS com mais precisão do que na primeira tentativa. Mais adiante, compararemos as duas categorizações e os resultados por elas produzidos.

As categorias socioprofissionais das pessoas ocupadas pesquisadas na amostra censitária permitem construir a estrutura socioprofissional das duas metrópoles em 2000 e 2010, e a comparação dos efetivos e dos pesos das categorias nessas datas permite uma análise detalhada das transformações que experimentaram nesse período.

No entanto, essa comparação é mais difícil do que parece, por uma razão técnica. Durante as muitas análises que realizamos com os microdados da amostra do Censo de 2010 (IBGE, 2012IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE , 2012.) para reconstruir a CS e testar a coerência de nossa classificação, descobrimos que a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), nosso ponto de partida, não foi codificada pelo IBGE para 9,1% dos ocupados da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) e para 9,5% dos da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Esses percentuais são muito superiores aos observados para o Censo de 2000 (IBGE, 2002IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Documentação do Censo 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2002.): respectivamente, 1,4% para a RMRJ e 1,3% para a RMSP. Conseguimos codificar a CS apenas para pequena parcela das pessoas afetadas, para as quais outras variáveis propiciaram a identificação (militares, líderes empresariais), mas ainda há 8,1% dos ativos da RMRJ sem CS para 2010 e 8,3% da RMSP. Há, portanto, considerável margem de incerteza sobre as mudanças que poderemos observar. Apenas as variações mais acentuadas podem ser consideradas significativas.

Tabela 1
Categorias socioprofissionais detalhadas. Metrópoles de Rio de Janeiro e São Paulo (2000 e 2010)

Tomando, então, as categorias por nós criadas, é possível verificar que, nas duas metrópoles, cerca de metade das pessoas ocupadas pertencia ao conjunto das classes trabalhadoras (populares e operárias); e que, entre 2000 e 2010, esse peso diminuiu de 53% para 50% no Rio de Janeiro, e de 52% para 49% em São Paulo. Trata-se de um resultado que desafia claramente a imagem generalizada de metrópoles duais habitadas por uma grande maioria de classes trabalhadoras e por uma pequena minoria de pessoas privilegiadas. Se considerarmos toda a população, inclusive as inativas, o peso das classes populares será sem dúvida um pouco maior por causa de sua estrutura demográfica, sem que isso ponha em dúvida o resultado obtido.4 4 Na RMRJ, por exemplo, em 2010 os domicílios das classes populares urbanas tinham média de 3,8 moradores, e os da classe operária 3,87, ao passo que os de classe média alta tinham 3,23 moradores, segundo o Censo Demográfico do IBGE (2012).

Os trabalhos de outros autores, já publicados, oferecem resultados diferentes. Para São Paulo, em 2010, Eduardo Marques (MARQUES, 2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.) encontrou 41% de trabalhadores manuais e 17% de trabalhadores não manuais de rotina de nível baixo, perfazendo um total de 58%. Para a mesma metrópole em 2010, Bógus e Pasternak (2015BÓGUS, L. M.; PASTERNAK, S. (org.). São Paulo: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015., p. 118) encontraram um total de 56% de membros das classes mais baixas. E, para o Rio de Janeiro em 2010, Ribeiro (2015RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015., p. 172) encontrou um total de 58% nessas classes. A diferença entre nossas medidas provavelmente decorre do fato de que classificamos na pequena burguesia urbana os trabalhadores por conta própria contribuintes para a previdência social, e nas classes médias-baixas duas categorias de empregados de escritório, por causa da relativa estabilidade de seu status. As fronteiras entre as classes não são sempre claras, mas nos parece que as escolhas que fizemos (CARDOSO; PRÉTECEILLE, 2017CARDOSO, A.; PRÉTECEILLE, E. Classes médias no Brasil. Do que se trata? Qual o seu tamanho? Como vem mudando? Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 60, n. 4, p. 977-1023, 2017., p. 996) são sociologicamente pertinentes, tendo em vista os critérios de definição das classes populares (SCHWARTZ, 2011 SCHWARTZ, O. Peut-on parler des classes populaires ? La Vie des idées, 13 septembre 2011. ISSN: 2105-3030. Disponível em: http://www.laviedesidees.fr/Peut-on-parler-des-classes.html.
http://www.laviedesidees.fr/Peut-on-parl...
).

No seio das classes populares, a classe operária tem um peso em São Paulo ligeiramente superior ao das classes populares dos serviços (distância que aumentou entre 2000 e 2010), enquanto estas são significativamente mais numerosas no Rio de Janeiro (distância que diminuiu no período). As classes populares dos serviços recuam em ambas as cidades. A classe operária se mantém estável, mas, olhando de forma mais detalhada, os trabalhadores industriais, de status formal e informal, apresentam declínio significativo, compensado pelo crescimento dos trabalhadores artesanais de status formal e dos trabalhadores de manutenção, estocagem e transporte.

O conjunto das classes médias compunha cerca de um terço dos ocupados em 2000 nas duas metrópoles. No geral, houve aumento expressivo em ambas, ainda que um pouco mais forte em São Paulo, entre 2000 e 2010 (em particular nas classes médias-altas).

Esses resultados também divergem daqueles já publicados. Marques avalia as categorias médias em 30% em 2000 em São Paulo (MARQUES, 2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014., p. 683: gráfico 1, EGP II + IIIa + V), com declínio moderado, mas significativo, em 2010. Bógus e Pasternak (2015BÓGUS, L. M.; PASTERNAK, S. (org.). São Paulo: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015., p. 118) estimam igualmente em 30% em 2000 para São Paulo, novamente com declínio moderado, porém sensível. Ribeiro (2015RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015., p. 172), por fim, encontrou 27,9% em 2000 para o Rio de Janeiro, mais uma vez com declínio moderado, embora sensível em 2010. A diferença nos montantes é explicada pelo fato de termos classificado nas classes médias-altas uma parte do que os três autores categorizaram como profissionais de nível superior, e nas classes médias-baixas uma parte do que eles classificam como trabalhadores não manuais de rotina. Aqui, reitera-se, nossas escolhas nos parecem mais precisas e mais pertinentes (CARDOSO; PRÉTECEILLE, 2017CARDOSO, A.; PRÉTECEILLE, E. Classes médias no Brasil. Do que se trata? Qual o seu tamanho? Como vem mudando? Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 60, n. 4, p. 977-1023, 2017., p. 993-996).

Os resultados são distintos, ainda, quanto à evolução, já que os três trabalhos encontraram declínio das classes médias entre 2000 e 2010 onde encontramos aumento significativo de seu peso na População Economicamente Ativa (PEA), passando de 32,6% para 35,8% no Rio de Janeiro, e de 34% para 38,3% em São Paulo. Mesmo excluindo as classes médias-altas, que cresceram acentuadamente - assim como os profissionais de nível superior na classificação daqueles autores -, identificamos progressão expressiva das classes médias-médias, e moderada para as classes médias-baixas. Como os dados originais utilizados por todos nós são os mesmos, seria necessário comparar os algoritmos de recodificação empregados pelas equipes para entender a origem das divergências. Até que se prove o contrário por meio de tal análise, mantemos nossos resultados: nas duas metrópoles as classes médias representam mais de um terço da população ocupada - mais que os operários ou as classes populares dos serviços, respectivamente - e avançaram na década.

As classes superiores aumentaram significativamente no Rio de Janeiro, uma vez que passaram de 3,8% para 4,9%, devido ao crescimento dos altos cargos da função pública e das profissões liberais; também em São Paulo, foram de 3,6% para 4,1%, em razão do crescimento das profissões liberais. Esses resultados são mais difíceis de comparar, pois Bógus e Pasternak (2015BÓGUS, L. M.; PASTERNAK, S. (org.). São Paulo: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.), além de Ribeiro, adotam definição mais restritiva de dirigentes; Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.), por seu turno, classifica apenas os empregadores nessa categoria.

A pequena burguesia urbana, composta de artesãos e comerciantes, representava cerca de 10% nas duas metrópoles em 2000, e seu peso diminuiu bastante em ambas. Bógus e Pasternak, assim como Ribeiro (2015RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015.), encontram muito menos, em torno de 2%. A diferença provavelmente resulta de termos incluído nessa categoria as ocupações de tipo artesanal ou comercial exercidas por conta própria, mas com contribuição à previdência social.

Em suma, a evolução da estrutura de ocupações no Rio de Janeiro e em São Paulo na primeira década do século XXI é marcada por uma mudança em direção às categorias de média e alta qualificação, pelo crescimento das classes médias e pelo decréscimo das classes populares. Essa evolução claramente invalida a hipótese da dualização oriunda do modelo de cidade global, que supõe o crescimento das classes superiores e das classes médias mais altas, o declínio das classes médias e o forte crescimento de um proletariado terciário, capaz de compensar o declínio da classe operária industrial, fruto da desindustrialização. A hipótese em análise foi sustentada por Ribeiro, tanto em seu artigo de 2000RIBEIRO, L. C. Q.; LAGO, L. C. do. O espaço social das grandes metrópoles brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 3, p. 111-129, 2000., em coautoria com Lago, como no livro de 2015 (p. 173), mesmo diante da evidência, presente nas próprias categorias do autor, de que o peso das categorias terciárias populares não aumentou.

Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014., p. 684), por sua vez, descarta a hipótese da dualização e retém a da profissionalização proposta por Hamnett (1994HAMNETT, C. Social polarisation in global cities: theory and evidence. Urban Studies, v. 33, n. 8, p. 401-424, 1994.), enquanto observa que o peso dos trabalhadores industriais permaneceu alto em São Paulo, apesar de seu declínio, sinal de manutenção de importante atividade industrial na metrópole.

Nossos resultados, contudo, permitem fazer dois adendos relevantes à tese da profissionalização. Primeiro, se é verdade, por um lado, que o crescimento das classes médias-altas é o mais forte e se, nelas, o que mais cresce é a participação dos gerentes e engenheiros das empresas, por outro a contribuição das categorias mais qualificadas de ensino superior, pesquisa, saúde e atividades culturais é igualmente significativa e requer uma leitura mais complexa que a da reestruturação produtiva do capitalismo globalizado. Em segundo lugar, o crescimento das classes médias que destacamos mostra que não apenas os profissionais mais qualificados estão progredindo. Notamos também, com Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.), que a ligeira diminuição no peso da classe operária industrial contrasta com o declínio acentuado na maioria das grandes cidades do mundo capitalista ocidental. Para São Paulo, isso decerto reflete a permanência mais forte da atividade industrial. Para o Rio de Janeiro, o pequeno declínio deve-se sobretudo ao crescimento dos trabalhadores empregados no setor de construção civil, que subiu de 5,8% do total de ocupados em 2000 para 6,6% em 2010, em razão dos expressivos investimentos públicos nas obras para os grandes eventos esportivos sediados na cidade (Copa das Confederações da FIFA em 2013, Copa do Mundo de Futebol de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016), além do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2007 e que incluiu grandes projetos de infraestrutura nas favelas cariocas, ao lado de outros de ampla envergadura, a exemplo do Programa Minha Casa Minha Vida, de 2009. Se excluirmos esse setor, a queda na participação dos operários no conjunto dos demais setores é bem mais pronunciada.

3. Evolução geral da segregação

Mapeada a mudança na estrutura socioprofissional das duas metrópoles, passemos ao estudo de sua segregação espacial. A forma mais simples de medir a intensidade e a evolução da segregação urbana é por meio de índices sintéticos. Essas medidas dependem das categorias de descrição/apreensão da realidade social; da escala e da forma de divisão espacial em unidades de análise; do perímetro do conjunto urbano; e do tipo de índice utilizado (OBERTI; PRÉTECEILLE, 2016OBERTI, M.; PRÉTECEILLE, E. La Ségrégation urbaine. Paris: La Découverte , 2016. ).

Utilizaremos as categorias socioprofissionais francesas e sua agregação em classes sociais, conforme discutido acima.

Para a escolha das unidades espaciais, é apropriado ter uma divisão o mais fina possível para evitar a diluição da segregação por efeito da média entre espaços socialmente muito contrastantes incluídos na mesma unidade - por exemplo, as favelas da Zona Sul do Rio adjacentes aos bairros ricos de Copacabana, Ipanema, Gávea ou São Conrado. A divisão mais fina possível é a das áreas de ponderação, unidades espaciais menores definidas pelo IBGE em que os dados da amostra censitária são representativos - tamanho médio em 2000 de cerca de 10.000 ocupados para a RMRJ, 8.800 para a RMSP. A dificuldade aqui reside na mudança da taxa da amostra censitária (10% da população em 2000, 5% em 2010), assim também nas áreas de ponderação (AP), que são cerca de duas vezes menos numerosas e duas vezes maiores em 2010. A avaliação da evolução da segregação, para ser rigorosa, deve assumir uma divisão constante, para o que existem três soluções:

  1. Utilizar uma divisão menos fina e estável ao longo do tempo, englobando as APs, como é o caso dos distritos. Essa foi a escolha feita para 2010 por Bógus e Pasternak (2015BÓGUS, L. M.; PASTERNAK, S. (org.). São Paulo: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.) e por Ribeiro (2015RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015.); mas ela claramente enfraquece a mensuração, pelo efeito da média, já que os distritos são cinco vezes menos numerosos, portanto, cinco vezes maiores que as APs.

  2. Utilizar as APs de 2010, projetando nelas os dados do Censo de 2000. Aqui, perde-se a sutileza espacial, ainda que menos do que na escolha anterior. As AP2010 são cerca de duas vezes maiores que as AP2000, escolha feita por Eduardo Marques em sua análise de São Paulo. Entretanto, tivemos que rejeitar essa escolha para o Rio de Janeiro depois de perceber que o redimensionamento, pelo IBGE, das APs em 2010 ficou aquém do aceitável para vários municípios da RMRJ.

  3. Utilizar as AP2000 e projetar nelas os dados do Censo de 2010. Essa foi a escolha que fizemos, aconselhados por e com a ajuda do IBGE;5 5 O IBGE nos forneceu um arquivo de correspondência entre os números dos domicílios 2010 e a AP de 2000, o qual continha, porém, certo número de erros e lacunas Tivemos que fazer as correções e adições à mão Também tivemos que refazer o mapa digitalizado (shapefile) das AP2000, com a ajuda do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), de São Paulo. a vantagem é a melhor sutileza espacial. A restrição consiste em não podermos utilizar variáveis muito detalhadas, por razões de robustez amostral.

Para o perímetro, decidimos trabalhar com as regiões metropolitanas, cuja definição, embora administrativa, é relativamente homogênea entre as duas cidades e inclui a maior parte da população de suas regiões urbanas funcionais.

Quanto aos índices de segregação, existem muitos deles, que medem diferentes aspectos e diferentes dimensões da segregação (MASSEY; DENTON, 1988MASSEY, D. S.; DENTON, N. A. The dimensions of residential segregation. Social Forces, v. 67, n. 2, p. 281-315, 1988.). Reteremos aqui o índice de segregação S, que compara a distribuição de uma categoria nas unidades espaciais com a de todas as outras, bem como o índice de dissimilaridade D, que compara a distribuição de duas categorias.6 6 Não empregaremos o índice de Moran utilizado por outros colegas, como Marques (2014), que tem a vantagem de levar em conta a dimensão estritamente espacial do agrupamento ou exclusão de categorias, mas que serve, sobretudo, para evidenciar contrastes sociais e espaciais mais marcantes Em vez disso, buscaremos aqui levar em conta todas as situações locais, contrastantes ou não, e as categorias sociais, fortemente segregadas ou não É por isso que não compararemos nossos resultados com os de Becceneri, Alves e Vazquez (2019), que utilizam apenas o índice de Moran e para categorias altamente agregadas. BECCENERI, L B.; ALVES, H P da F.; VAZQUEZ, D. A Estratificação sócio-ocupacional e segregação espacial na metrópole de São Paulo nos anos 2000. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.21, n.1, p. 137-154, 2019. Calcularemos o primeiro para as CSs detalhadas, e o segundo para as classes que as agrupam, para ter uma visão mais sintética das proximidades e distâncias entre as categorias.

O Gráfico 1 mostra os valores do índice de segregação S para as duas metrópoles em 2000 e 2010. Encontramos vários resultados que havíamos estabelecido apenas para o ano de 2000 (PRÉTECEILLE; CARDOSO, 2008 PRETECEILLE, E.; CARDOSO, A. Rio de Janeiro y São Paulo: ¿ciudades duales? Comparación con Paris. Ciudad y Territorio, v. XL, p. 617-40, 2008. ). O primeiro deles é que a segregação mais forte é a das classes superiores urbanas (CS23, 36 e 31), seguida, em um nível significativamente mais baixo, pelas classes médias-altas (CS34, 35, 37 e 38, em que CS33 vem a ser uma posição intermediária - ver Gráfico 1). Trata-se de resultado clássico, presente em todas as grandes cidades capitalistas onde foram feitas análises semelhantes, mas, nas duas metrópoles brasileiras em estudo, a segregação da classe alta é particularmente intensa - em torno de 0,5, valor que pode ser considerado alto, dada a escala não muito fina das APs (comparada com a dos setores censitários dos censos nos Estados Unidos, por exemplo, ou mesmo dos IRIS dos censos franceses). Esse é um resultado que reforça que a segregação mais intensa é voluntária, produzida pelas categorias que mais escolhem seu local de residência, mantendo as outras a distância.

A classe operária (CS6x) vem em seguida, no entanto apresenta índices de segregação bem menos intensos (entre 0,20 e 0,25) que podem ser considerados moderados. A CS48 - contramestres -, que é a profissão de classe média mais próxima dos trabalhadores manuais, tem um índice de segregação próximo a eles.

As menos segregadas são as classes populares de serviços (CS53, 55, 56 e 57), a classe média-baixa (CS52 e 54) e a classe média-média (CS4x, exceto CS48, já mencionada, assim como CS45 - profissões intermediárias administrativas do funcionalismo público), com índices em sua maioria abaixo de 0,20.

Vale ressaltar a diferença entre a intensidade da segregação das categorias operárias e a das classes populares de serviço porque, embora moderada, mostra um contraste interno às classes populares, contra a ideia de classes populares indiferenciadas muitas vezes apresentada para as metrópoles brasileiras.7 7 Ver, por exemplo, Machado da Silva (2020). MACHADO DA SILVA, L. A. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2020.

Os baixos índices de segregação das classes médias-médias e médias-baixas também são um resultado a sublinhar. Ainda que clássico, mostra que essas categorias sociais são as mais misturadas com as demais, contrariando muitos discursos que, com base na análise da gentrificação, consideram as classes médias como os atores centrais da intensificação da segregação (LEES; SLATER; WYLY, 2010LEES, L.; SLATER, T.; WYLY, E. (org.). The gentrification reader. New York: Routledge , 2010.; CLERVAL, 2013CLERVAL, A. Paris sans le peuple. La gentrification de la capitale. Paris: La Découverte, 2013.; DONZELOT, 2004DONZELOT, J. La Ville à trois vitesses: relégation, périurbanisation, gentrification. Esprit, n. 303, p. 14-39, 2004.). O achado assinala, assim, a importância de distinguir os diferentes componentes das classes médias - as classes médias-altas sendo de fato muito segregadas, porém não seus segmentos médios e baixos.

A intensidade de segregação medida por esse índice S é muito semelhante entre as duas cidades; com efeito, os dois gráficos (Gráfico 1) são praticamente sobreponíveis. No entanto, existem diferenças na sua evolução temporal.

Gráfico 1
Índice de segregação das CS em 2000 e 2010

Em ambos os casos, a tendência geral é de crescimento dos índices de segregação: 17 de 28 em São Paulo, 16 de 28 no Rio de Janeiro. Mas o crescimento foi de pequeno a moderado na maioria das vezes.

Nas classes superiores, o índice de segregação apresentou crescimento no caso dos donos de empresas (CS23) e dos executivos do serviço público (CS33), tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo; entretanto, diminuiu nas duas cidades no caso das profissões liberais (CS31), e no Rio no tocante aos executivos de empresas privadas (CS36), que se manteve estável em São Paulo.

Nas classes médias-altas, em ambas as metrópoles, o índice de segregação foi ligeiramente decrescente ou estável para professores e profissões literárias e científicas (CS34) e engenheiros (CS38); aumentou ligeiramente para ocupações em informação, artes e entretenimento (CS35) e para executivos administrativos e comerciais (CS37).

Para as classes médias-médias, a segregação diminuiu no Rio de Janeiro para todas as CS, exceto professores (CS42) - com pequeno crescimento - e contramestres (CS48) - com forte crescimento; em São Paulo, também cresceu fortemente para contramestres (CS48) e para cargos administrativos intermediários (CS45) e técnicos (CS47), com ligeiro decréscimo ou permanecendo estável para as demais.

No que diz respeito às classes médias-baixas, a segregação cresceu no Rio de Janeiro e em São Paulo no caso dos servidores públicos (CS52). Mas, no caso dos funcionários administrativos das empresas (CS54), permaneceu estável no Rio e caiu acentuadamente em São Paulo.

A pequena burguesia urbana, os artesãos (CS21) e os comerciantes (CS22) viram seus índices de segregação aumentar de maneira acentuada nas duas metrópoles, principalmente os comerciantes - mantendo-se, porém, em nível bastante baixo.

Quanto às categorias populares de serviços, a tendência em ambas as cidades foi de aumento bastante significativo no índice de segregação, exceto para os trabalhadores domésticos, cujo índice diminuiu no Rio de Janeiro.

No que tange à classe trabalhadora, a tendência geral foi também de aumento do índice de segregação, exceto para os trabalhadores de tipo artesanal informal (CS68), com relação aos quais houve declínio; para os trabalhadores de manutenção, estocagem e transporte (CS65), detectou-se ligeiro declínio em São Paulo; e, para trabalhadores industriais formais em São Paulo, o índice permaneceu estável.

O Gráfico 2 resume os resultados para as classes agregadas. Vemos ainda mais claramente a estrutura geral da segregação: forte para as classes superiores, significativamente menor para as médias-altas; então moderadamente forte para a classe trabalhadora; baixo para as classes médias e médias-baixas, a pequena burguesia urbana e as classes populares de serviços.

Gráfico 2
Evolução do índice de segregação S, por classe social, na RMRJ e na RMSP (2000-2010)

Nossos resultados aqui convergem com os de Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014., p. 685), com a diferença de que constatamos maior intensidade de segregação em todas as classes, principalmente nos dois extremos: quase 0,5 para as classes altas, ali onde Marques encontra em torno de 0,4; em torno de 0,25 para a classe operária, onde Marques encontra 0,15. Essas diferenças podem ser explicadas, primeiro, pela melhor seletividade de nossas categorias, mas também, e sobretudo, pela escala mais refinada aqui empregada, já que, como dissemos, Marques fez uso da divisão em áreas de ponderação de 2010, duas vezes maior em média do que a de 2000.

A estrutura geral é convergente, também, com a encontrada por Ribeiro (2015RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015.) para o Rio em 2010, com valores de índice próximos aos de Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.) para as categorias médias e populares - o que é lógico, já que sua análise foi feita na mesma escala das áreas de ponderação de 2010 (CHÉTRY, 2015CHÉTRY, M. A segregação residencial nas metrópoles brasileiras: Rio de Janeiro em perspectiva. In: RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital, Observatório das Metrópoles, 2015. p.193-196., p. 193). Por outro lado, encontram valores de índice significativamente superiores até mesmo aos nossos para as classes altas e os profissionais de nível superior, cuja definição parece próxima à das nossas classes médias-altas; no caso de sua categoria de dirigentes, o resultado sem dúvida se deve a uma definição mais restritiva dessa categoria, que representa em sua análise menos de 1% da população ativa, quando nossas classes superiores representam cerca de 5%; por outro lado, sua categoria profissional de nível superior (12,3% dos ativos) é menos seletiva do que nossas classes médias-altas (9,2%); mas é provável que inclua sobretudo as categorias superiores que os autores não classificaram nas classes altas, o que logicamente faz com que seu índice aumente. Contudo, é surpreendente que essa seletividade um pouco maior mais do que compense a queda esperada no índice devido à escala menos fina. A diferença entre os resultados de Ribeiro e os de Marques para trabalhadores não qualificados no setor terciário também é surpreendente: Marques encontra, como nós, um índice significativamente inferior ao da classe operária, enquanto Ribeiro revela, para São Paulo, um índice próximo ao dos operários.

No que diz respeito à evolução dos índices de segregação, é de notar, a princípio, que os índices para as classes agregadas apresentam estabilidade ou ligeira diminuição. Os únicos casos de aumento - moderado - são os da pequena burguesia urbana e das categorias populares de serviços, e, em São Paulo, apenas das classes médias-altas.

Esse resultado difere um pouco do mostrado anteriormente para as categorias detalhadas, em que notamos aumento de uma pequena maioria das categorias no índice de segregação. A agregação de categorias em classes reverte ligeiramente a tendência geral ao calcular a média das diferentes mudanças dentro de cada classe.

As evoluções ilustradas pelo nosso gráfico para São Paulo diferem um pouco daquelas observadas por Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.) para as classes EGP: ele encontra forte crescimento para o índice de proprietários e empregadores, e baixo para o de profissionais de nível baixo, enquanto deparamos com uma ligeira queda tanto para o índice das classes superiores como para o das classes médias-médias; Marques aponta ligeiro crescimento para o índice de trabalhadores não manuais de rotina, nível baixo, onde identificamos um crescimento mais sustentado para o índice das classes populares de serviços. A priori, a diferença de escala não afeta as mudanças no tempo. É, portanto, sobretudo às diferenças na definição das categorias que devemos atribuir essas (moderadas) divergências de resultados. Não é possível realizar comparações com as análises de Ribeiro (2015RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015.) nesse ponto, uma vez que só foram publicados os índices de segregação para 2010.

Para completar a análise da segregação por índices, o mais útil é o índice de dissimilaridade entre categorias. Seria interessante considerá-lo para as categorias detalhadas - já vimos que estas permitem, por óbvio, uma leitura mais refinada -, mas o tamanho das tabelas e a extensão da análise dos resultados ultrapassariam os limites deste artigo; vamos, portanto, nos ater ao índice de dissimilaridade entre as classes agregadas.

Para a RMRJ, em 2000, a Tabela 2 enfatiza até que ponto a hierarquia social fortemente marcada entre classes, e que havíamos identificado em diferentes dimensões cumulativas (CARDOSO; PRÉTECEILLE, 2021CARDOSO, A.; PRÉTECEILLE, E. Classes médias no Brasil: estrutura, perfil, oportunidades de vida, mobilidade social e ação política. Rio de Janeiro: UFRJ, 2021., cap. 2), se apresenta também nas proximidades e distâncias no espaço residencial.

Tabela 2
Índice de dissimilaridade entre as classes - RMRJ8 8 Para simplificar a leitura, nas Tabelas 2 e 3 excluímos as classes não urbanas (proprietários rurais e trabalhadores rurais), que têm participação residual entre os ocupados nas metrópoles.

Assim, as classes superiores estão bastante próximas das classes médias-altas, porém, bastante distantes das classes médias e médias-baixas e da pequena burguesia urbana, e muito distantes das categorias populares dos serviços e ainda mais dos operários.

Identificamos a mesma hierarquia, mas com distâncias atenuadas, para as classes médias-altas, que se aproximam moderadamente das classes médias e médias-baixas e da pequena burguesia urbana, ao passo que se distanciam das categorias populares dos serviços e ainda mais da classe operária, porém menos que as classes superiores.

Para essas duas classes, os resultados explicam o alto valor de seu índice de segregação: ele resulta notadamente de sua intensa segregação da classe operária.

As classes médias-médias estão muito próximas das médias-baixas e da pequena burguesia urbana, moderadamente próximas das médias-altas e das classes populares de serviços, moderadamente distantes da classe operária e, por fim, mais claramente distantes das classes superiores.

Vale destacar que as classes médias-baixas têm aproximadamente as mesmas proximidades que as anteriores, embora estejam um pouco mais próximas da classe operária e um pouco mais distantes das classes superiores.

A pequena burguesia urbana, por sua vez, está muito próxima das classes médias-médias, médias-baixas e populares dos serviços, moderadamente próxima da classe operária, moderadamente distante das classes médias-altas e claramente distante das classes superiores.

Para essas três classes (médias-médias, médias-baixas e pequena burguesia urbana), os resultados também explicam o baixo valor do índice de dissimilaridade: isso decorre em geral da proximidade entre si e da proximidade com as duas classes populares.

As classes populares dos serviços estão muito próximas da pequena burguesia urbana e da classe operária, moderadamente próximas das classes médias e médias-baixas e nitidamente distantes das médias-altas e ainda mais das superiores.

A classe operária, enfim, está muito próxima das classes populares dos serviços, bastante próxima da pequena burguesia urbana, moderadamente distante das classes médias e médias-baixas e fortemente distante das classes médias-altas e especialmente das altas.

Para a RMSP (Tabela 3), em 2000, encontramos essencialmente os mesmos resultados. Há apenas uma diferença notável em relação ao RMRJ (Tabela 2), que diz respeito à pequena burguesia urbana. Isto é, em São Paulo, ela está um pouco menos distante das classes superiores e das classes médias-altas do que as médias-baixas, mais próxima ainda das médias e médias-baixas e visivelmente menos próxima das categorias populares de serviços e da classe operária. Em termos de hierarquia socioespacial, a pequena burguesia situa-se em posição levemente acima das classes médias-baixas.

Tabela 3
Índice de dissimilaridade entre as classes - RMSP

No geral, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, a estrutura de proximidade e distância entre as classes tem se mantido bastante estável, como mostram as pequenas variações registradas na terceira parte das duas tabelas (Tabelas 2 e 3).

No Rio de Janeiro, as únicas mudanças significativas são relativas às classes médias. Estas, assim como as médias-baixas, se afastaram um pouco das classes médias-altas e se aproximaram um pouco das classes populares, principalmente da operária.

Em São Paulo, a mudança mais marcante relaciona-se às classes médias-baixas, que se afastaram de maneira significativa das classes superiores, das classes médias-altas, das médias-médias e da pequena burguesia urbana, e se aproximaram de maneira significativa das classes populares e da classe operária. Essa evolução confirma, em 2010, a inversão hierárquica parcialmente observada em 2000 entre as classes médias-baixas e a pequena burguesia urbana.

O único ponto de comparação possível aqui é com Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.). A estrutura geral da segregação descrita pelos índices de dissimilaridade é bastante semelhante. Em nosso caso, encontramos segregação mais intensa nos índices mais elevados, o que se explica particularmente pela escala mais fina utilizada aqui; detectamos uma hierarquia mais marcada entre as classes, o que deve ser atribuído à melhor qualidade sociológica de nossas classes em relação às classes EGP.

Quanto à mudança no tempo, a principal divergência com Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.) diz respeito à segregação dos proprietários e empregadores, cujos índices de dissimilaridade aumentam com relação a todas as outras categorias, enquanto em nossa análise os índices se mantêm estáveis. A explicação para essa discrepância deve-se, sem dúvida, à definição mais restritiva dessa categoria superior na nomenclatura EGP, o que faz com que ela represente apenas cerca de 2% do total de ocupados, em comparação com 4% a 5% de nossas classes superiores.

Duas outras divergências são referentes às classes médias: Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.) nota uma aproximação entre os profissionais de nível superior e os profissionais de nível baixo, enquanto observamos ligeiro distanciamento entre as classes médias-altas, por um lado, e as classes médias-médias e médias-baixas, por outro. Quanto à crescente mistura que ele nota entre as classes operária e médias, só a observamos com as classes médias e médias-baixas cariocas, e apenas com as classes médias-baixas em São Paulo. Novamente, acreditamos que nossos resultados são mais robustos em face da categorização mais precisa que construímos para as classes médias.

Se as duas metrópoles são altamente segregadas por conta da forte diferença na distribuição espacial das classes superiores e médias-altas, por um lado, e das classes populares, por outro, é necessário levar em conta, no entanto, a composição numérica muito distinta dessas classes, para evitar leituras caricaturais (ver Tabela 1).

Assim, considerando o índice de dissimilaridade, as classes superiores estão mais separadas das classes populares do que em muitas metrópoles do mundo capitalista desenvolvido. Contudo, como têm um peso menor no Rio de Janeiro e em São Paulo, são menos predominantes nos espaços privilegiados. A Tabela 4 explica esse aparente paradoxo no caso do Rio; os resultados para São Paulo são muito semelhantes.

Tabela 4
Índice de interação xPy - Rio de Janeiro (2010)

O índice xPy mede a probabilidade de os membros de uma categoria x (na linha) terem como vizinhos nas unidades espaciais estudadas (aqui as áreas de ponderação) membros da categoria y (na coluna). O valor na diagonal é xPx, chamado de índice de isolamento.

Vemos que, para a metrópole do Rio de Janeiro em 2010, os membros das classes superiores apresentavam 13% de probabilidade de ter membros da mesma classe como vizinhos, e 20% de membros da classe média-alta. Mas, entre esses vizinhos, havia 36% de membros das outras classes médias e da pequena burguesia, assim como 31% das classes populares. Os valores são da mesma ordem para as classes médias-altas, a segunda mais autossegregada.

Por outro lado, para os membros das duas classes populares (operária e dos serviços), que são muito mais numerosas, a probabilidade de ter pessoas das mesmas duas classes como vizinhos é muito alta (57% para a operária, 54% para as populares dos serviços), ao passo que a de ter membros das duas classes mais altas como vizinhos é muito menor (9% e 10%), respectivamente.

As classes médias e médias-baixas e a pequena burguesia urbana são as três classificações para as quais a porcentagem de vizinhos de uma dessas classes varia pouco de uma classe para outra. Retomaremos agora essa discussão analisando os perfis dos diferentes tipos de espaços e sua evolução.

4. Estruturas socioespaciais e suas transformações

Para evitar reduzir a segregação apenas aos contrastes mais marcantes, é necessário compreender a composição social dos diferentes espaços da cidade, o que é essencial para apreender tanto os diferentes tipos de desigualdades urbanas resultantes da segregação como os diferentes tipos de relações sociais que podem ter lugar em espaços residenciais.

Para isso, construímos uma tipologia socioprofissional dos espaços locais das duas regiões metropolitanas, utilizando, quanto aos cálculos dos índices de segregação, nossas categorias socioprofissionais detalhadas (CS) e a divisão do espaço em áreas de ponderação de 2000 (AP), que é o corte mais fino possível. O procedimento estatístico9 9 Para uma apresentação detalhada do método, desenvolvido inicialmente no caso da metrópole parisiense, cf. Préteceille (2003, cap.1 e anexo III). PRÉTECEILLE, E. La Division sociale de l’espace francilien Typologie socioprofessionnelle 1999 et transformations de l’espace résidentiel 1990-99. Paris: Observatoire Sociologique du Changement FNSP-CNRS, 2003. foi o mesmo nas duas cidades: análise de correspondência binária (ACB) na tabela de contingência de dados (número de pessoas por CS por AP), seguida de uma classificação hierárquica ascendente (HAC) sobre os principais fatores da ACB e da consolidação da tipologia, reatribuindo as APs ao tipo de que elas mais se aproximam no sentido da métrica euclidiana sobre as diferenças de perfil socioprofissional.

As Tabelas 5 e 6 fornecem uma caracterização resumida dos tipos usando classes agregadas.10 10 Refizemos a tipologia já apresentada em Préteceille e Cardoso (2008; 2020), para levar em conta as melhorias metodológicas na construção da CS introduzidas durante a análise dos dados de 2010. Os resultados são apenas ligeiramente diferentes, e a estrutura geral não mudou. PRÉTECEILLE, E.; CARDOSO, A. Socioeconomic segregation and the middle classes in Paris, Rio de Janeiro and São Paulo: a comparative perspective In: SAKO, M. (org.) Handbook on urban segregation. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2020, p. 270-288.

Tabela 5
Perfil dos tipos socioprofissionais - RMRJ (2010)
Tabela 6
Perfil dos tipos socioprofissionais - RMSP (2010)

Um primeiro resultado interessante é o fato de que o procedimento produziu estruturas muito semelhantes para as duas metrópoles. Isso significa que poderíamos dar os mesmos nomes aos tipos, que possuem perfis equivalentes: dois tipos superiores, SUPER1 e SUPER2, em que as classes superiores estão claramente sobrerrepresentadas; dois tipos médios, MEDSUP e MEDPOP, cujo perfil está mais próximo da média; dois tipos populares, POPU1 e POPU2, em que as classes populares estão fortemente sobrerrepresentadas e as classes altas quase ausentes; e um tipo popular-periférico, POPPERI, semelhante aos anteriores, mas no qual os proprietários rurais e os trabalhadores rurais estão fortemente sobrerrepresentados.

Nas Tabelas 5 e 6, os tipos são ordenados da esquerda para a direita seguindo a ordem decrescente do primeiro fator da ACB, o que pode ser considerado um indicador sintético do status socioespacial. Na primeira parte - este é o segundo resultado importante a sublinhar - é possível verificar que o peso nos tipos das classes superiores e médias-altas diminui monotonicamente da esquerda para a direita, e que, simetricamente, o peso das classes trabalhadoras aumenta do mesmo modo. É essa distribuição cruzada que reflete o alto índice de dissimilaridade entre esses dois conjuntos de categorias. A forte segregação entre as classes superiores e médias-altas, de um lado, e as classes trabalhadoras, de outro, pode ser lida nas oposições de perfil bem marcados entre os tipos de espaços superiores e os espaços populares.

A classe operária é a que mais contribui, por sua sobrerrepresentação nos tipos populares e por sua virtual ausência no tipo superior 1, para essa oposição do lado das classes populares. Isso é mais marcante em São Paulo, onde a classe operária é mais numerosa; mas é interessante notar que a situação se repete no Rio de Janeiro, onde as classes populares são, no entanto, menos operárias e mais terciárias.

A concentração das classes superiores em seus espaços privilegiados é considerável: no Rio de Janeiro, 60% dos membros das classes superiores residem em APs que compõem os tipos superiores 1 e 2; em São Paulo, a porcentagem é de 61%. A presença das classes médias-altas é um pouco menos marcada nos tipos superiores: 44%, tanto no Rio como em São Paulo. Essas classes estão simetricamente muito pouco presentes nos tipos populares, porém com uma diferença não negligenciável entre as duas cidades: no Rio, encontramos 8% das classes superiores e 14% das classes médias-altas nos três tipos populares (que, vale notar, incluem mais da metade da população ativa), contra 14% e 21%, respectivamente, em São Paulo. A maior presença nesta última metrópole pode se dever à presença de enclaves mais ricos em bairros populares (como os “enclaves fortificados” estudados por Caldeira [2000CALDEIRA, T. P. R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, Edusp, 2000. ]), algo menos provável no Rio de Janeiro.

O terceiro resultado marcante é que as classes superiores e médias-altas estão longe de serem predominantes nos espaços superiores. Juntas, elas representam 46% da força de trabalho total no tipo superior 1 no Rio de Janeiro e 44% em São Paulo, e apenas 31% no tipo superior 2 na primeira metrópole e 27% na segunda. Com isso, as classes mais altas convivem, nesses tipos superiores, com um conjunto de classes médias e médias-baixas, em número ligeiramente menor no tipo SUPER1 e significativamente maior no tipo SUPER2, bem como com um número não negligenciável de membros das classes operária e dos serviços.

Esse resultado pode parecer surpreendente diante da prática dos mercados fundiário e imobiliário na segregação, que a priori exclui as classes populares e médias-baixas dos bairros nobres. Uma primeira explicação remete a uma efetiva diversidade social em bairros como o de Copacabana, por exemplo, onde os prédios à beira-mar são altamente valorizados e exclusivos, mas cujo valor diminui à medida que nos afastamos da praia. Aqui, prédios mais modestos podem acomodar famílias das classes médias e médias-baixas e da pequena burguesia urbana. Uma segunda explicação, talvez mais geral, tem a ver com o fato de que classes superiores e médias-altas são numericamente minoritárias na força de trabalho total. Como os tipos estatísticos gerados pela ACB tomam por referência áreas de ponderação mais extensas e heterogêneas - 26.000 habitantes em média no Rio de Janeiro para a AP2000 -, não surpreende que alguns agrupem no mesmo conjunto bairros com habitações de maior status e favelas ou bairros pobres. No Rio, muitas pequenas favelas são limítrofes com bairros mais ricos; apenas as maiores favelas são grandes o suficiente para constituir por conta própria uma ou mais áreas de ponderação. Algo semelhante ocorre em São Paulo, em que é clássico o caso da favela de Paraisópolis, encravada no rico bairro do Morumbi.11 11 Essa heterogeneidade das APs poderia ser controlada até certo ponto cruzando-as, como Préteceille havia feito nos dados censitários de 1991 (PRÉTECEILLE; VALLADARES, 2000a; 2000b) com uma tipologia de setores censitários, que são muito menores, e, portanto, a priori mais homogêneos, com as variáveis de renda e escolaridade disponíveis nessa escala Embora grosseiras, elas dão uma indicação do nível socioeconômico. PRÉTECEILLE, E.; VALLADARES, L A desigualdade entre os pobres - favela, favelas In: HENRIQUES, R (org.) Desigualdade e pobreza no Brasil Rio de Janeiro: IPEA, 2000a, p 459-485. PRÉTECEILLE, E.; VALLADARES, L. Favela, favelas: unidade ou diversidade da favela carioca In: RIBEIRO, L. C. Q. (org.) O futuro das metrópoles: desigualdades e governabilidade. Rio de Janeiro: Revan-FASE, 2000b, p 375-403.

O quarto resultado a destacar é que, entre os tipos extremos de polarização social, tipos superiores por um lado, tipos populares por outro, encontramos nos dois tipos médios um conjunto de situações urbanas caracterizadas por misturas de todas as categorias, em proporções variáveis, mas sem forte predominância de uma classe. Nesses dois tipos, as classes médias e médias-baixas estavam moderadamente sobrerrepresentadas, e as classes trabalhadoras moderadamente sub-representadas, enquanto as superiores e as médias-altas estavam ligeiramente sobrerrepresentadas no tipo MEDSUP e ligeiramente sub-representadas no tipo MEDPOP.

Esses tipos médios mistos representavam 29,5% da população ativa no Rio de Janeiro em 2000 e 32% em São Paulo. É muito menos do que em Paris, por exemplo, onde os tipos médios equivalentes representavam 45% da população ativa em 1999, em razão da maior presença das classes superiores e médias superiores na população total e também do maior refinamento das unidades de análise espacial. No entanto, a participação dos tipos médios mistos está longe de ser desprezível nas duas metrópoles brasileiras em estudo. Vale assinalar que são modalidades amplamente incompreendidas, embora tenham o dobro do peso dos tipos superiores, que são muito mais sistematicamente presentes nas leituras dualistas da cidade brasileira.

Para analisar as mudanças na estrutura socioespacial durante a década 2000-2010, optamos por tomar como referência a tipologia 2000 que acabamos de apresentar e por classificar as APs 2010 nos tipos a que mais se assemelham em termos de perfil socioprofissional. Esse método tem a vantagem de se basear numa tipologia caracterizada por nós em detalhe. Foi possível constatar desde logo, por meio de uma ACB na tabela de dados de 2010, que a estrutura da distribuição socioespacial era muito semelhante à de 2000, o que permitiu que a tipologia de 2000 fosse um descritor bastante razoável da estrutura de 2010.

A estabilidade majoritária é o primeiro resultado que emerge das duas tabelas: 69% das APs da RMRJ foram classificadas em 2010 no mesmo tipo de 2000, e esse é o caso de 64% da RMSP.

O segundo resultado é que as mudanças de perfil ocorrem principalmente pelo deslocamento para tipos de status socioespacial mais elevados: é o caso de 27% das APs da RMRJ e de 31% das da RMSP. Essas mudanças ocorrem sobretudo pelo deslocamento para o tipo imediatamente superior (deslocando uma casela para a esquerda da diagonal nas Tabelas 5 e 6).12 12 Há dois casos excepcionais: uma AP da RMRJ, que salta do tipo mais popular, POPU2, para a SUPER2. Trata-se de uma AP de Niterói, no bairro Várzea das Moças, em uma área montanhosa no limite com Maricá; e de uma AP de São Paulo, no município de Santo André, que salta do tipo POPU1 para o tipo SUPER2. As mudanças na direção oposta, dos status inferiores, são poucas: 4% das APs no Rio, 5% em São Paulo.

Essa mudança para um status socioespacial mais elevado reflete o aumento do peso das classes superiores e dos três estratos das classes médias e o declínio do peso das classes populares, nas duas regiões metropolitanas; indica também o fato de que essa progressão se difunde em parte significativa dos tipos de espaço, e não apenas em alguns deles.

Em função do modo como são construídos, os perfis dos tipos permanecem os mesmos entre as duas datas. Exceto para os tipos extremos da hierarquia social: se uma AP que em 2000 pertencia ao tipo mais superior vê o peso das categorias superiores aumentar significativamente, não há mais tipo superior em que se possa reclassificar. Isso se aplica também, simetricamente, a uma AP do tipo mais popular, que veria o peso das classes populares aumentar. Portanto, é necessário olhar especificamente para a evolução desses tipos extremos (Tabelas 7 e 8).

Tabela 7
Distribuição das APs da RMRJ por tipo em 2000 e 2010
Tabela 8
Distribuição das APs da RMSP por tipo em 2000 e 2010

No caso de São Paulo, se isolarmos as APs que já pertenciam em 2000 ao tipo SUPER1, o peso das classes superiores passa de 18,5% para 20,6% entre 2000 e 2010, e o das classes médias-altas, de 25% para 34%. No Rio de Janeiro, para as mesmas APs do tipo SUPER1 em 2000, o peso das classes superiores salta de 18,5% para 25,1% entre 2000 e 2010, e os das classes médias-altas, de 25% para 32,5%. Há, portanto, nas duas metrópoles, um reforço muito claro do perfil superior dos espaços já superiores.

No outro extremo da hierarquia socioespacial, se considerarmos em São Paulo as APs que em 2000 pertenciam aos dois tipos mais populares, POPU2 e POPPER, o peso total das classes trabalhadoras declina ali com moderação, de 71,3% para 67,8% e de 68,9% para 65,4%, respectivamente. No Rio de Janeiro, se levarmos em conta as APs que em 2000 pertenciam aos dois tipos mais populares, POPU2 e POPPER, o peso total da classe trabalhadora também caiu de maneira moderada, passando de 66,9% para 65,7% e de 72% para 68,3%, respectivamente.

Podemos resumir todos esses resultados por meio da afirmação de que, no Rio de Janeiro como em São Paulo, observamos clara mudança em todos os tipos de espaços para status mais elevados, particularmente forte para os espaços superiores e médios; menos intensa, mas não desprezível para os espaços populares. Esse deslocamento é acompanhado por maior polarização no lado superior, em que os espaços já mais altos acentuam seu perfil, ao passo que, pelo contrário, não observamos polarização simétrica do lado dos espaços mais populares, cujo caráter popular, ao contrário, se reduz moderadamente.

Se compararmos esses resultados com os de Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.) para São Paulo, a semelhança é bastante grande nas configurações observadas, ou seja, forte contraste entre tipos superiores e tipos populares, e tipos médios misturados na posição intermediária -, porém há diferenças no peso das várias modalidades. Os dois tipos de status superior de Marques representavam 16% da população ativa em 2000 contra 17% dos nossos - a diferença é mínima (ibid., p. 692). Ela é mais acentuada entre seu tipo médio misto - 21,5% dos ativos - e nossos dois tipos médios mistos - 31,8%. Logicamente, o peso de seus dois tipos mais populares é maior. Tais diferenças podem ter várias causas. Podem ser devidas às categorias empregadas - vimos, por exemplo, que as categorias EGP subestimam as classes médias em relação à CS, aqui utilizada. Podem resultar da escala menos refinada - Marques (2014)MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014. faz uso das APs de 2010. Elas podem finalmente ser provocadas pela classificação, por Marques, do que para nós são espaços mais médios, no tipo de espaços médios baixos misturados, na classificação dele. Como as distribuições socioespaciais são, em geral, fenômenos com variações em um continuum, há sempre alguma arbitrariedade na divisão em tipos distintos de uma nuvem contínua de pontos. Mais ainda porque Marques construiu uma tipologia em cinco classes, o que é consistente com uma variável com um número reduzido de modalidades (EGP), enquanto nós construímos uma tipologia com sete classes, a partir da nossa CS mais detalhada.

Para a análise das mudanças, a comparação é mais difícil porque Marques (2014MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.) utilizou um método diferente do nosso, ao construir uma tipologia que é uma espécie de retrato intermediário entre 2000 e 2010 da estrutura socioespacial e comparar os perfis dos tipos entre essas duas datas. Como nós, ele observa a crescente presença das categorias médias-altas - profissionais na sua nomenclatura - em todos os tipos de espaços, com progressão particularmente acentuada nos dois tipos superiores, e o declínio das classes populares em todos os lugares, inclusive nos tipos populares, acompanhado de maior peso relativo das classes populares de serviço - não manuais de rotina - em relação à classe operária - trabalhadores manuais. Por outro lado, não vê a progressão das classes médias e médias-baixas - mal identificadas em sua nomenclatura. E o método utilizado não permite identificar claramente a mudança nos perfis espaciais para status mais elevados.

Em relação às análises de Ribeiro (2015RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015.), a estrutura geral das tipologias socioespaciais ali construídas é bastante semelhante à que detalhamos, o que não surpreende, em virtude da origem comum das categorias e metodologias mencionadas. Por outro lado, sua análise das mudanças é mais difícil de comparar com a nossa por causa do método utilizado, que consiste em comparar as tipologias realizadas para cada recenseamento, examinando as possíveis alterações na estrutura dos tipos; em seguida, avaliar as mudanças nos tipos de unidades espaciais entre dois censos. A comparação das tipologias para cada censo subestima as mudanças, pois cada tipologia é construída com base nas posições relativas das unidades espaciais na distribuição geral, as quais podem permanecer as mesmas de um censo para outro - daí a estabilidade da tipologia -, embora os perfis de todas as unidades se modifiquem com a mudança média, que pode ser notável, mas é mascarada pelo método. Por outro lado, Ribeiro manteve os distritos como unidades resultantes de uma divisão espacial estável entre os censos. No entanto, esses distritos são muito menos numerosos. O município do Rio de Janeiro, por exemplo, tem 33 deles, enquanto conta com 170 áreas de ponderação (definição de 2000) em 2010. O tamanho dos distritos é, portanto, cerca de cinco vezes maior em média do que o das AP2000. Com isso, a análise socioespacial é inevitavelmente menos detalhada, e os contrastes acabam mascarados pelo efeito das médias dos distritos, que agrupam bairros heterogêneos. Apesar disso, há convergência com nossos resultados em um ponto: o deslocamento das unidades espaciais para status superiores, particularmente marcado no caso das unidades de tipos superiores e médios, identificados pela ideia de diversificação das estruturas sociais locais (RIBEIRO, 2015RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015., p. 185), pela crescente presença de categorias médias e altas em muitos espaços, inclusive nos tipos populares - apesar de também afirmarem que os espaços populares periféricos teriam se tornado ainda mais populares (ibid., p. 185). Isso está em contradição com nossos resultados, e não pudemos explorar essa diferença de maneira mais detalhada por falta, na publicação, de uma tabela sistemática de CS por tipo, como a utilizada aqui. Deve-se lembrar também de que suas categorias subestimam, em nossa opinião, a redução do peso das categorias populares de serviços.

5. Conclusão

A evolução da estrutura social das duas principais metrópoles brasileiras durante a primeira década do século XXI coloca em questão a visão dualista há muito prevalecente. As classes trabalhadoras como um todo viram seu peso diminuir, representando cerca de metade da população ativa em 2010. Foram as classes médias que mais progrediram, ultrapassando um terço da população em 2010. Entre estas, a progressão foi forte para as classes médias-altas e moderada, mas significativa, para as médias-médias e as médias-baixas. As classes superiores também progrediram, enquanto a pequena burguesia urbana recuou visivelmente.

As duas metrópoles são bastante semelhantes em sua estrutura social geral. As principais diferenças se devem ao maior peso do setor público nos três componentes das classes médias no Rio de Janeiro, enquanto em São Paulo é o setor empresarial que sobressai; nas classes populares, os trabalhadores do tipo industrial estão mais presentes em São Paulo, enquanto no Rio de Janeiro isso acontece com os trabalhadores dos serviços. A sua evolução ao longo do período também é muito semelhante, sem, contudo, apagar as diferenças reportadas.

A ancoragem, no espaço urbano, dessa estrutura social resulta em uma segregação muito forte das classes superiores e bastante forte das classes médias-altas. Pode-se afirmar, em relação a uma e outra, que se trata de uma segregação escolhida, que possibilita a apropriação residencial dos melhores espaços urbanos e a manutenção das classes populares a distância. A classe trabalhadora tem segregação moderada, porém significativa - para ela é uma segregação padecida, ou resultante de forças que não pode controlar. As classes médias-médias, as médias-baixas, a pequena burguesia urbana e as classes populares de serviços têm segregação bastante baixa. As proximidades e as distâncias espaciais entre elas permaneceram bastante estáveis ao longo da década, com mudanças que dizem respeito principalmente às classes médias: no Rio de Janeiro, as classes médias e médias-baixas se afastaram um pouco das médias-altas e se aproximaram um pouco das populares, em particular da classe operária; em São Paulo, as classes médias-baixas se afastaram de forma significativa das classes superiores, das médias-altas, das médias-médias e da pequena burguesia urbana e se aproximaram bastante das classes populares e da classe operária.

Se examinarmos a evolução dos perfis sociais das unidades espaciais, utilizando a análise tipológica das áreas de ponderação, será possível perceber que o crescimento das classes médias se espalha por todos os tipos socioespaciais, levando a um deslocamento de grande número de unidades para perfis de status mais elevados. Essa mudança é particularmente marcada para os espaços que já pertenciam aos tipos superiores alta e médios mistos em 2000, mas também é observada para uma parte notável dos espaços operários. Trata-se de um desdobramento comum às duas metrópoles.

Nossos resultados sobre as características mais salientes da segregação no Rio de Janeiro e em São Paulo convergem amplamente com os dos principais autores cujas publicações versaram sobre essas questões, o que mostra sua robustez para além das diferenças nas categorizações sociais e metodológicas. A divergência mais importante que deve ser salientada diz respeito às classes médias. O destaque para o crescimento do peso dos diferentes componentes das classes médias, e sua contribuição para a evolução das estruturas sociais espacializadas, parecem resultados muito importantes, que decorrem da escolha metodológica por uma fina categorização analítica dessa parte intermediária do espaço social. Esperamos que contribuam para o debate sobre as classes médias e as estruturas urbanas no Brasil, indo além de posturas ideológicas e classificações a priori.

Como sempre, esses resultados abrem novas questões. Por exemplo, o que explica o deslizamento de alguns espaços para status mais altos, enquanto o mesmo não ocorre com outros? A mudança para um status mais elevado é resultado da chegada de classes médias de outros bairros, ou da mobilidade social ascendente das populações já presentes? Quais são os efeitos locais dessas situações de maior miscigenação social, nas relações entre as diferentes categorias sociais corresidentes, nas relações com as escolas e serviços públicos locais, na política local?

Ressalte-se também que não abordamos aqui, por restrições de espaço, a questão das diferenciações étnico-raciais. Mesmo que estejam fortemente entrelaçadas com as diferenciações socioeconômicas (TELLES, 2003TELLES, E. E. Racismo à brasileira. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.), não se limitam a isso, e as discriminações raciais provavelmente terão uma contribuição específica para a segregação urbana. Abordaremos esse problema em uma próxima etapa.

Por fim, enfatizamos que nossas análises - publicadas tardiamente em relação à publicação dos resultados do Censo de 2010 em razão das diversas dificuldades institucionais, pessoais e de saúde que retardaram nosso trabalho - se referem a uma década marcada por desenvolvimentos positivos na economia e nos mercados de trabalho, por redução da pobreza e por ligeira redução das desigualdades. Resta-nos interrogar sobre a evolução das duas metrópoles na década seguinte, dada a instabilidade política e econômica que se seguiu, à qual se juntou a pandemia de Covid-19. Teremos que aguardar a disponibilização dos resultados do novo censo demográfico para tentar algumas respostas, na expectativa de que, apesar da demora, terão a qualidade necessária para ampliar validamente as análises.

Referências

  • BÓGUS, L. M.; PASTERNAK, S. (org.). São Paulo: transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015.
  • CALDEIRA, T. P. R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, Edusp, 2000.
  • CAMPELLO, T. et al. Faces da desigualdade no Brasil: um olhar sobre os que ficam para trás. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 3, p. 54-66, 2018.
  • CARDOSO, A. Informality and public policies to overcome it. The case of Brazil. Sociologia & Antropologia, v. 6, p.321-349, 2015.
  • CARDOSO, A.; PRÉTECEILLE, E. Classes médias no Brasil. Do que se trata? Qual o seu tamanho? Como vem mudando? Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 60, n. 4, p. 977-1023, 2017.
  • CARDOSO, A.; PRÉTECEILLE, E. Classes médias no Brasil: estrutura, perfil, oportunidades de vida, mobilidade social e ação política. Rio de Janeiro: UFRJ, 2021.
  • CHÉTRY, M. A segregação residencial nas metrópoles brasileiras: Rio de Janeiro em perspectiva. In: RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana. Rio de Janeiro: Letra Capital, Observatório das Metrópoles, 2015. p.193-196.
  • CLERVAL, A. Paris sans le peuple. La gentrification de la capitale Paris: La Découverte, 2013.
  • DEDECCA, C. S. A redução da desigualdade e seus desafios Rio de Janeiro: IPEA, 2015. (Texto para discussão, n. 2031).
  • DONZELOT, J. La Ville à trois vitesses: relégation, périurbanisation, gentrification. Esprit, n. 303, p. 14-39, 2004.
  • ERIKSON, R.; GOLDTHORPE, J. H. The constant flux: a study of class mobility in industrial societies. Oxford: Oxford University Press, 1992.
  • FLORIDA, R. Cities and the creative class New York: Routledge, 2005.
  • HAMNETT, C. Social polarisation in global cities: theory and evidence. Urban Studies, v. 33, n. 8, p. 401-424, 1994.
  • IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Documentação do Censo 2000 Rio de Janeiro: IBGE, 2002.
  • IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro de 2010 Rio de Janeiro: IBGE , 2012.
  • KAZEPOV, Y. (org.). Cities of Europe. Changing contexts, local arrangements, and the challenge to urban cohesion Oxford: Blackwell, 2005.
  • KREIN, J. D.; MANZANO, M. Notas sobre formalización. Estudios de caso: Brasil. Santiago: OIT, 2014. Disponível em: http://ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/documents/publication/wcms_248256.pdf Acesso em: ago. 2022.
    » http://ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/documents/publication/wcms_248256.pdf
  • LEES, L.; SLATER, T.; WYLY, E. (org.). The gentrification reader New York: Routledge , 2010.
  • MALOUTAS, T.; FUJITA, K. (org.). Residential segregation around the world: Why context matters. Farnham: Ashgate, 2012.
  • MARCUSE, P.; VAN KEMPEN, R. (org.). Globalizing cities. A new spatial order? Oxford: Basil Blackwell, 2000.
  • MARQUES, E. Estrutura social e segregação em São Paulo: Transformações na década de 2000. Dados, Revista de Ciências Sociais , v. 57, n. 3, p. 675-710, 2014.
  • MASSEY, D. S.; DENTON, N. A. The dimensions of residential segregation. Social Forces, v. 67, n. 2, p. 281-315, 1988.
  • MEDEIROS, M.; SOARES, S.; SOUZA, P.; OSORIO, R. Inequality, poverty and the Brazilian social protection system. In: PIETERSE, J. N.; CARDOSO, A. (org.). Brazil emerging. Inequality and emancipation New York; London: Routledge, 2014. p. 32-49.
  • OBERTI, M.; PRÉTECEILLE, E. La Ségrégation urbaine Paris: La Découverte , 2016.
  • PIKETTY, T. Le capital au XXIe siècle Paris : Éditions du Seuil, 2013.
  • PRÉTECEILLE, E. Division sociale de l’espace et globalisation. Le cas de la métropole parisienne. Sociétés Contemporaines, v. 22-23, p. 33-67, 1995.
  • PRÉTECEILLE, E. Antropofagia acadêmica, categorização social e dualização urbana 2002. Disponível em: https://hal-sciencespo.archives-ouvertes.fr/hal-03575998/document Acesso em: 12 fev. 2022.
    » https://hal-sciencespo.archives-ouvertes.fr/hal-03575998/document
  • PRETECEILLE, E.; CARDOSO, A. Rio de Janeiro y São Paulo: ¿ciudades duales? Comparación con Paris Ciudad y Territorio, v. XL, p. 617-40, 2008.
  • RIBEIRO, L. C. Q. (org.). Rio de Janeiro: Transformações na ordem urbana . Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Metrópoles, 2015.
  • RIBEIRO, L. C. Q.; LAGO, L. C. do. O espaço social das grandes metrópoles brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 3, p. 111-129, 2000.
  • SASSEN, S. The global city. New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University Press, 1991.
  • SCHWARTZ, O. Peut-on parler des classes populaires ? La Vie des idées, 13 septembre 2011. ISSN: 2105-3030. Disponível em: http://www.laviedesidees.fr/Peut-on-parler-des-classes.html
    » http://www.laviedesidees.fr/Peut-on-parler-des-classes.html
  • STORPER, M. The regional world. Territorial development in a global economy New York: Guilford, 1997.
  • TELLES, E. E. Racismo à brasileira Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.
  • VELTZ, P. La Société hyper-industrielle. Le nouveau capitalisme productif Paris: Seuil, 2017. (La République des Idées).
  • 1
    Este artigo é o resultado de uma cooperação entre o Centre de Recherche sur les Inégalités Sociales (CRIS) da Sciences Po, Paris, e o Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi apoiado por um acordo CNRS-CNPq, e por um acordo Capes-COFECUB. A UERJ também apoiou convidando Edmond Préteceille como professor visitante no IESP-UERJ; o CNPq concedeu bolsa para Investigador Principal Estrangeiro a Adalberto Cardoso e uma bolsa de seis meses no CRIS no segundo semestre de 2018; a Capes concedeu bolsa Capes-Print a Adalberto Cardoso para uma estadia de quatro meses no CRIS no primeiro semestre de 2019; e a FAPERJ financiou o projeto com uma bolsa Cientista do Nosso Estado (CNE) a Adalberto Cardoso.
  • 2
    Para discussão detalhada dos aspectos teóricos e metodológicos dessas categorias e sua adaptação, remetemos o leitor a Cardoso e Préteceille (2017)CARDOSO, A.; PRÉTECEILLE, E. Classes médias no Brasil. Do que se trata? Qual o seu tamanho? Como vem mudando? Dados, Revista de Ciências Sociais, v. 60, n. 4, p. 977-1023, 2017., Préteceille e Cardoso (2019), Cardoso e Préteceille (2021)CARDOSO, A.; PRÉTECEILLE, E. Classes médias no Brasil: estrutura, perfil, oportunidades de vida, mobilidade social e ação política. Rio de Janeiro: UFRJ, 2021. Page Pereira (2021) realizou meticuloso trabalho de construção do fluxograma de nossa classificação, que ele comparou com outras classificações brasileiras, prestando grande serviço aos estudiosos da estrutura social brasileira. PRÉTECEILLE, E.; CARDOSO Comparer les structures sociales de Paris, Rio de Janeiro et São Paulo In: AUTHIER, J-Y. et al (org.) D’une ville à l’autre La comparaison internationale en sociologie urbaine. Paris: La Découverte, 2019, p. 247-264; PAGE PEREIRA, L. Anamorphose sociale Classes sociales et inégalités sociales au Brésil au cours des années 2000. Thèse de Doctorat en Sociologie, Université Paris-Saclay, Gif-sur-Yvette, 2021.
  • 3
    Por exemplo, com base na EGP, Scalon e Salata (2012) concluíram que não houve crescimento das classes médias entre 2000 e 2010 no Brasil Mas em Cardoso e Préteceille (2017), com base na CS, mostrou-se que houve crescimento significativo em todos os segmentos médios Mais informações serão apresentadas adiante. SCALON, C.; SALATA, A. Uma nova classe média no Brasil da última década? O debate a partir da perspectiva sociológica Revista Sociedade e Estado, v. 27, n. 2, p. 387-407, 2012.
  • 4
    Na RMRJ, por exemplo, em 2010 os domicílios das classes populares urbanas tinham média de 3,8 moradores, e os da classe operária 3,87, ao passo que os de classe média alta tinham 3,23 moradores, segundo o Censo Demográfico do IBGE (2012)IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE , 2012..
  • 5
    O IBGE nos forneceu um arquivo de correspondência entre os números dos domicílios 2010 e a AP de 2000, o qual continha, porém, certo número de erros e lacunas Tivemos que fazer as correções e adições à mão Também tivemos que refazer o mapa digitalizado (shapefile) das AP2000, com a ajuda do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), de São Paulo.
  • 6
    Não empregaremos o índice de Moran utilizado por outros colegas, como Marques (2014), que tem a vantagem de levar em conta a dimensão estritamente espacial do agrupamento ou exclusão de categorias, mas que serve, sobretudo, para evidenciar contrastes sociais e espaciais mais marcantes Em vez disso, buscaremos aqui levar em conta todas as situações locais, contrastantes ou não, e as categorias sociais, fortemente segregadas ou não É por isso que não compararemos nossos resultados com os de Becceneri, Alves e Vazquez (2019), que utilizam apenas o índice de Moran e para categorias altamente agregadas. BECCENERI, L B.; ALVES, H P da F.; VAZQUEZ, D. A Estratificação sócio-ocupacional e segregação espacial na metrópole de São Paulo nos anos 2000. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v.21, n.1, p. 137-154, 2019.
  • 7
    Ver, por exemplo, Machado da Silva (2020). MACHADO DA SILVA, L. A. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2020.
  • 8
    Para simplificar a leitura, nas Tabelas 2 e 3 excluímos as classes não urbanas (proprietários rurais e trabalhadores rurais), que têm participação residual entre os ocupados nas metrópoles.
  • 9
    Para uma apresentação detalhada do método, desenvolvido inicialmente no caso da metrópole parisiense, cf. Préteceille (2003, cap.1 e anexo III). PRÉTECEILLE, E. La Division sociale de l’espace francilien Typologie socioprofessionnelle 1999 et transformations de l’espace résidentiel 1990-99. Paris: Observatoire Sociologique du Changement FNSP-CNRS, 2003.
  • 10
    Refizemos a tipologia já apresentada em Préteceille e Cardoso (2008; 2020), para levar em conta as melhorias metodológicas na construção da CS introduzidas durante a análise dos dados de 2010. Os resultados são apenas ligeiramente diferentes, e a estrutura geral não mudou. PRÉTECEILLE, E.; CARDOSO, A. Socioeconomic segregation and the middle classes in Paris, Rio de Janeiro and São Paulo: a comparative perspective In: SAKO, M. (org.) Handbook on urban segregation. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2020, p. 270-288.
  • 11
    Essa heterogeneidade das APs poderia ser controlada até certo ponto cruzando-as, como Préteceille havia feito nos dados censitários de 1991 (PRÉTECEILLE; VALLADARES, 2000a; 2000b) com uma tipologia de setores censitários, que são muito menores, e, portanto, a priori mais homogêneos, com as variáveis de renda e escolaridade disponíveis nessa escala Embora grosseiras, elas dão uma indicação do nível socioeconômico. PRÉTECEILLE, E.; VALLADARES, L A desigualdade entre os pobres - favela, favelas In: HENRIQUES, R (org.) Desigualdade e pobreza no Brasil Rio de Janeiro: IPEA, 2000a, p 459-485. PRÉTECEILLE, E.; VALLADARES, L. Favela, favelas: unidade ou diversidade da favela carioca In: RIBEIRO, L. C. Q. (org.) O futuro das metrópoles: desigualdades e governabilidade. Rio de Janeiro: Revan-FASE, 2000b, p 375-403.
  • 12
    Há dois casos excepcionais: uma AP da RMRJ, que salta do tipo mais popular, POPU2, para a SUPER2. Trata-se de uma AP de Niterói, no bairro Várzea das Moças, em uma área montanhosa no limite com Maricá; e de uma AP de São Paulo, no município de Santo André, que salta do tipo POPU1 para o tipo SUPER2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2022
  • Aceito
    01 Fev 2023
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional - ANPUR FAU Cidade Universitária, Rua do Lago, 876, CEP: 05508-080, São Paulo, SP - Brasil, Tel: (31) 3409-7157 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@anpur.org.br