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Eficácia no uso de estratégia de gamificação na terapia fonológica

RESUMO

Objetivo

comparar as eficácias da terapia fonológica tradicional e terapia fonológica associada à estratégia de gamificação em sujeitos com Transtorno Fonológico (TF).

Método

participaram dez sujeitos com TF que apresentavam o processo de substituição de líquidas. Os sujeitos foram randomizados em dois grupos: terapia fonológica tradicional (grupo controle - GC) e terapia fonológica associada a estratégia de gamificação mediada por computador (grupo gamificação - GG). A intervenção fonológica compreendeu, para ambos os grupos, etapas de percepção e produção de fala. As intervenções se diferenciaram na etapa de percepção, na qual o GG foi submetido ao jogo com estratégia de gamificação. Ao final de cada sessão, foram registrados a produção de fala dos sujeitos (% de acerto) para cada etapa terapêutica, a partir de palavras-alvo e palavras-sondagem. Para análise foram considerados: média de acerto dos sujeitos para cada etapa terapêutica; valores de PCC-R (Porcentagem de Consoantes Corretas Revisado) pré e pós terapia; além do número de sessões utilizadas para se atingir 85% de produção correta.

Resultados

não houve diferença estatisticamente significante entre os tipos de intervenção considerando a média de acertos das produções e o número de sessões. Houve efeito significante para as condições pré e pós terapia na comparação dos valores de PCC-R para ambos os modelos. Os sujeitos do GC tiveram os valores de PCC-R maiores do que as do GG.

Conclusão

ambos os modelos de intervenção apresentam resultados semelhantes, propiciando melhora no desempenho fonológico do sujeito desde a primeira sessão.

Descritores:
Transtorno Fonológico; Fonoterapia; Percepção da Fala; Gamificação; Terapia Assistida por Computador; Jogos Experimentais

ABSTRACT

Purpose

to compare the efficacies of traditional phonological therapy and phonology associated with the gamification strategy in children with Phonological Disorder (PD).

Methods

ten individuals with PD participated who showed the process of replacing liquids. They were randomized into two groups: traditional phonological therapy (control group - CG) and phonological therapy associated with a gamification strategy mediated by computer (gamification group - GG). The phonological intervention comprised, for both groups, stages of speech perception and production. Interventions differed in the perception stage, in which the GG was submitted to the game with gamification strategies. At the end of each session, individuals speech production (% of correct answers) were registered for each therapeutic stage, based on target words and sounding words. For analysis the following were considered: The individuals mean of correct answers for each therapeutic stage; PCC-R value (percentage of correct consonants) pre and post therapy; beyond of the number of sessions used to reach 85% of correct production.

Results

there was no statistical difference between the types of intervention considering the average of correct answers of the productions and the number of sessions. There was a significant effect for pre- and post-therapy conditions in the comparison PCC-R values ​​for both models. The individuals in the GC had the PCC-R values higher than those of GG.

Conclusion

both models of intervention present similar results, providing an improvement in the individuals phonological performance from the first session.

Keywords:
Phonological Disorder; Speech Therapy; Speech Perception; Gamification; Therapy Computer Assisted; Games Experimental

INTRODUÇÃO

A gamificação, advinda do inglês gamification, refere-se ao uso de mecanismos de jogos, brinquedo, brincadeira ou ludicidade (analógicos ou digitais) orientados com o objetivo de despertar engajamento entre um público específico. Essas estratégias compõem recursos de game-design e elementos de jogos em contextos não-game, sendo o seu diferencial a capacidade de estabelecer recompensas, pontuação, desafios, reforços, feedback e ranking (11 Vianna Y, Vianna M, Medina B, Tanaka S. Gamification, Inc: como reinventar empresas a partir de jogos. Rio de Janeiro: MJVPress; 2013.-22 Busarello RI. Abordagem inicial: o que é gamification?. In: Busarello RI. Gamification: princípios e estratégias. São Paulo: Pimenta Comunicação e Projetos Culturais; 2016. p. 13-15.).

Dentre as áreas do conhecimento que podem se beneficiar de estratégias associadas à gamificação encontra-se a Fonoaudiologia; que pode fazer uso destas estratégias, tanto no processo de avaliação, quanto no processo de intervenção.

Nos últimos anos, em todas as áreas da Fonoaudiologia vem aumentando paulatinamente o uso de estratégias de gamificação, associadas ou não a jogos. Como consequência, observa-se como um produto concreto da utilização deste recurso a proposição e a comercialização de diversos softwares envolvendo jogos para avaliação e terapia de sujeitos com distintas alterações da comunicação, tais como: “Pedro em uma noite Assustadora”, cuja finalidade é estimular a consciência fonológica e fonoarticulatória; o Instrumento de Avaliação Fonológica (INFONO), voltado para facilitar o processo de avaliação de sujeitos com alterações de fala; além do “Auxiliar na Reabilitação de Distúrbios Auditivos (SARDA)”, que inclui a função de estimular as habilidades de processamento cognitivo-auditivo-visual(33 Santos KW, Trindade CS, Fernandes RA, Vidor DCGM. Utilização de softwares em pesquisas científicas de fonoaudiologia. J Health Inform. 2012;2(4):55-8.

4 Sotero LKB, Pagliarin KC. Intervenção fonoaudiológica com a utilização de software em casos de distúrbios dos sons da fala. CoDAS. 2018;30(6):e20180008. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018008. PMid:30328903.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2018...

5 Ceron MI, Gubiani MB, Oliveira CR, Keske-Soares M. Instrumento de Avaliação Fonológica (INFONO): estudo piloto. CoDAS. 2020;32(4):e20190105. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20202019105. PMid:32756856.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2020...
-66 Comerlatto AA Jr, Silva MP, Balen SA. Software para reabilitação auditiva de crianças com distúrbios no processamento auditivo central. Rev Neurociênc. 2010;18(4):454-62. http://dx.doi.org/10.34024/rnc.2010.v18.8433.
http://dx.doi.org/10.34024/rnc.2010.v18....
).

Particularmente, dentre os potenciais usuários desses materiais, encontram-se aqueles sujeitos que apresentam o diagnóstico de Transtorno dos Sons da Fala - especificamente Transtorno Fonológico (TF). Os sujeitos com TF apresentam produção de fala não esperada para a idade e estágio de desenvolvimento, ou seja, continuam a empregar regras de simplificação, designadas de processos fonológicos, para além da idade esperada sem que haja etiologia orgânica aparente(77 American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtorno mentais - DSM-5®. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.).

Ao longo dos anos, tem se intensificado estudos que englobam a intervenção fonológica com o intuito de averiguar sua eficácia e eficiência nessa população, uma vez que o processo de intervenção em sujeitos com TF tem como objetivo principal reorganizar o sistema fonológico alterado, de modo a atingir o sistema de um adulto típico para o Português Brasileiro melhorando, consequentemente, a inteligibilidade de fala(88 Brosseau-Lapré F, Greenwell T. Innovative service delivery models for serving children with speech sound disorders. Semin Speech Lang. 2019;40(2):113-23. http://dx.doi.org/10.1055/s-0039-1677762. PMid:30795022.
http://dx.doi.org/10.1055/s-0039-1677762...

9 Rvachew S, Brosseau-Lapré F. A randomized trial of 12-week interventions for the treatment of developmental phonological disorder in francophone children. Am J Speech Lang Pathol. 2015;24(4):637-58. http://dx.doi.org/10.1044/2015_AJSLP-14-0056. PMid:26381229.
http://dx.doi.org/10.1044/2015_AJSLP-14-...

10 Gierut JA, Morrisette ML, Dickinson SL. Effect size for single-subject design in phonological treatment. J Speech Lang Hear Res. 2015;58(5):1464-81. http://dx.doi.org/10.1044/2015_JSLHR-S-14-0299. PMid:26184118.
http://dx.doi.org/10.1044/2015_JSLHR-S-1...
-1111 Keske-Soares M, Pagliarin KC, Ceron MI. Terapia fonológica considerando as variáveis linguísticas. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2009;14(2):261-6. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342009000200019.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342009...
).

Para tanto, os sujeitos precisam estar motivados - o suficiente - para realizarem atividades propostas na terapia que envolva a habilidade em que eles têm maior dificuldade: a produção de fala.

Nesse sentido, torna-se um desafio diário para o fonoaudiólogo clínico pensar em estratégias que motivem os sujeitos com TF propiciando trabalhar as suas dificuldades de produção, tendo em vista que, em geral, o interesse do público infantil está voltado às diversas tecnologias, tal como o uso do computador(1212 Pereira LL, Brancalioni AR, Keske-Soares M. Terapia fonológica com uso de computador: relato de caso. Rev CEFAC. 2013;15(3):681-8. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462012005000052.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462012...
).

Constata-se que estratégias de gamificação com o uso do computador no âmbito da terapia fonológica podem ser ferramentas essenciais e complementares quando comparadas aos métodos tradicionais de terapia, ou seja, aqueles em que são propostas figuras, associadas ou não à jogos, para que o sujeito as nomeie.

No Brasil, uma pesquisa realizada com o uso do software FonoSpeak (1212 Pereira LL, Brancalioni AR, Keske-Soares M. Terapia fonológica com uso de computador: relato de caso. Rev CEFAC. 2013;15(3):681-8. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462012005000052.
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) - cujo objetivo é auxiliar na aquisição e treinamento de fonemas - em conjunto com atividades elaboradas no programa Microsoft Office Power Point, os autores verificaram que o grupo de terapia submetido a estratégias de gamificação com o recurso do computador obteve maior número de produções corretas quando comparado ao grupo de sujeitos submetidos à terapia tradicional, ou seja, sem uso de estratégias de gamificação.

Em concordância com o estudo citado acima, uma pesquisa(1313 Furlong L, Erickson S, Morris ME. Computer-based speech therapy for childhood speech sound disorders. J Commun Disord. 2017;68:50-69. http://dx.doi.org/10.1016/j.jcomdis.2017.06.007. PMid:28651106.
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) com objetivo de avaliar a eficácia de programas terapêuticos com o uso do computador em sujeitos com Distúrbio dos Sons da Fala, incluindo o TF, a partir da revisão de literatura de 14 estudos, verificou que embora a base de evidências com o uso do computador ainda esteja ganhando espaço, de modo geral, a literatura mostrou que esse recurso pode ser um complemento útil para a terapia.

Todavia, há evidências contraditórias na literatura sobre o benefício do uso de estratégias de gamificação com o recurso do computador na terapia de sujeitos com TF. Neste estudo(1414 Wren Y, Roulstone S. A comparison between computer and tabletop delivery of phonology therapy. Int J Speech Lang Pathol. 2008;10(5):346-63. http://dx.doi.org/10.1080/17549500701873920. PMid:20840034.
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), particularmente, foi comparado o desempenho de sujeitos com TF a partir da divisão de três grupos: sujeitos submetidos à terapia com o uso de estratégias de gamificação (software experimental com jogos de computador interativos); sujeitos submetidos à terapia tradicional; e sujeitos que não foram submetidos a qualquer terapia. A partir da análise do desempenho de produção de fala dos sujeitos, não houve diferença significativa entre nenhum dos três grupos.

Semelhantemente, em outro estudo(1515 Jesus LMT, Martinez J, Santos J, Hall A, Joffe V. Comparing traditional and tablet-based intervention for children with speech sound disorders: a randomized controlled trial. J Speech Lang Hear Res. 2019;62(11):4045-61. http://dx.doi.org/10.1044/2019_JSLHR-S-18-0301. PMid:31644381.
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) foi feita a comparação da eficácia da intervenção fonológica tradicional com a intervenção fonológica baseada no uso do tablet, sendo assim, os sujeitos foram randomizados para cada grupo. Os autores concluíram que não houve diferença estatística entre os grupos, isso significa que independente do grupo, os sujeitos obtiveram porcentagens de produções de fala corretas na condição pós-terapia.

Há ainda na literatura nacional, uma pesquisa(1616 Noblat LRM, Silva MFF, Cunha MC. Ferramentas tecnológicas de interação em tablets no atendimento fonoaudiológico de crianças com transtorno dos sons da fala. Distúrb Comun. 2020;32(1):41-51. http://dx.doi.org/10.23925/2176-2724.2020v32i1p41-51.
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) distinta das supracitadas, que buscou descrever a frequência da ferramenta do tablet durante intervenção de sujeitos com TF. Os jogos de gamificação utilizados no tablet não eram de cunho fonoaudiológico, mas sim adaptados ao trabalho em tarefas de imitação/nomeação aos níveis de sílabas, palavras e frases. O tablet, era utilizado como uma via auxiliar, sendo assim, ficava disponível para que o sujeito solicitasse ou não sua utilização durante a terapia. No estudo citado, pertenceu quatro sujeitos com faixas etárias entre cinco anos e cinco meses a onze meses e, como resultado, apontou que todos os sujeitos solicitaram o tablet com frequência significativa no decorrer das sessões, funcionando como recurso motivador, contudo, não decisivo para evolução dos casos.

Os estudos, tomados juntos, mostram não apenas resultados divergentes sobre a vantagem do uso de estratégias de gamificação na terapia fonológica, como também mostram baixa evidência científica, na medida em que a amostragem não foi aleatória ou o método utilizado não permitiu a comparação entre propostas terapêuticas distintas.

Assumindo que o uso de estratégias de gamificação no processo terapêutico de sujeitos com TF poderia favorecer o engajamento dos sujeitos nas atividades e, consequentemente, favorecer o aprendizado da habilidade de produção de fala trabalhado na terapia; hipotetizou-se que sujeitos que recebem intervenção fonológica associada às estratégias de gamificação apresentariam melhor desempenho em termos de porcentagem de acerto da habilidade trabalhada e um menor tempo terapêutico, quando comparadas com os sujeitos submetidos à terapia fonológica tradicional.

Portanto, este estudo objetivou comparar a eficácia da terapia fonológica associada à estratégia de gamificação com a eficácia da terapia tradicional em sujeitos com TF.

MÉTODO

Trata-se de um estudo longitudinal prospectivo. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Filosofia e Ciências/Universidade Estadual Paulista (FFC/UNESP), Campus Marília, sob o protocolo nº 4.615.118.

Os pais e/ou responsáveis pelos sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando a participação dos mesmos no projeto, bem como a publicação dos resultados. Esclarece-se, ainda, que a cada início das sessões de intervenção terapêutica, era perguntado para os sujeitos participantes se eles aceitariam participar da sessão. Portanto, todos os sujeitos expressaram o seus respectivos aceites.

Participaram do estudo dez sujeitos, seis do gênero masculino e quatro do feminino na faixa etária entre quatro anos e onze meses a sete anos e três meses de idade, com diagnóstico de TF e que apresentavam o processo fonológico de substituição de líquida não-lateral por lateral ou vice-versa (/ɾ/ → [l] ou /l/ → [ɾ]).

A amostra recrutada totalizou-se em 86 sujeitos a partir de triagem fonoaudiológica, que incluiu avaliação de fala e de linguagem, na Unidade Básica de Saúde e no Centro Especializado em Reabilitação (CER II). Ambos são localizados no interior do Estado de São Paulo, na cidade de Marília, portanto, o processo de amostragem do presente estudo foi por conveniência.

Os critérios de inclusão da pesquisa foram ter idade entre quatro a oito anos; apresentar diagnóstico de TF - com a presença do processo de substituição de líquida não-lateral por lateral ou vice-versa, independente da gravidade do TF e de outros processos fonológicos associados; pais e/ou responsáveis demonstrarem interesse e disponibilidade para participar do programa de intervenção terapêutico proposto.

Os critérios de exclusão foram alteração estrutural significativa dos órgãos fonoarticulatórios; presença de comorbidades além da queixa de produção de fala; queixa e/ou alterações auditivas e a não adesão ao programa de intervenção proposto ou possíveis desistências.

Para estabelecer o diagnóstico de TF e caracterizar os processos fonológicos, todos os sujeitos foram submetidos à avaliação fonológica com o “Instrumento de Avaliação de Fala para Análise Acústica” - IAFAC(1717 Berti LC, Pagliuso A, Lacava F. Instrumento de avaliação de fala para análise acústica (IAFAC) baseado em critérios linguísticos. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2009;14(3):305-14. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342009000300005.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342009...
). Esse instrumento é composto por 96 palavras que contemplam todos os fonemas consonantais do Português Brasileiro (PB) em contexto de /i a u/ nas posições acentuadas. Para essa avaliação, foram utilizadas apenas 28 palavras, em que todos os fonemas do PB ocorrem apenas no contexto da vogal /a/.

Ademais, foi realizado o cálculo do índice de gravidade do TF por meio da Porcentagem de Consoantes Corretas-Revisado (PCC-R) que se refere à porcentagem de consoantes produzidas corretamente em relação percentual ao total de consoantes contidas na amostra de fala obtida, além disso, para o cálculo deste índice são considerados como erros somente os fonemas substituídos ou omitidos(1818 Shriberg LD, Austin D, Lewis BA, McSweeny JL, Wilson DL. The speech disorders classification system (SDCS): extensions and lifespan reference data. J Speech Lang Hear Res. 1997;40(4):723-40. http://dx.doi.org/10.1044/jslhr.4004.723. PMid:9263939.
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).

Para classificação dos diferentes graus do TF, foram considerados os critérios: a) leve: acima de 85% de acertos; b) levemente moderado: entre 65% e 85% de acertos; c) moderadamente severo: entre 50% e 65% de acertos; d) severo: abaixo de 50% de acertos(1919 Shriberg LD, Kwiatkowski J. Phonological disorders III: a procedure for assessing severity of involvement. J Speech Hear Disord. 1982;47(3):256-70. http://dx.doi.org/10.1044/jshd.4703.256. PMid:7186561.
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).

Os sujeitos também foram submetidos à avaliação audiológica para pesquisa de limiares auditivos para descarte de possíveis alterações.

Após a caracterização dos sujeitos, os mesmos foram submetidos a um sorteio e randomizados em dois grupos, sendo eles: terapia fonológica tradicional (grupo controle - GC) e terapia fonológica associada à estratégia de gamificação mediada por computador (grupo gamificação - GG). Ambos os grupos (GC e GG), pertenceram 5 sujeitos cada um, conforme descrito na Tabela 1, o perfil de cada sujeito.

Tabela 1
Perfil dos sujeitos pré-intervenção terapêutica

No programa de intervenção de base fonológica realizado para os grupos GC e GG, totalizaram-se 16 sessões de atendimentos fonoaudiológicos individuais, com frequência de duas vezes por semana e duração de 50 minutos cada -, no contraturno escolar dos sujeitos.

Para a realização da intervenção, foram selecionadas 30 palavras-alvo com os fonemas /l/ e /ɾ/ em critério de ISDP (Início de Sílaba Dentro de Palavra), trabalhadas durante as etapas de intervenção e outras 30 palavras-sondagem, isto é, palavras não trabalhadas em terapia que serviram para observar as generalizações realizadas pelos sujeitos. Além disso, parte das palavras selecionadas se referem à pares-mínimos, ou seja, palavras que se diferem em apenas um fonema, conforme ilustrado no Quadro 1.

Quadro 1
Palavras trabalhadas durante o processo de intervenção terapêutica nos grupos GC e GG

As 16 sessões de intervenção fonoaudiológica destinadas ao GC e GG foram compostas por etapas de percepção e produção de fala, sendo elas: 1) pré-intervenção - coleta inicial/ apresentação e contextualização das gravuras correspondentes às palavras selecionadas; 2) explicação do processo fonológico - a partir do valor contrastivo das palavras-alvo, foi explicado para o sujeito, por meio de um protótipo de órgãos fonoarticulatórios, que existem sons que a língua bate devagar como é o caso do /l/ e existem sons que a língua bate rápido como na produção de /ɾ/; 3) percepção no outro - o sujeito realizou percepção auditiva-visual imediatamente após a produção de fala dos sons-alvo do outro (terapeuta); 4) percepção em si - a partir da própria produção dos sons-alvo, o sujeito realizou simultaneamente a propriocepção auditiva-visual. Nesta habilidade, não foi exigida a produção correta do som-alvo, o sujeito deveria realizar apenas sua propriocepção; 5) produção - o sujeito deveria produzir o som-alvo corretamente (a partir de pistas facilitadoras) em palavra isolada e na construção de frases; e 6) pós intervenção - coleta final.

As intervenções se diferenciaram na etapa 3, relativa à percepção no outro, na qual o GC contou exclusivamente com atividades lúdicas de material físico na 3 e nas demais etapas, enquanto o GG, somente nessa etapa, foi submetido ao jogo de gamificação “Ho-ho roubaram as palavras” mediado pelo computador. Sendo assim, os sujeitos desse grupo deveriam perceber os sons-alvo a partir da fala do outro por meio do game.

O jogo foi desenvolvido em parceria com a equipe de profissionais da Faculdade de Tecnologia (FATEC) de São José do Rio Preto, no interior do estado de São Paulo, coordenado pelo Dr. Henrique Dezani.

A plataforma elaborada tem seu uso para computadores, com disponibilidade online e gratuita. “Ho-ho roubaram as palavras”, tem como personagem principal um papai-noel, no qual o intuito do game é engajar o sujeito a encontrar as 30 palavras-alvo escondidas pelo cenário do jogo, conforme pode-se acessar através do link apresentado nas referências(2020 Unity WebGL Player. PapaiNoelGame [Internet]. Unity WebGL Player; 2019 [citado 27 jul 2023]. Disponível em:https://fonoaudiologiajogorji.firebaseapp.com/
https://fonoaudiologiajogorji.firebaseap...
). Na Figura 1 está disposta a interface do jogo.

Figura 1
Interface do jogo de gamificação “Ho-ho roubaram as palavras

A medida em que o sujeito encontra as palavras-alvos, são apresentados os estímulos auditivos correspondentes à cada figura, produzidas pelo outro, para que o sujeito identifique os sons-alvos.

Análise de dados

Para ambos os tipos de intervenção, foi realizado o registro do desempenho de cada sujeito, por meio de gravações de produção de fala, calculado a partir da porcentagem de acerto de cada habilidade terapêutica trabalhada das 30 palavras-alvo e 30 palavras-sondagem. As gravações de produções de fala dos sujeitos foram realizadas apenas ao final de cada sessão para posteriormente serem feitas as análises perceptivo-auditivas.

As gravações de produções de fala, foram postas sob análise de, ao menos, dois juízes que realizaram o julgamento baseado em três critérios: (A) acerto de produção do som-alvo, (E) erro de produção do som-alvo ou (G) produção gradiente. Totalizou-se 960 gravações para cada sujeito e foi necessário a presença de um terceiro juiz para confirmar a análise de 281 gravações de todos os sujeitos da amostra, sendo 118 gravações para palavras-alvo e 163 gravações para palavras-sondagem.

Para cada etapa terapêutica (percepção no outro, percepção em si e produção) foram consideradas as médias de acerto, em termos de porcentagem para cada sujeito do GC e GG.

Os valores de PCC-R foram comparados nas condições pré e pós-terapia em ambos os grupos. Também foi feita a análise do número de sessões utilizadas para se atingir 85% de produção correta entre os tipos de intervenção. As 16 sessões propostas foram realizadas, independentemente se atingiram ou não a produção correta estabelecida.

Análises estatísticas descritiva e inferencial foram feitas com o uso do software STATISTICA (versão 7.0). Utilizou-se a ANOVA de Medidas Repetidas para a comparação entre os desempenhos dos grupos (GC e GG) nas etapas de intervenção do processo terapêutico e nos valores do PCC-R pré- e pós-terapia. O teste Pos hoc utilizado foi o de Scheffé. Para a comparação entre o número de sessões nos dois tipos de intervenção, utilizou-se a ANOVA One-way. Estabeleceu-se um valor de α>0,05.

RESULTADOS

A Tabela 2 apresenta a porcentagem média de acerto dos sujeitos em função do tipo de intervenção e das etapas de intervenção.

Tabela 2
Porcentagem média de acertos dos grupos de acordo com as etapas de intervenção

A Anova de medidas repetidas somente mostrou efeito significante para as etapas do processo terapêutico (F(5,40)=32,452, p<0,01), ou seja, avaliação inicial da produção (ou pré-terapia), percepção no outro, percepção em si e produção; mas não apresentou efeito significante nem para o tipo de intervenção (GC e GG) e nem para interação entre intervenção*etapas do processo terapêutico. O teste Post Hoc de Scheffé mostrou diferença estatística entre a pré-terapia e as demais sessões da intervenção terapêutica e, ainda, entre as etapas de percepção (no outro e em si) e a produção (palavras-alvo e palavras-sondagem) para ambos os grupos, conforme ilustrado na Figura 2.

Figura 2
Comparação relativa em função dos tipos de intervenção terapêutica: Tradicional e GG

A Tabela 3, apresenta os valores do PCC-R pré e pós-terapia dos sujeitos em ambos os grupos de terapia, bem como o número de sessões que cada sujeito precisou para atingir a produção correta das palavras-alvo e/ou palavras-sondagem com pelo menos 85% de acerto.

Tabela 3
Valores do PCC-R pré e pós-intervenção e número de sessões de produção correta de cada sujeito

Na comparação entre os valores do PCC-R pré e pós-terapia do grupo de sujeitos submetidos à terapia tradicional (GC) e terapia mediada por estratégia de gamificação (GG), utilizou-se a ANOVA de Medidas Repetidas. Como resultados, houve efeito significante para as condições pré e pós-terapia (F(1,8)=39,31, p>0,00) e para o tipo de intervenção (F(1,8)=7,08, p<0,00), mas não houve efeito significante para a interação entre pré-pós*tipo de terapia (F(1,8)=0,39,p=0,54). Embora os valores de PCC-R aumentaram para todos os sujeitos na comparação das condições pré e pós-terapia, os sujeitos do GC tiveram os valores de PCC-R maiores do que os sujeitos do GG, tal como ilustra a Figura 3.

Figura 3
Comparação entre os valores de PCC-R pré e pós-terapia em função do tipo intervenção

Em relação à comparação do número de sessões necessárias para que os sujeitos atingissem pelo menos 85% de produção correta do sons-alvo trabalhados (/ɾ/) ou (/l/) a ANOVA One-Way não mostrou diferença significante (F(1,8)=0,80, p=0,39). Isto é, não houve diferença entre o número de sessões em função do tipo de terapia. A Figura 4, ilustra o resultado obtido.

Figura 4
Comparação entre o número de sessões em função do tipo de intervenção

DISCUSSÃO

O presente estudo objetivou comparar as eficácias da terapia fonológica associada à estratégia de gamificação e a terapia tradicional em sujeitos com TF. Esperava-se que os sujeitos submetidos à intervenção fonológica associada às estratégias de gamificação apresentassem melhor desempenho em termos de porcentagem de acerto das habilidades trabalhadas e um menor tempo terapêutico, quando comparados aos sujeitos submetidos à terapia fonológica tradicional.

Eficácia terapêutica em terapias associadas e não associadas às estratégias de gamificação

No tocante ao desempenho dos grupos, os achados obtidos apontaram que não houve diferença, tanto em relação à acurácia nas etapas de intervenção (Figura 2) quanto ao número de sessões (Figura 4), refutando a hipótese do estudo.

Esses resultados concordam com os estudos(1414 Wren Y, Roulstone S. A comparison between computer and tabletop delivery of phonology therapy. Int J Speech Lang Pathol. 2008;10(5):346-63. http://dx.doi.org/10.1080/17549500701873920. PMid:20840034.
http://dx.doi.org/10.1080/17549500701873...
,1515 Jesus LMT, Martinez J, Santos J, Hall A, Joffe V. Comparing traditional and tablet-based intervention for children with speech sound disorders: a randomized controlled trial. J Speech Lang Hear Res. 2019;62(11):4045-61. http://dx.doi.org/10.1044/2019_JSLHR-S-18-0301. PMid:31644381.
http://dx.doi.org/10.1044/2019_JSLHR-S-1...
) que não mostraram diferença estatisticamente significante em relação ao desempenho da produção de fala entre intervenções com e sem estratégias de gamificação.

Em um dos estudos mencionados(1414 Wren Y, Roulstone S. A comparison between computer and tabletop delivery of phonology therapy. Int J Speech Lang Pathol. 2008;10(5):346-63. http://dx.doi.org/10.1080/17549500701873920. PMid:20840034.
http://dx.doi.org/10.1080/17549500701873...
), o resultado apresentado pode ser explicado devido à realização de apenas um atendimento semanal com duração de 30 minutos, no período de 8 semanas de intervenção; fato que poderia ser um considerado um espaço curto de tempo para evidenciar diferenças entre os dois tipos de intervenção.

No presente estudo, os atendimentos também foram realizados em 8 semanas com dois atendimentos semanais com duração de 50 minutos, não sendo observada diferença entre os grupos quanto ao número de sessões.

Em contrapartida, esses achados divergem daqueles apresentados em outro estudo(1212 Pereira LL, Brancalioni AR, Keske-Soares M. Terapia fonológica com uso de computador: relato de caso. Rev CEFAC. 2013;15(3):681-8. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462012005000052.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462012...
), no qual verificou-se que a estratégia de gamificação com o uso do computador favorece mais mudanças no sistema fonológico dos sujeitos quando comparado com a terapia tradicional. Todavia, os autores deste estudo alertaram para a necessidade de realizar outras pesquisas com ampliação da casuística para confirmação dos achados, considerando que apenas quatro sujeitos participaram da pesquisa.

Outrossim, outros autores também concordaram em uma pesquisa com os benefícios dos jogos de gamificação em terapia(2121 Brancalioni AR, Keske-Soares M. Efeito do tratamento do desvio fonológico pelo modelo de estratos por estimulabilidade e complexidade dos segmentos com software de intervenção para fala (SIFALA). Rev CEFAC. 2016;18(1):298-308. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216201618117815.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620161...
), como demonstrado com o uso Software de Intervenção para Fala (SIFALA), já que o mesmo permitiu explorar e alcançar os objetivos do tratamento de sujeitos com TF que incluíram ensinar a produção correta dos sons da fala, facilitar a representação lexical e o armazenamento das informações a respeito do sistema fonético-fonológico.

Demais pesquisadores(2222 Figueiredo KO, Cardenuto RRM, Amato CAH, Martins VF. Kera Puzzle: jogo digital educacional para apoio à intervenção fonoaudiológica. Rev Ibér Sist Tecnol Inf. 2021;41:503-15.), realizaram a aplicação de questionários direcionados para fonoaudiólogos e sujeitos com TF para verificar a usabilidade e utilidade do jogo digital KeRa Puzzle em intervenção terapêutica, e, os achados mostraram que o jogo de gamificação possuiu usabilidade satisfatória, além de poder ser um recurso interessante para tornar as sessões mais lúdicas.

Hipóteses explicativas para a não diferença de desempenho entre os tipos de intervenção

Fatores como familiaridade com o computador, idade do sujeito, aspectos motivacionais, participação familiar, número de sujeitos e heterogeneidade intra-grupo podem estar na base da explicação da não diferença entre os tipos de intervenção.

Embora a familiaridade com o computador não tenha sido considerada como uma variável a ser analisada, observou-se que três sujeitos do GG (S2, S7 e S9) já tinham conhecimento e interesse em manusear o computador e jogos eletrônicos, esse fato favoreceu o engajamento durante todo o uso da ferramenta nas sessões. Entretanto, os sujeitos S3 e S8 (também pertencentes ao GG) nunca tinham utilizado o computador e, inicialmente, apresentaram dificuldades com o manuseio do dispositivo eletrônico, o que dificultou o engajamento e a motivação com o game proposto de modo imediato.

Outra possível hipótese explicativa diz respeito à idade dos sujeitos do GG, pois observou-se que os sujeitos S2, S7 e S9 com idades de 5:11, 5:5 e 6:11, respectivamente, apresentaram maior interesse no game e atenção sustentada ao compará-los com os sujeitos S3 e S7 com idades de 4:11 e 5:0. Um fator importante nos sujeitos de idades menores, foi a necessidade de potencializar durante a atividade os elementos da gamificação, como ranking, pontuação e premiação interativa para despertar o interesse dos envolvidos, encorajando-os a continuar e respeitando suas potencialidades.

Considerando que um dos elementos da gamificação é o aspecto motivacional(11 Vianna Y, Vianna M, Medina B, Tanaka S. Gamification, Inc: como reinventar empresas a partir de jogos. Rio de Janeiro: MJVPress; 2013.,22 Busarello RI. Abordagem inicial: o que é gamification?. In: Busarello RI. Gamification: princípios e estratégias. São Paulo: Pimenta Comunicação e Projetos Culturais; 2016. p. 13-15.), foi observado que a combinação efetiva das motivações intrínseca (desejo próprio e interno) e extrínseca (jogo de gamificação proposto) contribuíram para nível de motivação e engajamento dos sujeitos do GG. Entretanto, não foi observado diferença entre este aspecto no GC.

No que se refere à participação familiar, estudos em âmbito nacional e internacional têm destacado a relevância da participação familiar dos pais/responsáveis no processo de intervenção para contribuição da eficácia terapêutica(2323 Melo RM, Backes FT, Mota HB. Percepções de pais/responsáveis de crianças com desvio fonológico acerca do desvio fonológico e da terapia fonoaudiológica. Rev CEFAC. 2015;17(6):1802-13. http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216201517621314.
http://dx.doi.org/10.1590/1982-021620151...

24 Bowen C, Cupples L. PACT: parents and children together in phonological therapy. Int J Speech Lang Pathol. 2006;8(3):282-92. http://dx.doi.org/10.1080/14417040600826980.
http://dx.doi.org/10.1080/14417040600826...
-2525 Washington KN, Thomas-Stonell N, Mcleod S, Warr-Leeper G. Parents’ perspectives on the professional-child relationship and children’s functional communication following speech-language intervention. Can J Speech-Lang Pathol Audiol. 2012;36(3):220-33.). Esse aspecto não foi um fator considerado na análise do estudo. Porém, evidentemente, a participação familiar dos sujeitos participantes da pesquisa, traduzida na realização de atividades domiciliares solicitadas durante o processo terapêutico, foi bastante heterogênea, podendo ser considerada um fator influente no desempenho e interesse terapêutico dos sujeitos independentemente do tipo de intervenção aplicada.

Em relação ao número de sujeitos, a limitação do estudo está em relação ao tamanho da amostra, o que não permite uma generalização dos resultados. Em razão disso, recomenda-se que sejam feitos estudos futuros randomizados e com amostra ampliada.

Destaca-se também a heterogeneidade, em termos de grau de severidade do TF, presente no interior de cada grupo. No GC composto pelos sujeitos S1, S4, S5, S6 e S10, no final do processo terapêutico, a maioria destes suprimiram os processos de substituição de líquidas, exceto o S10 que ainda apresentou 75% de produção correta do fone contrastivo /ɾ/. Ao comparar o sujeito S10 com os demais sujeitos pertencentes ao mesmo grupo, notou-se que este apresentou maior grau de severidade do TF (levemente-moderado) e outros processos fonológicos para além da classe das líquidas.

Diferentemente, no GG, composto pelos sujeitos S2, S3, S7, S8 e S9, apenas o S2 suprimiu o processo fonológico trabalhado, considerando que este foi o único que apresentou gravidade Leve do TF e processos fonológicos somente na classe das líquidas. Os demais participantes do grupo, por sua vez, apresentaram maior grau de severidade do TF e outros processos fonológicos os quais envolviam diferentes classes.

Diferenças de desempenho entre as habilidades trabalhadas em ambos os modelos de intervenção

Embora o foco principal do presente estudo não tenha sido comparar o desempenho dos sujeitos em relação às habilidades trabalhadas em terapia, observou-se que nos dois grupos as condições pré-terapia mostraram uma baixa porcentagem de acerto dos sons-alvo comparativamente com as etapas de percepção (no outro e em si) e produção de fala. Isso significa dizer que a partir do início do processo de intervenção todos sujeitos já apresentam uma mudança em termos de acurácia.

Dentre as etapas, a acurácia (% de acerto) de percepção (no outro e em si) se diferenciam da acurácia da produção de fala para os dois grupos. Os sujeitos apresentaram melhores desempenhos de percepção do que de produção de fala. Este resultado corrobora a assunção de um estudo(2626 Mezzomo CL, Mota HB, Dias RF. Desvio fonológico: aspectos sobre produção, percepção e escrita. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2010;15(4):554-60. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342010000400013.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342010...
) sobre a possibilidade de a habilidade de percepção preceder a habilidade de produção de fala, ou seja, para que um sujeito produza apropriadamente determinado fone contrastivo, é necessário que o mesmo perceba as propriedades fonéticas-fonológicas para depois fundamentar essas propriedades em suas próprias produções.

Outro aspecto a ser considerado é o de que não existe uma correlação unívoca entre produção e percepção de fala. Conforme mencionado em estudo anterior(2727 Berti LC, Guilherme J, Esperandino C, Oliveira AM. Relationship between speech production and perception in children with Speech Sound Disorders. J Port Linguist. 2020;19(1):13. http://dx.doi.org/10.5334/jpl.244.
http://dx.doi.org/10.5334/jpl.244...
), os autores ressaltam que a correlação existente entre produção e percepção é dependente da classe fonológica e, ainda, que os erros de percepção de fala não espelham os erros de produção de fala.

Outro estudo(2828 Berti LC, Assis MF, Cremasco E, Cardoso ACV. Speech production and speech perception in children with speech sound disorder. Clin Linguist Phon. 2022;36(2-3):183-202. http://dx.doi.org/10.1080/02699206.2021.1948609. PMid:34279164.
http://dx.doi.org/10.1080/02699206.2021....
), particularmente, refere que a presença de uma correlação significativa entre as habilidades de produção de fala e percepção da própria produção de fala atípica do sujeito sugere que a avaliação de tais habilidades parece acessar a mesma forma de representação fonológica subjacente. Ou seja, se um sujeito que não estabeleceu a representação subjacente para um determinado contraste fonológico afetará ambas as habilidades: percepção da fala do outro e percepção de sua própria fala, uma vez que o desempenho nas habilidades de percepção requer o acesso a um sistema simbólico, podendo causar ou contribuir para déficits na produção e percepção da fala.

Ao considerar os supracitados, portanto, a habilidade de percepção de fala nos direciona para uma importante implicação no processo de reabilitação nos modelos de base fonológica, visto que, sua inclusão na avaliação e intervenção é uma medida valiosa para se atingir a eficácia terapêutica.

Em relação à comparação dos valores do PCC-R, observou-se diferenças tanto em relação às condições pré versus pós, quanto em relação aos grupos (Figura 3). Como apresentado anteriormente, ambos os grupos modificaram os valores do PCC-R após intervenção terapêutica. O GC apresentou maiores valores de PCC-R comparativamente ao GG.

No entanto, cabe destacar que mesmo antes da intervenção terapêutica (pré-terapia) os sujeitos do GC já apresentavam valores de PCC-R superiores do que o GG. Tal fato ressalta uma limitação considerável deste estudo, posto que, o ideal seria equilibrar a distribuição dos sujeitos em cada grupo de acordo com a gravidade do TF (valores de PCC-R).

CONCLUSÃO

Ambos os modelos de intervenção (tradicional e gamificação) propiciam melhora no desempenho fonológico do sujeito a partir da primeira sessão. Não houve diferença no tempo de terapia nem entre a média da porcentagem de acerto na produção das palavras-alvo entre as duas abordagens.

Uma importante implicação terapêutica refere-se à possibilidade do uso de estratégia de gamificação com o uso do computador, podendo se obter resultados semelhantes àqueles esperados na terapia tradicional.

O desenvolvimento do presente estudo visou contribuir com as discussões científicas acerca da terapia no campo da Fonologia Clínica, favorecer com o estabelecimento de processos interventivos de mediação fonoaudiológica com estratégias de gamificação e incentivar a construção de novos jogos de gamificação que envolvam etapas de percepção e produção de fala.

AGRADECIMENTOS

Fonte de financiamento Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (2019/27669-4).

  • Trabalho realizado na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP - Marília (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: FAPESP (2019/27669-4).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2022
  • Aceito
    19 Fev 2023
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