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Efeito da estimulação das habilidades auditivas de fonoaudiólogos para avaliação perceptiva do desvio vocal

RESUMO

Objetivo

Verificar se a estimulação das habilidades auditivas de fonoaudiólogos com e sem dificuldades no processamento auditivo central (PAC) interfere no desempenho da avaliação perceptivo-auditiva (APA) do desvio vocal predominante.

Métodos

Estudo prospectivo, quase-experimental, realizado com 26 fonoaudiólogos, desenvolvido em cinco etapas: Etapa1: Pré-intervenção - primeira APA, composta por 30 amostras da vogal sustentada /ε/, acrescidas de 20% de repetição (seis amostras repetidas), apresentadas randomicamente, na qual os participantes deveriam identificar o desvio vocal predominante; Etapa 2: Triagem das habilidades do PAC com nove testes da plataforma AudBility; Etapa 3: Treinamento perceptivo-auditivo do desvio vocal predominante e segunda APA, idêntica à anterior; Etapa 4: Intervenção - estimulação das habilidades auditivas (EHA), realizada por 14 fonoaudiólogos, sendo oito que não passaram na triagem da Etapa 2 (Grupo1) e seis que passaram na triagem e, espontaneamente, realizaram a EHA (Grupo G2a). Os outros 12 participantes não realizaram EHA e formaram o Grupo G2b; Etapa 5: Pós-intervenção - realização da terceira APA, idêntica às anteriores, por todos os fonoaudiólogos. A acurácia das respostas e confiabilidade intra-avaliadores foram verificadas ao longo das três APAs.

Resultados

Os três grupos apresentaram desempenhos semelhantes nas três APAs. G1 e G2a não apresentaram melhora no desempenho da análise do desvio vocal predominante pós-EHA. A confiabilidade intra-avaliador pré-intervenção no G1 foi inferior a do G2a e G2b nas APA1 e APA2, e similar a eles na APA3, pós-intervenção.

Conclusão

EHA proposto não impactou a acurácia da APA, mas influenciou a confiabilidade intra-avaliador dos fonoaudiólogos com dificuldades nas habilidades auditivas do PAC.

Palavras-chave:
Percepção auditiva; Testes auditivos; Treinamento da voz; Triagem da voz; Processamento auditivo

ABSTRACT

Purpose

To verify if the stimulation of auditory skills of speech therapists with and without difficulty in auditory processing (CAP) interferes in performance of auditory-perceptual assessment (APA) regarding predominant vocal deviation.

Methods

Prospective, quasi-experimental study, conducted with 26 speech therapists and developed in five stages: Stage1: Pre-intervention - APA, composed of 30 samples of sustained vowel emissions /ε/, plus 20% repetition (six repeated samples) in which participants should identify the predominant vocal deviation. Stage2: Screening of CAP skills through nine tests of AudBility web platform. Stage3: Perceptual-auditory training of predominant vocal deviation and, later, second APA, identical to previous one. Stage4: Intervention - Stimulation of auditory skills (EHA) performed by 14 participants, eight of which failed the screening from Stage2 and six who passed th e screening and spontaneously performed EHA (Group G2a ). The other 12 participants did not perform EHA and formed the G2b Group. Stage5: Post-intervention - Third execution of APA, identical to previous, by all participants. Accuracy of analysis and intra-rater reliability were assessed in all APAs.

Results

The three groups showed similar performances in the three APAs. G1 and G2a showed no improvement in the performance of the analysis of predominant vocal deviation after EHA. Pre-intervention intra-rater reliability in G1 was lower than in G2a and G2b in APA1 and APA2, and similar to them in APA3, post-intervention.

Conclusion

Proposed EHA had no impact on APA accuracy, but influenced in intra-rater reliability of speech therapists with difficulty in the hearing skills of CAP.

Keywords:
Auditory perception; Hearing tests; Voice training; Voice screening; Auditory processing

INTRODUÇÃO

A avaliação perceptivo-auditiva da voz é o procedimento considerado padrão-ouro para análise do tipo de voz e grau de desvio da qualidade vocal. Apesar de amplamente utilizada, ela apresenta uma alta subjetividade, pois a experiência clínica e o grau de treinamento auditivo do fonoaudiólogo avaliador influenciam a avaliação(11 Oates J. Auditory-perceptual evaluation of disordered vocal quality: pros, cons and future directions. Melbourne: Folia Phoniatr Logop; 2009.

2 Silva RS, Simões-Zenari M, Nemr NK. Impact of auditory training for perceptual assessment of voice executed by undergraduate students in speech-language pathology. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(1):19-25. http://dx.doi.org/10.1590/S2179-64912012000100005. PMid:22460368.
http://dx.doi.org/10.1590/S2179-64912012...

3 Yamasaki R, Madazio G, Leão SHS, Padovani M, Azevedo R, Behlau M. Auditory-perceptual evaluation of normal and dhysphonic voices using the voice deviation scale. J Voice. 2017 Jan;31(1):67-71. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2016.01.004. PMid:26873420.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2016....
-44 Englert M, Madazio G, Gielow I, Lucero J, Behlau M. Learning factor influence on the perceptual-auditory analysis. CoDAS. 2018;30(3):e20170107. PMid:29898037.).

A avaliação perceptivo-auditiva permite a inferência de dados anatomofisiológicos importantes, que dificilmente são percebidos em outros tipos de avaliação isolada. A avaliação acústica por meio de programas computadorizados, por exemplo, oferece a extração de medidas acústicas significativas para a avaliação da voz, contudo, quando analisadas de forma isolada, sem relação com a avaliação perceptivo-auditiva e a análise do comportamento vocal, não permitem a identificação do tipo vocal(55 Madazio G, Leão S, Behlau M. The phonatory deviation diagram: a novel objective measurement of vocal function. Folia Phoniatr Logop. 2011;63(6):305-11. http://dx.doi.org/10.1159/000327027. PMid:21625144.
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).

Por isso, é importante que os fonoaudiólogos especialistas em voz sejam capazes de realizar a avaliação perceptivo-auditiva de forma acurada e confiável, não apenas sabendo avaliar corretamente a voz, mas também mantendo a confiabilidade intra-avaliador. Estudos mostraram que fonoaudiólogos com experiência clínica que passaram por treinamento perceptivo-auditivo de vozes durante sua formação apresentam melhor desempenho e confiabilidade nas avaliações(11 Oates J. Auditory-perceptual evaluation of disordered vocal quality: pros, cons and future directions. Melbourne: Folia Phoniatr Logop; 2009.,66 Kreiman J, Gerratt BR, Ito M. When and why listeners disagree in voice quality assessment tasks. J Acoust Soc Am. 2007;122(4):2354-64. http://dx.doi.org/10.1121/1.2770547.
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). Dessa forma, o treinamento por repetição, com escuta recorrente de vozes consideradas âncoras, ou seja, específicas de um tipo de voz, auxilia no processo de aprendizado e é um aliado para a formação profissional(77 Ghio A, Dufour S, Wengler A, Pouchoulin G, Revis J, Giovanni A. Perceptual evaluation of dysphonic voices: can a training protocol lead to the development of perceptual categories? J Voice. 2015;29(3):304-11. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2014.07.006. PMid:25516201.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2014....
).

A avaliação perceptivo-auditiva da voz possibilita a descrição das características vocais, como o grau da alteração e o tipo de desvio vocal. Dentre os tipos de vozes desviadas, as mais frequentes são: vozes rugosas, soprosas e tensas. A voz rugosa tem como correlato fisiopatológico a irregularidade de vibração da mucosa das pregas vocais; a soprosa está associada com o escape de ar transglótico e, a tensa, com o esforço fonatório(55 Madazio G, Leão S, Behlau M. The phonatory deviation diagram: a novel objective measurement of vocal function. Folia Phoniatr Logop. 2011;63(6):305-11. http://dx.doi.org/10.1159/000327027. PMid:21625144.
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). Os desvios vocais podem estar presentes de forma isolada ou combinada. Quando presentes de forma combinada, é comum haver o predomínio de um dos componentes vocais. Por conta da multidimensionalidade inerente à voz e da complexidade da análise, a avaliação perceptivo-auditiva pode ser susceptível a fontes de erros sistemáticos e aleatórios(55 Madazio G, Leão S, Behlau M. The phonatory deviation diagram: a novel objective measurement of vocal function. Folia Phoniatr Logop. 2011;63(6):305-11. http://dx.doi.org/10.1159/000327027. PMid:21625144.
http://dx.doi.org/10.1159/000327027...
,88 Kreiman J, Gerratt BR, Precoda K, Berke GS. Individual differences in voice quality perception. J Speech Hear Res. 1992;35(3):512-20. http://dx.doi.org/10.1044/jshr.3503.512. PMid:1608242.
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).

Um dos fatores que pode induzir ao erro é a dificuldade no processamento auditivo do avaliador, que pode influenciar diretamente o resultado da avaliação perceptivo-auditiva de vozes. Esse processamento é complexo e envolve um conjunto de mecanismos que ocorrem dentro do sistema auditivo, iniciados nos neurônios da cóclea e finalizados no córtex auditivo cerebral. É por meio desse processo que se consegue analisar, classificar, organizar e interpretar os mais diversos estímulos sonoros ao nosso redor. Uma alteração nesse processamento pode acarretar dificuldades na interpretação e distinção dos sons(99 ASHA: American-Speech-Language-Hearing Association. (Central) auditory processing disorders: working group on auditory processing disorders. Rockville: ASHA; 2005. (Report; no. TR2005-00043).,1010 Weihing J, Chermak GD, Musiek FE. Auditory training for central auditory processing disorder. Semin Hear. 2015;36(4):199-215. http://dx.doi.org/10.1055/s-0035-1564458. PMid:27587909.
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).

A avaliação do processamento auditivo central (PAC) pode ser realizada por um conjunto de testes comportamentais padronizados que avaliam os diversos mecanismos fisiológicos e habilidades auditivas(1111 Pereira LD, Frota S. Avaliação do processamento auditivo/testes comportamentais. In: Boechat EM, Menezes PL, Couto CM, Frizzo ACF, Charlach RC, Anastasio ART, editores. Tratado de audiologia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2015. p. 160-70.). Existem vários instrumentos e questionários que podem auxiliar na triagem do transtorno do processamento auditivo central(1212 Zanchetta S. Uso de questionários na investigação do processamento auditivo. In: Boechat EM, Menezes PL, Couto CM, Frizzo ACF, Charlach RC, Anastasio ART, editores. Tratado de audiologia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2015. p. 171-8.

13 Volpatto FL, Rechia IC, Lessa AH, Soldera CLC, Ferreira MIDC, Machado MS. Questionnaires and checklists for central auditory processing screening used in Brazil: a systematic review. Rev Bras Otorrinolaringol (Engl Ed). 2019;85(1):99-110. PMid:29970341.

14 Schochat E, Beluda DA, Silva PML. Habilitando a audição. In: Pereira, LD, Azevedo MF, Machado LP, Ziliotto KN, editores. Processamento auditivo: terapia fonoaudiológica. Uma abordagem de reabilitação. São Paulo: Lovise; 2002.
-1515 Donadon C, Sanfins MD, Borges LR, Colella-santos M. Auditory training: effects on auditory abilities in children with history of otitis media. Brazil. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2019;118:177-80. http://dx.doi.org/10.1016/j.ijporl.2019.01.002. PMid:30639988.
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), que pode ser realizada em cabine, ou de forma on-line (1616 Amaral MIRD, Carvalho NG, Colella-Santos MF. Programa online de triagem do processamento auditivo central em escolares (audBility): investigação inicial. CoDAS. 2019;31(2):e20180157. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018157. PMid:30942290.
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).

Dessa forma, a avaliação perceptivo-auditiva de vozes é um desafio para os fonoaudiólogos especialistas em voz. Perceber quando uma voz está ou não alterada, identificar o desvio vocal predominante e o grau de desvio, envolve treino, experiência e habilidades auditivas preservadas.

Considerando, portanto, a avaliação perceptivo-auditiva de vozes como instrumento soberano de análise do tipo vocal e sabendo que alterações no processamento auditivo podem acarretar dificuldades na interpretação e distinção dos sons, é importante saber se o treino das habilidades auditivas é relevante e auxilia os fonoaudiólogos a desenvolverem suas competências para um bom desempenho na análise perceptivo-auditiva de vozes.

A hipótese é que o treinamento das habilidades auditivas aumenta a acurácia e a confiabilidade intra-avaliadores na avaliação do desvio vocal predominante de todos os fonoaudiólogos, com ou sem alteração do PAC.

Com base no exposto, este estudo teve como objetivo verificar se a estimulação das habilidades auditivas de fonoaudiólogos, com e sem falhas no PAC, interfere na avaliação perceptivo-auditiva (APA) do desvio vocal predominante, considerando a acurácia da análise e a confiabilidade intra-avaliadores.

MÉTODO

Cuidados éticos

Esta pesquisa foi realizada no Centro de Estudos da Voz - CEV e foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Associação Congregação Santa Catarina, sob o número de parecer 3.386.485. Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Participantes

Participaram voluntariamente desta pesquisa 26 fonoaudiólogos alunos de um curso de especialização em voz (incluindo recém-formados e profissionais que já atuavam na área de voz profissional), 21 mulheres e cinco homens, faixa etária de 22 a 56 anos, média de idade de 31 anos.

Os critérios de inclusão foram: indivíduos adultos, ambos os gêneros e que estivessem cursando especialização em voz. Os critérios de exclusão foram: doença neurológica/psiquiátrica, presença de queixa auditiva autorreferida e não realização dos procedimentos propostos.

Procedimentos

Pesquisa longitudinal, quase-experimental, dividida em cinco etapas (Figura 1), assim denominadas:

Figura 1
Representação esquemática do desenho do estudo
  • Etapa 1: Pré-intervenção - avaliação perceptivo-auditiva do desvio vocal predominante (rugosa, soprosa ou tensa) (APA1, inicial)

  • Etapa 2: Triagem das habilidades auditivas (THA)

  • Etapa 3: Treinamento perceptivo-auditivo do desvio vocal predominante e APA2, intermediária

  • Etapa 4: Intervenção - estimulação das habilidades auditivas (EHA)

  • Etapa 5: Pós-intervenção - avaliação perceptivo-auditiva do desvio vocal predominante (APA3, final)

Etapa 1

Na primeira etapa, os 26 participantes foram submetidos à primeira avaliação perceptivo-auditiva do desvio vocal predominante - APA1, que avaliou o desempenho na acurácia da classificação do tipo vocal predominante e a confiabilidade intra-avaliador.

Nessa avaliação, os participantes tiveram que avaliar o desvio vocal predominante (rugoso, soproso e tenso) de uma amostra de 30 vozes, herdadas do banco de vozes da Clínica do Centro de Estudos da Voz - CLINCEV*.1 1 *As vozes foram herdadas do banco de vozes da CLINCEV, que consistem em gravações da vogal sustentada /ε/. Para a criação do gabarito, as vozes foram avaliadas por três especialistas em voz, com mais de 15 anos de experiência em avaliação perceptivo-auditiva e, por meio de consenso, foram classificadas em relação ao desvio vocal predominante Ao todo, foram apresentadas 36 vozes aos participantes: as 30 amostras selecionadas, acrescidas de 20% de repetição (seis vozes repetidas). As vozes foram apresentadas por uma das pesquisadoras, em campo, via caixa de som, e as respostas foram anotadas em uma folha de resposta identificada, que foi recolhida.

A acurácia de cada participante foi verificada comparando a resposta de cada uma das 30 amostras com um gabarito. O gabarito foi criado por três fonoaudiólogas especialistas em voz, com mais de 15 anos de experiência em APA, que analisaram o desvio vocal predominante das 30 amostras. A classificação do predomínio vocal de cada amostra foi realizada por consenso de, pelo menos, duas avaliadoras. A confiabilidade de cada participante foi verificada comparando as respostas dos pares das seis amostras repetidas que foram acrescidas. Ao todo, a primeira etapa durou 30 minutos.

Etapa 2

Na segunda etapa, os participantes foram submetidos à triagem das habilidades auditivas do PAC por meio do programa AudBility, da ProBrain, uma plataforma web que permite a triagem das habilidades auditivas, composta por dez testes autoaplicáveis(1616 Amaral MIRD, Carvalho NG, Colella-Santos MF. Programa online de triagem do processamento auditivo central em escolares (audBility): investigação inicial. CoDAS. 2019;31(2):e20180157. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018157. PMid:30942290.
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). Para isso, os participantes receberam um treinamento prévio sobre como acessar e quais cuidados deveriam ter ao utilizar o programa AudBility: estar em um ambiente silencioso, sem interferência externa, com o uso de fone de ouvido. Além disso, todos deveriam realizar a calibração do som proposta pelo próprio programa, ao início de cada teste, na qual o participante escuta uma amostra da emissão do estímulo que será utilizado e pode calibrar o som aumentando ou diminuindo sua intensidade, caso julgue necessário(1717 Carvalho NG, Amaral MIRD, Colella-Santos MF. AudBility: effectiveness of an online central auditory processing screening program. PLoS One. 2021;16(8):e0256593. http://dx.doi.org/10.1371/journal.pone.0256593.
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). Esse treinamento foi ministrado por uma fonoaudióloga com mais de 20 anos de experiência em PAC e usuária experiente do programa.

Cada participante recebeu um login e senha do Audbility para acessar a triagem e teve o prazo de um mês - duração da segunda etapa - para realizar, individualmente, a autoaplicação de cada um dos dez testes do AudBility. Neste estudo, somente nove foram considerados nos resultados, pois o teste de padrão de intensidade ainda está em processo de validação.

Descrição dos testes

  • Localização sonora: avalia a capacidade de o indivíduo localizar a origem de um som no ambiente; o indivíduo deve responder de qual lado ouviu o estímulo (direito, esquerdo, em cima, atrás);

  • Consoante-vogal: tarefa que permite a identificação da dominância hemisférica cerebral; o indivíduo ouve duas sílabas concomitantes e deve escolher uma;

  • Dicótico de dígitos (integração): avalia a habilidade de ouvir e identificar dois números diferentes em cada orelha, apresentados ao mesmo tempo;

  • Dicótico sequencial (dissílabos): avalia a habilidade de o cérebro se lembrar de uma sequência de quatro palavras, sendo duas delas emitidas isoladamente e duas, simultaneamente, uma em cada orelha;

  • Fechamento auditivo: avalia a habilidade do cérebro em compreender palavras acusticamente modificadas;

  • Figura-fundo (ipsilateral): avalia a habilidade de direcionar a atenção a um estímulo com a presença de uma mensagem competitiva na mesma orelha do estímulo principal; o indivíduo escutará uma frase-alvo (estímulo), enquanto escuta uma história (mensagem competitiva);

  • Resolução temporal: avalia a habilidade de identificar intervalos entre dois estímulos (intervalos variando de 0 ms, 2 ms, 5 ms, 10 ms, 15 ms e 20 ms);

  • Ordenação temporal (frequência): avalia a habilidade de perceber e lembrar de uma sequência de três estímulos, identificando se são graves ou agudos;

  • Ordenação temporal (duração): avalia a habilidade de perceber e lembrar de uma sequência de três estímulos, identificando se são curtos ou longos;

  • Ordenação temporal (intensidade): avalia a habilidade de perceber e lembrar de uma sequência de três estímulos, identificando se são fortes ou fracos.

Após o prazo de um mês, o desempenho obtido em cada teste foi comparado com o desempenho esperado em cada teste. Com isso, os 26 participantes foram divididos em dois grupos: G1 = não passou na triagem (8; 31%); G2 = passou na triagem (18; 69%). Considerou-se que aqueles que não atingiram o desempenho esperado em, pelo menos, dois dos testes aplicados(1616 Amaral MIRD, Carvalho NG, Colella-Santos MF. Programa online de triagem do processamento auditivo central em escolares (audBility): investigação inicial. CoDAS. 2019;31(2):e20180157. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018157. PMid:30942290.
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) não passaram na triagem.

Etapa 3

Na terceira etapa, todos os participantes foram submetidos a um treinamento presencial, com duração de duas horas, conduzido por uma das pesquisadoras. O objetivo foi desenvolver a percepção auditiva na identificação do desvio vocal predominante. Para tanto, foram selecionadas 196 amostras de vozes desviadas, cujo material da fala foi a vogal sustentada /ε/, extraídas de um banco de vozes da CLINCEV*, e previamente classificadas em relação ao desvio vocal predominante.

As vozes foram apresentadas por uma das pesquisadoras, em campo, via caixa de som. Inicialmente, cada uma das 196 vozes foi apresentada individualmente com, no máximo, três repetições, caso os participantes solicitassem. Ao término da reprodução de cada voz, os participantes marcaram em uma folha de resposta o desvio vocal que identificaram como predominante.

Ao término da tarefa, uma das pesquisadoras reapresentou todas as vozes, analisando-as com os participantes e fornecendo o gabarito e feedback em tempo real. Esse treinamento aconteceu em sessão única, com duração de três horas e intervalos de 15 minutos de descanso na metade da apresentação das vozes e ao término do treinamento. Após o treinamento, todos os participantes foram submetidos à segunda avaliação perceptivo-auditiva do desvio vocal predominante - APA2. Essa segunda aplicação foi idêntica à primeira aplicação (APA1).

Etapa 4

Na quarta etapa, os participantes receberam um convite para participarem de um treinamento de estimulação das habilidades auditivas, junto com instruções de acesso à plataforma web “Afinando o Cérebro”, disponível em: https://afinandoocerebro.com.br/. Essa plataforma permite a estimulação direcionada de habilidades específicas do processamento auditivo, por meio de jogos autoaplicáveis. O convite foi realizado pela mesma fonoaudióloga que realizou o treinamento prévio da segunda etapa.

Para isso, as autoras selecionaram os jogos que permitem a estimulação direcionada das habilidades auditivas que foram identificadas como as mais alteradas na triagem, por meio do AudBility, sendo elas: resolução temporal, ordenação temporal de frequência e ordenação temporal de duração. Ao todo, dez jogos**2 2 **Os dez jogos do “Afinando o Cérebro” utilizados foram: Contra o tempo, Segunda Nota, Buzinas Hard, Gotas, Pauta Musical, Está Afinado?, Jovens Bruxos, Aula de Canto, Percepção de Tempo, Seguindo as Notas, disponíveis em http://afinandoocerebro.com.br foram selecionados e disponibilizados para todos os participantes.

Para os participantes do G1 (aqueles que não passaram na triagem), a estimulação das habilidades auditivas - EHA foi obrigatória e todos a realizaram. Já para os alunos de G2 (passou na triagem), a EHA foi opcional e eles poderiam escolher entre realizá-la ou não. Ao término do prazo estipulado de um mês, os 18 participantes de G2 foram subdivididos em G2a = passou na triagem e realizou EHA (6; 23%) e G2b = passou na triagem e não realizou EHA (12; 46%).

Os participantes foram instruídos a realizar oito sessões de 30 minutos ou 16 sessões de 15 minutos, nas quais deveriam jogar os jogos selecionados. Não havia uma ordem específica para a realização dos jogos e cada participante poderia escolher entre os dez jogos selecionados, quais realizariam em cada sessão. Eles tiveram um mês para realizar todas as sessões, com frequência de quatro vezes na semana no caso de 15 minutos, ou duas vezes na semana no caso de 30 minutos. Além disso, os participantes também foram instruídos a acessar em casa, ou em um local silencioso de sua preferência, a plataforma com os jogos selecionados, sempre utilizando fone de ouvido e ajustando o volume de acordo com o seu nível de conforto auditivo. O tempo de realização da EHA foi registrado pela própria plataforma e os resultados foram coletados após a realização. Uma limitação deste estudo foi verificar apenas no final da EHA o tempo de realização e não ter monitorado durante o processo, embora tenha havido a sugestão do número de sessões e tempo de duração. Essa decisão metodológica considerou o fato de os alunos residirem em diferentes cidades e estados brasileiros e a suposta maturidade deles para assumirem o compromisso de execução do treinamento, por serem profissionais que, teoricamente, compreendem a importância da frequência de treino para os resultados decorrentes da estimulação.

Etapa 5

Na quinta etapa, foi realizada a terceira análise do desvio vocal predominante - APA3, idêntica à APA1 e à APA2, com duração de 30 minutos e realizada por todos os participantes.

Análise estatística

As respostas da avaliação perceptivo-auditiva foram compiladas e encaminhadas para a análise estatística com o objetivo de comparar o desempenho na avaliação e a confiabilidade intra-avaliador dos grupos nos três momentos de aplicação da APA.

Para a comparação do desempenho (percentual de respostas classificadas corretamente) inicialmente se utilizou o teste ANOVA de fatores mistos (paramétrico), para observar a influência da variável grupo (G1, G2a e G2b) e o momento de realização das APA (APA1, APA2 e APA3) no desempenho. Posteriormente, aplicou-se o teste ANOVA de um fator para observar a evolução do desempenho de cada grupo ao longo do estudo. A normalidade dos dados foi testada com o teste de Shapiro-Wilk e utilizou-se o teste de Esfericidade de Mauchly para observar se houve violação do pressuposto de esfericidade. A análise inferencial de concordância entre duas variáveis qualitativas nominais foi realizada com o Coeficiente Kappa ponderado. Considerou-se a interpretação de Kappa proposta por Landi JR(1818 Landis JR, Koch GG. The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics. 1977;33(1):159. http://dx.doi.org/10.2307/2529310.
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). O valor de significância estatística adotado foi igual a 5% (p < 0,05), utilizou-se o software SPSS Statistics, versão 25.0 e base teórica descrita de forma pormenorizada por Field(1919 Field A. Discovering statistics using IBM SPSS statistics. 5th ed. California: SAGE Publications; 2017. 1070 p.).

RESULTADOS

Os resultados da triagem das habilidades auditivas pelo AudBility estão descritos na Tabela 1. A comparação do desempenho entre os grupos (G1, G2a e G2b), considerando as três avaliações perceptivo-auditivas (APAs) do tipo de voz predominante (APA1, APA2 e APA3), está descrita na Tabela 2. A Tabela 3 explora como o desempenho na APA evoluiu em cada grupo. Os valores da confiabilidade intra-avaliador são apresentados na Tabela 4.

Tabela 1
Desempenho em cada teste da triagem das habilidades auditivas pelo AudBility, conforme o grupo
Tabela 2
Teste de análise de variância (ANOVA) para influência no desempenho da avaliação perceptivo-auditiva das variáveis grupo e momento de realização da avaliação
Tabela 3
Desempenho na análise do desvio vocal predominante dos três grupos, de acordo com os momentos da avaliação perceptivo-auditiva
Tabela 4
Valores de concordância para a confiabilidade intra-avaliador da análise perceptivo-auditiva do desvio vocal predominante dos participantes de cada grupo, nos três momentos de avaliação

Ao analisar o desempenho dos grupos nos dez testes da triagem das habilidades auditivas do AudBility, observou-se que o G1 apresentou pior desempenho nas habilidades relacionadas ao processamento temporal (ordenação temporal - frequência e duração - e resolução temporal), quando comparado ao G2a e ao G2b. Destaca-se a habilidade de ordenação temporal frequência, na qual 75% dos participantes de G1 tiveram um desempenho abaixo do esperado (Tabela 1).

Para analisar o desempenho na APA foram realizadas duas análises estatísticas. A primeira, ANOVA de fatores mistos, consistiu na observação da influência que os grupos (G1, G2a e G2b) e o momento de aplicação da APA (APA1, APA2, APA3) tiveram no desempenho. Ao analisar isoladamente a influência da variável grupo no desempenho na APA (Tabela 2), não foi observada nenhuma influência (p=0,656), ou seja, os grupos tiveram desempenho semelhante entre si, nos três momentos. Entretanto, ao analisar isoladamente a influência do momento de aplicação, foi observado que ele influenciou o desempenho da tarefa (p=0,009), indicando que o desempenho variou nas diferentes aplicações. Por fim, não foi observada interação significativa entre as duas variáveis (p=0,471), mostrando que ambas tiveram influência uniforme ao longo do estudo.

Para explorar a variação do desempenho nas três APAs, foi realizada uma segunda análise, ANOVA de um fator (Tabela 3). Para G1 e G2a, o desempenho se manteve semelhante nos três momentos (p=0,122 e 0,374 respectivamente). Somente para G2b o desempenho foi diferente nos três momentos (p=0,018), evidenciando melhora de significância estatística da APA1 para a APA3.

A Tabela 4 mostra que, para o G1 os valores de concordância do Kappa dos participantes variaram entre 0,308 e 1,000 na APA1, entre 0,182 e 0,750 na APA2 e, entre -2,000 e 1,000 na APA3. Para G2a os valores de concordância de Kappa variaram entre 0,205 e 1,000 na APA1, entre 0,333 e 1,000 na APA2 e entre 0,400 e 1,000 na APA3. Para G2b, os valores de concordância de Kappa variaram entre -0,304 e 1,000 na APA1, entre 0,207 e 0,750 na APA2 e entre 0,100 e 1,000 na APA3.

DISCUSSÃO

Este estudo teve como objetivo principal verificar o impacto da estimulação das habilidades auditivas no desempenho na avaliação perceptivo-auditiva do tipo de voz predominante de fonoaudiólogos cursando especialização em voz. O objetivo secundário foi verificar se a estimulação das habilidades auditivas interfere na confiabilidade do avaliador.

Inicialmente, é importante comentar que todos os participantes eram jovens, não possuíam queixas auditivas e não tiveram alterações no teste de localização sonora na triagem das habilidades auditivas. Logo a hipótese da presença de perda auditiva periférica ou audição assimétrica foi excluída, pois, nesses casos, a habilidade de localização sonora seria afetada por ser resultante das diferenças interaurais de duração e de intensidade do estímulo sonoro(2020 Nishihata R, Vieira MR, Pereira LD, Chiari BM. Processamento temporal, localização e fechamento auditivo em portadores de perda auditiva unilateral. Rev Soc Bras Fonoaudiol. 2012;17(3):266-73. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342012000300006.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-80342012...
).

O resultado da triagem das habilidades auditivas mostrou que os testes em que mais alunos falharam foram aqueles que avaliavam as habilidades do processamento temporal, que envolvem a percepção e/ou o processamento de dois ou mais estímulos auditivos em sua ordem de ocorrência no tempo. Esses testes estão relacionados com a tarefa de identificação do tom de voz, prosódia na fala e percepção da diferença entre sons surdos e plosivos(2121 Keith RW. Random Gap Detection Test- Expanded (RGDT-E). St. Louis: Auditec; 2002.

22 Fletcher H, Munson WA. Loudness, its definition, measurement and calculation. J Acoust Soc Am. 1993;12(4):377-430.
-2323 Musiek FE, Baran JA, Pinheiro ML. Behavioral and electrophysiological test procedures. In: Musiek FE, Baran JA, Pinheiro ML, editores. Neuroaudiology: case studies. San Diego: Singular Publishing Group; 1994. p. 7-28.). Em específico, neste estudo, a habilidade de ordenação temporal de frequência foi a habilidade com maior ocorrência de falhas nos participantes que apresentaram dificuldade nas habilidades auditivas (75% de falhas em G1).

A habilidade de ordenação temporal de frequência envolve a capacidade de discriminar uma sequência de sons quanto à frequência (grave/agudo) e está diretamente relacionada à percepção de pitch vocal (sensação subjetiva de frequência), modelado pela taxa de repetição glótica e pelo conteúdo espectral do trato vocal(2424 Samelli AG, Schochat E. Processamento auditivo, resolução temporal e teste de detecção de gap: revisão da literatura. Rev CEFAC. 2008;10(3):369-77. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462008000300012.
http://dx.doi.org/10.1590/S1516-18462008...
). Vozes predominantemente rugosas tendem a apresentar um pitch mais grave, devido à irregularidade dos ciclos glóticos, enquanto vozes mais tensas tendem a ser mais agudas devido ao fato de a mucosa da prega vocal mais rígida e alongada produzir mais ciclos por segundo(2525 Lopes LW, Cavalcante DP, Costa PO. Intensidade do desvio vocal: integração de dados perceptivo-auditivos e acústicos em pacientes disfônicos. CoDAS. 2014;26(5):382-8. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20142013033. PMid:25388071.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2014...
). Considerando que na avaliação perceptivo-auditiva os avaliadores devem identificar o desvio vocal predominante (voz rugosa, soprosa ou tensa), é possível sugerir que uma dificuldade nessa habilidade pode comprometer essa capacidade de avaliação.

Neste estudo, ao comparar o resultado na avaliação perceptivo-auditiva, observou-se que todos os grupos apresentaram desempenho semelhante entre si, nas três APAs. Mesmo após a EHA proposta, não foi observada melhora com significância estatística no desempenho de G1 e G2a (que realizaram a EHA), pré e pós-intervenção. Somente para G2b foi observada melhora estatística entre os resultados de APA1 e APA3. G1 foi o grupo que não passou na triagem e fez EHA obrigatoriamente, enquanto G2a, constituído por pessoas que passaram na triagem, espontaneamente escolheu fazer a EHA, ou seja, pode-se considerar a hipótese de que elas perceberam uma oportunidade de aprimorar suas habilidades auditivas. Em relação ao grupo G2b, constituído por pessoas que passaram na triagem e escolheram não fazer a EAH, pode-se supor que sejam indivíduos com comportamentos auditivos mais consistentes, que não sentiram necessidade de estimular as habilidades auditivas; por terem boas habilidades auditivas, beneficiaram-se efetivamente do treinamento perceptivo-auditivo do desvio vocal. Esse achado pode ser uma indicação de que indivíduos com boas habilidades auditivas possuem condições fisiológicas propícias para responderem positivamente ao treinamento perceptivo-auditivo do desvio vocal predominante(22 Silva RS, Simões-Zenari M, Nemr NK. Impact of auditory training for perceptual assessment of voice executed by undergraduate students in speech-language pathology. J Soc Bras Fonoaudiol. 2012;24(1):19-25. http://dx.doi.org/10.1590/S2179-64912012000100005. PMid:22460368.
http://dx.doi.org/10.1590/S2179-64912012...
,77 Ghio A, Dufour S, Wengler A, Pouchoulin G, Revis J, Giovanni A. Perceptual evaluation of dysphonic voices: can a training protocol lead to the development of perceptual categories? J Voice. 2015;29(3):304-11. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2014.07.006. PMid:25516201.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2014....
).

Nos grupos cujos participantes passaram na triagem das habilidades auditivas (G2a e G2b), ao comparar a confiabilidade intra-avaliador, considerando a avaliação de emissões idênticas de seis amostras vocais em uma mesma APA, a maior parte dos participantes obteve um Kappa classificado como forte (entre 0,61 e 0,80) ou quase perfeito (entre 0,81 e 1,00)(1818 Landis JR, Koch GG. The measurement of observer agreement for categorical data. Biometrics. 1977;33(1):159. http://dx.doi.org/10.2307/2529310.
http://dx.doi.org/10.2307/2529310...
). Para G1, grupo de participantes que não passaram na triagem, isso só foi observado na APA3, pós-intervenção da estimulação das habilidades auditivas, enquanto na APA1 e APA2, pré-intervenção, a maior parte dos participantes obteve Kappa inferior a forte (menor que 0,61). Ou seja, embora a EHA proposta no presente estudo não tenha impactado positivamente a acurácia da avaliação perceptivo-auditiva das amostras vocais, observaram-se indícios de que ela possa ter influenciado positivamente na confiabilidade interna dos participantes com dificuldade nas habilidades auditivas.

Em relação ao desempenho médio obtido nas APAs, verificou-se que variou de 70,8% a 80,3%, durante o estudo. Em outro estudo, realizado com 54 estudantes de graduação em Fonoaudiologia, com experiência mínima em avaliação perceptivo-auditiva, o desempenho médio observado foi de 52% a 54%(2626 Bispo NO, Behlau M, Yamasaki R. Strategy of anchor voices repetition in the auditory-perceptual judgment of voice. In: Proceedings of the 18th Congress of Otorhinolaryngology Foundation; 2019 Aug 29-31; São Paulo, Brasil. São Paulo: Thieme Revinter Publicações Ltda; 2019. p. 176.). Tendo em vista que, no presente estudo, os participantes eram fonoaudiólogos formados, cursando especialização em voz, eles provavelmente possuíam maior experiência clínica, fator que está relacionado ao melhor desempenho na tarefa(11 Oates J. Auditory-perceptual evaluation of disordered vocal quality: pros, cons and future directions. Melbourne: Folia Phoniatr Logop; 2009.,66 Kreiman J, Gerratt BR, Ito M. When and why listeners disagree in voice quality assessment tasks. J Acoust Soc Am. 2007;122(4):2354-64. http://dx.doi.org/10.1121/1.2770547.
http://dx.doi.org/10.1121/1.2770547...
).

Outros estudos também observaram a relação entre o desempenho e confiabilidade na avaliação perceptivo-auditiva com a presença de dificuldades nas habilidades temporais. Há referência na literatura sobre o desempenho de indivíduos que apresentaram resultados normais no Teste Padrão de Frequência (TPF) apresentado à orelha esquerda (OE) e tiveram desempenho superior em relação aos que apresentaram resultados alterados, o que não foi observado no TPF à orelha direita (OD) e no Teste Padrão de Duração (TPD). Já em relação à confiabilidade intra-avaliador, independentemente da orelha, os indivíduos que tiveram resultados normais no TPF e no TPD foram mais confiáveis(2727 Takishima M, Gielow I, Madazio G, Behlau M. O impacto da afinação vocal na análise perceptivo-auditiva de vozes normais e alteradas. CoDAS. 2020;32(4):e20190135. http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20202019135.
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/2020...
). Em outro estudo, identificou-se associação entre as habilidades de resolução temporal e interação binaural com a confiabilidade dos ouvintes nas avaliações da gravidade do desvio vocal; ouvintes com dificuldade nessas habilidades apresentaram menor confiabilidade nas avaliações(2828 Paiva MAA, Rosa MRD, Gielow I, Silva IM, Sousa ESS, Silva ACF, et al. Auditory skills as a predictor of rater reliability in the evaluation of vocal quality. J Voice. 2021 Jul;35(4):559-69. http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2019.11.020. PMid:31879240.
http://dx.doi.org/10.1016/j.jvoice.2019....
). Dessa forma, o presente estudo também sustenta benefícios de que o treinamento das habilidades auditivas pode ser um aliado na formação de fonoaudiólogos, principalmente para aqueles que possuem dificuldades nas habilidades do processamento auditivo.

Provavelmente, a EHA possibilita aos participantes com dificuldades nas habilidades auditivas que compreendam e interpretem mais precisamente os sons. A estimulação das habilidades do processamento auditivo central promove a reorganização neuronal do sistema auditivo e de suas conexões com outros sistemas sensoriais relacionados a ele, melhorando as habilidades alteradas(1414 Schochat E, Beluda DA, Silva PML. Habilitando a audição. In: Pereira, LD, Azevedo MF, Machado LP, Ziliotto KN, editores. Processamento auditivo: terapia fonoaudiológica. Uma abordagem de reabilitação. São Paulo: Lovise; 2002.). A literatura evidencia que o método de estimulação das habilidades auditivas utilizado nesse estudo promove melhora nas habilidades do PAC, porém, o protocolo de treinamento auditivo, inclusive com a mesma plataforma utilizada no presente estudo, sugere sessões de 40 a 45 minutos de treino semanal, por oito semanas(1515 Donadon C, Sanfins MD, Borges LR, Colella-santos M. Auditory training: effects on auditory abilities in children with history of otitis media. Brazil. Int J Pediatr Otorhinolaryngol. 2019;118:177-80. http://dx.doi.org/10.1016/j.ijporl.2019.01.002. PMid:30639988.
http://dx.doi.org/10.1016/j.ijporl.2019....
). Assim sendo, é possível que os resultados de um treinamento auditivo por um período mais longo, e com maior controle de frequência de realização, promovam resultados mais positivos, tanto na confiabilidade intrasujeito, como, possivelmente, em outros aspectos da APA.

Vale ressaltar que este estudo não teve o rigor de garantir o tempo de estimulação das habilidades auditivas de cada participante, nem a distribuição desse tempo em cada um dos dez jogos propostos na EHA. Essa decisão metodológica considerou o fato de os alunos residirem em diferentes cidades e estados brasileiros e a suposta maturidade deles para assumirem o compromisso de execução do treinamento, por serem profissionais que, teoricamente, compreendem a importância da frequência de treino para os resultados decorrentes da estimulação. Os alunos foram instruídos a realizar 240 minutos (quatro horas) de treinamento, divididos em oito sessões de 30 minutos ou 16 sessões de 15 minutos. Por ser um treinamento on-line, foi possível verificar o tempo total de cada participante, que contrariou a expectativa inicial de adesão à proposta do treinamento: G1 treinou, em média, 152 minutos (máxima de 315 e mínima de 64 minutos), enquanto G2a apresentou duração média de 117 minutos (máxima de 161 e mínima de 60 minutos), menor que G1. Futuros estudos devem garantir o tempo de autoestimulação com a EHA, a distribuição proporcional da dedicação aos jogos e seus níveis de dificuldade e esforço para todos os grupos. Assim, será possível observar se os efeitos benéficos se estendem também aos alunos sem dificuldade no processamento auditivo central e/ou se eles precisam de uma estimulação auditiva mais sofisticada e desafiadora.

A inovação do presente estudo consiste na aplicação da EHA em fonoaudiólogos cursando especialização em voz, sobretudo para aqueles que apresentam dificuldades nas habilidades auditivas. Saber classificar corretamente as vozes é um tema já trabalhado na literatura e o desempenho dessa habilidade está associado ao treino por repetição e estratégias de repetição de estímulos-âncoras(2626 Bispo NO, Behlau M, Yamasaki R. Strategy of anchor voices repetition in the auditory-perceptual judgment of voice. In: Proceedings of the 18th Congress of Otorhinolaryngology Foundation; 2019 Aug 29-31; São Paulo, Brasil. São Paulo: Thieme Revinter Publicações Ltda; 2019. p. 176.), porém, as questões das habilidades auditivas nem sempre são consideradas. Dessa forma, o presente estudo sustenta benefícios, especificamente na confiabilidade intrasujeito, de quem tem dificuldade nas habilidades auditivas e estudos futuros, mais controlados, podem ampliar o conhecimento da dimensão da contribuição da EHA.

Fonoaudiólogos que estão se especializando na área de voz e que possuem alguma dificuldade nas habilidades auditivas podem, portanto, se beneficiar da autoestimulação dessas habilidades para serem mais confiáveis. A avaliação perceptivo-auditiva é subjetiva e, realmente, a experiência pode e deve ser considerada como fator diferencial na aprendizagem, porém, a confiabilidade, que depende do aprendizado daquele momento, mostrou que a EHA pode influenciar o desempenho dessa tarefa. Para alunos de especialização em voz, tão importante quanto identificar corretamente o tipo de voz, é ser confiável nas suas avaliações.

CONCLUSÃO

A estimulação das habilidades auditivas proposta não impactou a acurácia da avaliação perceptivo-auditiva do desvio vocal predominante, porém, pode ter influenciado a confiabilidade intra-avaliador de fonoaudiólogos com dificuldades nas habilidades auditivas do PAC.

  • 1
    *As vozes foram herdadas do banco de vozes da CLINCEV, que consistem em gravações da vogal sustentada /ε/. Para a criação do gabarito, as vozes foram avaliadas por três especialistas em voz, com mais de 15 anos de experiência em avaliação perceptivo-auditiva e, por meio de consenso, foram classificadas em relação ao desvio vocal predominante
  • 2
    **Os dez jogos do “Afinando o Cérebro” utilizados foram: Contra o tempo, Segunda Nota, Buzinas Hard, Gotas, Pauta Musical, Está Afinado?, Jovens Bruxos, Aula de Canto, Percepção de Tempo, Seguindo as Notas, disponíveis em http://afinandoocerebro.com.br
  • Trabalho realizado no Centro de Estudos da Voz - CEV - São Paulo (SP), Brasil.
  • Financiamento: Nada a declarar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2021
  • Aceito
    24 Out 2022
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