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FLEXIBILIZAÇÃO DAS LEIS URBANÍSTICAS DE EDIFICAÇÃO DURANTE A PANDEMIA DA DOENÇA DO CORONAVÍRUS - 2019: A LEGALIZAÇÃO DOS PUXADINHOS E A RELAÇÃO COM A PANDEMIA

Flexibility Of Urban Building Laws During Coronavirus Disease - 2019 Pandemic: The Legalization Of “Puxadinhos” And The Relationship With The Pandemic

RESUMO

Objetivos:

Investigou as regras de flexibilização das normas urbanísticas ocorrida no Município do Rio de Janeiro - RJ para tolerar os puxadinhos (acréscimos) e se isso é legítimo dentro da ratio juris do Direito da Cidade, para os casos daquelas pessoas que já se encontram irregulares à data da pandemia de coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) e para os casos em que possam ser construídas obras durante esse período.

Metodologia:

Desenvolveu-se com uma abordagem qualitativa que levou à elaboração da tese propositiva quanto à juridicidade dos regramentos de regularização dos puxadinhos. Foi bibliográfica e documental, pois analisou artigos e livros já publicados, coletou dados em matérias jornalísticas e analisou a legislação.

Resultados:

Formulou tese propositiva na qual sustenta a viabilidade da flexibilização das regras naqueles casos em que se faz necessária por causa da Doença do Coronavírus - 2019 (Covid-19) e para enfrentar a Covid-19. A tese se revelou amparada pelas cláusulas gerais da legislação e pela literatura especializada.

Contribuições:

As hipóteses de flexibilização traçadas nesta pesquisa beneficiarão, principalmente, as famílias que têm urgência em garantir condições mínimas de sobrevivência durante a crise. A aplicação da tese possibilita a legalidade e a regularidade de acréscimos (puxadinho) realizados, sem a posterior aplicação de multa ou obrigação de demolir.

Palavras-Chave:
Parâmetros urbanísticos; Flexibilização de regras; Discricionariedade administrativa; Puxadinhos; Covid-19

ABSTRACT

Objectives:

Investigated the rules for the flexibilization of urban norms that occurred in the Municipality of Rio de Janeiro - RJ to tolerate the “puxadinhos” (additions) and if this is, legitimate within the ratio juris of Urban Law, for the cases of those people who are already irregular to the date of the pandemic of severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2) and for cases in which works can be built during this period.

Methodology:

It was developed with a qualitative approach that led to the elaboration of the propositional thesis regarding the legality of the rules for regularizing the “puxadinhos”. It was bibliographic and documentary, as it analyzed articles and books already published, collected data in journalistic articles and analyzed the legislation.

Results:

He formulated a propositional thesis in which he supports the feasibility of easing the rules in those cases where it is necessary because of Coronavirus Disease - 2019 (Covid-19) and to face Covid-19. The thesis proved to be supported by the general clauses of the legislation and by the specialized literature.

Contributions:

The flexibility hypotheses verified in this research will mainly benefit families that have an urgent need to guarantee minimum conditions of survival during the crisis. The application of the thesis allows the legality and regularity of additions (“puxadinhos”) to be made, without the subsequent application of a fine or obligation to demolish.

Keywords:
Urban parameters; Flexibility of rules; Administrative discretion; Puxadinhos; Covid-19

1. Introdução.

Esta pesquisa foi realizada a partir do convite para participação no Painel “Intervenções na propriedade e economia urbana durante a pandemia da Covid-19” da 37ª Reunião do Fórum Permanente de Direito da Cidade, realizada em agosto de 2020 no III Congresso Nacional de Direito da Cidade, cuja temática foi “A Cidade e a Covid-19: questões urbanas à luz da pandemia”.

A pesquisa acabou resultando neste artigo de opinião, no qual se expõe uma tese opinativa e propositiva sobre a legitimidade da flexibilização das regras administrativas da adequação de puxadinhos, tendo como motivo a pandemia de coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Além da legitimidade, questiona-se em que circunstâncias ela caberia.

Essa pesquisa não se propõe a analisar detalhadamente como é o procedimento burocrático de regularização e, por isso, serão analisados apenas aqueles pontos essenciais à compreensão da tese proposta. A intenção, aqui, é demonstrar quando se irá flexibilizar esse processo e em que pontos se flexibiliza como resultado de uma decisão adotada em razão dos efeitos verificados a partir da crise gerada pela Doença do Coronavírus - 2019 (Covid-19).

Essa pesquisa tem o objetivo de demonstrar a possibilidade de flexibilização das leis urbanísticas de edificação e de fiscalização durante o período de pandemia da Covid-19.

As excepcionalidades da pandemia criaram uma problemática: é uma possibilidade plausível, diante da situação emergencial, que algumas pessoas ou famílias foram forçadas a depender de adaptações em seus imóveis para enfrentar a doença, diminuir custos, acolher outras pessoas e conviver em tempo integral. Tais adaptações são urgentes e, por isso, não podem aguardar todo o processo burocrático de licenciamento e fiscalização; tampouco serão construções preocupadas, nesse momento, com os regramentos municipais que asseguram valores urbanísticos por vezes abstratos para muitas dessas pessoas. Porém, passado o período da pandemia, as obras não serão demolidas, especialmente se se pensar que seus proprietários ou possuidores são pessoas economicamente pobres.

Daí foi elaborado o problema que orientou o desenvolvimento da pesquisa: existem fundamentos jurídicos que justificam a flexibilização das leis urbanísticas de edificação e de fiscalização de puxadinhos e lajes durante o período de pandemia do SARS-CoV-2?

A hipótese é que a flexibilização não pode ocorrer indiscriminadamente, em toda e qualquer circunstância, pelo simples fato de a cidade vivenciar uma crise pandêmica ou, então, estimular setores da economia (ratio legis). Logo, há situações em que a flexibilização pode ocorrer, com respaldo em uma ratio juris, quando a construção - em especial o puxadinho - se destinar ao enfrentamento pessoal ou familiar da pandemia de SARS-CoV-2.

Essa hipótese distingue a ratio legis e a ratio juris das novas normas flexibilizadoras e que destoam dos planos urbanos pré-estabelecidos anos antes.

A ratio juris é o que essa lei representa para o Direito como um todo, ou seja, como ela pode ser útil ao Direito, qual a razão de ser que pode ser dada à lei. Trata-se da proteção dos valores maiores do Direito: a vida, a segurança e a saúde, que integram a incolumidade física da pessoa humana, ou seja, os direitos da personalidade que podem ser lesados. Cabe uma ponderação: há um conflito aparente entre a proteção desses direitos da personalidade e a preservação de padrões urbanísticos e araquidônicos. Diante desse cenário, a pesquisa entendeu que devem ser prestigiados os direitos da personalidade que correm risco de serem lesados no caso daqueles que precisam das adaptações. Logo, a ratio juris dessa legislação flexibilizadora, ou seja, sua razão de ser, é a proteção das pessoas que necessitam de obras emergenciais e sem a flexibilização dos procedimentos poderá ter lesados direitos da personalidade que florescem como urgentes neste período.

A ratio legis, por sua vez, compreende os motivos que levaram o Executivo a propor a lei, o Legislativo a aprovar e o Prefeito a promulgá-la. Em certos casos analisados, o objetivo foi estimular certos segmentos econômicos com as obras e arrecadar mais recursos com a regularização. Esses motivos são inferiores aos princípios do urbanismo, não justificando a mitigação de padrões urbanísticos e araquidônicos.

Diante disso, a hipótese responde ao problema a partir da ratio juris, de modo que a possibilidade de flexibilização ocorre naqueles casos em que efetivamente se faz necessária a mitigação dos padrões para proteger aqueles que vivenciam situações de risco à sua incolumidade física por causa do SARS-CoV-2.

A flexibilização das regras de edificação, regularização e formalização ocorre no juízo de discricionariedade que a Administração Pública Municipal realiza nos atos de autorização, fiscalização e formalização das obras de puxadinhos. As regras deverão ser interpretadas e aplicadas com menor rigor por causa da Doença do Coronavírus - 2019, a partir de uma autorização legislativa ou administrativa para que o órgão municipal competente proceda a um controle brando (menor severidade e rigidez) da regularidade das obras.

Observe, porém, que a flexibilização tem uma causa e um motivo, que são o pressuposto dessa tese aqui elaborada: só há legitimidade na flexibilização se ela ocorrer por causa da Covid-19 e para enfrentar a Covid-19. O simples fato de neste período existir uma pandemia não é pressuposto e nem justificativa para autorizar uma flexibilização.

Veja que essas premissas delimitam substancialmente a flexibilização a situações que envolvem diretamente a Doença do Coronavírus - 2019. Trata-se de interpretação restritiva para não vulgarizar o processo.

Importante fixar esse pressuposto para diferenciar a linha de raciocínio seguida aqui neste trabalho daquela que se verificou em algumas Câmaras de Vereadores que elaboraram “Leis do Puxadinho”, destinadas à flexibilização, a exemplo do município do Rio de Janeiro. Essa lei se destinou a amenizar os custos financeiros da formalização durante o ano de 2020 e a aumentar a arrecadação.

Ao traçar seu corte metodológico, a pesquisa analisou as normas jurídicas que flexibilizaram os padrões legais e administrativos quanto às obras de acréscimos em edificações, os popularmente conhecidos “puxadinhos”. Ilude-se quem pensa tratar-se de construção restrita a pessoas economicamente pobres.

O método foi o dedutivo: a partir de uma premissa maior, elaborada a partir de circunstâncias gerais, foi elaborada uma conclusão propositiva para inspirar processos específicos de flexibilização das leis urbanísticas de edificação e de fiscalização. Tais circunstâncias gerais foram imaginadas a partir dos efeitos sociais e econômicos da pandemia de Doença do Coronavírus - 2019 e desse “quase-lockdown” vivenciados no Brasil.

Espera-se que com a opinião aqui exposta seja possível demonstrar a necessidade de um olhar sensível para aqueles que têm urgência em garantir condições mínimas de sobrevivência durante a crise. Valores importantes da convivência urbana e do urbanismo terão que ceder frente a esse fator excepcional e extraordinário que se tornou a pandemia.

Porém, a concessão frente a tais valores não poderá ser vulgarizada, mas restringida às circunstâncias em que efetivamente a flexibilização é necessária para mitigar os efeitos socioeconômicos da Covid-19.

2. Materiais e métodos.

Preliminarmente - e considerando a natureza inter e multidisciplinar deste periódico -, é preciso esclarecer que uma explanação sobre materiais e métodos não é comum nas pesquisas jurídicas teórico-aplicadas, por causa das peculiaridades do ramo do conhecimento que é o Direito. É que o Direito - enquanto ramo do conhecimento, e não como conjunto de normas -, na visão desta pesquisa, não é bem uma ciência, mas uma “arte” (“Jus est ars et boni et æqui”, diziam os romanos, ou “a arte do bom e do équo”), ou seja, é um “artifício”, já que as normas jurídicas são resultado de um processo de interpretação. Por isso que, na “ciência” jurídica, as hipóteses e teses tendem a ser propositivas e inspiradoras.

É difícil - embora não impossível - uma replicabilidade da pesquisa jurídica, como existe em outras ciências. Essa replicabilidade é possível de ocorrer caso seja feita uma pesquisa empírica, mas esta não é a proposta deste artigo. Logo, a aceitação pela comunidade científica jurídica se baseia na razoabilidade e na operabilidade da tese proposta, e não porque outros pesquisadores também encontrariam os mesmos resultados.

Esta pesquisa não teve como objeto sujeitos ou grupos sociais - tampouco a doença do coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) e seus específicos efeitos econômicos e sociais -, mas, sim, normas jurídicas de adequação de construções urbanas a regras administrativas e legais. Analisou de maneira especial a situação dos “puxadinhos”.

Em alguns municípios foram criadas normas jurídicas especiais para a flexibilização da rigidez de regulamentos urbanos de modo a estimular alterações no espaço. Foram as chamadas “Leis do Puxadinho”. Dentre essas alterações, uma das que mais chamou atenção - especialmente pelos seus impactos paisagísticos e sociais - foi a flexibilização das regras e a regularização das obras dos puxadinhos.

Veja, o objeto não foi o puxadinho e nem as questões econômicas e sociais em torno dele, mas as normas jurídicas das “Leis do Puxadinho”, sobre as quais se realizou uma análise jurídica voltada à verificação da juridicidade dessas normas, bem como da ratio legis e da ratio juris que levaram à promulgação de tais leis.

Por isso, quanto ao método, a pesquisa se desenvolveu a partir dos seguintes tipos:

  • Quanto à abordagem, foi qualitativa, pois analisou uma situação única de modo a possibilitar uma generalização de resultados que levaram à elaboração da tese propositiva quanto à juridicidade dos regramentos de regularização dos puxadinhos;

  • Quanto à epistemologia, foi positivista, pois analisou um fenômeno que está acontecendo e que pode ser visualizado da mesma forma a partir da proposta hermenêutica apresentada;

  • Quanto à natureza, foi aplicada-prática, para desenvolver soluções práticas aplicáveis, de modo, por exemplo, a dizer quando é legítima a flexibilização de regras para a construção de puxadinhos;

  • Quanto à análise de dados, foi exploratória, já que se dirigiu a explorar e conhecer um fenômeno recente e leis recentes, ainda pouco explorados cientificamente, quais sejam, a flexibilização de normas urbanísticas permitidas por “Leis do Puxadinho” para o enfrentamento da Doença do Coronavírus - 2019;

  • Quanto aos procedimentos, foi bibliográfica e documental, concomitantemente: bibliográfica porque analisou artigos e livros já publicados, não coletando (porque não precisou) dados de outras fontes ou do campo; e documental porque coletou dados genéricos em matérias jornalísticas e na também na legislação;

Os procedimentos específicos foram, nesta ordem:

  1. Levantamento, através de sites de buscas e dos sites das prefeituras municipais, dos municípios que promulgaram “Leis do Puxadinho”, encontrando material legislativo em Campinas, Rio de Janeiro, Ribeirão Preto e Curitiba, além do Distrito Federal;

  2. Leitura das leis encontradas;

  3. Escolha da lei do município do Rio de Janeiro como principal documento legislativo de análise, porque essa lei foi criada especificamente com o propósito (ratio legis) de enfrentar as dificuldades socioeconômicas causadas pela pandemia de SARS-CoV-2;

  4. Delimitação da problemática em torno das flexibilizações traçadas pela “Lei do Puxadinho” carioca;

  5. Fixação do problema em torno da juridicidade dos propósitos da lei e da possibilidade (jurídica) de flexibilização;

  6. Elaboração da hipótese, com a fixação dos casos em que haveria respaldo jurídico (ratio juris) para a flexibilização com fundamento na pandemia de SARS-CoV-2. (Como o Direito se fundamenta em interpretações, a hipótese foi elaborada a partir dos conhecimentos e das experiências prévios do pesquisador, de modo que os passos a seguir servem para confirmar - ou não - a pertinência jurídica da proposta);

  7. Levantamento de bibliográfico - em material disponível na internet, como artigos em periódicos de acesso aberto, na rede social Academia.edu, bancos de teses da Capes e de universidades e de livros com texto integral ou parcial disponíveis em sites - sobre normas jurídicas de adequação de construções urbanas a regras administrativas e legais que podem ser aplicadas ao município do Rio de Janeiro, além de produções científicas e teóricas interdisciplinares para fundamentar a hipótese;

  8. Pesquisa em jornais e outros sites de notícias sobre condições sociais e familiares no período da pandemia do SARS-CoV-2 e de dados econômicos;

  9. Confirmação da razoabilidade da hipótese; e

  10. Confirmação da aplicabilidade e operabilidade da tese proposta em casos concretos hipotéticos. (Não foram possíveis análises de casos concretos porque não disponibilidade de informações sobre a aplicação e possíveis problemas em torna da aplicação da Lei de Puxadinho).

A pesquisa teve a pretensão de se aplicar a todas as classes econômicas, mas priorizou nos exemplos e nos dados estatísticos os casos das pessoas mais pobres e as situações das favelas, uma vez que essas pessoas dispõem de menos recursos para atender às exigências de regularização junto à administração pública. Além disso, dados publicados nas matérias jornalísticas revelaram que são as pessoas que mais necessitam de adaptação em seus imóveis para enfrentamento da pandemia em si e dos problemas socioeconômicos dela resultantes. Mas, embora os mais pobres tenham sido priorizados nas reflexões, a hipótese se aplica a todas as classes econômicas. (O pesquisador prefere não falar em “classe social”, porque isso diferencia pessoas em seus aspectos pessoais, estratificando-os; por isso, prefere “classe econômica”, esta sim refletindo a verdadeira desigualdade “negativa” entre as pessoas).

3. Em que consiste a flexibilização das leis urbanísticas de edificação?

Entre a edição da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade______. Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em 26 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
) e a Lei nº 13.465/2017 (Lei da Regularização Fundiária Rural e Urbana etc.BRASIL. Lei nº. 13.465, de 11 de julho de 2017. Dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal; institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União; altera as Leis n os 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 , 13.001, de 20 de junho de 2014 , 11.952, de 25 de junho de 2009, 13.340, de 28 de setembro de 2016, 8.666, de 21 de junho de 1993, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 12.512, de 14 de outubro de 2011 , 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), 11.977, de 7 de julho de 2009, 9.514, de 20 de novembro de 1997, 11.124, de 16 de junho de 2005, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 10.257, de 10 de julho de 2001, 12.651, de 25 de maio de 2012, 13.240, de 30 de dezembro de 2015, 9.636, de 15 de maio de 1998, 8.036, de 11 de maio de 1990, 13.139, de 26 de junho de 2015, 11.483, de 31 de maio de 2007, e a 12.712, de 30 de agosto de 2012, a Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, e os Decretos-Leis n º 2.398, de 21 de dezembro de 1987, 1.876, de 15 de julho de 1981, 9.760, de 5 de setembro de 1946, e 3.365, de 21 de junho de 1941; revoga dispositivos da Lei Complementar nº 76, de 6 de julho de 1993, e da Lei nº 13.347, de 10 de outubro de 2016; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13465.htm>. Acesso em 26 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), passando pela Lei nº 11.977/2009 (Programa Minha Casa, Minha Vida______. Lei nº 11.977/2009, de 07 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm>. Acesso em 26 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), as normas urbanísticas estavam mais voltadas ao controle das edificações e da promoção de medidas de adequação do espaço urbano a critérios ambientais e arquitetônicos (LIRA, 2014LIRA, Ricardo Pereira. Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. In: Revista de Direito da Cidade , [S.l.], v. 1, n. 1, p. 261-276, abr. 2014. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/10493/8265>. Acesso em: 15 ago. 2020.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
). Ocorre que a promulgação da Lei nº 13.465/2017 (e, antes dela, da Lei nº 11.977/2009) trouxe mais um paradigma para o Direito da Cidade: a regularização fundiária, que implica não só em adequações, mas em garantia de formalização da posse e da propriedade de imóveis tidos por irregulares e informais (FERREIRA FILHO, 2018FERREIRA FILHO, Paulo Sérgio. As lógicas por trás das políticas de regularização fundiária: a alteração de paradigma pela lei 13.465/2017. In: Revista de Direito da Cidade , [S.l.], v. 10, n. 3, p. 1449-1482, ago. 2018. doi: https://doi.org/10.12957/rdc.2018.32040.
https://doi.org/https://doi.org/10.12957...
, p. 1462).

Nesse sentido, a Lei nº 13.465/2017, basicamente, propõe-se a (AMADEI, 2018AMADEI, Vicente de Abreu. Teoria elementar da regularização fundiária. In: AMADEI, Vicente de Abreu; PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida; MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros (Orgs.). Primeiras impressões sobre a Lei nº 13.465/2017. São Paulo: Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo, 2018. ) (PEDROSO, 2018PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida. Impressões práticas sobre o sistema da regularização fundiária urbana idealizado pela Lei 13.465/17 (art. 9º ao art. 54). In: AMADEI, Vicente de Abreu; PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida; MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros (Orgs.). Primeiras impressões sobre a Lei nº 13.465/2017. São Paulo: Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo , 2018. ):

  1. Simplificar, pela desburocratização, o procedimento administrativo de regularização de imóveis urbanos;

  2. Realizar a titulação dos imóveis informais e irregulares;

  3. Promover políticas de infraestrutura e habitação;

  4. Aquecer o mercado imobiliário através de registros dos imóveis em órgãos públicos;

  5. Contribuir para o crescimento econômico do município;

  6. Considerar os núcleos clandestinos e irregulares como “núcleos urbanos informais”, e não mais como “assentamentos irregulares”;

  7. Promover o parcelamento do solo e dos conjuntos habitacionais;

  8. Ampliar o acesso de pessoas - especialmente as de baixa renda - à terra urbanizada; e

  9. Equiparar núcleos informais localizados em zona rural aos núcleos das cidades, se utilizados com características urbanas.

A regularização fundiária não é um mero processo de formalização imobiliária; não é apenas um processo administrativo de controle e adequação urbanísticos. Um de seus efeitos a longo prazo é fiscal: o Município poderá vir a exigir o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) dos imóveis e, também, o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI); o Estado, por sua vez, poderá exigir no futuro o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), já que a formalização obrigará a abertura de inventários; e a União, o Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) sobre venda e partilha. E não se esquecer, outrossim, de contrapartidas que podem ser exigidas pelo Município.

Já para o particular, a regularização lhe atribui direito de propriedade imóvel, o que lhe permite oferecer garantias em empréstimos para, inclusive, investir em um negócio próprio.

A Lei nº 13.465/2017 prevê - in abstracto e em resumo - as fases do processo de regularização fundiária e de legitimação fundiária e de legitimação de posse que tramita junto à Prefeitura Municipal, quais sejam:

1ª Postulação Quando o requerimento é feito pelos interessados 2ª Projeto Deve ser elaborado um projeto de regularização para o imóvel ou núcleo informal 3ª Classificação A Administração Pública classificará a modalidade de regularização aplicável ao caso, para que o processo tramite sob a perspectiva dessa modalidade 4ª Notificações Comunicação a possíveis interessados da tentativa de regularização; a depender da circunstância, é possível que haja um reconhecimento administrativo de usucapião 5ª Análise O órgão público avalia o projeto e a possibilidade de regularização 6ª Saneamento Exigência de medidas para a continuidade do processo, se a fase de análise indicar a necessidade de alguma diligência 7ª Aprovação Regularidade formal do processo e adequação do projeto 8ª Expedição de certidão Trata-se do título registral, a Certidão de Regularização Fundiária (CRF), expedida pelo Município 9ª Abertura de matrícula e registro Com a CRF é possível realizar a abertura de matrícula do imóvel e o registro do título, formalizando, assim, a situação fundiária urbana

A autorização, a fiscalização e a imposição de medidas corretivas cabe à Administração Pública Municipal em um processo administrativo instaurado com a finalidade de regularizar e adequar uma edificação. Tudo se inicia com um primeiro juízo - o que não significa dizer perfunctório - quanto à regularidade das construções (a serem construídas, já construídas ou em fase de construção). Trata-se de um juízo discricionário da Administração Pública Municipal (MEIRELLES, 2011MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2011.) (SILVA, 2012SOARES, Érica dos Santos. Direito real de laje e os desafios na regularização do puxadinho. In: Revista da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro - OAB/RJ, Rio de Janeiro, v.29, n. 2, p. 1-19, jan./jun. 2018. Disponível em: <https://revistaeletronica.oabrj.org.br/wp-content/uploads/2018/09/Artigo-Direito-Laje-revista.pdf>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://revistaeletronica.oabrj.org.br/w...
).

É nesse juízo de discricionariedade que se encontra a flexibilização das regras de edificação, regularização e formalização: tais regras serão interpretadas e aplicadas com menor rigor por causa da Covid-19. (Observe: por causa da Covid-19). Há uma autorização legislativa ou administrativa para que o órgão municipal competente proceda a um controle mais brando (menor severidade e rigidez) da regularidade das obras.

Em última instância, cabe às Prefeituras Municipais a condução desse processo de regularização e formalização, afinal, a matéria se relaciona intimamente com a urbanização, competência do ente municipal. Por isso, a municipalidade estabelece as regras gerais e específicas quanto à organização da cidade e todo o processo de regularização e formalização deverá se submeter a essas normas locais (BONIZZATO; MOULIN, 2018BONIZZATO, Luigi; MOULIN, Isabelle Esteves. PDUI (Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado): primeiros aspectos, comparações, críticas, conclusões, relações e experiências após 03 (três) anos de sua criação legal. In: Revista de Direito da Cidade , [S.l.], v. 10, n. 4, p. 2538-2568, dez. 2018. doi: https://doi.org/10.12957/rdc.2018.33418.
https://doi.org/https://doi.org/10.12957...
).

Quer dizer, na regularização do espaço urbano, a Administração Municipal tem autonomia para a adequação das edificações às normas vigentes estabelecidas por meio legislativo ou administrativo. Tais normas podem ser municipais ou federais, e até estaduais em casos residuais excepcionais (MEIRELLES, 2011MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2011.) (SILVA, 2012SOARES, Érica dos Santos. Direito real de laje e os desafios na regularização do puxadinho. In: Revista da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro - OAB/RJ, Rio de Janeiro, v.29, n. 2, p. 1-19, jan./jun. 2018. Disponível em: <https://revistaeletronica.oabrj.org.br/wp-content/uploads/2018/09/Artigo-Direito-Laje-revista.pdf>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://revistaeletronica.oabrj.org.br/w...
).

Assim é que esse processo deverá ser circunstanciado para levar em consideração a diversidade das características de cada família e de suas demandas habitacionais (CONSTANTINOU; BETTIO MACHADO, 2019CONSTANTINOU, Eliane; BETTIO MACHADO, Letícia. Reflexões sobre o espaço habitado contemporâneo. In: Risco - Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, vol. 17, n. 1, p. 64-82, jun. 2019., p. 80) neste momento.

Segundo Monika Streule, Ozan Karaman, Lindsay Sawyer e Christian Schmid (2020STREULE, Monika; KARAMAN, Ozan; SAWYER, Lindsay; SCHMID, Christian. Popular Urbanization: Conceptualizing Urbanization Processes Beyond Informality. In: International Journal of Urban and Regional Research, vol. 44, Issue 4, p. 652-672, july 2020.), o processo de urbanização também é popular e baseado em iniciativas coletivas. Não pode, portanto, se restringir a elementos meramente formais da burocracia.

Para Raquel Rolnik e Eva Garcia Chueca (2021ROLNIK, Raquel; GARCIA CHUECA, Eva. Towards a post-pandemic housing policy for cities. In: COVID Briefs. Building back better: post-pandemic city governance. Barcelona Centre For International Affairs, p. 1-7, 2021. Disponível em: < Disponível em: https://dossiers.cidob.org/cities-in-times-of-pandemics/assets/pdf/towards-a-post-pandemic-housing-policy-for-cities.pdf >. Acesso em 26 abr. 2021.
https://dossiers.cidob.org/cities-in-tim...
, p. 1) - analisando a viabilidade de uma política habitacional pós-pandemia para as cidades -, entendem que os problemas estruturais de acesso à moradia adequada se agravaram durante a pandemia, quando ter acesso a moradia adequada tornou-se condição básica para proteger vidas. Em razão das medidas emergenciais adotadas por governos, elas entendem que se mobilizou um estoque habitacional já existente, mas vazio ou subutilizado, para prover moradias para pessoas sem condições adequadas de habitação. Entendem que a abertura política que surgiu durante a pandemia, com a adoção de medidas diferenciadas, ​​oferece uma oportunidade para avançar sobre a política na defesa do direito à moradia adequada. Propõem estender as medidas de emergência adotadas durante a pandemia para continuar a trabalhar em ações anteriores que já envolviam intervenção em mercados residenciais. Veja, in verbis:

The structural problems of access to adequate housing, which became clearer after the onset of the global economic crisis of 2008, have worsened during the pandemic when having access to adequate housing has become a basic condition for protecting lives. COVID-19 has forced governments to adopt a series of emergency measures by means of which they have intervened in residential markets and have, for example, mobilized an already existing, but either empty or underused, housing stock in order to provide homes for people without proper housing conditions. The political opening that has appeared during the pandemic with the adoption of measures that would have been unthinkable beforehand offers an opportunity for local (but also regional and national) governments to go further with their political action in upholding the right to adequate housing. The guidelines suggested with this report include extending the emergency measures adopted during the pandemic and continuing to work on certain earlier measures that involved intervening in residential markets.1 1 Em tradução livre: “Os problemas estruturais de acesso à moradia adequada, que se tornaram mais claros após o início da crise econômica global de 2008, se agravaram durante a pandemia, quando ter acesso a moradia adequada tornou-se condição básica para proteger vidas. A COVID-19 obrigou os governos a adotarem uma série de medidas emergenciais por meio das quais intervieram nos mercados residenciais e, por exemplo, mobilizaram um estoque habitacional já existente, mas vazio ou subutilizado, para prover moradias para pessoas sem condições adequadas de habitação. A abertura política que surgiu durante a pandemia com a adoção de medidas que antes seriam impensáveis ​​oferece uma oportunidade para os governos locais (mas também regionais e nacionais) avançarem em sua ação política na defesa do direito à moradia adequada. As diretrizes sugeridas com este relatório incluem estender as medidas de emergência adotadas durante a pandemia e continuar a trabalhar em certas medidas anteriores que envolviam intervenção em mercados residenciais”.

Isso demonstra que a flexibilização proposta não deve ser somente quanto à regularidade, mas também quanto ao modo como os puxadinhos são vistos. Nesse sentido, Maressa Fonseca e Souza, Ítalo Itamar Caixeiro Stephen e Aline Werneck Barbosa de Carvalho (2018SOUZA, Maressa Fonseca e; STEPHEN, Ítalo Itamar Caixeiro; CARVALHO, Aline Werneck Barbosa de. Modos de vida e modos de habitar na moradia autoconstruída. In: Risco - Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, vol. 16, n. 1, p. 37-54, jul. 2018., p. 52) destacam o modo como esses espaços “autoconstruídos” são vistos por vezes:

Do ponto de vista da formação arquitetônica, pode-se afirmar que o espaço autoconstruído é pouco debatido, geralmente caracterizado como esteticamente caótico, construtivamente precário e urbanisticamente irregular/ilegal. Contudo, a realidade socioeconômica e urbanística das cidades brasileiras necessita de novos olhares e formas de intervenção por parte de profissionais que se dediquem a questões condizentes com a realidade da maioria da população.

Raquel Rolnik (1997ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. 3ª ed. São Paulo: FAPESP, 1997. ), inclusive, questiona o quanto a legislação urbana é puramente técnica e se afasta de assuntos e consequências que transbordem para outros aspectos da questão urbana.

Em períodos como este da pandemia, será necessário transbordar a mera legalidade para outras questões atinentes ao problema e que dizem respeito a questões culturais, econômicas e políticas.

Por fim, essa flexibilização também será direcionada ao Judiciário, quanto ao exercício do controle da legalidade dos atos administrativos que lhe compete. Quer dizer, esse controle deve ser rigoroso quanto à legalidade - óbvio -, porém deve ser restrito, não poderá ser tão amplo, a ponto de, por vezes, se imiscuir no juízo de discricionariedade. De modo que ao Judiciário caberá um controle de: 1) legalidade dos atos administrativos de licença; e 2) construções realizadas sem a devida regularização. Logo, a atuação do Judiciário se restringirá a aspectos formais do processo e a ilegalidades crassas.

4. A flexibilização das normas de adequação aos regulamentos administrativos e à legislação nos casos dos puxadinhos: quando a Doença do Coronavírus - 2019 permite flexibilizar.

Preliminarmente, é importante traçar o cenário habitacional do País neste momento de pandemia.

Pesquisa da FGV, Abrainc e Instituto Trata Brasil calcula que, em 2020, 8 milhões das famílias brasileiras - o que corresponderia a 24 milhões de pessoas, ou seja, 12% da população - não têm casa adequada para a moradia (ALICERCE, 2020ALICERCE. Pandemia escancara crise de moradia no Brasil, mas produzir casa adequada para todos é possível - e urgente. UOL. Edição de 08 maio 2020. Disponível em: <https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/moradia-digna-e-prioridade-para-refazer-cidades-pos-covid/>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-...
).

Um veículo de comunicação (O DRAMA, 2020O DRAMA de quem perdeu a moradia durante a pandemia. Pandemia diminuiu renda das famílias. Muitas ficaram sem dinheiro para aluguel. Poder 360. Edição de 12 dez. 2020. Disponível em: <https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/moradia-digna-e-prioridade-para-refazer-cidades-pos-covid/>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-...
) ouviu, em reportagem, pesquisadores e membros de movimentos sociais. Não há um levantamento estatístico oficial, mas esses agentes, que lidam diariamente com a questão, estimam um significativo aumento do número de ocupações decorrente da perda de moradia por parte de parcela pobre da população:

A pandemia e o consequente agravamento da situação econômica do país deixaram sem possibilidade de pagar aluguel um contingente de pessoas que já vivia em algum nível de vulnerabilidade. Acabaram empurradas para ocupações e favelas que nasceram desse contexto, numa última tentativa de não ir para a calçada. É o caso do Jardim Julieta, na zona norte da capital, onde 400 famílias ergueram barracos em um terreno público.

Outrossim, estima-se que até outubro de 2020, 6.373 famílias haviam sido despejadas durante a pandemia de Covid-19 (MAIS DE 6 MIL, 2020MAIS DE 6 MIL famílias foram despejadas durante a pandemia no Brasil. O Amazonas concentrou 47% dos casos, com 3 mil despejos. Em São Paulo, foram 1.681 casos. Observatório do Terceiro Setor. Edição de 07 out. 2020. Disponível em: <https://observatorio3setor.org.br/noticias/direitos-humanos/mais-de-6-mil-familias-foram-despejadas-durante-a-pandemia-no-brasil/>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://observatorio3setor.org.br/notici...
). Em março de 2021, esse número aumentou para 9.156 famílias despejadas (MADEIRA, 2021MADEIRA, Pedro. Despejos na pandemia deixam mais de 9 mil famílias expostas à doença. #Colabora. Edição de 18 mar. 2021. Disponível em: <https://projetocolabora.com.br/ods3/despejos-na-pandemia-deixam-mais-de-9-mil-familia-expostas-a-doenca/>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://projetocolabora.com.br/ods3/desp...
).

Pesquisa da QuintoAndar revelou a interferência da pandemia na vida das pessoas: 27,2% dos entrevistados alegaram mudanças drásticas na renda; 26% nos horários e atividades; 21,3% na dinâmica familiar; e 12,9% não reportaram alterações econômicas (ARBEX, 2021BONIZZATO, Luigi. O Estatuto da Metrópole e novas esperanças para o futuro da política de planificação e planejamento no Brasil: o plano de desenvolvimento urbano integrado. In: Revista de Direito da Cidade, [S.l.], vol. 7, n. 4, p. 1864-1887, fev. 2016. doi: https://doi.org/10.12957/rdc.2015.20917.
https://doi.org/https://doi.org/10.12957...
).

Reportagem da Folha de S. Paulo (EM CASAS, 2020EM CASAS de um cômodo só em SP, isolamento é impraticável. Folha de S. Paulo. Edição de 22 mar. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/em-casas-de-um-comodo-so-em-sp-isolamento-e-impraticavel.shtml>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio...
) levantou considerável quantidade de pessoas que vivem em casas de apenas um cômodo, nas quais é impossível fazer o isolamento social adequadamente. O mesmo jornal noticiou que 11,5 milhões de pessoas estavam morando em casas cheias em março de 2020 (11,5 MILHÕES, 202011,5 MILHÕES de brasileiros moram em casas cheias em meio à pandemia. Folha de S. Paulo. Edição de 28 mar. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/115-milhoes-de-brasileiros-moram-em-casas-cheias-em-meio-a-pandemia-de-covid-19.shtml>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
).

O auxílio emergencial pago pelo Governo Federal aumentou os negócios informais no Nordeste do Brasil e financiou os acréscimos em imóveis por meio de puxadinhos (PITOMBO; VALADARES, 2020PITOMBO, João Pedro; VALADARES, João. Auxílio emergencial irriga negócio informal e banca puxadinho em casas no Nordeste. Benefício de R$ 600 se transforma em material de construção e eletrodoméstico e puxa comércio. Folha de S. Paulo. Edição de 07 ago. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/08/auxilio-emergencial-irriga-negocio-informal-e-banca-puxadinho-em-casas-no-nordeste.shtml>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/20...
). Em Minas Gerais, o mercado de reformas residenciais teve um aumento de 35% a 45% durante a pandemia quanto aos produtos para reformas e obras de puxadinhos (RIBEIRO, 2020RIBEIRO, Luiz. Pandemia esquenta vendas de materiais de construção em Minas. Estado de Minas. Edição de 15 ago. 2020. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/08/15/interna_gerais,1176365/pandemia-esquenta-vendas-de-materiais-de-construcao-em-minas.shtml>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://www.em.com.br/app/noticia/gerais...
).

Na Bahia, o consumo de material de construção para reformas e obras de puxadinho caiu 12% nas lojas de material de construção localizadas em regiões centrais e aumentou 8% nas lojas de periferias, segundo a Associação dos Comerciantes de Material de Construção da Bahia (Acomac-BA): “A clientela que tá entrando na loja é gente que não tinha nada dentro de casa. Você vê a felicidade de comprar um só item. [...]. Não tem compra grande, de R$ 1 mil. Sempre quando vem, compra um pouquinho. É coisa de 20m² de piso” (VILLAR, 2020VILLAR, Marcela. Puxadinhos da pandemia: auxílio emergencial faz aquecer mercado de material de construção. Associação dos Comerciantes de Material de Construção da Bahia aponta aumento de quase 10% nas lojas de material de construção das periferias. Correio24horas. Edição de 13/07/2020. Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/puxadinhos-da-pandemia-auxilio-emergencial-faz-aquecer-mercado-de-material-de-construcao/>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://www.correio24horas.com.br/notici...
). O crescimento na periferia é consequência direta do auxílio emergencial, segundo a entidade. A metragem apontada no depoimento à reportagem indica que a proporção da obra é pequena, típica dos puxadinhos.

Não é possível afirmar que todas as pessoas pobres ou a maioria delas está precisando da flexibilização das regras urbanísticas. Mas o levantamento de reportagens revela que há sim famílias que dela necessitam. Por isso, a pesquisa segue sua análise em favor daquelas famílias que necessitam da flexibilização, o que não significa todas, obviamente.

O puxadinho é uma obra de tamanho pequeno anexa a uma edificação e que não estava prevista na planta original da construção. Nesse tipo de obra, a nova construção se vincula, de algum modo, à edificação já existente. Esse é o “jeitinho brasileiro” de morar, em um país com vários “jeitinhos” para variadas circunstâncias da vida quotidiana e que já foi comum nos cortiços, conjunto de duas ou mais habitações que se comuniquem com as ruas públicas por uma ou mais entradas comuns para servir de residência a mais de uma família (PICCINI, 1999PICCINI, Andrea. Cortiços na cidade: conceito e preconceito na reestruturação do centro urbano de São Paulo. São Paulo: Annablume, 1999., p. 32). O aspecto estético sempre foi um problema com relação a esse tipo moradia.

Segundo Daniella Maria dos Santos Dias et alii (2020DIAS, Daniella Maria dos Santos; et al. Direito à cidade e ao direito da favela: relações mútuas de formação e adaptação. In: Revista Cesumar Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, v. 25, n. 2, p. 307-327, jul./dez. 2020. DOI: 10.17765/1516-2664.2020v25n2p307-327.
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, p. 319), os puxadinhos “nada mais são que o uso e comercialização das partes laterais ou do fundo de um terreno, ou das partes superiores ou inferiores de habitações já construídas”. Entendem que é uma prática construtiva típica da população de baixa renda, em razão das peculiaridades econômicas dessas pessoas e porque puxadinhos e cortiços são soluções economicamente viáveis.

É comum que em famílias de baixa renda o puxadinho seja caracterizado pela irregularidade e informalidade (SOARES, 2018SOARES, Érica dos Santos. Direito real de laje e os desafios na regularização do puxadinho. In: Revista da Ordem dos Advogados do Rio de Janeiro - OAB/RJ, Rio de Janeiro, v.29, n. 2, p. 1-19, jan./jun. 2018. Disponível em: <https://revistaeletronica.oabrj.org.br/wp-content/uploads/2018/09/Artigo-Direito-Laje-revista.pdf>. Acesso em 26 abr. 2021.
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, p. 2). Isso significa que a obra acrescida não atendeu às exigências da legislação e aos regulamentos administrativos locais, e não foi registrada ou averbada em órgãos administrativos, como o Registro Geral de Imóveis.

Cristiano Chaves de Farias, Wagner Inácio Dias e Martha El Debs analisam o puxadinho (e também a laje) na perspectiva das necessidades sociais brasileiras, projetando-os como direitos fundamentais de conteúdo social e a serviço da existência humana (FARIAS; DIAS; EL DEBS, 2020FARIAS, Cristiano Chaves de; DIAS, Wagner Inácio; EL DEBS, Martha. Direito de laje: do puxadinho à digna moradia. 4 ed. Salvador: JusPodivm, 2020.). Isso revela que o olhar sobre essa matéria não pode ser apenas técnico e estético; é preciso ter certa sensibilidade quanto a essa “urbanização informal”, principalmente em tempos de excepcionalidade.

Somente se justifica a flexibilização das normas de adequação e de formalização de edificações se esses atos ocorrerem para o enfrentamento direto da Doença do Coronavírus - 2019 pela família interessada na regularização. Flexibilizar as normas para aquecer setores da economia (construção civil e comércio), por exemplo - embora seja um motivo muito legítimo -, não justifica a flexibilização para regularizar edificações que serão permanentes.

Logo, a pandemia do coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) e da Covid-19 é uma causa legítima de flexibilização de regulamentos urbanísticos quando, por causa dela, há a necessidade de flexibilizar o juízo discricionário do processo administrativo, e não por causa de fatores macroeconômicos, como a necessidade arrecadatória ou a necessidade de gerar emprego na cidade.

Ou seja, a flexibilização é possível quando a família que usufrui do imóvel necessita dessa maleabilidade por causa da pandemia e para enfrentar a doença e o período de pandemia. Portanto, não se justifica flexibilizar para arrecadar mais recursos públicos (ainda que os recursos sejam aplicados na prevenção e no tratamento da SARS-Cov-2), e para regularizar obras que já eram irregulares antes da pandemia da doença.

Nesse sentido, Ana Fani Alessandri Carlos (2020CARLOS, Ana Fani Alessandri. A “revolução” no cotidiano invadido pela pandemia. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri (Coord.). COVID-19 e a crise urbana. São Paulo: FFLCH/USP, 2020, p. 10-17. , p. 14) analisa as dificuldades dos mais pobres durante o período de isolamento social:

[...] em muitas destas áreas, as pessoas moram em casas pequenas, onde das torneiras nem sempre sai água, em muitos casos com banheiros compartilhados, com fogões desligados e mesas sem comida. É o lugar de vida de trabalhadores, muitos deles informais, que vivem de bico e dependem da circulação das pessoas. É também aquele do pequeno comércio que vende as mercadorias em quantidades muito pequenas, porque o dinheiro é escasso e nem sempre permite fazer estoques. Aqui, o dentro e fora parecem imbricados e a rua é a condição óbvia do desenrolar da vida tornando difícil o isolamento social. Logo, as estratégias que podem evitar ou diminuir as consequências da pandemia se fazem, aí, precariamente. Nestes lugares, encontram-se os “sem direito à quarentena”: as normas do isolamento encontram um sujeito cindido vivendo num espaço em fragmentos, diferenciando o centro da periferia e, com esta contradição, situando espacialmente os que tem diretos daqueles que não tem.

Portanto, qualquer adaptação do imóvel para a convivência neste momento será necessária.

É preciso ter em mente que a obra regularizada de modo menos rigoroso neste momento de excepcionalidade não será temporária, mas definitiva. Constituirá naquilo que Ali Madanipour (2017MADANIPOUR, Ali. Cities in Time, Temporary Urbanism and the Future of the City. London: Bloomsbury, 2017.) designa de “Temporary Urbanism” (“urbanismo temporário”), mas que produz efeitos permanentes no futuro das cidades. A flexibilização de agora persistirá por muitos anos e, por vezes, de modo contrário aos regulamentos diretores das edificações no Município. E isso, inclusive, pode interferir nos espaços urbanos de vivência coletiva (CARMONA, 2019CARMONA, Matthew. Principles for public space design, planning to be better. In: Urban Design Internacional, vol. 24, p. 47-59, 2019.).

Agora, questiona-se: quando a Doença do Coronavírus - 2019 será a causa de uma flexibilização para obras de acréscimos (puxadinhos)?

Pois bem. O controle sobre a ordem urbanística realizado pela Administração Pública Municipal pode ocorrer em três momentos distintos, considerando o estágio da edificação (atuação do particular):

  1. Anterior à edificação: é um controle prévio que consiste na aprovação de projetos e concessões de autorizações e licenças;

  2. Concomitante à edificação: dá-se por meio de inspeções, fiscalização e notificações; e

  3. Posterior à edificação: é um controle sucessivo à obra, feito por meio de vistoria, concessão de “habite-se” ou regularização/formalização posterior.

Com base nesses três momentos de atuação, é possível conceber hipóteses fáticas genéricas envolvendo a pandemia de coronavírus e agrupadas em três circunstâncias principais e que justificam a flexibilização de regularidade e adequação de um puxadinho:

1º) Autorização de obras emergenciais:

  • Por causa do confinamento obrigatório, pode ser que famílias numerosas tenham que coabitar diariamente em espaços pequenos, e para melhor acomodá-las é necessária a ampliação urgente do imóvel, por meio de puxadinhos. Nem sempre será possível aguardar a autorização prévia dessa obra, além do custo das taxas que, neste momento, não constitui uma despesa propícia a essas famílias. Só que essa obra será permanente; não haverá demolição ao final da pandemia e do isolamento social. Logo, essa situação, se irregular, precisará ser tolerada, já que ocorreu para enfrentar uma circunstância emergencial;

  • Por causa da perda de emprego, da impossibilidade de trabalhar ou da queda de renda, é possível que muitas famílias tenham que passar a viver juntas, rescindindo contratos de locação, ou, ainda, morarem com genitores. Também essa será uma situação que pode ensejar ampliação do imóvel ou adequações. A coabitação já era, a propósito, um fator que existia antes mesmo do isolamento pela pandemia (SOUZA, STEPHEN e CARVALHO, 2018SOUZA, Maressa Fonseca e; STEPHEN, Ítalo Itamar Caixeiro; CARVALHO, Aline Werneck Barbosa de. Modos de vida e modos de habitar na moradia autoconstruída. In: Risco - Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, vol. 16, n. 1, p. 37-54, jul. 2018.), mas durante esse período as pessoas passaram a ficar reunidas na maior parte do tempo;

  • A suspensão de atividades escolares fez com que as crianças tenham que passar seu tempo integralmente em casa. A depender do rigor de controle da família, sequer podem praticar atividades de lazer fora de casa. Isso também pode ensejar a necessidade de adaptações dos imóveis, especialmente se essas crianças tiverem que iniciar atividades escolares de ensino remoto (ensino à distância ou aulas online);

  • Há, ainda, adaptações e obras que precisarão ser praticadas para atender a padrões mínimos para evitar contaminação, como, por exemplo, benfeitorias que proporcionem maior ventilação;

  • Muitos estão realizando seus trabalhos em casa (home office) e outros estão realizando atividades artesanais (objetos e alimentos) destinadas a complemento de renda. Isso leva à necessidade de adaptação do imóvel, especialmente sua ampliação. E pode ser, ainda, que seja necessária a flexibilização da regra que restringe atividades comerciais e fabris em espaço destinado exclusivamente à moradia; e

  • Em se tratando de imóvel comercial, pode ser necessária a adaptação para abertura e funcionamento da atividade de acordo com regras para evitar contaminação.

2º) Processos abertos antes da pandemia para apurar irregularidades e estão em tramitação (andamento): nessa hipótese a obra não foi realizada para enfrentar a Doença do Coronavírus - 2019, pois é anterior à deflagração da pandemia. Porém, a Covid-19 irá exigir que esse processo tenha seu rigor mitigado:

  • É razoável suspender esse processo em tramitação até que se retorne a certa normalidade, uma vez que adequações necessárias que devam ser configuradas por exigência da Administração Pública Municipal serão de difícil realização neste momento, além de um custo que, dependendo das condições da família, não pode ser suportado por ora;

  • Não determinar obras de regularização, adequação e demolição, de modo a aguardar o fim da pandemia;

  • Não aplicar multas, pois qualquer recurso financeiro da família pode estar comprometido e destinado justamente ao enfrentamento da doença; e

  • Observe, porém, que isso ocorrerá somente naqueles casos que exigirem a flexibilização por causa da Covid-19. Em outras hipóteses, não se justifica essa flexibilização.

3º) Abertura de novos processos de regularização (fiscalização posterior ao início da pandemia), seja para obras realizadas durante o período de pandemia, seja para obras realizadas anteriormente:

  • A Administração Pública Municipal toleraria as irregularidades temporariamente e não abriria o processo neste instante;

  • Não aplicação multas; e

  • A restrição, porém, ocorreria em relação a: o que foi feito para evitar a contaminação com o SARS-CoV-2; ou, no caso do que foi feito anteriormente, a medidas a serem tomadas que prejudicariam a família no enfrentamento neste momento.

Observe que em todos esses momentos há referência a dificuldades do titular do imóvel em enfrentar a pandemia, e não a dificuldades do ente público municipal em enfrentar a doença com medidas sanitárias ou queda fiscal. Ou seja: o que se sustenta aqui é que a flexibilização faz todo sentido em casos de imóveis residenciais e comerciais e em casos de obras que não ocorreram para fins voluptuários, mas como adaptações verdadeiramente necessárias e úteis para enfrentar o momento.

É preciso, porém, um cuidado: esse verdadeiro estímulo aos puxadinhos não pode levar à construção daquilo que Ramon Fortunato Gomes (2019GOMES, Ramon Fortunato. Informalidades planejadas: análise em conjuntos urbanos tombados no litoral brasileiro. Tese de Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Rômulo José da Costa Ribeiro. Brasília, 2019. , p. 44) chama de espaços excludentes, além do crescimento informal, do inchaço das periferias e da multiplicação da informalidade da mancha urbana. Não podem significar um “crescimento urbano e desordenado” (GOMES, 2019GOMES, Ramon Fortunato. Informalidades planejadas: análise em conjuntos urbanos tombados no litoral brasileiro. Tese de Doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de Brasília. Orientador: Prof. Dr. Rômulo José da Costa Ribeiro. Brasília, 2019. , p. 155).

Veja, assim e também, que, a priori, as hipóteses imaginadas de flexibilização dizem respeito a pessoas de classe econômica de baixa renda. Claro que isso não excluirá a possibilidade de flexibilizar para famílias de condição econômica melhor. Porém, parece que as necessidades daqueles são mais perceptíveis, latentes e urgentes/emergenciais (FORSYTH, MOLINSKY, KAN, 2019FORSYTH, Ann; MOLINSKY, Jennifer; KAN, Har Ye. Improving housing and neighborhoods for the vulnerable: older people, small households, urban design, and planning. In: Urban Design Internacional , vol. 24, p. 171-186, 2019.).

5. Fundamentos jurídicos da tese defendida: ratio legis e ratio juris das normas de flexibilização.

Daniella Maria dos Santos Dias et alii (2020DIAS, Daniella Maria dos Santos; et al. Direito à cidade e ao direito da favela: relações mútuas de formação e adaptação. In: Revista Cesumar Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, v. 25, n. 2, p. 307-327, jul./dez. 2020. DOI: 10.17765/1516-2664.2020v25n2p307-327.
https://doi.org/10.17765/1516-2664.2020v...
, p. 323-324) falam na existência de um “direito da favela” - paralelo ao “direito da cidade” -, o qual não só depende do direito estatal, como surge em razão da ausência desse direito estatal nas regiões de favela. O problema, segundo elas, é que quando este direito estatal surge na favela, estabelece uma relação de dependência e semelhança: o direito estatal trata o “direito da favela” da mesma maneira que o “direito da cidade”. Porém, as peculiaridades da urbanização nas comunidades carentes não podem ser ignoradas e desconsideradas pelo Estado.

A eficácia das medidas de regularização parece depender de certa adaptação à ordem já existente e aceita nas favelas, ainda que não se amolde completamente a ela. Deve-se buscar medidas razoáveis, graduais e acessíveis para alcançar os objetivos de uma dita integração - que deve ser entendida como tal, não como uma mera imposição. [...] o legislador brasileiro ainda pouco se preocupa com as condições reais do direito da favela e suas possíveis contribuições ao direito estatal, especialmente no que se refere à efetivação do direito à cidade por meio do direito não oficial.

Já Raquel Rolnik (2007______. Pensar a cidade como lugar para todos. Entrevista concedida a Carlos Costa. In: Getulio, p. 24-31, set. 2007. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/getulio/article/view/61406/59594>. Acesso em 26 abr. 2021.
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/inde...
, p. 28) diz que “O puxadinho não existe na legislação, é ilegal. E o país é um monte de puxadinhos! A legislação não toma conhecimento da produção real”. É preciso, então, tratar essa realidade com outros olhos.

Fabiana Valdoski Ribeiro (2014_______. A territorialização de organizações não governamentais nas periferias urbanas: uma experiência na metrópole de São Paulo. In: Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias sociales, n. 493, 04, Barcelona, p. 1-15, 2014. Disponível em: <http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-493/493-04.pdf>. Acesso em 26 abr. 2021.
http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-493/493-...
, p. 12) (2012RIBEIRO, Fabiana Valdoski. A luta pelo espaço: da segurança da posse à política de regularização fundiária de interesse social em São Paulo. Tese de Doutorado. FFLCH. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012. Disponível em: <https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-26032013-122231/publico/2012_FabianaValdoskiRibeiro.pdf>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8...
, p. 145-162), por outro lado, entende que o controle do espaço é uma estratégia de “domínio sobre ele, nos revela a precarização da vida na cidade dada por uma instituição específica. São controles dados ao âmbito do mundo do trabalho, do uso do espaço de lazer e da vida de bairro”. Nesse sentido, para ela, as práticas de transgressão e de resistência se colocam como condição para a sobrevivência quanto às questões de moradia: “as transgressões surgem e elas podem ao mesmo tempo ratificar as ações de controle do espaço e das relações sociais, ou então, questionar as formas como este mesmo controle se realiza, como assistencialismo, por exemplo” (RIBEIRO, 2014_______. A territorialização de organizações não governamentais nas periferias urbanas: uma experiência na metrópole de São Paulo. In: Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias sociales, n. 493, 04, Barcelona, p. 1-15, 2014. Disponível em: <http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-493/493-04.pdf>. Acesso em 26 abr. 2021.
http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-493/493-...
, p. 6).

Essas realidades colaboram para interpretar as regras de Direito Urbanístico e melhor compreender a necessidade de flexibilização do controle sobre os puxadinhos. Isso porque a tese aqui defendida encontra espeque em cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados de formulações normativas que estabelecem as regulis juris para a regularização de obras e adequações das cidades.

O primeiro fundamento é o parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.257/2001, pelo qual o Estatuto da Cidade estabelece normas que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos. Segundo Luigi Bonizzato (2016BONIZZATO, Luigi. O Estatuto da Metrópole e novas esperanças para o futuro da política de planificação e planejamento no Brasil: o plano de desenvolvimento urbano integrado. In: Revista de Direito da Cidade, [S.l.], vol. 7, n. 4, p. 1864-1887, fev. 2016. doi: https://doi.org/10.12957/rdc.2015.20917.
https://doi.org/https://doi.org/10.12957...
, p. 1886) “a qualidade de vida e o bem-estar social em áreas urbanas são não somente uma meta, mas uma base sobre a qual devem-se direcionar direitos e medidas governamentais, com vistas à melhoria constante dos deteriorados cenários urbanos brasileiros”. Este momento de pandemia é difícil para todos, mas especialmente para aqueles que dependem de adaptações no imóvel para enfrentá-la. É preciso um ambiente confortável e apropriado para superar com qualidade de vida essa circunstância.

Pelo inciso XIV do art. 2º do Estatuto da Cidade, a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda se realiza mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação. Claro que a norma se aplica à política de regularização fundiária e urbanização a longo prazo. Porém, há uma autorização de criação de normas especiais de urbanização. Assim, nas circunstâncias atuais, há uma situação especial que enseja uma regularização especial por meio de normas especiais.

O inciso XIX do art. 2º da Lei nº. 10.257/2001, por sua vez, se ocupa de garantir condições condignas de utilização e conforto nas dependências internas das edificações urbanas, inclusive nas destinadas à moradia e ao serviço dos trabalhadores domésticos. Manda, ainda, que se observem requisitos mínimos de dimensionamento, ventilação, iluminação, ergonomia, privacidade e qualidade dos materiais empregados. Talvez essa norma nunca esteve tanto em voga como neste momento em que as pessoas estão com suas atividades suspensas e devendo conviver em confinamento. Para atender a todos esses requisitos, pode ser que se torne necessário um puxadinho, uma laje ou outras adaptações para garanti-las.

Há, porém, uma preocupação que Raquel Rolnik (2007______. Pensar a cidade como lugar para todos. Entrevista concedida a Carlos Costa. In: Getulio, p. 24-31, set. 2007. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/getulio/article/view/61406/59594>. Acesso em 26 abr. 2021.
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/inde...
, p. 28) já aventava desde 2007, quando disse que o puxadinho é ilegal porque a legislação não se ocupa dele:

Aí vem a questão: como é que a produção real se relaciona com a gestão do governo municipal? Negociando na excepcionalidade. É como dizer, “Olha, é irregular, mas eu tolero porque sabe como é, não posso tirar... mas você fica me devendo um favorzinho, afinal de contas a coisa está errada...” Em vez de a lei se abrir para a totalidade da cidade e pôr todo mundo para dentro, ela mantém essa dicotomia: os de dentro e os de fora. E os de fora negociam, ponto a ponto, como é que podem entrar.

O que preocupava Raquel Rolnik àquela época é que não se tomavam medidas efetivas para o fim de ilegalidade e a “vista grossa” que era feita perpetuava os malefícios da situação. Essa preocupação, no período de 2020-2021, também se mostra ainda preocupante, mesmo com a legislação excepcional criada para a flexibilização. Não pode o momento se tornar aquilo que a própria Raquel Rolnik (2015______. Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015., p. 378) designou em outras oportunidades de “guerra dos espaços”: “é no dia a dia dos conflitos sociais que se desenrola a guerra dos lugares. Está em cada prática de resistência a remoções e despejos, em cada luta contra a homogeneização do espaço, em cada apropriação do espaço coletivo”.

A “Lei do Puxadinho” não fará sentido se não lhe seguir uma efetiva regularização que respeite as peculiaridades do espaço onde serão construídos. Os impactos futuros das obras em período de excepcionalidade não podem significar a perpetuação de dicotomias espaciais e a tolerância com o irregular que não nunca será resolvido.

E se isso ocorrer, não seria algo novo. Natália Carvalho da Rosa e Sérgio Botton Barcellos (2021ROSA, Natália Carvalho da; BARCELLOS, Sérgio Botton. Regularização fundiária e direito à cidade: as transformações na vida cotidiana dos(as) moradores(as) do Loteamento Barão de Mauá na cidade de Pelotas (RS). In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 23, São Paulo, p. 1-21, abr. 2021. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rbeur/v23/2317-1529-rbeur-23-01-e202107.pdf>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://www.scielo.br/pdf/rbeur/v23/2317...
, p. 17-18) analisaram o reassentamento no loteamento Barão de Mauá de moradores removidos de áreas irregulares no município de Pelotas (RS). Após pesquisa empírica in loco, concluíram:

[...] o objetivo de retirar as pessoas dos assentamentos considerados “precários” e “irregulares” para reassentá-las em conjuntos formalizados e regularizados era supostamente solucionar alguns problemas sociais e habitacionais, como acesso à moradia com saneamento e acesso a serviços públicos, em conformidade com o estabelecido no Programa de Regularização Fundiária. Porém, verificou-se que não foi realizado o devido acompanhamento social junto às famílias reassentadas. Segundo captado nas entrevistas, o que ocorreu, ao contrário do esperado, foi o abandono por parte da prefeitura. Além do mais, os serviços de infraestrutura estabelecidos no projeto inicial não haviam sido concretizados até o fim da pesquisa empírica, no ano de 2016.

O deslocamento e a alteração de espaço só alteraram o cotidiano das pessoas e desarticularam as relações espaço-moradia anteriormente estabelecidas, ou seja, “desconstruíram-se os espaços de convivência social”. No entanto, a ocupação do novo espaço também modificou o espaço de moradia pelo uso, com base na memória e na identidade do vivido (ROSA; BARCELLOS, 2021ROSA, Natália Carvalho da; BARCELLOS, Sérgio Botton. Regularização fundiária e direito à cidade: as transformações na vida cotidiana dos(as) moradores(as) do Loteamento Barão de Mauá na cidade de Pelotas (RS). In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 23, São Paulo, p. 1-21, abr. 2021. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rbeur/v23/2317-1529-rbeur-23-01-e202107.pdf>. Acesso em 26 abr. 2021.
https://www.scielo.br/pdf/rbeur/v23/2317...
, p. 18). Pois bem. Esse é um cuidado que se deve ter quando se flexibiliza a construção dos puxadinhos. A flexibilização não pode significar descontrole a ponto de destruir a identidade dos moradores com seus espaços de moradia, privacidade, convivência e trabalho.

6. O caso da “Lei do Puxadinho”.

“Lei do Puxadinho” é um apelido, uma designação, dada a certas leis municipais destinadas a facilitar e favorecer o processo de formalização e regularização de obras informais, principalmente as lajes e os puxadinhos.

Raquel Rolnik (1999) chamava a atenção para a ilegalidade do puxadinho por ausência de previsão legal, apesar de ser construção comum na realidade das cidades. Segundo ela, isso seria um problema, uma vez que a legislação se afastava da produção real e da vida do espaço onde os puxadinhos se desenvolvem.

Muitas dessas leis foram criadas por estímulo da Lei nº 13.465/2017 (Lei da Regularização Fundiária Rural e Urbana etc.BRASIL. Lei nº. 13.465, de 11 de julho de 2017. Dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal; institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União; altera as Leis n os 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 , 13.001, de 20 de junho de 2014 , 11.952, de 25 de junho de 2009, 13.340, de 28 de setembro de 2016, 8.666, de 21 de junho de 1993, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 12.512, de 14 de outubro de 2011 , 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), 11.977, de 7 de julho de 2009, 9.514, de 20 de novembro de 1997, 11.124, de 16 de junho de 2005, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 10.257, de 10 de julho de 2001, 12.651, de 25 de maio de 2012, 13.240, de 30 de dezembro de 2015, 9.636, de 15 de maio de 1998, 8.036, de 11 de maio de 1990, 13.139, de 26 de junho de 2015, 11.483, de 31 de maio de 2007, e a 12.712, de 30 de agosto de 2012, a Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, e os Decretos-Leis n º 2.398, de 21 de dezembro de 1987, 1.876, de 15 de julho de 1981, 9.760, de 5 de setembro de 1946, e 3.365, de 21 de junho de 1941; revoga dispositivos da Lei Complementar nº 76, de 6 de julho de 1993, e da Lei nº 13.347, de 10 de outubro de 2016; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13465.htm>. Acesso em 26 ago. 2020.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Mas também há caso em que houve como estímulo a Doença do Coronavírus - 2019.

Uma delas é a Lei Complementar nº 219/2020MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Lei Complementar nº 219, de 19 de agosto de 2020. Estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no Município do Rio de Janeiro, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da Covid-19 e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil/Arquivos/PDF/LC219M.PDF>. Acesso em 26 ago. 2020.
http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil...
, do Município do Rio de Janeiro, que estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no município, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da Covid-19 e dá outras providências.

A lei foi promulgada em 19 de agosto de 2020 e está regulamentada pelo Decreto Rio nº 47.796/2020_________. Decreto Rio nº 47.796 de 19 de agosto de 2020. Regulamenta a aplicação da Lei Complementar nº 219, de 19 de agosto de 2020, que estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no Município do Rio de Janeiro, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da COVID-19 e dá outras providências. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/11821671/4298437/decreto_regulamenta_LC_219_republicado.PDF>. Acesso em 26 ago. 2020.
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/...
.

Essa lei altera pontos da Lei Complementar nº 192/2018_________. Lei Complementar nº 192 de 18 de julho de 2018. Estabelece condições especiais para o licenciamento e a legalização de construções e acréscimos nas edificações no Município do Rio de Janeiro e dá outras providências. Disponível em: <https://leismunicipais.com.br/a/rj/r/rio-de-janeiro/lei-complementar/2018/19/192/lei-complementar-n-192-2018-estabelece-condicoes-especiais-para-o-licenciamento-e-a-legalizacao-de-construcoes-e-acrescimos-nas-edificacoes-no-municipio-do-rio-de-janeiro-e-da-outras-providencias>. Acesso em 26 ago. 2020.
https://leismunicipais.com.br/a/rj/r/rio...
, que estabelece condições especiais para o licenciamento e a legalização de construções e acréscimos nas edificações na cidade do Rio de Janeiro.

A “Lei do Puxadinho” carioca resultou da consolidação de outros projetos que tramitavam na Câmara de Vereadores. Em razão da urgência e da comoção social do momento de crise, esses projetos foram reunidos e tramitados com urgência, sob a justificativa da necessidade de enfrentamento à Covid-19.

Em linhas gerais, a “Lei do Puxadinho” permite a flexibilização das regras urbanísticas da cidade mediante pagamento de contrapartida para licenciamento e legalização de construções e acréscimos nas edificações. Estão permitidas as construções durante o período da pandemia, desde que mediante o pagamento de uma taxa ao município. Prevê-se um desconto de 40% para a legalização das construções nesse período (art. 3º, que altera o § 4º do art. 9º da Lei Complementar nº 192/2018). Esse valor estimula a formalização e, também, a construção de novos acréscimos (FERREIRA, 2020FERREIRA, Marcelo Antônio. Especialistas avaliam que ‘Lei do Puxadinho’ representa ameaça à ordem urbana. Extra. Rio de Janeiro. 17 de julho de 2020. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/rio/especialistas-avaliam-que-lei-do-puxadinho-representa-ameaca-ordem-urbana-24537073.html>. Acesso em 26 ago. 2020.
https://extra.globo.com/noticias/rio/esp...
).

A lei permite, assim, a concessão de direitos de edificação em parâmetros urbanísticos distintos dos vigentes nas normas do Município. E mais: sem prazo de término.

Estima-se que essa lei possibilitará ao Município do Rio de Janeiro a arrecadação de R$ 600 milhões (CÂMARA, 2020CÂMARA aprova projeto da ‘Lei do Puxadinho’ no Rio. O Fluminense. 29 de julho de 2020. Disponível em: <https://www.ofluminense.com.br/cidades/33-rio-de-janeiro/7167-camara-aprova-projeto-da-lei-do-puxadinho-no-rio>. Acesso em 26 ago. 2020.
https://www.ofluminense.com.br/cidades/3...
). Alguns críticos afirmam que o objetivo precípuo dessa lei é meramente arrecadatório e causaria danos permanentes na cidade para arrecadar mais dinheiro em um período curto e excepcional (CPU-CAU/RJ, 2020).

A propósito, o objetivo arrecadatório está expresso no caput e no § 1º do art. 1º da Lei Complementar nº 219/2020MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Lei Complementar nº 219, de 19 de agosto de 2020. Estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no Município do Rio de Janeiro, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da Covid-19 e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil/Arquivos/PDF/LC219M.PDF>. Acesso em 26 ago. 2020.
http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil...
:

Art. 1º Esta Lei Complementar dispõe sobre incentivos para pagamento da contrapartida estabelecida na Lei Complementar nº 192, de 18 de julho de 2018, que “Estabelece condições especiais para o licenciamento e a legalização de construções e acréscimos nas edificações no Município do Rio de Janeiro e dá outras providências”, através das modificações que apresenta, bem como dispõe sobre novas condições especiais de uso e ocupação do solo mediante pagamento de contrapartida, visando gerar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da Covid-19.

§ 1º Considerando o estado de calamidade pública no Município do Rio de Janeiro determinado pelo Decreto Rio nº 47.355, de 08 de abril de 2020, os recursos advindos da aplicação desta Lei Complementar serão destinados a suprir as necessidades financeiras do Município no custeio das ações emergenciais relativas à saúde pública, provisão de infraestrutura, habitação e assistência social para a população vulnerável aos riscos da Covid-19, bem como da folha de pagamento dos servidores.

[...].

Deveras, a crítica quanto à finalidade arrecadatória faz todo sentido quando se verifica a possibilidade de regularizar obras anteriores à pandemia e que em nada guardam relação com ela, portanto. Porém, não é de todo correto dizer que a “Lei do Puxadinho” carioca não colabora com o enfrentamento da Covid-19 diretamente, no quotidiano familiar. Então, em alguns pontos, as flexibilizações da lei se adequam aos critérios aqui defendidos de mitigação dos parâmetros urbanísticos. Quer dizer, em alguns aspectos, a regularização pretendida nada tem a ver com a pandemia, mas em outros, sim.

A análise da Lei do Puxadinho do Rio de Janeiro revelou dez pontos principais para serem aqui enumerados, por dizerem respeito mais intimamente ao objeto da pesquisa:

  1. Uso misto de prédios residenciais: a lei autoriza que apartamentos sejam convertidos em salas comerciais em edificações multifamiliares (art. 6º), isso mediante o pagamento de uma taxa à Prefeitura;

  2. Cálculo do gabarito: houve modificação para mais na altura máxima permitida para as construções;

  3. Aplicação de média de altura dos prédios da quadra: para os casos em que há prédios com gabarito superior ao definido pela legislação, será feita uma média de altura para regularizar a obra (art. 11);

  4. Áreas de especial interesse social: foram modificadas as regras de uso, permitindo-se construções multifamiliares e mistas (habitacionais e comerciais) (art. 12);

  5. Área de Planejamento 4 (Barra da Tijuca, Recreio e Jacarepaguá): permitido o acréscimo de até três andares nas edificações;

  6. Transformação de hotéis: há uma autorização para que prédios onde funcionaram ou funcionem hotéis sejam transformados em prédios de uso residencial ou misto;

  7. Acréscimo de andar de cobertura: prédios com mais de três andares poderão acrescentar mais um como cobertura, construída afastada ou não das divisas (art. 18);

  8. Permissão de edificação colada nas divisas: fica permitida no lote a construção de edificação colada nas divisas, aplicando o gabarito definido pela legislação em vigor (art. 8º);

  9. Vagas de estacionamento: As edificações em lotes situados em franjas de áreas de especial interesse social com até 12 unidades residenciais ficam isentas do cumprimento das exigências de vagas de estacionamento e, acima de 12 unidades, será exigida uma vaga de estacionamento a cada quatro unidades (§ 7º do art. 12); e

  10. Transformação de uso: fica permitida a transformação de uso para os usos comercial e de serviços nas áreas de uso residencial unifamiliar situadas nas Áreas de Planejamento 4 e 5 e com testada para as vias que integram o corredor de transporte BRT (art. 16).

Importante assinalar que todas essas obras serão permanentes e seus impactos no trânsito, no meio ambiente, na estética urbana etc. também serão permanentes.

Sói claro que as medidas dos itens 3, 5, 7 e 9 não guardam qualquer relação com o enfrentamento direto dos efeitos sociais e econômicos resultantes da Covid-19. Por exemplo: de que maneira a construção de uma cobertura permitirá que uma família enfrente a pandemia (item 7)?

Outra: a construção de até três andares demoraria meses, de modo que não terá utilidade para enfrentar a doença (item 5); ao contrário: pode até prejudicar a família confinada com a circulação de pessoas e os entulhos da obra.

O item 3 não diz respeito a novas obras, mas àquelas que já foram concluídas e se encontram irregulares. A indulgência quanto ao passado em nada tem a ver com os efeitos sociais e econômicos resultantes da Covid-19. A não ser, claro, naquela hipótese aventada de não abertura do processo de regularização neste instante da pandemia.

O mesmo não se diga, contudo, dos itens 1, 2, 4, 6 e 8, estes sim capazes de proporcionar medidas que colaboram com as famílias para superar o momento de risco.

Quanto à hipótese nº 10, é possível que a flexibilização seja destinada ao enfrentamento dos malefícios socioeconômicos da Covid-19. Seria o caso, por exemplo, de transformação de um imóvel para comércio de modo a não exigir que o comerciante ou empregado tenham que se deslocar pela cidade para exercer sua atividade.

Nesses itens, verifica-se a possibilidade de realizar acréscimos (puxadinho), transformar o imóvel residencial em espaço de comércio e fabril e criação de novas habitações ou salas comerciais em antigos hotéis. Essas são medidas que colaboram com o enfrentamento dos efeitos sociais e econômicos resultantes da Covid-19 e justificam mitigar os parâmetros urbanísticos vigentes.

Importa observar que tal flexibilização faz sentido para aquelas pessoas e famílias que têm urgência em garantir condições mínimas de sobrevivência durante a crise, o que, por óbvio, não se aplica a todos os casos.

A Lei Complementar nº 219/2020MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Lei Complementar nº 219, de 19 de agosto de 2020. Estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no Município do Rio de Janeiro, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da Covid-19 e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil/Arquivos/PDF/LC219M.PDF>. Acesso em 26 ago. 2020.
http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil...
do Município do Rio de Janeiro gerou críticas de arquitetos e órgão de classe que são plenamente extensíveis a todas as propostas que possam surgir para flexibilizar as regras de edificações no período de pandemia.

Arquitetos (e engenheiros) exercem importante papel no processo de regularização fundiária e conformação e planejamento urbanísticos, seja por comporem setores da Administração Pública, seja por suas habilidades técnicas (FERULANO, 2017FERULANO, Giancarlo. L’architetto nell’amministrazione pubblica. In: L’Architettura delle Città - The Journal of the Scientific Society Ludovico Quaroni, vol. 8, dec. 2017.).

A Comissão de Política UrbanaCOMISSÃO DE POLÍTICA URBANA. CONSELHO DE ARQUITETURA E URBANISMO DO RIO DE JANEIRO. Manifesto contra à aprovação do PLC 174/2020. Rio de Janeiro. 18 de maio de 2020. Disponível em <Disponível em https://www.caurj.gov.br/leia-o-manifesto-contra-a-aprovacao-do-plc-147-2020/ >. Acesso em 26 ago. 2020.
https://www.caurj.gov.br/leia-o-manifest...
do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU/RJ) manifestou-se de maneira contrária à aprovação do então Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 174/2020, do qual resultou o Lei Complementar nº 219/2020MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Lei Complementar nº 219, de 19 de agosto de 2020. Estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no Município do Rio de Janeiro, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da Covid-19 e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil/Arquivos/PDF/LC219M.PDF>. Acesso em 26 ago. 2020.
http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil...
.

Basicamente, a CPU-CAU/RJ (2020) entende que a Lei do Puxadinho “permite o descumprimento da legislação urbanística vigente, mediante o pagamento de contrapartidas”. Entende que as finalidades da lei são “puramente arrecadatórias” e desconformes com os princípios urbanísticos:

A aprovação do PLC 174/2020 representa ameaça de danos irreversíveis à paisagem carioca, que ostenta título da Unesco de Patrimônio Cultural da Humanidade, sob o argumento de emergência da pandemia e da crise financeira que assola a municipalidade. A adoção de tal expediente avança em lógica perversa para a cidade, sem avaliações sobre suas consequências para a infraestrutura urbana e o ambiente construído como um todo. O PLC carece ainda de mecanismos que possibilitem o controle do poder público sobre a valorização extraordinária de determinadas áreas ou imóveis.

[...].

O novo projeto de lei é avesso aos princípios que regem o planejamento urbano e extrapola o mecanismo da “mais valia” que tem sido utilizado, há décadas, para regularizar obras realizadas à margem da legislação urbanística vigente sob o mesmo argumento da necessidade de arrecadação para os cofres municipais. No momento em que os governos locais devem estar dedicados a salvar vidas e a preservar o funcionamento do sistema de saúde pública, ao mesmo tempo em que necessitam pensar e planejar a cidade pós-pandemia, o Projeto de Lei 174/2020 representa uma visão absolutamente negligente em relação ao futuro da nossa cidade.

As críticas mais contundentes são aquelas que dizem respeito à perpetuidade dos danos à cidade, pois, apesar da vigência temporária da lei, os efeitos danosos que dela poderão decorrer serão definitivos para a cidade. Além disso, a categoria critica a lógica arrecadatória imediatista da Prefeitura e da Câmara de Vereadores, distante de objetivos efetivamente voltados ao desenvolvimento urbano.

O Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Rio de Janeiro (Sinduscon-Rio) (2020)PROJETO DE LEI que flexibiliza regras urbanísticas do Rio é aprovado na Câmara de Vereadores. Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Rio de Janeiro (Sinduscon-Rio). Rio de Janeiro. 29 de julho de 2020. Disponível em: <https://www.sinduscon-rio.com.br/wp/projeto-de-lei-que-flexibiliza-regras-urbanisticas-do-rio-e-aprovado-na-camara-de-vereadores/>. Acesso em 26 ago. 2020.
https://www.sinduscon-rio.com.br/wp/proj...
critica a falta de análise dos impactos da lei no trânsito, na vizinhança e no meio ambiente; o enfraquecimento do planejamento urbano e do urbanismo; a participação popular no planejamento urbano; e a permissão dada às pessoas para descumprirem a legislação urbanística vigente no Município (FERREIRA, 2020FERREIRA, Marcelo Antônio. Especialistas avaliam que ‘Lei do Puxadinho’ representa ameaça à ordem urbana. Extra. Rio de Janeiro. 17 de julho de 2020. Disponível em: <https://extra.globo.com/noticias/rio/especialistas-avaliam-que-lei-do-puxadinho-representa-ameaca-ordem-urbana-24537073.html>. Acesso em 26 ago. 2020.
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).

Outrossim, o texto foi aprovado com algumas silenciosas “emendas jabutis” - típicas do Brasil -, como a que permite a construção de lojas em subsolo, mediante o pagamento de contrapartida da área, no chamado “Buraco do Lume”, um tradicional reduto de encontro de políticos e artistas de esquerda. Isso causou a revolta posterior, inclusive, de vereadores que votaram a favor da emenda (GRINBERG, 2020GRINBERG, Felipe. ‘Lei do puxadinho’ permite construções no Buraco do Lume e pega até o presidente da Câmara de surpresa. Extra. Rio de Janeiro. 30 de julho de 2020. Disponível em: <https://br.noticias.yahoo.com/lei-puxadinho-permite-constru%C3%A7%C3%B5es-no-210914393.html>. Acesso em 26 ago. 2020.
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). Essa é uma demonstração de que a lei não respeitou, em muitos pontos, os aspectos tradicionais e históricos do espaço urbano.

Mas, em novembro de 2020, a Procuradoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro propôs uma Representação por Inconstitucionalidade, para suspender os efeitos da Lei Complementar nº 219/2020MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Lei Complementar nº 219, de 19 de agosto de 2020. Estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no Município do Rio de Janeiro, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da Covid-19 e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil/Arquivos/PDF/LC219M.PDF>. Acesso em 26 ago. 2020.
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e do Decreto Rio nº 47.796/2020_________. Decreto Rio nº 47.796 de 19 de agosto de 2020. Regulamenta a aplicação da Lei Complementar nº 219, de 19 de agosto de 2020, que estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no Município do Rio de Janeiro, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da COVID-19 e dá outras providências. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/11821671/4298437/decreto_regulamenta_LC_219_republicado.PDF>. Acesso em 26 ago. 2020.
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.

Em 09 de novembro de 2020, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) deferiu a medida liminar requerida pelo Ministério Público, suspendendo, assim, os efeitos da “Lei do Puxadinho” carioca, conforme o Acórdão:

PEDIDO CAUTELAR EM REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. LC 219, DE 2020, DO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. POLÍTICA URBANA E MEIO AMBIENTE. PRESENÇA DA FUMAÇA DO BOM DIREITO E DO PERIGO NA DEMORA. CAUTELAR DE SUSPENSÃO QUE SE DEFERE. [...]. 2. Por arrastamento também foi requerida a declaração de inconstitucionalidade do seu regulamentador Decreto n.º 47.796/2020. [...].4. Sem prejuízo do futuro aprofundamento das questões, em uma primeira impressão mostram-se relevantes os argumentos e preocupações do Representante a ponto de ser deferido o pedido cautelar por precaução. 5. Primo ictu oculi, a lei impugnada vai de encontro ao intuito constitucional que é de fomentar o planejamento urbano coordenado. Alterações de parâmetros, como é feito na lei impugnada, devem respeitar diretrizes do Plano Diretor pré-ordenado ao cumprimento das funções sociais da cidade. Parece que a lei impugnada não segue essa lógica e tem um potencial de violar a ordem de preservação e proteção do meio ambiente urbano. 6. Outro dado que impressiona cinge-se ao fato de que, em uma primeira impressão, foi no mínimo colocado em xeque a gestão democrática e participativa da cidade a fim de assegurar a participação popular efetiva quando da formação da lei impugnada. Ainda quanto à formação da lei, cabe frisar que também foi colocada em xeque a desincumbência quanto aos estudos técnicos de impacto ambiental, que dentre várias virtudes viabiliza a participação popular informada. 7. Pelo exposto, põem-se em dúvida a proporcionalidade das escolhas legislativas que visam incrementos reduzidos com potencial negativo de longo prazo ao que determinado na CERJ em termos de política urbana e meio ambiente ecologicamente sustentável e equilibrado. 8. O periculum in mora está expresso nas consequências potencialmente advindas; a provocação permanente de danos ao equilíbrio ambiental na contramão da função social da cidade. 9. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA (TJRJ, Representação de Inconstitucionalidade nº 0058849-62.2020.8.19.0000, Órgão Especial, Rel. Des. Antônio Iloízio Barros Bastos, julgado em 09/11/2020).

A Procuradoria do Município do Rio de Janeiro recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Suspensão de Liminar nº. 1.411, para suspender a liminar do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. No julgamento em Plenário Virtual entre 19 e 26 de março de 2021, embora o relator - acompanhado por dois ministros - tenha votado a favor da suspensão, venceu por maioria o voto divergente e foi mantida a liminar (STF, SL nº. 1.411, Plenário Virtual, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 26/03/2021).

Desse modo, considerando que o Órgão Especial do TJRJ, em abril de 2021, ainda não julgou o mérito da Representação de Inconstitucionalidade nº 0058849-62.2020.8.19.0000, a “Lei do Puxadinho” carioca está suspensa.

Contudo, é preciso confrontar as críticas e as decisões judiciais com o olhar da necessidade e da solidariedade que o momento exige. Os rigores não podem ser estanques e engessados. Neste sentido, Ana Fani Alessandri Carlos (2011_______. A condição espacial. São Paulo: Contexto, 2011. , p. 17 e ss.) vê o espaço como condição, meio e produto da reprodução da vida. Significa dizer que a sociedade sofrerá mudanças, e estas irão alterar a rede de relações que a sustenta; logo, a produção do espaço decorre da produção da sociedade no movimento histórico em questão. Tais produções dão conteúdo e sentido à vida. Dessa forma, o espaço urbano é produzido a partir do momento histórico que o influencia (CARLOS, 2016_______. Da “organização” à produção do espaço no movimento do pensamento geográfico. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri; SOUZA, Marcelo Lopes de; SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão (Orgs.). A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios. São Paulo: Contexto, 2016., p. 53).

Adaptando para a crise pandêmica de 2020-2021, a excepcionalidade do momento altera os fundamentos sociais. A pandemia repercutiu na produção da sociedade e, como tal, repercute, legitimamente, na produção do espaço urbano.

7. Conclusão.

As regras de regularização e formalização de construções são, por vezes, rígidas, em razão dos valores e objetivos que as normas urbanísticas pretendem assegurar. Mas em um momento de verdadeira calamidade, a rigidez poderá ter que ceder em certas circunstâncias, quando for necessária para garantir condições mínimas de enfrentamento e sobrevivência das pessoas durante a pandemia do coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2).

A pesquisa analisou as normas de flexibilização de normas da Lei Complementar nº 219/2020MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. Lei Complementar nº 219, de 19 de agosto de 2020. Estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no Município do Rio de Janeiro, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da Covid-19 e dá outras providências. Disponível em: <http://www2.rio.rj.gov.br/smu/buscafacil/Arquivos/PDF/LC219M.PDF>. Acesso em 26 ago. 2020.
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, do Município do Rio de Janeiro e que ficou conhecida como “Lei do Puxadinho”, e do Decreto Rio nº 47.796/2020_________. Decreto Rio nº 47.796 de 19 de agosto de 2020. Regulamenta a aplicação da Lei Complementar nº 219, de 19 de agosto de 2020, que estabelece incentivos e benefícios para pagamento de contrapartida no licenciamento e legalização de construções no Município do Rio de Janeiro, em caráter temporário, mediante benefícios urbanísticos com cobrança de contrapartida como forma de viabilizar recursos para o enfrentamento das crises sanitária e econômica oriundas da pandemia da COVID-19 e dá outras providências. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/11821671/4298437/decreto_regulamenta_LC_219_republicado.PDF>. Acesso em 26 ago. 2020.
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, que a regulamentou. Foi realizada uma análise para averiguar se essa lei tem alguma legitimidade jurídica no contexto da ratio juris do regime jurídico urbanístico estabelecido em leis federais, como a Lei nº 10.257/2001 e a Lei nº 13.465/2017.

Tal flexibilização, quando necessária, encontra espeque em cláusulas gerais da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade______. Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm>. Acesso em 26 ago. 2020.
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). Tais normas jurídicas têm por ratio juris garantir a proteção da incolumidade física dos usuários dos imóveis e podem fundamentar a flexibilização - sempre que esta for necessária - porque, como o Estatuto da Cidade concebe cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados para a proteção das pessoas, das cidades e do urbanismo, foi possível conceber como efeito específico dessas normas a flexibilização das regras de edificação e fiscalização de puxadinhos. É que essas normas abertas possuem formulação normativa com sintagmas vagos e que podem ser circunstanciados pelo intérprete para atender às necessidades sócio-econômico-jurídicas do momento naqueles em que há urgência em garantir à população que precisa ter condições mínimas de sobrevivência durante a crise.

Ao analisar causas e efeitos da construção emergencial de puxadinhos foi possível perceber que a flexibilização não pode ocorrer indiscriminadamente, em toda e qualquer circunstância, pelo simples fato de a cidade vivenciar uma crise pandêmica e necessitar, por causa disso, estimular setores da economia. Logo, há situações em que a flexibilização pode ocorrer, se o puxadinho se destinar ao enfrentamento pessoal ou familiar da pandemia de SARS-CoV-2. Logo, a flexibilização será possível e se legitima quando o puxadinho for construído por causa da Doença do Coronavírus - 2019 (Covid-19) e para enfrentar os efeitos sociais e econômicos resultantes da pandemia do SARS-CoV-2.

A operabilidade dessa tese tende a garantir as condições mínimas para aquela população que tem urgência durante a crise em garantir a vida, a segurança e a saúde, direitos que integram a incolumidade física da pessoa humana. A proteção de tais valores - naquelas condições de urgência e para aqueles que precisam - é o motivo que justifica a flexibilização dos procedimentos legais e administrativos. Desse modo, a possibilidade de flexibilização ocorre naqueles casos em que efetivamente se faz necessária a mitigação dos padrões para proteger aqueles que vivenciam situações de risco à sua incolumidade física por causa do SARS-CoV-2.

Foram estabelecidos casos para delimitar substancialmente a flexibilização para aquelas circunstâncias que envolvem diretamente o enfrentamento dos malefícios da Covid-19, naquelas hipóteses de urgência para garantir que a população que precisa da flexibilização tenha condições mínimas de sobrevivência durante o período. Logo, foi proposta uma restrição da liberalidade prevista na lei, para não vulgarizar o processo, o que não se verificou na “Lei do Puxadinho” carioca. A análise da lei e das matérias jornalísticas sobre ela revelou que seu objetivo primordial não é atender às necessidades urgentes da população, mas arrecadar recursos para o município e estimular certos setores da economia.

Há famílias de baixa renda - que geralmente habitam as favelas e as periferias - que, geralmente, são aquelas que têm mais urgência em realizar adaptações para adequar o imóvel de modo a ter condições de sobrevivência e de preservação da a vida, da segurança e da saúde. Os casos aqui traçados e que justificariam a flexibilização visam a beneficiar, principalmente, famílias que precisam garantir o bem-estar para enfrentar o confinamento, a redução da renda, o convívio, a contaminação com o SARS-CoV-2 e a doença, e que não podem aguardar o processo e a burocracia administrativos. Daí a necessidade de um olhar sensível e de que valores importantes do urbanismo cedam frente a essa crise.

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  • 1
    Em tradução livre: “Os problemas estruturais de acesso à moradia adequada, que se tornaram mais claros após o início da crise econômica global de 2008, se agravaram durante a pandemia, quando ter acesso a moradia adequada tornou-se condição básica para proteger vidas. A COVID-19 obrigou os governos a adotarem uma série de medidas emergenciais por meio das quais intervieram nos mercados residenciais e, por exemplo, mobilizaram um estoque habitacional já existente, mas vazio ou subutilizado, para prover moradias para pessoas sem condições adequadas de habitação. A abertura política que surgiu durante a pandemia com a adoção de medidas que antes seriam impensáveis ​​oferece uma oportunidade para os governos locais (mas também regionais e nacionais) avançarem em sua ação política na defesa do direito à moradia adequada. As diretrizes sugeridas com este relatório incluem estender as medidas de emergência adotadas durante a pandemia e continuar a trabalhar em certas medidas anteriores que envolviam intervenção em mercados residenciais”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2020
  • Aceito
    19 Jul 2021
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