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Aporias da desigualdade: o por vir das políticas afirmativas * * Trabalho realizado com o apoio do CNPq e da CAPES.

Aporias of inequality: To come of affirmative policies

RESUMO

A partir da discussão sobre Justiça e Direito trazida por Derrida em sua obra Força de Lei: o fundamento místico da autoridade, discorremos sobre as aporias com que convivemos na rotina do pré-vestibular PVC 21290, em relação à política afirmativa de reserva de vagas. Para tanto, trazemos uma reflexão sobre o espectro da colonialidade que hierarquiza as pessoas, dividindo-as entre as que devem ter acesso e as que não devem ter acesso a determinados espaços, incluindo nesses espaços as universidades públicas. Entretanto, entendendo que as políticas afirmativas são da ordem do Direito, portanto, da ordem do cálculo, acreditamos que elas precisam estar em um movimento contínuo de aprimoramento, movimento que nos impõe uma responsabilidade, um investimento radical em ações que visem alcançar a Justiça.

Palavras-chave:
Desconstrução; Justiça; Direito; Colonialidade; Políticas Afirmativas

ABSTRACT

Based on the discussion on Justice and Law fostered by Derrida in his book Force of Law: mystical foundation of Authority, we discuss in this article about the aporias with which we live in the routine of the PVC 21290 pre-university entrance exam, in relation to the affirmative policy of reserving vacancies. To do so, we bring a reflection on the spectrum of coloniality that hierarchizes people, dividing the min to those who should have access and those who should not have access to certain spaces, including public universities. However, understanding that affirmative policies are from the Law, therefore, of the order of predictability, we believe that they need to be in a continuous movement of improvement, a movement that imposes a responsibility on us, a radical investment in actions aimed at achieving Justice.

Keywords:
Desconstruction; Justice; Law; Coloniality; Affirmative Policies

Introdução

A partir da noção de justiça por vir do filósofo franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004), refletimos a respeito da política afirmativa 1 1 Em linhas gerais, “[...] as políticas de ações afirmativas são medidas que possuem amparo na lei para implementação de uma discriminação positiva, ou seja, uma forma de estabelecer critérios para reconhecer as diferenças existentes entre os grupos sociais. Por meio de ações pontuais e por tempo determinado, as ações afirmativas têm como objetivo diminuir as desigualdades históricasvivenciadas por grupos sociais, como as populações negras e indígenas no Brasil”. Disponível em: https://simaigualdaderacial.com.br/site/o-que-sao-e-como-surgiram-as-politicas-afirmativas/. Acesso em: 12 jan. 2022. de reserva de vagas em universidades públicas, para estudantes oriundos de escolas públicas, estudantes negros e indígenas, além daqueles que apresentam alguma deficiência física. Para essa trajetória, consideramos a nossa experiência no Pré-vestibular comunitário, registrado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ, pelo código PVC 21290. Com vistas a fazer essa reflexão, partimos do livro Força de lei: o fundamento místico da autoridade 2 2 Derrida (2018) discorre sobre “o fundamento místico da justiça”, afirmando estar este fundamento relacionado ao fato de que a Lei não é obedecida, porque é justa, a Lei é obedecida porque é Lei. Nesse ponto, ele constata a força e a violência intrínseca à dinâmica da Lei. de Jacques Derrida, em que o filósofo nos traz um contraponto entre Justiça e Direito, apresentando o direito enquanto uma construção humana e histórica, sendo da ordem do cálculo; e a justiça como da ordem do por vir, uma justiça que nunca se presentificará em sua plenitude, impondo-nos a urgência das decisões que ultrapassam a ordem do cálculo.

Antes, porém, refletimos sobre o processo de elitização do acesso ao ensino universitário como sendo um espectro da colonialidade, diante do qual propomos um investimento no movimento de desconstrução desta, como apresentado pelo filósofo Rafael Haddock-Lobo (2020HADDOCK-LOBO, Rafael. Fantasmas da Colônia. Rio de Janeiro: Editora Apeku, 2020.). Para tanto, trouxemos de Derrida as noções de desconstrução (2004aDERRIDA, Jacques. Papel Máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004b.) e de espectro ( 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.). É na linha da desconstrução que escrevemos esse texto, que concebe sim uma tomada de posição “em relação a estruturas político-institucionais que constituem e regulam nossa prática, nossas competências e nossos desempenhos” ( DERRIDA, 1999DERRIDA, Jacques. O olho da universidade. Tradução de Ricardo Iuri Canko e Ignacio Antonio Neis. São Paulo: Estação Liberdade, 1999., p. 108-109). Não podemos negar nosso posicionamento em nome de uma neutralidade que sabemos ser ilusória. Desde o momento que optamos por um tema sobre o qual nos debruçar, essa decisão já constitui uma escolha, movida por razões, mas também por afetos.

A universidade e a política de reserva de vagas

Nos pré-vestibulares comunitários, trabalham professores e professoras que doam uma parte de sua disponibilidade semanal para dar aulas para alunos e alunas que, antes de conhecerem esses projetos, não consideravam a possibilidade de acessarem uma universidade pública. Tudo na vida deles parecia encaminhá-los para pararem de estudar no fim do Ensino Médio. Esse quadro se confirma quando observamos que, apesar do Brasil ter garantido o acesso universal ao Ensino Fundamental, ainda menos de 90% dos jovens entre 15 e 17 anos, segundo as estatísticas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), acessam o Ensino Médio. A queda é ainda maior no que se refere ao Ensino de Nível Superior, em que o acesso se efetiva apenas por um pouco mais de 30% dos jovens entre 18 a 24 anos no Brasil.

Importante considerar que, desses que acessam o Ensino de Nível Superior, a maior parte corresponde aos jovens das classes média e alta. Destacando que estas são, segundo o IBGE, compostas quase 70% e mais de 80%, respectivamente, por jovens brancos. Sabendo que mais de 60% dos jovens de classe baixa são negros, podemos afirmar que o acesso ao nível superior para esses jovens é mais difícil. O número dos que ingressam nessa etapa do ensino formal corresponde, segundo o IBGE, a 3,1% dos jovens negros da classe baixa do nosso país. É nesse cenário de extrema desigualdade que se instituiu o que se convencionou denominar “Políticas Afirmativas”. Essas políticas dizem respeito a medidas, por parte do Estado, que visam a possibilitar a inclusão das chamadas minorias. Entre essas medidas, temos a política das cotas 3 3 Cf. http://portal.mec.gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html para as universidades públicas.

A Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, a que o PVC 21290 está vinculado, foi pioneira na instituição do processo de reserva de vagas no nosso país, com vistas à inserção de jovens carentes no Ensino Superior 4 4 Cf. https://www.uerj.br/inclusao-e-permanencia/sistema-de-cotas/ . O primeiro requisito exigido para participar da concorrência às vagas reservadas nessa universidade é a comprovação de renda que corresponda à situação de carência socioeconômica. Esse processo teve início em 2000, quando a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) determinou que 50% das vagas nos cursos seriam destinadas a alunos e alunas de escolas públicas. A partir desse marco inicial, a lei foi sendo aprimorada. Em 2001, a ALERJ definiu 40% das vagas na UERJ para estudantes negros e pardos. Em 2018, por meio da Lei 8.121, a política de reserva de vagas foi estendida por mais dez anos pela ALERJ com a seguinte configuração: 20% para negros, indígenas e estudantes egressos de comunidades quilombolas; 20% para estudantes do ensino médio da Rede Pública; e 5% para estudantes com deficiência e filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em função de atividade profissional; reiterando que, em qualquer situação, o aluno deve comprovar carência econômica.

Nesse processo, destacamos que é considerada válida a autodeclaração de negros e indígenas no processo do vestibular e na matrícula. Além disso, estabelece-se a obrigatoriedade da instituição de uma comissão para julgar a regularidade de todo processo. Com a promulgação da Lei 5.346/2008, soma-se à política de reserva de vagas, a efetivação de uma bolsa permanência para todo período do curso, do passe livre universitário e da aquisição de material didático, como apoio aos estudantes cotistas moradores do município do Rio de Janeiro. Segundo lemos na página da UERJ, que indicamos em nota de rodapé,

A partir da experiência da UERJ, torna-se possível refletir sobre como as políticas de ações afirmativas podem promover acesso a uma formação acadêmica de qualidade, que vai muito além de assegurar o ingresso em cursos de graduação e após formados, ao se inserirem no mercado de trabalho ou ao ingressarem em cursos de pós-graduação e construírem efetiva transformação social. Espera-se, ainda, que esses estudantes estejam habilitados para contribuir com a transição a fim de superar e romper com as desigualdades secularmente instituídas em nosso país, constituindo-se, deste modo, em novas elites dirigentes. E, sobretudo, para que os estudantes autodeclarados negros e pardos e os segmentos populares da sociedade possam ter acesso ao ensino superior de qualidade. Resta, enfim, reconhecer que, diante da experiência adquirida, pelos profissionais envolvidos, pela qualidade acadêmica de seus cursos de graduação e pós-graduação, pelos recursos destinados e utilizados, por fim e, sobretudo, pelo compromisso institucional presente desde a gênese aos dias atuais, a UERJ revele-se como relevante exemplo a ser seguido e afirmado, como é possível aliar e construir transformação social a partir da excelência do ensino público (UERJ, n.p).

Reconhecemos que a política de cotas, tal qual descrevemos acima, diz respeito a um avanço significativo na mitigação da desigualdade de acesso ao ensino público de nível superior. Sabemos que, após a implementação dessas políticas, as estatísticas apontam o aumento considerável de estudantes negros, pardos, indígenas e oriundos de escolas públicas nas universidades públicas 5 5 C.f. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf . No entanto, essa porcentagem ainda está abaixo do percentual de pardos e negros existente no total da população.

Sendo assim, queremos refletir acerca dessa elitização do acesso ao Ensino Superior público, entendendo que esse processo é marcado por um espectro, o espectro da colonialidade que ronda as políticas educacionais em nosso país.

O espectro da colonialidade

Derrida (2004DERRIDA, Jacques. Papel Máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004b.) afirma que “não se pode pretender arrazoar uma realidade política sem levar em conta a virtualidade espectral” ( DERRIDA, 2004DERRIDA, Jacques. Qu’est-ce que la deconstruction? Le Monde, 12 octobre 2004a. Disponível em: https://www.lemonde.fr/archives/article/2004/10/12/p-1930-2004-p-p-jacques-derrida-p-p-qu-est-ce-que-la-deconstruction-p_4305612_1819218.html.
https://www.lemonde.fr/archives/article/...
, p. 102). Todos nós, todas as sociedades convivem com seus espectros, com suas heranças, independente de pensar nelas ou não. A herança se dá pela lógica da repetição; diz respeito ao que retorna; aponta para a chegada de um estranho que é familiar. Esse retornante vem na forma e na força do espectro, que mesmo não sendo sensível, inteligível e muito menos visível, possui uma certa corporeidade, um devir-corpo do espectro, que resiste às oposições binárias da metafísica ( MORAES, 2020MORAES, Marcelo José Derzi. A força de Leci Brandão. In: LOPES, Wallace. (org.). Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba. Rio de Janeiro: Hexis, 2015.). Dessa forma, se a herança, enquanto repetição, opera pela lógica do discurso, pela lógica da linguagem, podemos dizer, com Derrida (2004DERRIDA, Jacques. Papel Máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004b.), que o herdeiro é aquele que interpreta, aquele que traduz o discurso; o herdeiro “discerne de maneira crítica, ele diferencia” ( DERRIDA, 2004DERRIDA, Jacques. Qu’est-ce que la deconstruction? Le Monde, 12 octobre 2004a. Disponível em: https://www.lemonde.fr/archives/article/2004/10/12/p-1930-2004-p-p-jacques-derrida-p-p-qu-est-ce-que-la-deconstruction-p_4305612_1819218.html.
https://www.lemonde.fr/archives/article/...
, p. 17), não é possível “confundir a escolha de uma herança com uma incorporação cega” ( DERRIDA, 2004DERRIDA, Jacques. Qu’est-ce que la deconstruction? Le Monde, 12 octobre 2004a. Disponível em: https://www.lemonde.fr/archives/article/2004/10/12/p-1930-2004-p-p-jacques-derrida-p-p-qu-est-ce-que-la-deconstruction-p_4305612_1819218.html.
https://www.lemonde.fr/archives/article/...
, p. 25).

Reafirmamos, então, que não podemos empreender nenhuma análise de algo que nos é contemporâneo, desconhecendo que ali está o passado. Roudinesco (2004) nos diz que “[...] existe ao mesmo tempo mais de um tempo no tempo do mundo”. E Derrida (1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.) nos traz, citando Hamlet, que “o tempo está fora dos eixos”. Esse tempo fora dos eixos, esse tempo disjunto, esse presente que traz em si o passado e o futuro, é o tempo de todas as coisas; é o tempo indecidível com que temos que lidar na nossa relação com as coisas, com o outro e com o outro que está em nós mesmos.

Portanto, compreendendo o caráter fantasmagórico da realidade, em todas as dimensões da sociedade, sobretudo, na dimensão política, a lógica da espectralidade, muitas vezes, determina as práticas e ações políticas ( MORAES, 2020MORAES, Marcelo José Derzi. A força de Leci Brandão. In: LOPES, Wallace. (org.). Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba. Rio de Janeiro: Hexis, 2015.). Mais que isso, o espectro, ao mesmo tempo em que não é uma presença, não tem substância, possui uma materialidade 6 6 Materialidade não equivale à presença em Derrida. , porque participa da política 7 7 Em muitas culturas não-ocidentais, os antepassados participam das decisões políticas. É uma forma de entender a política a partir da ancestralidade ( MORAES, 2020; SANTOS, 2015). A política traz em si rastros de presenças. ( DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.). Trata-se de uma participação espectral, um “modo espectral, ou seja, está presente mas não é vista, está ausente mas está inscrita” ( MORAES, 2015MORAES, Marcelo José Derzi. A força de Leci Brandão. In: LOPES, Wallace. (org.). Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba. Rio de Janeiro: Hexis, 2015., p. 140), inscrita enquanto uma herança. O modo espectral, então, é um romper com a linearidade temporal, já que

[...] o próprio do espectro, caso isso exista, é que não se sabe se ele testemunha retornando de um vivo passado ou de um vivo futuro, pois a aparição já pode indicar o retorno de um espectro de um vivo prometido. Intempestividade ainda, e desajuste do contemporâneo” ( DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p. 136).

O espectro da colonialidade, que obsedia a sociedade brasileira, faz com que tenhamos a percepção das configurações do dia a dia como sendo naturais. No geral, não paramos para pensar que essas configurações poderiam se dar de outra maneira. Nas palavras de Mouffe (2015):

O que num determinado momento é considerado a ordem “natural” - juntamente com o “senso comum” que a acompanha - é o resultado de práticas sedimentadas, nunca a manifestação de uma objetividade mais profunda, externa às práticas que lhe dão forma. (...) Toda ordem hegemônica é passível de ser desafiada por práticas anti-hegemônicas, isto é, práticas que tentarão desarticular a ordem existente para instalar outra forma de hegemonia (MOUFFE, 2015, p. 17, grifo nosso).

Carla Rodrigues (2021RODRIGUES, Carla. Justiça e desconstrução: entre as rachaduras da lei. Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 139-150, 2012.), por sua vez, traz essa colonialidade como em termos de uma

[...] violência contemporânea como hauntologia da violência da empresa colonial europeia, que se perpetua - fantasmagórica - em práticas cotidianas que separam de modo crítico aqueles que só podem viver à margem da lei, como alvos da violência mantenedora/fundadora ( RODRIGUES, 2021RODRIGUES, Carla. Justiça e desconstrução: entre as rachaduras da lei. Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 139-150, 2012., p. 101).

Nesse sentido, “se há alguma coisa como a espectralidade, há razões para duvidar dessa ordem tranquilizadora dos presentes” ( DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p. 60). Questionamos, então, com o quilombola Nego Bispo 8 8 Quilombola piauiense Antônio Bispo dos Santos. (2015), “como definir e/ou dimensionar o tempo? Ou seja, onde começam e terminam o passado e o presente e onde começa o futuro?” ( SANTOS, 2015RODRIGUES, Carla. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021., p. 19).

Esse movimento de questionar cada situação dada na sociedade corresponde a um movimento de não naturalizar as situações. Trata-se de um movimento que nós, enquanto herdeiros do espectro da colonialidade, podemos fazer quando observamos as situações e nos posicionamos politicamente em relação a elas. Diz respeito a um questionamento que é movido por uma a curiosidade que nos desloca da passividade promovida pela violência colonial ( MORAES, 2021MORAES, Marcelo José Derzi. A desconstrução da colonialidade em Paulo Freire. Revista Multidisciplinar, Humanidades e Tecnologias (FINON), v. 32, n. 1, p. 178-209, 2021.). Todo esse movimento de questionamento do que está dado de forma hegemônica nos proporciona, entre outros direcionamentos, um exercício de não naturalização das exclusões, de não naturalização das hierarquias. Essa não naturalização nos move a “dar prosseguimento a uma necessária desconstrução da colonialidade [...] a possibilidade de pensarmos de modo mais amplo e radical a experiência de nossa cultura, de nossa sociedade e de nosso tempo” ( HADDOCK-LOBO, 2020HADDOCK-LOBO, Rafael. A desconstrução. Revista Cult (Dossiê Jacques Derrida), São Paulo, n. 195, p. 25-29, 2015., p. 102).

A desconstrução da colonialidade

Diante do espectro da colonialidade, faz-se necessário empreender um caminho de desconstrução (muito diferente de destruição). Trata-se de arguir os modelos estabelecidos, entender seus discursos e estabelecer uma relação de diálogo aberto com esses discursos, em que ninguém é detentor da verdade, ninguém tem as respostas; mas todos abraçam a responsabilidade de desnaturalizar as hierarquias presentes na nossa estrutura social.

A noção de desconstrução move todo o pensamento de Derrida. Só essa posição relevante da desconstrução nos escritos de Derrida já justificaria que nos detivéssemos um pouco em falar sobre esta noção. Mas, além disso, quando pensamos e escrevemos sobre justiça em uma perspectiva derridiana, precisamos atentar para a forma imbricada com que Derrida (2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.) trata esses dois significantes, desconstrução e justiça. Carla Rodrigues, em relação a isso, nos diz:

Observo que Derrida promove uma ligação tão indissociável entre desconstrução e justiça que se torna tarefa impossível abordar sua noção de justiça sem explorar as mais diferentes maneiras pelas quais ele explica o pensamento da desconstrução, que assume os contornos de uma “estratégia de ruptura” ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 140).

Considerando essa ligação entre desconstrução e justiça, trazemos, nesse momento do texto, parte do que Derrida nos legou desse quase-conceito 9 9 Os ‘quase-conceitos’ são unidades de simulacro, ‘falsas’ propriedades verbais, nominais ou semânticas, que não se deixam mais compreender na oposição filosófica (binária) e que, entretanto, habitam-na, opõe-lhe resistência, desorganizam-na, mas sem nunca constituir um terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma solução na forma da dialética especulativa” ( DERRIDA, 2001b, p. 49). . O autor nos diz que o termo “desconstrução” ( déconstruction) veio a ele quando traduzia Heidegger 10 10 Na tradução da obra de Heiddegger (2004), Ser e Tempo, do alemão para o francês. . Especificamente quando buscava traduzir as palavras destruktion ou abbau, vocábulos cujos sentidos estão relacionados à arquitetura tradicional dos conceitos fundadores da metafísica ocidental ( DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Carta a um amigo japonês. In: OTONI, Paulo (org.). Tradução: a prática da diferença. Campinas: Editora da Unicamp/FAPESP, 1998. p. 19-25.). Ao consultar um dicionário de língua francesa - Le Littré - , o filósofo encontra como sentido para déconstruction o de “desarticular as partes de um todo”. Derrida se depara com um sentido que presume a existência de estruturas. No entanto, “desconstrução”, por tratar-se de “desfazer, decompor, dessedimentar as estruturas (todas as espécies de estruturas, linguísticas, ‘logocêntricas’, ‘fonocêntricas’ ...” ( DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Carta a um amigo japonês. In: OTONI, Paulo (org.). Tradução: a prática da diferença. Campinas: Editora da Unicamp/FAPESP, 1998. p. 19-25., p. 21) é também antiestruturalista.

Derrida (1998DERRIDA, Jacques. Carta a um amigo japonês. In: OTONI, Paulo (org.). Tradução: a prática da diferença. Campinas: Editora da Unicamp/FAPESP, 1998. p. 19-25.) declara a impossibilidade de definição do significante “desconstrução” nas várias línguas. Nas palavras do filósofo magrebino, “[...] as coisas mudam de um contexto para o outro” ( DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Carta a um amigo japonês. In: OTONI, Paulo (org.). Tradução: a prática da diferença. Campinas: Editora da Unicamp/FAPESP, 1998. p. 19-25., p. 19). O processo de tradução 11 11 Em Derrida (2009), tradução não se restringe ao ato de reescrever em outra língua algum conteúdo. Toda leitura constitui uma tradução, mesmo que seja na mesma língua. A tradução para Derrida é uma im-possibilidade necessária, sempre uma traição, sempre uma metáfora e uma metonímia do enunciado que não possui um sentido original, mas que, a cada leitura, mesmo que no mesmo idioma, apresenta inúmeras possibilidades de sentidos. , segundo Derrida (2009DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.), diz respeito a uma necessidade im-possível 12 12 O “im-possível” derridiano não está relacionado ao “não possível”. Trata-se de um indecidível no sentido de que foge à lógica binária metafísica, em que o “impossível” se opõe ao “possível”. Sendo assim, o “im-possível” não se refere ao que não poderá acontecer. Diz respeito ao por vir. Algo que, sendo necessário, mesmo que nunca se presentifique, impõe-no uma ação, uma responsabilidade. , porque a cada tradução os sentidos são suplementados. Mesmo que na mesma língua, a cada vez que tentamos definir os sentidos de um significante, as palavras usadas nessa tentativa são elas mesmas passíveis de serem desconstruídas. A impossibilidade da tradução e da definição segura dos sentidos, talvez, tenha levado Derrida a apresentar o termo “desconstrução” por aquilo que esse termo não significa, tentando trazer alguma compreensão pela estratégia da negação. Sendo assim, ele nos diz que desconstrução não é destruição, desconstrução não é uma metodologia, desconstrução não é nem ao menos um conceito. A desconstrução não propõe uma simples contraposição à metafísica e seus pares opostos e hierarquizados (significante/significado, presença/ausência, racional/irracional, homem/mulher, ser humano/animal, razão/loucura, original/cópia, ...) ( DERRIDA, 1973DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo: Perspectivas, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.). E ainda, desconstrução não está relacionado a um modelo a ser seguido, visto que os próprios modelos estão sujeitos a um questionamento desconstrutor. Também não é um processo de decomposição para se chegar ao elemento indivisível, em direção a uma origem indecomponível ( DERRIDA, 1998DERRIDA, Jacques. Carta a um amigo japonês. In: OTONI, Paulo (org.). Tradução: a prática da diferença. Campinas: Editora da Unicamp/FAPESP, 1998. p. 19-25.).

Queremos pensar a desconstrução nesse momento de nosso texto como sendo uma estratégia de possibilidades. Uma estratégia positiva e, por mais paradoxal que possa parecer, queremos pensar a desconstrução como sendo um processo de construção. A desconstrução se constitui como um caminho interminável e inevitável de questionamentos, de desconstruções de verdades estabelecidas e que são entendidas como imutáveis. Trata-se de um duplo movimento. São eles: inversão de hierarquias e descentramento de ideias. Esse duplo movimento possibilita o processo de desconstrução dos binarismos ( DERRIDA, 1973DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo: Perspectivas, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.). Não se trata de retirar o que está no centro e centralizar o que está à margem, em uma inversão dos polos de poder de uma hierarquia; trata-se de entender os centros como não fixos e não únicos.

No sentido derridiano da palavra acontecimento, como algo da ordem do imprevisível, do incalculável, do não teleológico, do não passível de controle; podemos afirmar que desconstrução é acontecimento ( DERRIDA, 1973DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo: Perspectivas, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.). E, segundo Derrida, um acontecimento acontece, chegando sem avisar, sem mandar recado, de forma imprevisível, movido pela força do devir. Nesse sentido, cada acontecimento de desconstrução é singular. A desconstrução acontece diante de aporias 14 14 Cf. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-03/mutirao-busca-incluir-nome-do-pai-em-certidoes-de-nascimento , abrindo possibilidades ao por vir de pensamentos e ideias anteriormente condicionados pelo fechamento, pelo impedimento ( MORAES, 2010MARCONDES, Danilo. A teoria dos atos de fala como concepção pragmática de linguagem. Filosofia Unisinos, v. 7, n. 3, p. 217-230, 2006.). Sendo assim, seria um movimento de não mais pensar um presente sob controle e suscetível de ser apenas descrito. Seria, segundo Dirce Solis, entender que:

É este presente mesmo conflituoso, em crise ou não, que se apresenta como passível de análise crítica e de desconstrução. É nesse sentido que a desconstrução é afirmativa, pois, o que interessa é o que está estrutural e necessariamente por vir. Afirmar o ad-vir, o à venir, eis a tarefa desconstrutora ( SOLIS, 2017SOLIS, Dirce Eleanora Nigro. A democracia banida: reflexões a partir da noção de democracia por vir de Jacques Derrida. In: CARRARA, Ozanan Vicente. (org.). A democracia e seus desafios em tempos de crise. Passo Fundo: Editora IFIBE. 2017. p. 191-244., p. 195, grifo da autora).

Uma vez estabelecido um questionamento a respeito do que ocupa o lugar de verdade, não se pode mais retornar ao que era antes desse movimento. Ainda com Dirce Solis temos que,

Desconstruir indica, também, como o quer Derrida, a impossibilidade de voltar atrás ou reconstruir de maneira idêntica à anterior. E a eficácia da desconstrução estaria exatamente no fato de haver um deslocamento sem possibilidade de retorno de modo idêntico ao ponto ou forma inicial ( SOLIS, 2009SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significados. Brasília: UNB, 2015., p. 20-21).

Queremos lembrar que Derrida, em sua trajetória da desconstrução, dedicou seus escritos a questionar a proeminência do linguístico, a autoridade logocêntrica. Sendo assim, quando ele demonstra o quão paradoxal é o testemunho, a ação de dizer um acontecimento, ele está confrontando mais uma vez o império do Logos. São paradoxos que nos conduzem ao entendimento de que a linguagem não acessa uma realidade transcendental e única, a linguagem constrói uma realidade que pode ser a todo momento interpelada como não sendo a representação fiel de um acontecimento. Podemos afirmar, então, que contar é uma ação desconstrutora.

Nessa linha, quando Derrida (1973DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo: Perspectivas, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973., p. 194) afirma que “não há nada fora do texto [ il n’y a pas de hors-texte] , ele não está se firmando como um filósofo cujo pensamento é o pensamento da linguagem. A sua obra é um tratado contra a centralidade linguística. A filosofia de Derrida se desenvolveu apontando as limitações da retórica, as limitações da linguística. Seus escritos, embora profundos nas análises que empreende do uso das línguas, indicam que a autoridade última não está no linguístico. Nesse caminho, Derrida amplia o sentido de linguagem e introduz as noções de traço, de texto e de marca. Segundo ele,

A marca, antes do mais, não é antropológica; é pré-linguística; é a possibilidade da linguagem, e está sempre presente quando há relação com uma outra coisa ou com o outro. Para isso, a marca não necessita de linguagem ( DERRIDA; FERRARIS, 2006DERRIDA, Jacques; FERRARIS, Maurizio. O gosto do segredo. Roma: Fim de século , 2006., p. 130).

Quando Derrida se referiu ao logocentrismo tinha sua estratégia voltada não para o Logos em si, mas para a centralidade do Logos. Além disso, tratava-se da desconstrução de um entendimento ocidental desse Logos, um entendimento em que ele é revestido de autoridade - a autoridade do Logos. Assim como a desconstrução de uma compreensão de que a fala se sobrepõe à escrita, por ser entendida como a presença, a verdade, a manifestação da alma ( DERRIDA, 1973DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo: Perspectivas, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.).

Quando nos referimos a uma proposta de desconstrução da colonialidade, estamos querendo pensar, ao mesmo tempo, a desconstrução de um discurso. Estamos querendo trazer um pensamento que interpela a linguagem, enquanto um operador da colonialidade. Seguir essa linha de pesquisa, para pensar o acesso ao ensino público universitário, é buscar perceber quais os traços do discurso da colonialidade espectram esse processo e, a partir desse reconhecimento, questionar as práticas institucionais que ainda hoje reverberam uma hierarquia que se constitui a partir da tentativa de apagamento do outro.

Entendendo a impossibilidade de uma descolonização total das nossas práticas, dos nossos discursos, enquanto país do sul do mundo, historicamente marcado por processos tais como a colonização e a escravidão, as políticas afirmativas confrontam o modus operandi característico de um entendimento de que o acesso à universidade seria destinado a apenas uma parcela da população. Trata-se da atitude de não aceitação do discurso de que a universidade seria lugar para uns e não lugar para outros, em um movimento de desconstrução da colonialidade como uma “desobediência”, “na medida em que somos movidos a duvidar, a questionar, a não obedecer aos discursos e as falas dominantes que nos querem fazer aceitar sem questionar” ( MORAES, 2021MORAES, Marcelo José Derzi. A desconstrução da colonialidade em Paulo Freire. Revista Multidisciplinar, Humanidades e Tecnologias (FINON), v. 32, n. 1, p. 178-209, 2021., p. 204).

O filósofo Rafael Haddock-Lobo tem trazido em seus textos o movimento de desconstrução da colonialidade, em confronto com o espectro da colonialidade, como um espectro que reitera

[...] um sistema fechado e violento de pensamento, voltando-se contra toda e qualquer possibilidade de pensamento diferente, excluindo qualquer contradição e acreditando em sua efetividade. E é assim que surge a ideia de desconstrução, um gesto de pensamento que pretende mostrar a violência autoritária de um sistema fechado que se apresenta como única maneira de compreensão do real ( HADDOCK-LOBO, 2015HADDOCK-LOBO, Rafael. A desconstrução. Revista Cult (Dossiê Jacques Derrida), São Paulo, n. 195, p. 25-29, 2015., p. 28).

Desconstrução que, segundo nos traz Derrida,

Sempre tem como alvo revelar a existência de articulações e fragmentações ocultas em totalidades supostamente monádicas, num “sistema metafórico binário”, ou em “modelos metafóricos baseados em modelos binários” ( DERRIDA, 2004bDERRIDA, Jacques. Papel Máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004b., p. 94).

Nesse sentido, um caminho para a desconstrução da colonialidade, segundo Rafael Haddock-Lobo, seria

[...] apresentar através desses quase-conceitos um sistema aberto, que, não se fechando em si mesmo, não pretenda dar conta do real, ou seja, não esgotar as possibilidades de interpretação do real, pois sempre será possível que se conceba outras e outras maneiras de o pensamento relacionar-se com a realidade ( HADDOCK-LOBO, 2015HADDOCK-LOBO, Rafael. A desconstrução. Revista Cult (Dossiê Jacques Derrida), São Paulo, n. 195, p. 25-29, 2015., p. 28).

Trata-se de “considerar que só será possível operar em direção a novas hegemonias desconstruindo discursos hegemônicos” ( LOPES, 2018LOPES, Alice Casimiro. Normatividade e intervenção política: em defesa de um investimento radical. In: LOPES, Alice Casimiro; MENDONÇA, Daniel de. (org.). A Teoria do Discurso de Ernesto Laclau: ensaios críticos e entrevistas. São Paulo: Annablume, 2015b. p. 117-147., p. 101). Seria aceitar que todos os fazeres que se hegemonizam excluem outras possibilidades. Uma “verdade” que se estabelece não se estabelece por ser natural e única. Ela se estabelece, porque se institui a partir de relações de poder presentes na sociedade, relações de poder que estabelecem uma normatização de todos os processos sociais. Essa normatização diz respeito a uma estratégia política que objetiva “invisibilizar o poder e a contingência associada à sua constituição, apresentando-se como necessidade e universalidade” ( LOPES, 2015bLOPES, Alice Casimiro. Normatividade e intervenção política: em defesa de um investimento radical. In: LOPES, Alice Casimiro; MENDONÇA, Daniel de. (org.). A Teoria do Discurso de Ernesto Laclau: ensaios críticos e entrevistas. São Paulo: Annablume, 2015b. p. 117-147., p. 122). Dessa forma, a normatização visa tornar imperceptível que não existe nada de essencial na norma, não existe origem das normas. As normas não são inevitáveis, nem naturais; elas não estão prontas desde sempre. A normatização vai se efetivando, na proporção em que a norma vai sendo acionada e reiterada.I mportante destacar que a normatização, que visa se fazer natural, estabelece-se por decisões políticas. Essas decisões, por sua vez, “entre diferentes possibilidades normativas não têm nenhum fundamento necessário, nenhum conteúdo ético obrigatório” ( LOPES, 2015bLOPES, Alice Casimiro. Normatividade e intervenção política: em defesa de um investimento radical. In: LOPES, Alice Casimiro; MENDONÇA, Daniel de. (org.). A Teoria do Discurso de Ernesto Laclau: ensaios críticos e entrevistas. São Paulo: Annablume, 2015b. p. 117-147., p. 122). São as relações de poder que constituem as decisões - que se dão em terreno indecidível, no sentido de que não existem bases seguras e imutáveis que as justifiquem ( LOPES, 2015aLOPES, Alice Casimiro. Por um currículo sem fundamentos. Linhas Críticas, v. 21, p. 445-466, 2015a. ) -, as quais escolhem umas possibilidades em detrimento de outras.

As relações de poder estão espalhadas por toda sociedade. Os efeitos da normatização também estão em todos os lugares e em todas as relações sociais, mesmo nas relações de oposição às normas. Esse poder é relacional e difuso no tecido social, fazendo com que nada escape ao poder da normatização, ainda que nos vinculemos ao questionamento da norma. Todas as reações à normatização fazem parte da norma. A normatividade nos constitui, porque estamos sempre em relação com a alteridade ( BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.). Nesse sentido, a normatização é sempre performativa, entendendo-se performatividade como o potencial que o enunciado tem de fazer acontecer eventos ( MARCONDES, 2006MACEDO, Elizabeth. A teoria do currículo e o futuro monstro. In: LOPES, Alice Casimiro; SISCAR, Marcos. (org.). Pensando a política com Derrida: responsabilidade, tradução, porvir. São Paulo: Cortez, 2018. p. 153-178.). Não há como empreender apenas uma descrição neutra como se essa estivesse desvinculada da normatização. “Não existem duas ordens no mundo, uma normativa e outra descritiva. Tais dimensões se interpenetram, pois não existem fatos sem significação, descrição sem valores” ( LOPES, 2015bLOPES, Alice Casimiro. Por um currículo sem fundamentos. Linhas Críticas, v. 21, p. 445-466, 2015a. , p. 123). Sendo assim, a todo momento, mesmo que se deseje não reconhecer ou que se queira apagar, o que ocorre são tomadas de decisões que excluem possibilidades e que se dão dentro da dinâmica da norma.

Sendo assim, sempre estaremos caminhando com um “como se” sobre o qual Derrida (2003aDERRIDA, Jacques. Políticas da amizade. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras Editores S.A., 2003b.) discorre em A universidade sem condição. A desconstrução se daria na possibilidade da problematização do que se apresenta como inquestionável, problematização do que se hegemonizou nas práticas sociais. Não se trata de destruição porque, nos passos de Derrida, não estamos falando de desqualificação e sim de considerar outros caminhos, outras interpretações que é o que nos propicia o pensamento do como se. Diz respeito a aceitar que, tal qual os desenhos de que Derrida (2010DERRIDA, Jacques. Memória de cegos: o auto-retrato e outras ruínas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. ) trata em Memórias de cego, dos cegos com os braços estendidos para frente, nós também estamos em uma tentativa de antecipação, traçando caminhos singulares que se modificam a cada passo, porque não somos capazes de determinar o resultado e nem mesmo definir com certeza e antecedência quais deverão ser nossas ações. Trabalhamos como se conhecêssemos o caminho, mas nos submetemos ao fracasso de todo cálculo e de toda verdade. Dessa forma, nas palavras de Alice Lopes,

[...] é possível também dizer que talvez e como se são operadores que nos permitem manter a indecidibilidade na decisão, nos afastando da crença em uma interpretação sem falta, em uma compreensão que não suponha a vinda do outro, ou que tencione deixar de lado as impurezas da retoricidade e das particularidades e com isso bloqueie a possibilidade do acontecimento ( LOPES, 2018LOPES, Alice Casimiro. Normatividade e intervenção política: em defesa de um investimento radical. In: LOPES, Alice Casimiro; MENDONÇA, Daniel de. (org.). A Teoria do Discurso de Ernesto Laclau: ensaios críticos e entrevistas. São Paulo: Annablume, 2015b. p. 117-147., p. 111).

Ainda pensando o como se derridiano, segundo Paulo César Duque-Estrada,

O que se dá na língua por meio de um relato (ficcional, ou de qualquer outra ordem, científico, jurídico, filosófico, etc.) se dá em função de uma estrutura geral de ficcionalidade. Derrida se refere a essa estrutura geral como aquela de um “ como se”, um “ como se” que opera em toda língua. É em função dessa estrutura - e aqui o relato de ficção vale como paradigma para ilustrar essa situação que, no entanto, frisemos bem, vale para todo relato - que o quer que se apresente no relato, em verdade, não se apresenta: a “apresentação” (que propositalmente escrevemos agora entre aspas) só se dá na força de um “como se”, de um “como se fosse assim” (DUQUE-ESTRADA, 2004, p. 47, grifo do autor).

Se a verdade não pode ser apresentada, como já vimos, não sendo dada, não estando presente, terá sempre de ser “ inventada”, ou seja, terá necessariamente de se dar pela força ou à luz de um “ como se” (DUQUE-ESTRADA, 2004, p. 49).

Em Força de Lei, Derrida desqualifica o argumento a favor de uma realidade que se possa acessar pela linguagem. Para ele,

[...] a tarefa de uma memória histórica e interpretativa está no cerne da desconstrução. Não é apenas uma tarefa filológico-etimológica, ou uma tarefa de historiador, mas a responsabilidade diante de uma herança que é, ao mesmo tempo, a herança de um imperativo ou de um feixe de injunções ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018., p. 36-37 grifo do autor).

Se o que temos em cada situação singular não pode ser apreendido a não ser pelo mecanismo de um como se, nós nos movemos - o mesmo acontece com as leis - em um terreno de indecidibilidade. Não existem certezas, é sempre precipitação, é sempre uma tentativa inalcançável de justiça. É diante disso que entra o talvez derridiano ( DERRIDA, 2003bDERRIDA, Jacques. Políticas da amizade. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras Editores S.A., 2003b.) . No que diz respeito ao talvez, temos que também o talvez para a desconstrução é uma perspectiva de indecidibilidade, no entanto, ponto de não estagnação, mas sim de movimento” ( FUÃO; SOLIS, 2018FUÃO, Fernando Freitas; SOLIS, Dirce Eleanora. Da dimensão ético-política e sua relação com a democracia por vir na arquitetura. PIXO - Revista de arquitetura, cidade e contemporaneidade, v. 2, n. 5, p. 16-25, 2018.DOI: DOI: https://doi.org/10.15210/pixo.v2i5.14448 . Acesso em: 20 jan. 2022
https://doi.org/10.15210/pixo.v2i5.14448...
, p. 24). Nesse sentido, para se pensar uma sociedade mais justa, mais democrática, deve-se “engendrar seus compromissos reais com a perspectiva inclusiva na consideração com o Outro” ( FUÃO; SOLIS, 2018FUÃO, Fernando Freitas; SOLIS, Dirce Eleanora. Da dimensão ético-política e sua relação com a democracia por vir na arquitetura. PIXO - Revista de arquitetura, cidade e contemporaneidade, v. 2, n. 5, p. 16-25, 2018.DOI: DOI: https://doi.org/10.15210/pixo.v2i5.14448 . Acesso em: 20 jan. 2022
https://doi.org/10.15210/pixo.v2i5.14448...
, p. 24). Dito de outra forma, a Justiça não está presa ao Direito, enquanto regras definidas, regras que se mostram acabadas e prontas para serem aplicadas. A justiça é sempre da ordem do por vir, é sempre movimento.

Essa im-possibilidade necessária de apropriação se dá porque “não há, é certo, evento que não seja precedido e seguido pelo seu próprio talvez, e que não seja tão único, singular, insubstituível quanto a decisão à qual frequentemente se o associa, nomeadamente em política” ( DERRIDA, 2003bDERRIDA, Jacques. Políticas da amizade. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras Editores S.A., 2003b., p. 79), incluindo aqui também as decisões jurídicas. Esse talvez tem o potencial de impedir qualquer possibilidade de nos referirmos a um determinado tempo sem que seja “duvidando da sua presença, aqui agora, e da sua singularidade indivisível” ( DERRIDA, 2003bDERRIDA, Jacques. Políticas da amizade. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras Editores S.A., 2003b., p. 86). “O talvez é também uma forma de conectar o acontecimento simultaneamente à experiência do possível e do impossível” ( LOPES, 2018LOPES, Alice Casimiro. Normatividade e intervenção política: em defesa de um investimento radical. In: LOPES, Alice Casimiro; MENDONÇA, Daniel de. (org.). A Teoria do Discurso de Ernesto Laclau: ensaios críticos e entrevistas. São Paulo: Annablume, 2015b. p. 117-147., p. 111). Trata-se de aceitar que as verdades “são múltiplas, multicoloridas, contraditórias. Então, não há uma verdade em si, mas para além disso, mesmo de mim para mim, a verdade é plural” ( DERRIDA, 2013DERRIDA, Jacques. Esporas: Os estilos de Nietzsche. Tradução de Rafael Haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: NAU, 2013., p. 75).

Sendo assim, em uma dinâmica da normatividade, como se existissem verdades que são da ordem do natural, do exclusivo e do inevitável, naturalizar as diferenças de acesso, naturalizar uma hierarquia entre as pessoas na sociedade, como se não houvesse tensões, como se as decisões fossem necessárias e por isso aceitáveis com tranquilidade, atende a intenções políticas e está relacionado ao movimento da norma. Quanto mais afirmamos as hierarquias como inevitáveis e justificáveis, mais fortalecemos as hegemonias, que estão relacionadas ao espectro da colonialidade. A colonialidade que divide a sociedade entre os que têm acesso aos benefícios e aqueles que, além de não terem as mesmas possibilidades de acesso, têm a função de trabalharem para manter a estrutura que os exclui ( PINTO; LOPES, 2021bPINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Espectros e heranças: operando com a desconstrução na BNCC. In: SILVA, Fabiany de Cassia Tavares; NOVAES, Luís Carlos. (org.). Conhecimento em ação e a base nacional comum curricular. Campo Grande: Editora Oeste, 2021a.).

A perspectiva derridiana da desconstrução diz respeito a um movimento de olhar para as diferenças de acesso hegemonizadas na sociedade, buscando compreender a articulação presente nessa normatividade. Uma normatividade que prescinde de explicação, porque se impõe como uma verdade inquestionável, que é muitas vezes aceita sem questionamentos na sociedade. Além da norma ser a todo momento repetida, ela se mantém como única possibilidade, apagando as relações de poder nos contextos em que se estabelece. Dessa forma, ideias como meritocracia, oportunidades “iguais” para todos, processo seletivo “justo”, entre outras ideias, cujos sentidos se disseminam, são tidas como inevitáveis e inquestionáveis.

A normatividade não diz respeito a algo estático e sim a algo em movimento. Isso se dá, porque a dinâmica da norma acontece no movimento incessante de normatizar. Essa normatização, no que diz respeito ao acesso ao Ensino Superior, efetiva-se por meio da repetição de um discurso que afirma que as pessoas alcançam as oportunidades na proporção de seu esforço, de seu empenho. E ainda o discurso de que o Ensino Superior, mormente em uma universidade pública, não deve constar nos objetivos de pessoas pobres, negras ou deficientes. Esse discurso é recorrente, mesmo que não de forma verbalizada, nas crenças tanto da população pobre quanto da parcela mais abastada da população. É um discurso que se hegemonizou na sociedade e é naturalizado como verdade, é naturalizado como uma construção social a partir de relações de poder que o mantém no lugar de certeza. A repetição se dá para impedir o deslocamento que sempre traz desconforto e quebra a tranquilidade do status quo.

No entanto, considerando a im-possibilidade da tradução de qualquer texto ( DERRIDA; FERRARIS, 2006DERRIDA, Jacques; FERRARIS, Maurizio. O gosto do segredo. Roma: Fim de século , 2006.), os resultados da normatividade não são passíveis de serem pré-definidos. A normatividade intenciona manter a norma, mas algo sempre escapa à norma, porque a norma não é capaz de impedir os acontecimentos. A norma é uma estrutura fraturada que normatiza, mas que, por mais que tenha o objetivo de saturar, não é saturante, é uma estrutura aberta que, mesmo fraturada, produz normatização ( PINTO; LOPES, 2021bPINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Espectros e heranças: operando com a desconstrução na BNCC. In: SILVA, Fabiany de Cassia Tavares; NOVAES, Luís Carlos. (org.). Conhecimento em ação e a base nacional comum curricular. Campo Grande: Editora Oeste, 2021a.). Normatizar é, então, apagar a possibilidade do fracasso da norma ( MACEDO, 2018LOPES, Alice Casimiro. Sobre a decisão política em terreno indecidível. In: LOPES, Alice Casimiro; SISCAR, Marcos. (org.). Pensando a política com Derrida: responsabilidade, tradução, porvir. São Paulo: Cortez, 2018. p. 83-116.). Normatizar é esconder também que a norma se faz necessária, porque a normatização é passível de falha. Sendo assim, a repetição constante é imprescindível devido ao não funcionamento pleno da norma (LOPES, 2018; 2015b). Nesse sentido, é por isso que a norma precisa ser reiterada, para alcançar o efeito de normatizar.

É nesse contexto hierarquizado, sustentado por discursos normativos, que entendemos as políticas afirmativas como um investimento que precisa estar constantemente sendo reformulado e que é incapaz de estabelecer caminhos seguros. Um investimento em uma busca por uma justiça que nunca se concretiza, porque é da ordem do por vir.

A Justiça por vir: uma responsabilidade do agora

O Direito, a legislação, não tem o potencial de alcançar todas as situações específicas de nenhum contexto, pois, na dinâmica social, essas situações são vivas e nos surpreendem a todo momento. “Na universalidade está implícito um apagamento da singularidade, porque o singular só se justifica ou se legitima se tiver um caráter universalizável” ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 145). Dessa forma, a generalização das leis se contrapõe à justiça, porque “ética e justiça só podem ser pensadas como abertura à singularidade do outro enquanto outro... vem do reconhecimento da alteridade a impossibilidade de afirmar que ‘sou justo’” ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 146-147). Para Derrida (2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.), em vez de “justo” pode se dizer “legal” ou “legítimo”, porque a justiça será sempre uma justiça por vir, ela nunca será plena, devido à sua natureza de relação com o outro e à infinitude de singularidades.

Muitas vivências no PVC 21290 - e acreditamos, em todos os pré-vestibulares sociais país afora - poderíamos trazer aqui nesse texto para articular com a afirmação de que o Direito, a legislação, não tem o potencial de alcançar inúmeras situações singulares trazidas por estudantes desses cursos. As mais recorrentes dizem respeito à exigência de documentação referente à paternidade do candidato. Em um país em que, apenas no intervalo de um ano (de janeiro de 2021 a janeiro de 2022), 168 mil crianças foram registradas sem o nome do pai na Certidão de Nascimento, segundo dados da Agência Brasil 14 14 Cf. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-03/mutirao-busca-incluir-nome-do-pai-em-certidoes-de-nascimento , falas como: “Não tenho ideia de onde meu pai está” ou “Nunca convivi com meu pai. Como vou pedir cópia de documentos dele?”, e ainda “Não moro com meus pais. Eles são apenas nomes na minha identidade”, “Meu pai não quer dar o documento, porque acha que é pra abrir processo de pensão” e até mesmo “Eu e meu padrasto brigamos e minha mãe disse que não vai me dar documento nenhum” não deveriam nos surpreender. Essas falas nos trazem um transbordar das questões sociais. Um país em que os Ministérios Públicos precisam organizar mutirões para encontrar e trazer pregenitores, a fim de que sejam incluídos nos registros de seus filhos, não é difícil concluir que muitos deles cujos nomes lá estão não trazem para si as implicações que deveriam advir dessa paternidade. Sendo assim, os sentidos referentes à questão da paternidade se disseminam em uma infinidade de possibilidades impossíveis de serem contidas e contempladas por um artigo de lei, sem que sejam considerados esses dados.

Além das questões relacionadas à paternidade, os itens solicitados nos formulários das políticas afirmativas referentes à moradia também não são sempre óbvios. É suficiente uma rápida consulta ao site de suporte do Google Maps 15 15 Cf. https://support.google.com/maps para acessar os comentários de pessoas solicitando a inclusão de localidades que, por serem longínquas, não aparecem no mapa. Quando recebemos alunos e alunas que nos dizem coisas como “Minha casa não tem endereço e está fora do alcance do Google Maps”, “Minha casa aparece com endereços diferentes nos documentos” ou ainda falas do tipo “Meu tio cedeu a casa pra gente morar, mas disse que não vai assinar a declaração de cessão, porque tem medo de a gente tirar a casa dele”, percebemos que, em um país de tantas desigualdades, moradia, para muitos, não é algo facilmente comprovado por documentos. Essas e outras questões, inclusive as referentes a recursos para enviar, via entrega postal, os documentos para as comissões de cotas, constrange-nos a aceitar que a Justiça é sempre uma Justiça por vir.

A denominação justiça por vir refere-se ao entendimento de que a justiça é da ordem do im-possível. Uma justiça que, mesmo que nunca se presentifique, nunca se realize completamente, não se trata de uma ficção ou de uma ilusão, porque nos impõe uma responsabilidade, cobra-nos um posicionamento, uma ação. Trata-se de um investimento radical 16 16 Investimento radical” é o termo usado pela pesquisadora da área de currículos, profa. Dra. Alice Casimiro Lopes, para denominar a atitude de responsabilidade de todos que trabalham na educação, frente ao entendimento de educação como algo da ordem do incalculável, do não teleológico, do imprevisível. (2015b), que se faz necessário, porque não estamos no controle. Importante destacar que lidar com o que podemos dominar, com o que podemos calcular, com certezas, não é investir, não pressupõe um envolvimento radical; já está dado. O investimento radical diz respeito à decisão política de entender que, apesar de não podermos fugir da norma, precisamos radicalizar as nossas ações, porque a força está no deslocamento. A justiça, por ser da ordem do im-possível, exige do Direito e de todos que escrevem e buscam cumprir a lei um investimento radical, uma decisão política de trabalhar por uma justiça que, embora não seja utópica, estará sempre no por vir. Como nos diz Derrida,

Em certos contextos, a “utopia”, a palavra em todo caso, se deixa associar facilmente demais ao sonho, à desmobilização, a um impossível que compele à renúncia de preferência à ação. O “impossível” de que muitas vezes falo não é utópico, ao contrário, dá o movimento mesmo ao desejo, à ação, à decisão, sendo a figura mesma do real. Ele tem sua solidez, proximidade, urgência ( DERRIDA, 2004bDERRIDA, Jacques. Papel Máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004b., p. 325).

Nesse sentido, a indecidibilidade e a aporia traduzidas nos escritos de Derrida como sendo um talvez que deve ser inserido antes de qualquer enunciado, antes de qualquer decisão, são condições para se pensar a possibilidade im-possível de justiça. Como nos diz o autor,

[...] não há categoria mais justa para o por vir do que a do “talvez” (...) Porque um possível que fosse apenas possível (não impossível), um possível seguramente e certamente possível, de antemão acessível, seria um mau possível, um possível sem por vir, um possível já posto de lado, se assim se pode dizer, seguro da vida. Seria um programa ou uma causalidade, um desenvolvimento, um desenrolar sem evento. (...) O que seria um porvir se a decisão fosse programável e se o acaso, se a incerteza, se a certeza instável, se a insegurança do “talvez” aí não se suspendesse à abertura do que vem, ao evento mesmo, nele e com o coração nas mãos? O que daria ainda por vir, se a insegurança, se a segurança limitada do talvez não retivesse o seu sopro numa “época”, a fim de deixar aparecer ou de deixar vir o que vem, para abrir, justamente, disjuntando necessariamente uma certa necessidade da ordem, uma concatenação das causas e dos efeitos? Interrompendo-a, nela marcando muito simplesmente a interrupção possível? Esta suspensão, a iminência de uma interrupção, pode-se chamar-lhe o outro, a revolução ou o caos, em todo o caso o risco de uma instabilidade ( DERRIDA, 2003bDERRIDA, Jacques. Políticas da amizade. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras Editores S.A., 2003b., p. 42, grifo do autor).

É essa ideia do talvez, essa ideia de que “é preciso que não o saibamos exatamente, para que uma mudança advenha ainda”, de que “talvez o impossível seja a única chance possível de qualquer novidade, de qualquer nova filosofia da novidade” ( DERRIDA, 2003bDERRIDA, Jacques. Políticas da amizade. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras Editores S.A., 2003b., p. 45 e 49), e ainda que é “a experiência do impossível, que não pode ser senão uma experiência radical do talvez” ( DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p. 55), que possibilita pensarmos em uma justiça, ainda que seja uma justiça por vir.

Dessa forma, segundo Derrida (2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.), precisamos considerar “a possibilidade de uma justiça, ou de uma lei, que não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha relação com o direito, ou mantenha com ele uma relação estranha que pode tanto exigir o direito quanto excluí-lo” ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018., p. 8). Nas palavras de Carla Rodrigues (2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 140), “Derrida está problematizando esta ligação “natural” entre justiça e direito. A desconstrução sofre, argumenta Derrida. Sofre por não poder encontrar “critério seguro” para diferenciar justiça e direito”. Nesse caminho, afirmamos, com Derrida, a incapacidade do Direito de mediar a justiça, já que a todo momento leis são confrontadas na sua impotência frente a uma busca por justiça.

Fernando Fuão e Dirce Solis discorrem sobre

A aporia que se instaura toda vez que falamos em ético, justiça, hospitalidade pois cada uma dessas questões nos remete ao seu contrário. O ético é o domínio aporético, das im-possibilidades, enfim. Pensar em como ser justo, por exemplo, nos leva a imediatamente rever a conotação de injustiça que predomina, apesar do que se cunhou como justiça... ( FUÃO; SOLIS, 2018FUÃO, Fernando Freitas; SOLIS, Dirce Eleanora. Da dimensão ético-política e sua relação com a democracia por vir na arquitetura. PIXO - Revista de arquitetura, cidade e contemporaneidade, v. 2, n. 5, p. 16-25, 2018.DOI: DOI: https://doi.org/10.15210/pixo.v2i5.14448 . Acesso em: 20 jan. 2022
https://doi.org/10.15210/pixo.v2i5.14448...
, p. 21).

Considerando com Derrida (2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.) que “ Aporia é um não caminho. A justiça seria, desse ponto de vista, a experiência daquilo que não podemos experimentar” ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018., p. 30); porque a justiça é aporética. Não existem meios seguros, programas confiáveis, esquemas definidos que possam aplainar os caminhos para a Justiça. A cada resposta dada, a cada problema solucionado; novas questões são colocadas, novos problemas carecem de soluções que não são sempre encontradas nas diretrizes das leis. Assim, mais uma vez, ressaltamos que “a aporia de que toda mudança deve fazer prova. Ela é a aporia do talvez, a sua aporia histórica e política (...) a aporia na qual deve comprometer-se toda a teoria da decisão” ( DERRIDA, 2003bDERRIDA, Jacques. Políticas da amizade. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras Editores S.A., 2003b., p. 79). Destacando-se que, nas palavras do autor,

[...] não há por vir nem relação com a vinda do acontecimento sem experiência do “talvez”. O que tem lugar não deve se anunciar como possível ou necessário, de outra maneira sua irrupção de acontecimento é neutralizada de antemão. O acontecimento depende de um talvez que se afina não com o possível mas com o impossível ( DERRIDA, 2003aDERRIDA, Jacques. Políticas da amizade. Tradução de Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras Editores S.A., 2003b., p. 79).

Um talvez que aponta para um por vir. Um por vir que nunca se presentificará, mas que, como nos afirma o filósofo magrebino, “[...] o por vir prescreve aqui e agora tarefas inadiáveis, negociações urgentes” ( DERRIDA, 2004bDERRIDA, Jacques. Papel Máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004b., p. 335). Isso porque o “impossível” de que ele nos fala “não é o utópico, ao contrário, dá o movimento mesmo ao desejo, à ação e à decisão, sendo a figura mesma do real. Ele tem sua solidez, proximidade e urgência” ( DERRIDA, 2004bDERRIDA, Jacques. Papel Máquina. Tradução de Evando Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2004b., p. 335).

É importante, então, pensar a noção de Justiça por vir de Jacques Derrida, no sentido de que a expressão por vir, segundo Derrida (1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.), se impõe, enquanto responsabilidade, a um tempo “presente”, entendido aqui nessa não linearidade do tempo como

[...] uma passagem, certamente, e, portanto, um momento por definição transitório, mas cuja transição vem, se assim se pode dizer, do porvir. Ela provém disso que, por essência, ainda não proveio, sequer ainda veio, e que, portanto, fica por vir. A passagem desse tempo do presente vem do por vir para ir na direção do passado, na direção do ir, de retirar-se ( DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p. 42) 17 17 Derrida (1994, p. 42), em Espectros de Marx, antes de trazer esses sentidos para o tempo presente, trabalha os sentidos do presente a partir de Heidegger como “je-weilig (do momento, da época, cada vez etc), depois por esta indispensável atribuição como esta de weile (momento, momento que passa, lapso do tempo) ou de weilen (ficar, demorar-se, ficar, morar)”. .

Por vir diz respeito a algo que tem o potencial de questionar a possibilidade de um presente que constrói um futuro seguro e pré-determinado. Está relacionado a não existência de um presente sob controle e passível de ser descrito. No que diz respeito a uma Justiça por vir, trata-se da inexistência de uma justiça que possa ser acessada pelo Direito. Nesse sentido, seguindo com Derrida (2001aDERRIDA, Jacques. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001b. ), a justiça será sempre espectral. “O valor de espectralidade é por si próprio desconstrutor, uma força que atrapalha o crer na presença”. Nesse caminho, considerarmos Justiça, em uma noção derridiana, como algo espectral, é pensar a Justiça como um elemento, cuja “característica” principal, como todos os elementos espectrais, é a de que estes elementos “escapam à limitação da lógica da identidade e da presença. Atuando sempre no modo espectral, ou seja, não possuem uma origem e estão sempre presentes apesar de seu caráter de não-presença” ( MORAES, 2013MORAES, Marcelo José Derzi. A escritura em três tempos: Uma abordagem a partir de Jacques Derrida. 2013. 107 f. (Dissertação de Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 11). Sendo assim, a ideia de uma justiça por vir de Derrida nos impõe uma reflexão acerca da promessa. Isso porque, para pensar a justiça, devemos entendê-la como um processo que aponta para o futuro. Porém, um futuro que nunca será presente. Neste sentido, as modificações e mudanças, que podem ocorrer durante esses processos de devir, poderiam abrir a justiça para sua realização.

Trata-se de “um por-vir que precisamos distinguir rigorosamente do futuro” ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018., p. 54). Daí porque todas as vezes que nos referirmos a esse “por vir” que não corresponde a um futuro calculado e certo, precisamos registrar a expressão em duas palavras, mesmo que em posição de substantivo. A ideia é marcar a distinção - imprescindível para essa perspectiva filosófica - entre a indecidibilidade, a irrupção inesperada e imprevisível de uma Justiça que nunca se concretizará (justiça por vir); e a decidibilidade do Direito a ser construída para um futuro (um porvir), em que se acredita em uma presentificação.

Lidar com a im-possibilidade, lidar com aquilo que no momento mais desesperador e urgente parece impossível, é permitir que se crie, que se aja de um outro modo que não é da ordem daquilo que é tido como comum, normal e dentro do padrão. É realizar, fazer, decidir, permitir aquilo que parece irrealizável, ou seja, im-possível de se realizar. Para Derrida (2009DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.), é exatamente por ser impossível que devemos procurar realizar.

Ao pensarmos na Justiça como im-possível, entendemos que, mesmo com a implementação de leis referentes a políticas afirmativas, ela nunca será alcançada. Em função dessa justiça que será sempre por vir, o nosso PVC 21290 tem acumulado questões aporéticas com as quais precisamos lidar no nosso cotidiano de professores/orientadores/apoiadores de estudantes advindos das classes menos favorecidas, moradores de comunidades, moradores da periferia; cujas vivências, muitas vezes, estão resumidas a suas comunidades ou aos bairros onde moram.

Assim, retomamos as vivências do PVC 21290, trazidas nesse texto, para pensar que, apesar da instituição de leis não ter o potencial de alcançar a justiça, uma justiça que seja plena; temos a responsabilidade de investirmos esforços em direção à Justiça. Questionamos com Derrida (2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.), “Será jamais possível dizer: uma ação é não apenas legal, mas justa?” ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018., p. 32). A justiça será sempre uma justiça porvir, sempre nos imporá responsabilidades e compromissos. Sendo assim, queremos fechar esse texto tentando refletir sobre as aporias que se apresentam no processo de solicitação de cotas. Trata-se de questões para as quais não temos respostas; questões que as políticas afirmativas, por serem generalizantes, muitas vezes não respondem.

O filósofo magrebino, cujos textos são marcados por um questionamento dos universais e pela afirmação das singularidades, questiona em seu livro Força de Lei: o fundamento místico da justiça

Como conciliar o ato de justiça, que deve sempre concernir a uma singularidade, indivíduos, grupos, existências insubstituíveis, o outro ou eu como o outro, numa situação única, com a regra, a norma, o valor ou o imperativo de justiça, que tem necessariamente uma forma geral, mesmo que essa generalidade prescreva uma aplicação que é, cada vez, singular? Se eu me contentasse com a aplicação de uma regra justa, sem espírito de justiça e sem inventar, de certa maneira, a cada vez a regra e o exemplo, eu estaria talvez a salvo da crítica, sob a proteção do direito, agiria de modo conforme ao direito objetivo, mas não seria justo ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018., p. 31).

Nessa linha, entendemos que o PVC 21290 não está “a salvo da crítica”, porque não nos contentamos em agir “de modo conforme ao direito objetivo”. Assumimos a responsabilidade política de trabalhar pela justiça em um investimento radical de ações e ideias, mesmo cientes de que nunca alcançaremos uma justiça plena para todas as situações que se nos apresentam. Se a lei pudesse ser simplesmente aplicada de forma lógica e clara, e essa aplicação tivesse o potencial de abranger todas as situações, não precisaríamos investir esforços, seria apenas necessário agir no âmbito do calculável, do previsível. O investimento radical é necessário exatamente porque estamos trabalhando por um por vir que, sabemos, nunca se presentificará, mas nos impõe um compromisso, uma busca. E essa busca está relacionada ao que Carla Rodrigues (2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b.) nos diz:

[...] na ordem do cálculo é possível (...) aprimorar o sistema de leis, torná-lo mais abrangente ou menos discriminatório em relação a determinados grupos, como negros, mulheres ou homossexuais. Mas, argumenta Derrida, sempre reconhecendo que a lei ou o direito nunca serão justos ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 148).

As situações que apresentamos - referentes à paternidade, moradia, falta de recursos para participar do processo de solicitação de cotas - dizem respeito a singularidades que reclamam uma justiça para além do direito, para além das regras instituídas no processo. Mesmo afirmando que “A justiça é uma experiência do impossível” e que “Não há justiça sem essa experiência da aporia, por impossível que seja” ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018., p. 30), entendemos que essa justiça está em contínua construção e, nesse processo, surgem as aporias que, em vez de serem paralisantes, constituem-se em possibilidades que levariam a abrir a justiça ao seu porvir. Correspondem a “uma vontade, um desejo, uma exigência de justiça cuja estrutura, não fosse uma experiência da aporia, não teria nenhuma chance de ser o que ela é, a saber, apenas um apelo à justiça” ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018., p. 30). Dessa forma, não queremos fugir dessas questões que são, ao mesmo tempo, repetições e singularidades. Sabemos que todas as vezes que as regras são aplicadas, o direito é efetivado, mas não necessariamente a justiça aconteceu. Nas palavras de Derrida (2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.):

O direito não é justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável; e as experiências aporéticas são experiências tão improváveis quanto necessárias da justiça, isto é, momentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é garantida por uma regra ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018., p. 30, grifo do autor).

Ao nos depararmos com inúmeras situações que fogem ao alcance do Direito, fogem ao alcance das regras, apesar de im-possível, sabemos ser necessário que busquemos a justiça. E fazemos isso da forma como descreve Carla Rodrigues (2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b.), cada um de nós tem o compromisso de:

Manter-se no lugar de tensão - intervindo naquilo que é calculável e desconstruível na lei e reconhecendo o impossível da justiça - seria a tarefa do pensamento da desconstrução, um pensamento que, como diz Derrida, se pretende conseqüente ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 148).

Portanto, nós nos propomos a pensar as questões, a partir da nossa experiência no PVC 21290, entendendo que o direito, as regras do direito, precisam se reformar em busca da justiça que será sempre uma justiça porvir. O conjunto de leis passa por reformas que visam aumentar o alcance dessas leis. Essas reformas dizem respeito à busca pela Justiça que é da ordem do incalculável e do im-possível.

“As leis são construíveis e desconstruíveis, e por isso Derrida entende que a justiça não pode ser reduzida à lei nem ao sistema das estruturas jurídicas” ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 141). À medida, então, que consideramos que as leis não estão prontas, que elas precisam de constante remodelação com vistas a uma justiça im-possível, mas necessária, seguimos enfrentando as questões que se nos apresentam como aporias. Estas que nos empurram para a ação e a compreensão de que nunca estaremos prontos e conciliados em relação a nossas questões e às questões do outro que se aproxima de nós e de quem nós também nos aproximamos. Ainda segundo Rodrigues (2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b.), Derrida,

Quando remete a justiça ao infinito ou ao impossível, ele não está querendo nos jogar na paralisia dos que, diante de um diagnóstico contemporâneo irrefutável, cruzam os braços e dizem que não há nada a fazer. Ao contrário, entendendo a desconstrução como um “pensamento em ação”, ele propõe pensar a justiça como aquilo que, inalcançável, torna-se o horizonte ético de toda e qualquer ação. Nesse horizonte ético, o “motor” seria o reconhecimento da insuficiência das leis para a promoção da justiça, insuficiência que se reconhece não para defender uma paralisia, mas para pôr-se sempre em obra ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 149).

Sendo assim, essa reflexão não tem o objetivo de apresentar as leis como negativas e também não tem o objetivo de dizer que as decisões tomadas sem respaldo, de forma solta chegariam mais próximas de serem justas ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b.). Intentamos, com esse texto, a partir das nossas vivências no PVC 21290, reafirmar a necessidade de um constante aprimoramento das leis. Reafirmar que nunca podemos considerar que tudo está conciliado e que as medidas jurídicas contemplam todas as situações. É necessário que as instâncias legislativas e jurídicas estejam em constante desconforto, em constante busca e reconhecimento de que não possuem as verdades da justiça. É importante também um contato constante entre a sociedade - especialmente o público dos pré-vestibulares comunitários - e os legisladores, assim como entre estes e a universidade. Esse contato faz-se necessário para que essas leis se aproximem cada vez mais das situações singulares que surgem no processo de solicitação de cotas.

A comissão responsável pelas decisões de cada situação precisa se entender em uma posição de muita tensão. Essa comissão não deve considerar que tudo poderá ser equacionado pelas leis. Segundo Carla Rodrigues (2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b.):

Aplicar a lei, agir em conformidade com a regra, decidir se um ato está ou não dentro da lei, não é fazer justiça. Para que a decisão de um juiz seja justa, ele não poderia se limitar a seguir uma regra, mas a “reinstaurar” a lei, como se a cada julgamento o juiz reinventasse a lei, garantindo o “frescor da justiça” a cada vez que a lei fosse aplicada ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 142).

A comissão deve sim reconhecer que precisa agir, muitas vezes, na desconstrução das leis, em uma busca pela Justiça. Trata-se de uma situação aporética, no sentido de que qualquer um que esteja na posição de decidir não pode se fiar apenas na lei, mas também não pode decidir à margem da lei ( DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.). Daí, a “impossibilidade de afirmar que alguma decisão é justa, questão que se articula à necessidade da força da lei e da sua autoridade” ( RODRIGUES, 2012PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b., p. 142). Sendo assim, a Justiça é o alvo inatingível pelo qual devemos trabalhar, em um investimento radical no alargamento dos limites da lei.

Considerações Finais

Vivemos em uma realidade assombrada pelos espectros e precisamos saber conversar com eles e reconhecê-los. O espectro da colonialidade traz uma visão de sociedade dividida entre os que têm condições de acesso a muitas coisas e os que não têm acesso a quase nada. Uma sociedade dividida em ambientes em que alguns cabem e outros não. Tudo isso em uma normatização que tem o efeito de naturalizar essa hierarquia, como se as coisas assim fossem, porque não existe outra possibilidade de configuração, como se fosse da natureza das pessoas e da sociedade essa divisão. A desconstrução da colonialidade, portanto, diz respeito a uma estratégia de questionar o dado como verdade imutável e trazer para o cenário outras possibilidades de se viver nessa sociedade.

À medida que não naturalizamos as hierarquias, abrimos a possibilidade de pensar caminhos para diminuir as distâncias entre as pessoas com menos recursos e as oportunidades distribuídas na sociedade. Talvez pudéssemos, a partir dessa postura, pensar em estratégias simples como uma maior divulgação da política afirmativa de reserva de vagas para os estudantes que possuem o perfil que se enquadre nessas políticas. Pensar também uma forma de receber os documentos desses candidatos sem que eles sejam onerados com o serviço dos Correios. Além de incluir no formulário do candidato um espaço em que ele possa declarar o não convívio ou o não conhecimento do paradeiro de um ou de ambos os progenitores. Além de pensar maneiras de comprovação de residência que contemple uma gama maior de possibilidades. Sabemos que esse movimento de busca por Justiça é interminável, mas essa impossibilidade de alcançá-la deve nos mover e não nos paralisar.

Destacamos mais uma vez que as políticas que são da ordem do Direito, políticas que são instituídas por leis não têm o potencial de promover a Justiça. A Justiça é da ordem do im-possível, do incalculável, do imponderável; enquanto o Direito é da ordem do cálculo, do teleológico. Tratamos, então, de uma Justiça por vir que, apesar de nunca se presentificar totalmente, não diz respeito a uma ilusão, porque impõe um compromisso, uma responsabilidade ao presente.

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  • PINTO, Marinazia Cordeiro; LOPES, Alice Casimiro Lopes. Desconstrução, colonialidade e ubuntu: pela porosidade de fronteiras. Abatirá - Revista de Ciência Humanas e Linguagens, v. 2, n. 4, p. 182-208, 2021b.
  • RODRIGUES, Carla. Justiça e desconstrução: entre as rachaduras da lei. Cadernos da EMARF, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 139-150, 2012.
  • RODRIGUES, Carla. O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
  • SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significados Brasília: UNB, 2015.
  • SOLIS, Dirce Eleanora Nigro. Desconstruçao e arquitetura: uma abordagem a partir de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: Editora Uapê, 2009.
  • SOLIS, Dirce Eleanora Nigro. A democracia banida: reflexões a partir da noção de democracia por vir de Jacques Derrida. In: CARRARA, Ozanan Vicente. (org.). A democracia e seus desafios em tempos de crise Passo Fundo: Editora IFIBE. 2017. p. 191-244.
  • *
    Trabalho realizado com o apoio do CNPq e da CAPES.
  • 1
    Em linhas gerais, “[...] as políticas de ações afirmativas são medidas que possuem amparo na lei para implementação de uma discriminação positiva, ou seja, uma forma de estabelecer critérios para reconhecer as diferenças existentes entre os grupos sociais. Por meio de ações pontuais e por tempo determinado, as ações afirmativas têm como objetivo diminuir as desigualdades históricasvivenciadas por grupos sociais, como as populações negras e indígenas no Brasil”. Disponível em: https://simaigualdaderacial.com.br/site/o-que-sao-e-como-surgiram-as-politicas-afirmativas/. Acesso em: 12 jan. 2022.
  • 2
    Derrida (2018DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.) discorre sobre “o fundamento místico da justiça”, afirmando estar este fundamento relacionado ao fato de que a Lei não é obedecida, porque é justa, a Lei é obedecida porque é Lei. Nesse ponto, ele constata a força e a violência intrínseca à dinâmica da Lei.
  • 3
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  • 6
    Materialidade não equivale à presença em Derrida.
  • 7
    Em muitas culturas não-ocidentais, os antepassados participam das decisões políticas. É uma forma de entender a política a partir da ancestralidade ( MORAES, 2020MORAES, Marcelo José Derzi. Democracias espectrais: por uma desconstrução da colonialidade. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2020.; SANTOS, 2015SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significados. Brasília: UNB, 2015.). A política traz em si rastros de presenças.
  • 8
    Quilombola piauiense Antônio Bispo dos Santos.
  • 9
    Os ‘quase-conceitos’ são unidades de simulacro, ‘falsas’ propriedades verbais, nominais ou semânticas, que não se deixam mais compreender na oposição filosófica (binária) e que, entretanto, habitam-na, opõe-lhe resistência, desorganizam-na, mas sem nunca constituir um terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma solução na forma da dialética especulativa” ( DERRIDA, 2001bDERRIDA, Jacques. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001b. , p. 49).
  • 10
    Na tradução da obra de Heiddegger (2004), Ser e Tempo, do alemão para o francês.
  • 11
    Em Derrida (2009DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.), tradução não se restringe ao ato de reescrever em outra língua algum conteúdo. Toda leitura constitui uma tradução, mesmo que seja na mesma língua. A tradução para Derrida é uma im-possibilidade necessária, sempre uma traição, sempre uma metáfora e uma metonímia do enunciado que não possui um sentido original, mas que, a cada leitura, mesmo que no mesmo idioma, apresenta inúmeras possibilidades de sentidos.
  • 12
    O “im-possível” derridiano não está relacionado ao “não possível”. Trata-se de um indecidível no sentido de que foge à lógica binária metafísica, em que o “impossível” se opõe ao “possível”. Sendo assim, o “im-possível” não se refere ao que não poderá acontecer. Diz respeito ao por vir. Algo que, sendo necessário, mesmo que nunca se presentifique, impõe-no uma ação, uma responsabilidade.
  • 13
    Aporias dizem respeito às questões para as quais não temos respostas possíveis.
  • 14
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  • 16
    Investimento radical” é o termo usado pela pesquisadora da área de currículos, profa. Dra. Alice Casimiro Lopes, para denominar a atitude de responsabilidade de todos que trabalham na educação, frente ao entendimento de educação como algo da ordem do incalculável, do não teleológico, do imprevisível.
  • 17
    Derrida (1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Tradução de Ana Maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p. 42), em Espectros de Marx, antes de trazer esses sentidos para o tempo presente, trabalha os sentidos do presente a partir de Heidegger como “je-weilig (do momento, da época, cada vez etc), depois por esta indispensável atribuição como esta de weile (momento, momento que passa, lapso do tempo) ou de weilen (ficar, demorar-se, ficar, morar)”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    29 Jun 2022
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