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Na subjetivação pelo estado, onde está o sujeito?

The position of the subject in the subjectivation by the state

Resumo:

Neste artigo, tendo em vista sequências discursivas recortadas de duas matérias publicadas nos portais Extra e G1, veículos de comunicação das Organizações Globo, analisamos, a partir dos pressupostos teóricos-metodológicos da análise de discurso pecheutiana, os efeitos de sentidos produzidos sobre os direitos de travestis e transexuais em condição de cárcere. No discurso jurídico, posto em circulação pelo discurso jornalístico, os lugares possíveis para os sujeitos transexuais/travestis são cristalizados: o fato de serem travestis antecede qualquer sentido que se possa produzir sobre ela/ele; o sexo a/o precede. O biológico prevalece causando um deslizamento do masculino para o feminino produzindo sentido de um entrelugar natural para estes sujeitos. As suas identidades são construídas pelo Estado quase que exclusivamente a partir dos sentidos naturais de criminalidades e prostituição, lugares sempre-já ocupados por esses sujeitos no discurso jornalístico/jurídico.

Palavras-chave:
Travestilidade; transexualidade; discurso jurídico; discurso jornalístico; subjetividade

Abstract:

Through discourse sequences extracted from two articles published in the news portals Extra and G1, communication media of Organizações Globo, we analyze in this paper, from the theoretical and methodological assumptions of Discourse Analysis as defined by Pêcheux, the meaning effects produced on the rights of transvestites and transsexuals in prison. In the juridical discourse, put into circulation by the journalistic discourse, the possible places for the transsexual/transvestite subjects are crystallized: the fact of being transvestites anticipates any meaning that can be produced about her/him; sex precedes her/him. The biological prevails causing a slip of the masculine to the feminine producing the meaning of a natural in-between place for these subjects. Their identities are built by the State almost exclusively from the natural meanings of criminality and prostitution, places always-already occupied by these subjects in journalistic/juridical discourse.

Keywords:
Transvestility; transsexuality; juridical discourse; journalistic discourse; subjectivity

Do campo da análise de discurso, o sujeito é intervalar, no sentido de que não é completo mas constituído pela falta, pelo movimento. E não é possível entrar nesse domínio que o constitui sem ser pela linguagem, pelo significante que ocupa um lugar central na teoria francesa de análise de discurso.

Em nossa formação social, o indivíduo é tornado sujeito na medida em que a ideologia, numa determinada formação histórica, o fisga, interpela, e na medida em que ele está para além da consciência absoluta, isto é, dividido pelo inconsciente.

A captura do sujeito pelo ideológico, entretanto, produz alguns efeitos. Na forma histórica capitalista em que vivemos esses efeitos são, por exemplo, os de que o sujeito tem liberdade (para fazer o que quiser, dizer o que quiser, etc.) e que ele é completo, dono de si, “incapaz de falhas” (ORLANDI, 2012ORLANDI, Eni P. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes , 2012., p. 73). Nesse sujeito inteiriço produzido pelo capitalismo não cabe espaço para a falta: ele apenas é. Poderia parecer contraditório dizer que ele não é completo porque constituído por uma falta e, em seguida, dizer que é ‘completo’ uma vez produzido pelo capitalismo; no entanto, esta completude é efeito da ideologia produzindo no sujeito a certeza de que se é pleno. Mas, em meio a todas as determinações, o sujeito se move, angariando para si outros sentidos. O movimento incessante dos sentidos e dos sujeitos vai demonstrando a sua divisão constitutiva. No ponto onde o sujeito vacila, onde a língua falha é que se pode vislumbrar o intervalo constitutivo do sujeito.

De acordo com Pêcheux ([1975] 2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da Unicamp , 2009 [1975].), o vínculo do sujeito com o significante se dá porque i) há um Outro que constitui o sujeito, ou seja, há um significante que o interpela constituindo-o em sujeito e porque ii) as condições de produção se realizam determinadas pelo processo de interpelação e identificação do sujeito. Pelo funcionamento da ideologia, que acoberta seu atravessamento no sujeito, e do inconsciente, ao qual não se tem acesso a não ser pelo lapso, pelo sonho, não é possível ter acesso àquilo que constitui o sujeito; no entanto, só se pode ser sujeito pelo rasgo ideológico e inconsciente.

De todo modo, o apagamento/afastamento da ideologia no sujeito, dadas as nossas condições históricas, permite que o Estado individue o sujeito. Consoante Orlandi (2012ORLANDI, Eni P. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes , 2012., negritos nossos):

As formas de individu(aliz)ação do sujeito, pelo Estado, estabelecidas pelas instituições e discursividades, resultam, assim, em um indivíduo ao mesmo tempo responsável e dono de suas vontades, com direitos e deveres e direito de ir e vir. Esse indivíduo funciona, por assim dizer, como um pré-requisito nos processos de identificação do sujeito, ou seja, uma vez individuado, este indivíduo (sujeito individuado) é que vai estabelecer uma relação de identificação com esta ou aquela formação discursiva. E assim se constitui em uma posição-sujeito na sociedade. E isto deriva de seus modos de individuação pelo Estado (ou pela falha do Estado), pela articulação simbólico-política através das instituições e discursos, daí resultando sua inscrição em uma formação discursiva e sua posição sujeito que se inscreve então na formação social (posição-sujeito patrão, traficante, Falcão etc) com os sentidos que o identificam em sua posição sujeito na sociedade. (ORLANDI, 2012ORLANDI, Eni P. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes , 2012., p. 228, negritos nossos).

A partir desta posição, entendemos que o Estado torna os sujeitos responsáveis e donos de seus dizeres, sendo este um efeito do seu funcionamento.

Quando se fala, habita-se uma formação discursiva, um campo de sentidos cujos contornos são mais ou menos definidos pela divisão da história, da luta de classes. O sujeito, por sua vez, ao falar inserido em uma formação discursiva, assume uma posição, também discursiva, nesse jogo dos sentidos. Essa posição ‘assumida’ não é consciente, ou seja, o sujeito ao identificar-se com uma formação discursiva não se dá conta de que ali a ideologia lhe fisgou. A língua não é transparente, os sentidos não são transparentes. Mas, ao dizer, o sujeito diz aquilo que lhe cabe na posição que ocupa na formação discursiva que habita. O efeito disso é, como já dissemos acima, a naturalização dos sentidos.

Além disso, as formações imaginárias1 1 Este é o trabalho da ideologia: produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência. (ORLANDI, 2001). , que já estão mais ou menos definidas pela/na história, também produzem o efeito de lugar comum, isto é, essas formações já circulam no social: “todo mundo sabe o que é um soldado”; todo mundo sabe o que é uma travesti. Não se trata, portanto, de posições empíricas, mas de imagens que o sujeito faz de si e do outro.

No tocante à sexualidade, ser sujeito LGBT2 2 Sigla que se refere às lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais. Vamos usar neste texto a sigla LGBT, como o movimento social a usa, no entanto há uma sigla maior, como LGBTTTIQ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexos e queer), visibilizando outros sujeitos (COLLING, 2013). é ser sentenciado:

[por meio da injúria] descubro que sou alguém de quem se pode dizer isto ou aquilo, alguém a quem se pode dizer isto ou aquilo, alguém que é objeto dos olhares, dos discursos e que é estigmatizado por esses olhares e discursos. A “nomeação” produz uma conscientização de si mesmo como um “outro” que os outros transformam em “objeto”. (ERIBON, 2008ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Tradução de Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008., p. 28, aspas do autor).

Na formação imaginária ‘todo mundo sabe o que é uma travesti’, estão em cena os dizeres e os olhares - ambos discursos, do campo da análise de discurso - que a atravessam. O sujeito-travesti já é dito antes de dizer, ou seja, sobre ele circulam sentidos que o antecedem como sujeito: nos meios de comunicação, por exemplo e de uma forma geral, ocupam quase sempre o lugar da marginalidade, suas imagens quase sempre são associadas à prostituição, à violência de todas as ordens. Além disso, nesses mesmos meios de comunicação, circulam também os sentidos sobre a sua identidade que vacilam entre o biológico e o social: os pronomes, por exemplo, não correspondem a sua identidade e, se correspondem, muito provavelmente, trata-se de uma formação discursiva distinta da que circula comumente; o fato de serem travestis antecede qualquer sentido que se possa produzir sobre ele/ela; o sexo o/a precede, sempre.

É bastante recorrente que os nomes de registros, mesmo que o nome social seja pautado, apareçam como uma forma de identificar o sujeito. O biológico prevalece causando um deslizamento do masculino para o feminino produzindo sentido de um entrelugar natural para estes sujeitos. Nem homem e nem mulher, nome social ao lado do nome de registro reforçando os sentidos de uma instabilidade sobre eles/elas. Mais do que outros sujeitos, a travesti é transformada, via de regra, em objeto, dita pelo outro, quase sem espaço para (poder) dizer. Sua subjetivação se dá por um outro que a define, a fala, a silencia...

Algumas análises

Tomamos como objeto de análise duas matérias de portais de notícias on-line que circularam no ano de 2018. A primeira, intitulada “Travesti é transferida para presídio feminino após decisão da Justiça”, foi publicada pelo site G1 Tocantins (doravante, G1 TO) em 9 de junho de 2018. A segunda, cujo título é “Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos”, foi veiculada no portal on-line do jornal Extra em 18 de novembro de 2018. Ambas as matérias, de dois veículos de comunicação das Organizações Globo, abordam a questão da travestilidade/transexualidade no tocante às questões de gênero em relação à permanência de sujeitos travestis/transexuais em presídios masculinos ou femininos brasileiros.

Não há nessas matérias jornalísticas indicação de que haja diferenças entre as denominações travesti ou mulheres transexuais; a primeira denominação diz respeito ao artigo do G1 Tocantins, e, a segunda, mulheres transexuais, ao Jornal Extra.

As denominações (palavras, expressões ou locuções) compõem um grande bloco de produção de sentidos em relação ao que elas se referem. Denominar não é escolher aleatoriamente designações, é discurso e, como tal, tem história, determinações que permitem tais nomes e/ou impedem outros. As denominações constroem sítios de significância (ORLANDI, 1996ORLANDI, Eni P. Interpretação - Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Editora Vozes, 1996., p. 15), ou melhor, produzem regiões discursivas que produzem efeito de sentido sobre o denominado.

Isso significa dizer que travesti ou mulheres transexuais não são sinônimos ou produzem os mesmos efeitos de sentidos. Cada uma dessas denominações já conta uma história e produz seus efeitos de sentidos os quais se confundem em algumas produções, mas que também se distinguem. Não iremos tratar especificamente dos sentidos que já circulam no social sobre esses sujeitos. Diremos, no entanto, que se denominar é criar sítios de significância produzindo efeitos sobre o denominado, dizer travesti ou dizer mulheres transexuais significa colocar em circulação formações imaginárias distintas, sentidos distintos e valores distintos sobre esses sujeitos.

Na matéria do portal G1 TO, lê-se:

SD1: A travesti Kellyta Rodrigues de Sousa, de 29 anos, foi transferida para um presídio feminino após uma decisão da Justiça. Registrada no nascimento como Samuel, foi presa na última quinta-feira [...]. (G1 TOCANTIS, 2018G1 TOCANTINS. Travesti é transferida para presídio feminino após decisão da Justiça. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/travesti-e-transferida-para-presidio-feminino-apos-decisao-da-justica.ghtml . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://g1.globo.com/to/tocantins/notici...
, n.p.).

O enunciado que abre a matéria explora a questão da identificação do sujeito travesti: lança-se mão do significante ‘travesti’ bem como apresenta o nome registrado no nascimento, Samuel. E dizer que “foi transferida para um presídio feminino” é o exótico da matéria, ou melhor, aquilo que só acontece porque algo falhou no que seria/deveria ser da ordem do dia a dia. Esta informação só faz sentido porque travesti e presídio feminino são ocorrências que não deveriam ocupar a mesma equação linguística3 3 Equação linguística é a equivalência entre termos a partir de condições de produção específicas. Esta expressão foi cunhada por Mariani (1998), no livro O PCB e a imprensa: Os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). . O sentido dessa equação é, portanto, evidenciar um fora do lugar uma vez que o normal/natural seria/deveria ser um presídio masculino já que se trata de um “homem” travestido em mulher.

Na sequência deste enunciado primeiro, lê-se:

SD2: [Kellyta] foi presa na última quinta-feira (7) suspeita de assassinar outra travesti, conhecida como Vitória Castro. (G1 TOCANTIS, 2018G1 TOCANTINS. Travesti é transferida para presídio feminino após decisão da Justiça. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/travesti-e-transferida-para-presidio-feminino-apos-decisao-da-justica.ghtml . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://g1.globo.com/to/tocantins/notici...
, n.p.).

O verbo conhecer no particípio constrói uma relação que estende o que já se disse a respeito do nome: o sujeito-travesti não é, ele é conhecido como. Vitória Castro, bem como Kellyta, são postas como alguém de quem se sabe algo, e este alguém não é elas, mas o outro - o portal G1 TO - que diz delas. Em outras palavras, ser “conhecida como Vitória” produz um efeito de sentido de que há um outro que a define como Vitória, como se ela não o fosse ou não o pudesse ser... porque é travesti. Novamente retorna um fora de lugar para este sujeito, pondo em questão a sexualidade assumida.

A expressão conhecida/conhecido como é bastante recorrente quando se trata do jornalismo policial ao se referir não ao nome de registro, mas ao nome que, em geral, um (...) é identificado. Como as travestis ocupam quase sempre, nos meios de comunicação, as páginas policiais, essa construção as significa mesmo quando não se trata de assunto dessa ordem. Ainda que esta expressão possa ser suprimida, em algumas matérias, o sentido permanece tendo em vista que são tratadas nesse meio como se houvesse algo sobre elas que precisasse ser dito.

Adiante na matéria do portal de notícias, lemos então sobre a decisão do defensor público que moveu uma ação para que a travesti Kellyta de Sousa fosse transferida para um presídio feminino:

SD3: “Solicitei que ela fosse colocada na cadeia feminina, pois apresenta expressão física de mulher e personalidade feminina, sendo ilegal a sua manutenção em cadeia masculina, ainda que isolada dos homens”, disse o defensor público Sandro Ferreira Dias, que moveu a ação. (G1 TOCANTIS, 2018G1 TOCANTINS. Travesti é transferida para presídio feminino após decisão da Justiça. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/travesti-e-transferida-para-presidio-feminino-apos-decisao-da-justica.ghtml . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://g1.globo.com/to/tocantins/notici...
, n.p.).

Em SD3, um discurso (do) outro irrompe no discurso do portal de notícias. As aspas indicam uma marca linguística que permite vislumbrar a heterogeneidade, isto é, um outro nível de enunciação (AUTHIER-REVUZ, [1982] 2004AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso. In: AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 11-80.). Esse discurso outro posto entre aspas mantém uma distância discursiva: não é o portal que diz; é um outro que no portal diz. Tal recurso, tão comum no discurso jornalístico, é um dos modos de tentar controlar o dizer e de fortalecer o estatuto da unidade do dizer que percorre o imaginário da prática jornalística. É um outro dizer que pode comparecer, mas de modo intercalado (ZANELLA, 2017ZANELLA, Alexandre da Silva. Espaços atravessados: sujeitos homossexuais no discurso jornalístico sobre a cidade. 2017. 225 f. Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) - Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, 2017.).

Authier-Revuz ([1984] 2004AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso. In: AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 11-80.) argumenta que as aspas possuem dois valores: um de autonímia e outro de conotação autonímica. A primeira diz da marcação da palavra no fio do discurso, produzindo um efeito de ruptura sintática ou de menção, como se fosse alguém observando, mostrando um objeto à distância. A conotação autonímica, por seu turno, tem a ver com a manutenção de um dizer afastado, posto à distância ainda que mencionado.

É possível aproximar a citação do discurso direto no que tange à ilusão de manutenção do dizer do outro pela manutenção do significante entre aspas, uma vez que em ambos se trata do recorte de um outro dizer, possivelmente até mesmo de outras condições de produção, que comparece.

A citação é uma das formas de heterogeneidade mostrada que se marca no discurso por uma ruptura sintática (as aspas). A citação produz um efeito de reprodução fiel do discurso do outro, de manutenção das palavras do outro, o que, em última instância, produz um efeito de atestação de verdade. Entretanto, reside também aí um efeito ilusório de que aquele dizer, ao ser materializado num espaço outro, não seja atualizado, deslocado, ou mesmo distorcido. Se da posição da análise de discurso compreende-se que a enunciação não se repete, a citação do discurso direto também deve ser encarada como sendo da ordem do não repetível, porque o recorte é sempre afetado pelas condições de produção que atualizam aquele dizer.

Em SD3, a citação inserida pelas aspas aponta para um outro dizer que se inscreve na matéria do portal de notícias: o do defensor público. Sua fala é posta como sendo a do defensor, isto é, o sujeito em posição de jornalista reproduz um dizer do outro marcando uma distância, marcando a heterogeneidade. Afirmar, pois, que a travesti fosse posta numa cadeia feminina por assim se identificar é algo a que o portal de notícias não diz senão por meio do recurso da citação. Mantendo as palavras do defensor (e do juiz) à distância, o portal G1 TO marca sua distância em relação à questão da travestilidade posta em cena.

As aspas evidenciam que entre a palavra empregada e a coisa referida há uma não-coincidência, há um fora do lugar, neste caso, especificamente, realçando a contradição masculino/feminino; marcando a negociação do sujeito com o Outro. Elas indicam que a palavra empregada não é a mais adequada para designar o que o enunciador pretende, pois pode não corresponder exatamente à realidade.4 4 Não desejamos com isto dizer que haja, em algum nível, correspondência entre as palavras e as coisas. O que argumentamos é que, de uma formação discursiva jornalística, este efeito é produzido numa tentativa de controle dos sentidos. As aspas, pois, no objeto em análise, evidenciariam ainda mais uma certa não correspondência sobre o que se fala. E ainda sinalizam uma distância, uma crítica por parte do enunciador, que põe em xeque o sentido atribuído a essa expressão pelo discurso outro, marcando, assim, um ponto de divergência das palavras com elas mesmas, que reforça a polêmica entre os dois posicionamentos (SOARES, 2017SOARES, Alexandre S. Sem corpo, sem língua, num entrelugar: sobre os sujeitos transexuais na mídia. In: FLORES, Giovana et al. (org.). Análise do Discurso em rede: cultura e mídia. Campinas, Pontes, 2017. p. 197-210.).

A partir do dizer do defensor público, sentidos outros, polêmicos, se materializam em relação ao sujeito-travesti: os significantes ‘cadeia feminina’, ‘expressão física de mulher’, ‘personalidade feminina’ vão construindo um campo de sentidos que estão mais em acordo com a questão da identificação5 5 Existe uma noção de identidade cristalizada que circula sentidos de que algo ou alguém é idêntico a um outro, que identidade é algo passível de aquisição, fornecendo um sentido de pertencimento, sendo esta uma posição de muitas correntes da sociologia e da psicologia social. Isso é o que permite dizeres, por exemplo, sobre ‘modelos’ (de comportamento, etc.) em relação à homossexualidade, ou sobre uma ‘identidade gay’ que baliza os sujeitos homossexuais, formulação esta muito presente na mídia e mesmo nos discursos dos movimentos LGBT. Da posição teórica da análise de discurso, compreende-se, todavia, que os sentidos estabilizados sobre identidade atuam para uma individuação (ORLANDI, 2012) do sujeito, de modo a significá-lo como sendo uno, apagando, assim, a sua contradição constitutiva: o atravessamento ideológico e o inconsciente (ZANELLA, 2017). e do desejo da travesti, evidenciado ainda pela relação de ilegalidade de sua permanência numa cadeia masculina. Estes sentidos polemizam, portanto, aqueles produzidos pelo portal G1 TO nas outras SDs acima analisadas ao trazer uma posição do Estado, que é arrematada pela decisão judicial:

SD4: O juiz Antonio Dantas de Oliveira Júnior entendeu que os direitos reconhecidos da presa foram desrespeitados. "Os direitos humanos precisam sair do papel e serem cumpridos, é que o discurso, por si só, é um natimorto", escreveu ele na sentença. (G1 TOCANTIS, 2018G1 TOCANTINS. Travesti é transferida para presídio feminino após decisão da Justiça. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/travesti-e-transferida-para-presidio-feminino-apos-decisao-da-justica.ghtml . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://g1.globo.com/to/tocantins/notici...
, n.p.).

Novamente aqui se observam as distâncias entre o que é dito pelo portal de notícias e o que é citado. Marcas linguísticas como ‘o juiz... entendeu que’ e o recurso da citação direta demonstram um desnível discursivo: ainda que o portal de notícias fale da decisão de transferir uma travesti para uma cadeia feminina, esse dizer é firmemente marcado pelo polêmico, pela manifestação do entrelugar destinado à travesti na sociedade.

Passando à matéria do portal on-line do jornal Extra, de 18 de novembro de 2018, lemos no título:

SD5: Seap [Secretaria Estadual de Administração Penitenciária] faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos (EXTRA, 2018EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
, n.p.).

Neste enunciado, no qual comparece a relação entre o Estado (do Rio de Janeiro) e as mulheres transexuais, diz-se da realização de um censo para que se saiba se elas “querem ir para presídios femininos”. Fica marcado, num primeiro momento, a possibilidade do desejo da mulher transexual, isto é, o de ela poder escolher se deseja ir para um presídio feminino. Isso é abordado também ao longo da matéria:

SD6: Para conhecer melhor esse universo e cumprir a resolução federal que garante direitos aos LGBTs atrás das grades, a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (Seap) está fazendo o primeiro censo carcerário sobre o grupo, numa parceria com o Ministério Público estadual. O resultado inicial da consulta mostra que o sistema tem hoje 82 travestis, 27 mulheres transexuais, 211 lésbicas (incluídos homens transexuais), 198 gays e 253 bissexuais, que, juntos, representam 1,4% da população carcerária. (EXTRA, 201EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
8, n.p.).

Nota-se, e a matéria dá a saber, que há uma mediação do Estado brasileiro em duas instâncias: uma federal, com a resolução de garantia dos direitos aos LGBTs, e outra estadual, que visa a fazer o censo carcerário específico desta população.

A matéria do Extra aborda, ainda, quais são os direitos estabelecidos pela resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça (doravante, CNPCP), bem como apresenta, via citação indireta, a diferença que a norma do Conselho propõe entre travesti e transexual, a saber:

SD7: A norma do conselho explica que travestis são pessoas do sexo masculino, mas que, socialmente, apresentam-se como mulheres, enquanto as transexuais são aquelas que se identificam psicologicamente como sendo do gênero feminino, embora tenham nascido homens. Os transexuais masculinos, segundo a resolução, devem permanecer em unidades [carcerárias] femininas. (Extra, 2018EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
, n.p.).

Fica posto, como efeito de sentido possível, que o Estado brasileiro, por intermédio do CNPCP, compreende as nuances do par travesti/transexual, a ponto de estabelecê-las como diferença na resolução citada. Porém em relação à vida em cárcere das travestis/transexuais, essa diferença é apagada no que se refere às causas criminais, como lemos:

SD8: - Já sabemos que, enquanto a maioria dos heterossexuais está condenada por tráfico de drogas, cerca de 90% de mulheres transexuais e travestis cometeram furtos ou roubos. Têm baixa escolaridade, são empobrecidas e, por conta do preconceito, não são aceitas no mercado de trabalho. Por isso, depois que saem do sistema, acabam cometendo outros crimes e voltando para a cadeia - explicou Ana Faulhaber, responsável pela Coordenação das Unidades Prisionais Femininas e Cidadania LGBT da Seap [...]. (EXTRA, 2018EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
, n.p., negritos nossos).

O par travesti/transexual, portanto, só cabe enquanto diferença sexual, porque no que concerne à criminalidade e às suas causas, caminha junto como um número apenas. Isso também se mostra na abordagem que o portal de notícias do jornal Extra faz com três mulheres travestis/transexuais, na qual não se faz distinção entre as entrevistadas, como é possível ler em duas sequências discursivas:

SD9: Gabriele, Renata e Paulina viveram em diferentes cidades até a adolescência, quando começaram a se prostituir nas ruas do Rio. Dali, foi um passo para o presídio masculino Evaristo de Morais, em São Cristóvão, conhecido como Galpão do Amor, por concentrar a maior parte dos detentos homossexuais. (EXTRA, 2018EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
, n.p., negritos nossos).

SD10: As trajetórias de Gabriele, Renata e Paulina são parecidas. Presas no Evaristo de Morais, que abriga um total de 109 LGBTs, elas eram prostitutas e acabaram presas após seguidos roubos. (EXTRA, 2018EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
, n.p., negritos nossos).

Em ambas as SDs, Extra produz como efeito de sentido que prostituição e criminalidade estão em relação direta e podem assim ocupar a mesma equação linguística. Ao longo da matéria não se explora o que determina as afirmações; ela comparece como um pré-construído, isto é, algo dito anteriormente e em outro lugar (PÊCHEUX, [1975] 2009PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da Unicamp , 2009 [1975].) - ‘a prostituição leva ao crime’ - que é recortado no interdiscurso e atualizado no dizer do jornal, sem ser questionado. Será que todas as prostituições são significadas dessa forma: Prostituição = marginalidade? Será que, por se tratar de travestis, essa relação, já naturalizada, encontra um espaço mais favorável para circular?

A denominação6 6 A denominação está na ordem do discurso e não da língua... uma vez que é necessário, para compreender os sentidos que são produzidos, estabelecer a relação entre o sujeito, as condições de produção e a ideologia. Galpão do Amor remetendo aos homossexuais diz respeito ao que acima mencionamos sobre as travestis, algo diz antes de outro lugar sobre esses sujeitos. Foucault (1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.) nos diz que o sexo precede estes sujeitos. E diz antes sobre eles mesmo quando eles não podem/querem dizer sobre isso. Não há, segundo o autor, nada além do seu sexo significando esses sujeitos. Amor é igual a sexo/sexualidade nessa expressão e é possível recuperar este sentido em virtude do que se diz na sequência por concentrar a maior parte dos detentos homossexuais.

O fato de as três mulheres travestis/transexuais - Gabriele, Renata e Paulina - estarem em um presídio masculino é o ponto central da matéria jornalística que fala da possibilidade de elas serem transferidas para presídios femininos. Entretanto, ao entrevistá-las, o jornal Extra não lhes questiona sobre suas expectativas. Sobre Paulina, o jornal lhe dá voz, citando:

SD11: - Eu trabalhava na fábrica de pão do meu pai, em Belford Roxo, quando conheci um homem que me dava presentes e dinheiro, até o dia em que ele me estuprou - lembrou. (EXTRA, 2018EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
, n.p., negritos nossos).

Sobre Renata:

SD12: - Eu tinha medo da reação da minha mãe, mas depois ela disse que me amaria de qualquer jeito. A partir desse dia, parei de usar peruca e deixei meu cabelo crescer. (EXTRA, 2018EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
, n.p., negritos nossos).

E, finalmente, sobre Gabriele, o jornal a cita:

SD13: - A gente estava com 18 anos, quando eu furtei a carteira de um gringo num quiosque em Ipanema. Acabamos presas - contou Gabriele. (EXTRA, 2018EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
, n.p., negritos nossos).

Em nenhuma das três citações diretas se presentifica o desejo das mulheres travestis/transexuais em relação à ida para um presídio feminino, nem se lhes pergunta sobre o censo realizado. O jornal, ao dar voz às travestis, recorta em suas histórias o ciclo de violência de diferentes tipos a que estes sujeitos estão submetidos. Mas para seu desejo, nenhuma voz a não ser a do próprio portal, que diz:

SD14: Das três, apenas Gabriele, casada há nove anos com um montador de móveis, pensa na possibilidade de ser transferida para um presídio feminino. As outras duas são companheiras de colegas de celas e, por isso, preferem continuar no Evaristo de Morais. (EXTRA, 2018EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos. 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html . Acesso em: 23 jan. 2019.
https://extra.globo.com/noticias/rio/sea...
, n.p., negritos nossos).

Retomando a matéria do portal G1 TO, lá o sujeito-travesti não diz, apenas é dito. Na matéria do portal do jornal Extra, por sua vez, o sujeito-travesti/transexual pode dizer, mas não diz. A possibilidade de dizer é interditada, sobredeterminada pela violência que cerca esses sujeitos.

Nas SDs acima, observa-se uma diferença inscrita no discurso do jornal entre ser casada e ser companheira de cela definindo, por assim dizer, o desejo de cada um(a). Parece que ser casada (e há nove anos) estabelece uma outra relação afetiva - e, digamos, reconhecida pelo Estado - entre os parceiros. Por isso Gabriele “escolhe” o presídio feminino. O seu marido não é um colega de cela, mas um montador de móveis que trabalha e se encontra fora do presídio/da criminalidade. As outras duas, Renata e Paulina, são companheiras de colegas de celas e, por isso, segundo o discurso do jornal, desejam permanecer no presídio masculino.

O significante companheira desliza daqueles que ocupam, neste caso, o mesmo espaço físico (uma cela de um presídio) para aqueles que têm uma relação celebrada pelo casamento ou nos moldes de um casamento: marido e mulher, mulher e mulher ou marido e marido. A diferença, de certo modo, se desfaz, porque tanto aquela quanto estas desejam essas relações nas quais a transferência para um presídio feminino significaria rompimento (com as companheiras de cela) e, daquela, uma possibilidade de, ao estar no presídio feminino, manutenção do casamento.

É interessante compreender que discursivamente há a possibilidade de se manter uma relação afetiva entre os companheiros de cela, ainda que não seja reconhecida pelo Estado como casamento, uma vez que apenados são encarcerados com base das diferenças biológicas: presídios masculinos e presídios femininos, o que, em tese, reforça o imaginário de que a relação afetiva só existiria entre pessoas de sexo (biológico) diferentes.

Aquilo, então, que poderia ser uma oposição entre ser casada e companheira (de cela) e significar esses sujeitos de formas distintas se desfaz tendo em vista que, mesmo sem o status legal de casamento, a relação é de fato reconhecida.

Alguns sentidos finais

As duas matérias analisadas produzem efeitos de sentidos sobre os direitos de travestis e transexuais em condição de cárcere. Ainda que se possa vislumbrar em ambas as matérias sentidos sobre as conquistas de direitos civis e humanos - a possibilidade de transferência de travestis e transexuais para presídios femininos -, observamos naturalizações sobre a questão da sexualidade travesti/transexual: elas ainda comparecem permeadas pelos sentidos de prostituição vinculada à criminalidade, ainda são nomeadas pelo nome de registro no batimento com o nome social, o que redunda dizer que ainda há um equívoco entre o biológico e o social.

Sobre a questão da travestilidade/transexualidade a respeito destes sujeitos encarcerados, observamos que, em relação à matéria do portal de notícias G1 TO, versa-se que há uma determinação do Estado sobre a travesti: não é ela quem escolhe ser transferida para um presídio feminino; é o Estado quem o faz, em nome dos direitos humanos. Ainda que isso possa ser considerado, do ponto de vista dos direitos LGBT, uma conquista específica em relação aos direitos da população travesti/transexual7 7 Em 18 de maio de 2018, a juíza da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, Leila Cury, negou, por exemplo, o pedido de 11 transexuais femininas em prisão preventiva que queriam ser removidas de presídios masculinos, alegando que as diferenças biológicas poderiam gerar tumultos e violência, tendo em vista a “musculatura esquelética de quem nasceu homem” e também o “fator hormonal que [...] assegura vantagem sobre a mulher”. A juíza não considerou, entretanto, que as transexuais femininas pudessem sofrer violência por parte dos homens estando num presídio masculino. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-18/trans-travestis-nao-podem-viver-presidio-feminino-juiza>. Acesso em: 1 fev. 2019. , na matéria do portal G1 TO fica apagado o acontecimento como tal: não se aborda a questão como reivindicação da população travesti/transexual e nem a travesti citada na matéria tem espaço para fala. Produz-se o efeito de sentido de que é um ‘entendimento’ jurídico excêntrico: há um defensor público e um juiz que assim o entendem e a travesti é tornada objeto do qual se fala, sem voz, sem escolha: mantida no lugar da marginalidade. No portal G1 TO, a travesti é dada como subjetivada pelo Estado.

A matéria do portal de notícias do jornal Extra, por sua vez, extrapola esses sentidos supracitados ao abordar a tentativa do Estado de compreender o mapa da população carcerária LGBT e se propor a ouvir o desejo dos sujeitos. Entretanto, sobre o desejo, nenhuma palavra: o que se materializam são sentidos de violência que cercam esses sujeitos. Novamente, a subjetivação dos sujeitos travestis/transexuais fica a cargo do Estado, que lhes sobredetermina. E, em ambas as matérias, em relação às determinações estatais sobre o sujeito-travesti/transexual, observamos que estes ficam no lugar de puro objeto, efeito do entrelugar sobre a sua sexualidade que (de)limita as possibilidades deste sujeito ser e estar.

No Extra elas falam, mas ao falar reproduzem os sentidos naturalizados sobre si. Só dessa forma fazem sentido na matéria do jornal: a violência que normalmente as significa ocupa um espaço importante nessa subjetivação (do jornal e do Estado) porque são os próprios sujeitos que se dizem desse lugar. Funciona como se o jornal, amparado nos mitos de objetividade, neutralidade, verdade e imparcialidade (MARIANI, 1998MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário de jornais (1922-1989). Campinas: Ed. da Unicamp, 1998.), concedesse um espaço para que elas pudessem se dizer. No entanto, para cada aparente avanço, uma imobilidade desses sujeitos no lugar de onde não devem/podem sair.

Referências

  • AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso. In: AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 11-80.
  • COLLING, Leandro. A igualdade não faz o meu gênero - Em defesa das políticas das diferenças para o respeito à diversidade sexual e de gênero no Brasil. Contemporânea, v. 3, n. 2, p. 405-427, 2013.
  • ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Tradução de Procopio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
  • EXTRA. Seap faz censo para saber se mulheres transexuais que cumprem pena querem ir para presídios femininos 2018. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html Acesso em: 23 jan. 2019.
    » https://extra.globo.com/noticias/rio/seap-faz-censo-para-saber-se-mulheres-transexuais-que-cumprem-pena-querem-ir-para-presidios-femininos-23242667.html
  • FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
  • G1 TOCANTINS. Travesti é transferida para presídio feminino após decisão da Justiça 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/travesti-e-transferida-para-presidio-feminino-apos-decisao-da-justica.ghtml Acesso em: 23 jan. 2019.
    » https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/travesti-e-transferida-para-presidio-feminino-apos-decisao-da-justica.ghtml
  • MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário de jornais (1922-1989). Campinas: Ed. da Unicamp, 1998.
  • ORLANDI, Eni P. Interpretação - Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico Petrópolis: Editora Vozes, 1996.
  • ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.
  • ORLANDI, Eni P. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes , 2012.
  • PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. da Unicamp , 2009 [1975].
  • SOARES, Alexandre S. Sem corpo, sem língua, num entrelugar: sobre os sujeitos transexuais na mídia. In: FLORES, Giovana et al (org.). Análise do Discurso em rede: cultura e mídia. Campinas, Pontes, 2017. p. 197-210.
  • ZANELLA, Alexandre da Silva. Espaços atravessados: sujeitos homossexuais no discurso jornalístico sobre a cidade. 2017. 225 f. Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) - Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, 2017.
  • 1
    Este é o trabalho da ideologia: produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência. (ORLANDI, 2001ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.).
  • 2
    Sigla que se refere às lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais. Vamos usar neste texto a sigla LGBT, como o movimento social a usa, no entanto há uma sigla maior, como LGBTTTIQ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexos e queer), visibilizando outros sujeitos (COLLING, 2013COLLING, Leandro. A igualdade não faz o meu gênero - Em defesa das políticas das diferenças para o respeito à diversidade sexual e de gênero no Brasil. Contemporânea, v. 3, n. 2, p. 405-427, 2013.).
  • 3
    Equação linguística é a equivalência entre termos a partir de condições de produção específicas. Esta expressão foi cunhada por Mariani (1998MARIANI, Bethania. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário de jornais (1922-1989). Campinas: Ed. da Unicamp, 1998.), no livro O PCB e a imprensa: Os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989).
  • 4
    Não desejamos com isto dizer que haja, em algum nível, correspondência entre as palavras e as coisas. O que argumentamos é que, de uma formação discursiva jornalística, este efeito é produzido numa tentativa de controle dos sentidos. As aspas, pois, no objeto em análise, evidenciariam ainda mais uma certa não correspondência sobre o que se fala.
  • 5
    Existe uma noção de identidade cristalizada que circula sentidos de que algo ou alguém é idêntico a um outro, que identidade é algo passível de aquisição, fornecendo um sentido de pertencimento, sendo esta uma posição de muitas correntes da sociologia e da psicologia social. Isso é o que permite dizeres, por exemplo, sobre ‘modelos’ (de comportamento, etc.) em relação à homossexualidade, ou sobre uma ‘identidade gay’ que baliza os sujeitos homossexuais, formulação esta muito presente na mídia e mesmo nos discursos dos movimentos LGBT. Da posição teórica da análise de discurso, compreende-se, todavia, que os sentidos estabilizados sobre identidade atuam para uma individuação (ORLANDI, 2012ORLANDI, Eni P. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes , 2012.) do sujeito, de modo a significá-lo como sendo uno, apagando, assim, a sua contradição constitutiva: o atravessamento ideológico e o inconsciente (ZANELLA, 2017ZANELLA, Alexandre da Silva. Espaços atravessados: sujeitos homossexuais no discurso jornalístico sobre a cidade. 2017. 225 f. Tese (Doutorado em Estudos de Linguagem) - Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, 2017.).
  • 6
    A denominação está na ordem do discurso e não da língua... uma vez que é necessário, para compreender os sentidos que são produzidos, estabelecer a relação entre o sujeito, as condições de produção e a ideologia.
  • 7
    Em 18 de maio de 2018, a juíza da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, Leila Cury, negou, por exemplo, o pedido de 11 transexuais femininas em prisão preventiva que queriam ser removidas de presídios masculinos, alegando que as diferenças biológicas poderiam gerar tumultos e violência, tendo em vista a “musculatura esquelética de quem nasceu homem” e também o “fator hormonal que [...] assegura vantagem sobre a mulher”. A juíza não considerou, entretanto, que as transexuais femininas pudessem sofrer violência por parte dos homens estando num presídio masculino. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-18/trans-travestis-nao-podem-viver-presidio-feminino-juiza>. Acesso em: 1 fev. 2019.
  • Pareceristas:

    Silmara Dela Silva Diego Barbosa da Silva

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Bethania Mariani

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2023
  • Aceito
    15 Maio 2023
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